Reinvindicações de reforma da legislação trabalhista nunca saíram da agenda política brasileira. Críticas em torno da suposta inadequação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ao mercado de trabalho nacional começaram quase simultaneamente à sua própria publicação em 1943. Como alguns opositores argumentaram à época, ela era uma regulação muito avançada para um país ainda subdesenvolvido. Não se tratava, contudo, de uma rejeição espelhada pelos países com padrão trabalhista mais avançado. Na verdade, ela era provocada por dois fatores muito evidentes: o inegável balizamento de contenção do poder patronal ilimitado e a distribuição proporcionada pela adoção de um padrão estruturado de regulação trabalhista. Mesmo assim, dada a centralidade da Justiça do Trabalho para a efetividade dos direitos sociais, não é errado dizer que, estruturalmente, o sistema fechou seu círculo de concepção e funcionamento do meio para o final dos anos 1950. Com o passar do tempo, ante a impossibilidade de reversão legal e institucional, as críticas modificaram-se e, na década de 1960 do século passado, concentraram-se no regime da estabilidade decenal, que assegurava a impossibilidade de dispensa sem justo motivo após dez anos de trabalho para o mesmo empregador, e seu impacto na produtividade do trabalhador argumentando que a primeira teria uma relação inversamente proporcional com a segunda, ou seja, quanto mais de tempo de casa tivesse o empregado menor seria sua produtividade. Esse intenso debate gerou duas características bem marcantes do mercado de trabalho nacional: a alta rotatividade no emprego como regra de encurtamento de vínculos empregatícios e a insistência nas simulações destinadas à descaracterização desses mesmos vínculos. O regime militar manteve essa padronização, inclusive sindical, e a Constituição cidadã da redemocratização reforçou seus fundamentos ao incorporar vários direitos, manter a unicidade sindical e fortalecer a Justiça do Trabalho. Duas décadas mais tarde, principalmente durante a segunda metade da década de 1990 do século passado, a CLT foi intensamente criticada por supostamente retardar a competitividade internacional do país em decorrência dos altos custos trabalhistas que ela engendrava. Finalmente, na última década, a regulação do trabalho foi mais uma vez colocada sob intenso escrutínio, dessa vez supostamente por conta de sua incapacidade em fornecer respostas aos desafios colocados pela crise econômica. Nessas duas ondas, a matriz das críticas foi deslocada do campo dos direitos para as condições de competitividade do país e das alternativas para superação da crise econômica, como se fosse possível construir uma reação econômica exclusivamente a partir da redução do patamar de direitos. Entretanto, apesar de todo esse criticismo, a CLT sobreviveu a três diferentes Constituições (1946, 1967 e 1988) e a importantes alterações legislativas como a Lei n. 5.107, de 13 de setembro de 1966, que criou o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) e tornou mais fácil para os empregadores o encerramento do contrato de trabalho. Ela testemunhou mudanças políticas substantivas, com a passagem de um governo civil autoritário para a democracia (1945), seguida de um período militar ditatorial (1964-1985) ao final do qual se regressou ao cenário democrático que possibilitaria a chegada ao poder do Partido dos Trabalhadores (PT), cujo líder Luis Inácio Lula da Silva alcançaria a presidência do país em 2002, tempos após ter criticado a parte sindical da CLT sustentando que ela era o AI-5 do trabalhador brasileiro. Alguém poderia argumentar que essa habilidade para se adaptar diante de cada novo cenário político e/ou social, independentemente de sua moldura ideológica, revelaria uma inesperada flexibilidade normativa que contradiz a reprovação original endereçada ao texto consolidado. Ainda assim, uma hipótese diferente é possível: sua resiliência decorre de seu papel central na sociedade brasileira. Em outras palavras, como descrito por ocasião da celebração dos 1970 anos da CLT pelo líder sindical João Guilherme Vargas Neto, ela seria o que proporcionaria alguma unidade à sociedade brasileira sob uma perspectiva social, política e econômica. Poder-se-ia então reescrever a frase para dizer que a CLT encarna a cidadania brasileira, além de uma ideia – ainda que difusa – de desenvolvimento econômico.
Não é, por conseguinte, surpresa alguma que este mesmo debate tenha sido revivido durante a campanha presidencial de 2014, que terminou com a reeleição da candidata petista Dilma Rousseff, cuja recusa em modificar a CLT tinha sido explicitada ao longo de toda a campanha. Nesse sentido, ficou famosa sua boutade, consoante a qual “não toco nos direitos trabalhistas nem que a vaca tussa.” Em outras palavras, na medida em que a CLT incarnava uma longa história de direitos sociais no Brasil, ela não deveria ser emendada ou modificada. Entretanto, durante o ano que se seguiu à reeleição e ao longo da campanha efetuada pelo seu impeachment, essa agenda derrotada reapareceu no debate legislativo, ainda que especialmente focada na questão da regulamentação da terceirização. Claramente, após o impeachment de 31 de agosto de 2016, uma janela de oportunidade abriu-se para uma reforma do mundo do trabalho, cuja proposta seria apresentada pelo governo Temer no final de dezembro de 2016. Enquanto o Congresso Nacional encontrava-se ainda discutindo a proposta de reforma, foi aprovada a Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017, cujos dispositivos retiravam a maioria das limitações ainda impostas à prática da terceirização. Muito antes que o impacto dessa profunda modificação no mundo do trabalho pudesse ser efetivamente avaliado, o Congresso Nacional, não sem antes ampliar a proposta original, aprovou a Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, que, ao modificar uma centena de artigos da CLT, impunha uma radical mudança na regulamentação do mundo do trabalho no Brasil. Embora tenha sido estabelecida uma vacatio legis até novembro de 2017, é possível desde já afirmar que uma mudança societal parece estar se operando sob os nossos olhos. Fazer um esforço de compreensão sobre esse processo é o primeiro passo para entender os dilemas que esta nova normatividade acarreta, aqui proposto de forma ensaística e buscando explicitar o itinerário errante, o conteúdo fragmentado e o salto no escuro proporcionado pela reforma trabalhista.
Enquanto as circunstâncias econômicas estavam redefinindo as condições de trabalho no início dos anos 1990 do século passado, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) editou a Súmula 331, que se tornaria a principal regulamentação para a terceirização no país. Basicamente, ela reafirmava a ilegalidade da contratação de trabalhadores por empresas interpostas, estabelecendo a existência de uma relação de emprego com o tomador de serviços, salvo quanto ao trabalho temporário (Lei n. 6.019, de 03 de janeiro de 1974), aos serviços de vigilância privada (Lei n. 7.102, de 20 de junho de 1983), aos serviços de limpeza e conservação e à Administração Pública (artigo 37, II da Constituição Federal de 1988). Mas ela também introduziu duas grandes novidades: (a) uma cinzenta distinção conceitual entre atividades-fim e atividades-meio, que assume ser a primeira relacionada com a atividade nuclear do tomador de serviços e ser a última despida dessa característica, e (b) uma responsabilidade subsidiária atribuindo encargos trabalhistas aos tomadores de serviço em face da insolvabilidade dos fornecedores desde que eles tivessem participado do processo judicial e estivessem inscritos na decisão condenatória dos tribunais. O mosaico jurisprudencial estabelecido pela Súmula 331, por um lado, endossava o contrato de trabalho como a principal figura normativa para regular o mundo do trabalho subordinado e, a contrário senso, estabelecia suas exceções explícitas (trabalho temporário, vigilância privada, serviços de asseio e conservação e administração pública); por outro lado, ela claramente reconhecia a existência de uma zona cinzenta na qual a distinção deveria ser efetuada com base nas categorias atividades-fim e atividades-meio, permitindo que a terceirização pudesse ocorrer nas últimas. Mesmo assim, ela deveria ser utilizada de forma bastante cuidadosa, pois uma inovadora responsabilidade subsidiária fora criada pela jurisprudência do TST.
O Congresso Nacional não ignorou o debate judicial sobre a terceirização e sua primeira reação à Súmula 331 seria a aprovação da Lei n. 8.949, de 09 de dezembro de 1994, cujo conteúdo explicitava a inexistência de uma relação de emprego entre uma sociedade cooperativa e seus membros ou entre eles e o tomador de serviços de um trabalho fornecido por uma sociedade cooperativa, independentemente do campo de atividades da referida cooperativa. Essa era, contudo, uma resposta pleonástica na medida em que a nova legislação era uma mera reprodução do artigo 90 da Lei n. 5.764, de 16 de dezembro de 1971 (Política Nacional de Cooperativismo). Na verdade, sua real intenção consistia em tornar a prática da terceirização mais fácil sempre que ela fosse realizada por uma sociedade cooperativa. Que não paire nenhuma dúvida: o comando normativo claramente induzia ao comportamento simulado de descaracterização de vínculos empregatícios. Como resultado, a ocultação de relações de emprego por meio de cooperativas tornou-se uma prática comum. Incontáveis casos de empregadores dispensando empregados para, em seguida, recontratá-los por meio de uma cooperativa ou encaminhado novos empregados para uma cooperativa que já estivesse lhes fornecendo serviços assim como o uso de cooperativas para contornar a interdição de terceirização das atividades-fim inundaram as cortes trabalhistas. Como esperado, a resposta judicial mobilizou o artigo 9º da CLT, cujo conteúdo estabelece ser nulo todo e qualquer ato pretendendo desvirtuar, impedir ou fraudar sua aplicação, o que, naturalmente, se entenderia à aplicação da Súmula 331.
Uma tentativa para regular a terceirização foi efetuada em 26 de outubro de 2004, quando foi apresentado o Projeto de Lei (PL) n. 4.330. Em sua exposição de motivos, o projeto dava a terceirização como um fato incontornável, ou seja, uma realidade que necessitava ser reconhecida. Ela narrava que
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o mundo assistiu, nos últimos 20 anos, a uma verdadeira revolução na organização da produção. Como consequência, observamos também profundas reformulações na organização do trabalho. Novas formas de contratação foram adotadas para atender à nova empresa. Nesse contexto, a terceirização é uma das técnicas de administração do trabalho que têm maior crescimento, tendo em vista a necessidade que a empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio principal e na melhoria da qualidade do produto ou da prestação de serviço. No Brasil, a legislação foi verdadeiramente atropelada pela realidade. Ao tentar, de maneira míope, proteger os trabalhadores simplesmente ignorando a terceirização, conseguiu apenas deixar mais vulneráveis os brasileiros que trabalham sob essa modalidade de contratação. |
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O silogismo é bastante simplório: a terceirização é uma realidade; esta, por sua vez, atropela a legislação; logo, façamos uma legislação consoante à realidade. Esse debate foi conduzido de forma muito precária, antecipando o clima de acirramento binário atualmente vivido em quase todos os espaços da vida nacional. Não houve espaço e tampouco ambiente para conversar em patamares mais racionais sobre a questão da descentralização produtiva provocada pelas transformações tecnológicas e produtivas. A visão fundamentalista predominou nas abordagens favoráveis à terceirização ampla como submissão à realidade. Não se vê aqui, contudo, nem mesmo um simples questionamento sobre o papel do direito. Retificar uma perversa realidade seria sua derradeira finalidade? Essa parece ser a perspectiva do projeto cujos dispositivos afirmavam a inexistência de uma relação de emprego entre tomadores de serviço e os trabalhadores contratados pelo fornecedor de mão-de-obra ou seus parceiros. Basicamente, o projeto permitia a terceirização de todas as atividades, eliminando assim a distinção conceitual produzida pelo TST entre atividades-fim e atividades-meio. Textualmente, o projeto estabelecia que “o contrato de prestação de serviços pode versar sobre o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares à atividade econômica da contratante.” O debate legislativo em torno da proposta prosseguiu ao longo de três legislaturas (2003-2006, 2007-2010 e 2011-2014) e, mesmo sem nunca chegar ao estágio de votação no plenário, ganhou enorme intensidade no final da terceira legislatura, ou seja, a partir de 2013. Embora a terceirização tivesse sido uma questão menor na campanha presidencial de 2014, a recém-eleita Câmara dos Deputados acelerou o debate legislativo sobre a matéria e, após três sessões deliberativas em abril de 2015, aprovou o referido projeto por uma maioria de 63% e o encaminhou para o Senado Federal, onde ele se transformou no Projeto de Lei da Câmara (PLC) n. 30, de 28 de abril de 2015.
O PLC n. 30/2015 estava ainda sendo discutido no Senado Federal, quando o novo cenário político resultante do impeachment da presidente Dilma Rousseff trouxe o debate sobre os direitos sociais e a seguridade social para o centro da agenda pública. Propostas de reformas para ambos foram avançadas como sendo absolutamente necessárias para o equilíbrio das contas públicas e para a recuperação da economia do país. Quanto à terceirização, um inesperado movimento foi efetuado pelo governo, recuperando o há muito esquecido PL n. 4.302, de 19 de março de 1998. De fato, proposto pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, o projeto tinha sido originalmente aprovado pela Câmara dos Deputados em 13 de dezembro de 2000 e pelo Senado Federal em 16 de dezembro de 2002, onde sofrera pequenas modificações, que exigiam uma nova votação pela instância legislativa original. Contudo, uma vez recebido pela Câmara, o projeto passou por diferentes comitês legislativos até 19 de agosto de 2003, quando o presidente Lula, que sucedera FHC, solicitou a retirada do projeto. Conquanto a solicitação do presidente Lula nunca tenha sido examinada, o debate em torno do projeto perdeu fôlego e, um ano mais tarde, foi incorporado na discussão sobre o então recentemente introduzido PL n. 4.330/2004. Após mais de quatro anos sem qualquer iniciativa relacionada com o projeto de 1998, seu processo legislativo foi retomado com seu relator indicando, em 17 de novembro de 2016, que “eventual diferenciação entre atividade-fim e atividade-meio mostra-se um empecilho, pois as empresas da atualidade trabalham em redes de produção e, por isso, precisam contratar de tudo. O importante é que contratem de forma correta”. Menos de seis meses depois, o projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados, não obstante as reclamações da oposição realçando a solicitação não examinada de sua retirada efetuada pelo presidente Lula em 2003, e convertido na Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017.
Na verdade, esta legislação introduzia uma nova regulamentação do trabalho temporário indicando que ele poderia ser utilizado tanto para atividades-meio quanto atividades-fim a serem executadas no tomador de serviços por um período de 180 dias com uma extensão possível de mais 90 dias. Devido à sua limitação ao trabalho temporário, mais do que uma mudança radical na regulamentação da terceirização, a nova lei enviava uma clara mensagem de repúdio à Súmula 331 e antecipava o cenário proposto pelo PL n. 4.330/2004 na medida em que permitia a terceirização de todas as atividades relacionadas com o negócio do tomador de serviços independentemente da distinção jurisprudencial entre atividades-fim e atividades-meio. Doravante, se a regulamentação proposta pelo PLC n. 30/2015 for aprovada, a única restrição residiria na especialização do fornecedor de serviços como um mecanismo a impedir a mera e simples intermediação de força de trabalho. Questões relacionadas com o cumprimento das leis trabalhistas, com a responsabilidade do tomador de serviços e representação dos trabalhadores são também discutidas no projeto de lei e elas proporcionam uma nova e completa regulamentação para a terceirização. Mesmo assim, a agenda da reforma trabalhista é maior que a terceirização e uma nova regulamentação promovendo a prevalência do negociado sobre o legislado viria a ser proposta pelo governo Temer.
De fato, quatro meses após o impeachment de Dilma Rousseff, o governo Temer enviou uma proposta de reforma trabalhista ao Congresso. O PL n. 6.787, de 23 de dezembro de 2016, propunha impactantes modificações na regulação do trabalho, a mais importante delas sendo a prevalência do negociado sobre o legislado. Conforme indicado na mensagem governamental ao Congresso, a reforma pretenderia empoderar os parceiros sociais de forma a valorizar a negociação coletiva e ampliar o diálogo social. Muito embora ela propusesse uma mudança profunda na cultura jurídica brasileira e em sua arraigada vinculação à lei (assumindo, naturalmente, que tudo isso possa ser modificado por decreto), o pertinente debate legislativo foi raso e célere, com sua aprovação ocorrendo em 27 de abril de 2017. Menos de dois meses mais tarde, em 11 de julho de 2017, a reforma seria aprovada no Senado Federal e, dois dias mais tarde, promulgada como Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, pelo presidente Michel Temer. Nesse curto intervalo de tempo, seu debate girou em torno de quatro diferentes aspectos: (a) a pretensa necessidade de atualização da CLT, um diploma legislativo datado de 1943, (b) o impacto da regulação do trabalho nas taxas de desemprego, (c) a excessiva litigiosidade decorrente do mundo do trabalho, e (d) a insegurança jurídica oriunda de uma inflacionada regulação jurídica e de uma jurisprudência excessivamente protetiva. Muito embora não haja qualquer evidência empírica para corroborar a maioria desses argumentos, eles foram e continuam sendo mencionados como as principais razões para a reforma.
Quanto ao argumento do envelhecimento, deve-se dizer que antiguidade nunca foi uma razão em si para endossar uma eventual mudança legislativa. Trata-se de um verdadeiro despautério. É algo tão despropositado como se alguém sustentasse que a Constituição dos Estados Unidos da América (1787) deveria ser alterada, pois, afinal, com mais de dois séculos de existência, ela é muito velha. De fato, a necessidade de se rever um texto normativo não surge como uma consequência natural da passagem do tempo, mas decorreria da incapacidade jurídica de uma antiga disposição legal regular novas circunstâncias da vida cotidiana. Pode também decorrer de novos arranjos societais que redefinam o modo pelo qual a regulação jurídica é percebida ou desejada em uma determinada matéria. Claramente, entretanto, este não é o caso para a reforma trabalhista, pois a CLT é ainda percebida como um elemento chave na cultura jurídica trabalhista brasileira e seus contornos permanecem como o paradigma regulatório das relações de trabalho. Na verdade, a controvérsia sobre o envelhecimento da CLT não propõe um debate sobre sua suposta inadequação ao mundo do trabalho ou sobre a desejada qualidade do emprego, mas assume a necessidade de uma nova regulação como um truísmo decorrente da economia globalizada. O envelhecimento da CLT é um falso argumento, muito similar àquele mobilizado na década de 1960 do século passado, consoante o qual a ausência de cumprimento em relação às disposições da legislação trabalhista seria um resultado inevitável de um cenário jurídico que era supostamente inadequado para a realidade do país. Em outras palavras, é o velho debate de Oliveira Vianna distinguindo entre Brasil legal e Brasil real repaginado para o século XXI. Ambos os argumentos – envelhecimento e inadequação – são claramente retóricos e despidos de qualquer evidência empírica robusta. Esses dois equívocos são também encontrados na segunda controvérsia, a que assume a existência de uma relação direta entre regulação do trabalho e taxas de desemprego. Trata-se de um argumento que tem sido mobilizado não apenas no Brasil, mas também em diferentes países emergentes para justificar e introduzir reformas do trabalho. Contudo, essa relação está longe de ser corroborada pelos fatos. O período venturoso recente da história do país demonstra claramente que, quando a economia está em processo de expansão, a regulação do trabalho é irrelevante. Até muito pouco tempo atrás, o problema do Brasil era a ausência de mão de obra qualificada suficiente para responder ao crescimento econômico e não foram poucos os trabalhadores estrangeiros que chegaram ao País para suprir essa demanda. O que se testemunha agora é, na verdade, um fenômeno estrutural, pois não adianta reduzir direitos quando a economia não reage.
Os dois últimos aspectos controversos estão diretamente relacionados com a forma pela qual as disputas trabalhistas são resolvidas no Brasil. É verdade que a litigância trabalhista brasileira apresenta elevados índices quantitativos e que as estatísticas continuam a aumentar ano após ano. Mas, porque isso é assim? A litigância decorre de uma supostamente rígida regulação do trabalho ou é consequência de seu enorme descumprimento por parte de empregadores? Todos os trabalhadores são free riders do judiciário trabalhista aproveitando-se de seus incentivos para litigar? Como isso explica que o assunto mais frequente na litigância de casos novos nas Varas do Trabalho diga respeito a verbas rescisórias? Estas questões permanecerão, infelizmente, sem respostas, já que elas foram evitadas pela reforma trabalhista ao redirecionar o debate para as temáticas do acesso às cortes trabalhistas e aos padrões de adjudicação oferecidos por estas últimas. Ao invés de propor um amplo debate sobre o papel dos tribunais trabalhistas e o fortalecimento da negociação coletiva articulada e simultaneamente centralizada e descentralizada, a reforma dificulta seu acesso, que até aqui tinha sido extremamente generoso na medida em que empregados não pagavam taxas para litigar. Mais do que isso, a reforma tenta limitar as possibilidades de interpretação judicial assumindo que juízes do trabalho são responsáveis pela produção de incertezas para a regulação do mundo do trabalho. Essas duas medidas – limitação de acesso às cortes trabalhistas e redução das possibilidades interpretativas do juiz – são, portanto, assumidas pela reforma como iniciativas que irão reduzir a litigiosidade trabalhista para patamares razoáveis. Entretanto, o resultado dessa posologia é imprevisível já que a competição interpretativa sobre o significado e alcance da reforma corre solta nesses quatro meses de vacatio legis e ainda aguarda a entrada em cena de um de seus maiores protagonistas, justamente aquele cuja atuação a reforma pretende limitar, ou seja, as cortes trabalhistas.
Embora a Lei n. 13.467/2017 esteja sendo referenciada como o quadro normativo da reforma trabalhista, o que facilitará o trabalho dogmático dos juristas preocupados em fornecer uma chave analítica para sua interpretação, é preciso reconhecer que a reforma constitui um patchwork incompleto. Em outras palavras, para melhor compreender seu alcance faz-se necessário incluir o debate inconcluso sobre terceirização e incorporar os ajustes que o governo Temer promete realizar por meio de medida provisória para retificar o que não teria saído a contento na legislação aprovada. É, portanto, um trabalho em construção. Contudo, restrinjamo-nos, por ora, ao marco específico da Lei n. 13.467/2017, que alterou quase uma centena de artigos da CLT. Talvez seu ponto mais importante seja a prevalência do negociado sobre o legislado, ainda que isso não seja necessariamente uma novidade na medida em que essa preponderância era acordada sempre que a negociação importava na ampliação dos direitos atribuídos pela lei e na melhoria das condições de trabalho. Na verdade, a novidade aqui reside na eliminação dessa condicionante. De fato, a reforma estabelece que o exame judicial de uma convenção e/ou acordo coletivo é guiado pelo mínimo de intervenção na autonomia coletiva dos parceiros sociais e é limitado às formalidades jurídicas do ato. Doravante, os parceiros estão livres para estabelecer o que melhor lhes aprouver quando a convenção e/ou acordo coletivo versar sobre: jornada de trabalho (respeitados os limites estabelecidos pela Constituição); banco de horas anual; intervalo intrajornada (respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas); adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE); plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança; regulamento empresarial; representante dos trabalhadores no local de trabalho; teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente; remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado e remuneração por desempenho individual; modalidade de registro de jornada de trabalho; troca do dia de feriado; enquadramento do grau de insalubridade; prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho; prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo; e participação nos lucros ou resultados da empresa. Alguns desses direitos podem ser negociados por meio de acordo individual, mas, mais importante, todos eles podem ser negociados individualmente por empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, ou seja, pouco mais de 11 mil reais. Estabelece-se, assim, mediante a combinação de background educacional e percepção de um salário razoável para os padrões nacionais, uma espécie de autonomia individual que permite, inclusive, negociar na contramão da deliberação coletiva.
Outras importantes modificações são encontradas na reforma trabalhista. Elas dizem respeito à representação dos trabalhadores com a introdução da comissão de empregados nas empresas com mais de duzentos empregados e aos mecanismos de financiamento dos sindicatos por conta do da extinção do imposto sindical. No âmbito da litigância trabalhista, destacam-se o reconhecimento da possibilidade de prescrição intercorrente, a tarifação do dano extrapatrimonial e a introdução da regra de sucumbência na Justiça do Trabalho. As mudanças são, portanto, substanciais e afetarão o arranjo institucional em torno do mundo do trabalho. Com efeito, ao longo de toda sua existência, a CLT propiciou um arranjo institucional para o mundo do trabalho assentado em um tripé: (a) a prevalência do legislado, (b) a unicidade sindical com mecanismos de financiamento compulsório, e (c) a Justiça do Trabalho como um lócus de resolução dos problemas verificados no mundo do trabalho. Esse arranjo institucional passou incólume pelas inúmeras transformações sociais e políticas do país por cerca de sete décadas, sobrevivendo tanto a retrocessos autoritários quanto a reconfigurações democráticas. Entretanto, com a reforma trabalhista, sem que uma voz sequer se levante para explicitar o rumo dessa transformação, esse arranjo institucional parece estar sendo desfeito. Na primeira ponta do tripé, introduz-se a prevalência do negociado, mas de forma fragmentada, pulverizada. Na outra ponta, subtrai-se o mecanismo de financiamento, sem, contudo, tocar-se na unicidade. Os comandos são diretos no sentido do enfraquecimento dos sindicatos. Direcionam e fragmentam as negociações por empresas e não permitem a ruptura da unicidade por meio de um sistema de liberdade sindical. Com isso, eles mantêm rígido controle sobre a baixa representatividade da imensa maioria dos sindicatos brasileiros. Por fim, na terceira extremidade, modifica-se substancialmente a forma de atuação da Justiça do Trabalho, introduzindo mecanismos redutores de suas possibilidades de interferência. Essa redução, aliás, é consentânea com os cortes orçamentários verificados em 2016, quando se verificou uma redução de 30% em seu custeio e de 90% em seu investimento, e prossegue com a proposta orçamentária de 2018, que sugere um corte linear de 20%. Não obstante tudo isso, o arranjo institucional que está a se desenhar para o mundo do trabalho é uma grande incógnita, que deveria despertar alguma – senão muita – inquietação.
Na esteira da onda conservadora que varreu o país, produz-se um cenário inquietante, marcado por discussões equivocadas, esquecidas e frustrantes. Com efeito, o debate em torno da reforma trabalhista parece-nos pautado por duas discussões equivocadas. De uma banda, clama-se pela mudança sem que seja apresentada qualquer evidência empírica que corrobore sua necessidade. A decrepitude e a inadequação da CLT são decantadas como fato incontroverso, sujeito tão somente à inevitável constatação do bom senso. De outra banda, verifica-se a incapacidade do campo crítico em constatar e enfrentar os problemas existentes no modelo vigente. É certo que há vozes críticas, que há uma competição de sentido no interior da Justiça do Trabalho e que há bandeiras sindicais atreladas à pluralidade, à democracia e à autonomia coletiva. Entretanto, elas não têm encontrado eco nas arenas de discussão, fazendo com que os protagonistas das controvérsias do mundo do trabalho produzam um debate equivocado, pautado por posições binárias e dicotômicas que não dão conta de sua complexidade. Disso resulta uma dupla discussão esquecida sobre, de um lado, a representação dos atores sociais e, em especial, os sindicatos, e, de outro lado, a qualidade do trabalho. Ao longo de seus anos de vigência, a CLT viu a representação sindical esvaziar-se, fazendo com que a maioria dos trabalhadores desconheça a atividade sindical de sua correspondente categoria e, por via de consequência, os sindicatos tenham tido sua legitimidade solapada. Enquanto isso acontecia, o debate sobre a qualidade do trabalho foi escanteado, sem jamais conseguir ganhar a arena pública. Enquanto nos anos 1960 e 1990, o debate resumiu-se, respectivamente, à produtividade e à empregabilidade, ele agora parece cingir-se à competitividade, sem que, em nenhum dos três momentos, tenha-se conseguido elevar a discussão à questão da qualidade.
Nesse momento em que, por conta da reforma trabalhista, uma nova oportunidade de debate sobre a qualidade do trabalho se oferece, o que se produz, entretanto, é uma discussão frustrante. A discussão sobre a regulação do mundo do trabalho tornou-se frustrante, pois ela foi capturada pelo viés dicotômico que transformou a sociedade em um campo de batalha. Ela foi incorporada como mais um nicho das guerras culturais que hoje perpassam a sociedade brasileira. Presente no campo dos direitos humanos, da família, da escola, da política, essa guerra reduziu o debate ao confronto “nós vs. eles”, como, aliás, retratam as notícias mais recentes sobre a repercussão da mudança legislativa. Nos seminários acadêmicos que procuram decifrar o alcance das mudanças, são comuns as narrativas que mimetizam a lógica do pugilato: no lado direito do ringue, a “modernidade”, a “flexibilização”, a “diabolização” do Estado, e, no lado esquerdo, a denúncia do “vandalismo” contra os direitos dos trabalhadores e a “indigência científica” das propostas adversas, o elogio ao “esforço criativo” dos tribunais e à combatividade das posturas “esclarecidas”. Em agosto passado, no 16º Congresso Brasileiro do Agronegócio em São Paulo, a desqualificação do Outro beirou o descalabro, com os juízes do trabalho sendo chamados de “mal formados”, a legislação trabalhista, de “tiranossáurica”, e os procuradores, de “loucos”. Discursos de desqualificação foram ali sustentados pelo jornalista William Waack, pelo empresário Walter Schalka e por Almir Pazzianotto, ex-ministro e presidente do TST, defendendo a recivilização do contrato de trabalho e a extinção da Justiça do Trabalho. Esta última pregação já fora antes realizada por Maílson da Nóbrega, ex-ministro do governo Sarney, ao afirmar, no seminário “A legislação trabalhista na visão empresarial: custos e benefícios”, promovido em maio desse ano pela FecomercioSP, que sua extinção impediria que “o negociado fosse interpretado pelo juiz trabalhista como contrário ao interesse do trabalhador.” Ao sugerir que os interesses contrariados não são jamais aqueles do patronato, mas por certo aqueles do operariado, que além disso seria infantilizado pela justiça laboral, o discurso desqualificante ganha matizes ideológicos com atribuição pueril de papeis pré-constituídos: trabalhadores infantis, juízes opressores e um patronato impedido de produzir mais riqueza. É um debate ridiculamente constituído que leva até mesmo um Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) a mobilizar equivocadas estatísticas e, uma vez confrontado com o equívoco, apenas replicar que não foi ele quem produziu os números e que apenas os citou. Mas não é só, pois a frustração decorre também da captura pelas agendas corporativas, que contestam a reforma a partir das ameaças que elas proporcionam aos seus protagonismos no arranjo institucional. No fundo, a frustração parece construir-se pela ausência de centralidade emprestada ao principal objeto do debate – o trabalho – e o foco nos papeis institucionais que os diferentes atores desempenharam ao longo dos anos de existência da CLT. No final das contas, perguntamo-nos: para onde vai o mundo do trabalho no Brasil? Na ausência de uma discussão sobre a qualidade do trabalho e sobre o incremento do bem-estar que sua melhoria poderia proporcionar, parece-nos que a reforma, ao introduzir uma mudança substancial no arranjo institucional precedente, produz, de uma banda, uma regulação fragmentada, que importará em uma apropriação mais perversa do trabalho e, de outra banda, um novo arranjo institucional cujo desenho será construído a fórceps no cotidiano massacrante da crise, sempre em detrimento do trabalhador. Oferecer uma alternativa é nosso dever, pois, no fundo, assumindo que o argumento de articulação entre trabalho, desenvolvimento e cidadania está correto, é o já tíbio cidadão brasileiro que é aqui o maior derrotado.
Rio de Janeiro e São Paulo, setembro de 2017.
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