Estamos em 2014, na reedição de cinquenta anos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo quando, de súbito, em frente a grande marcha verde amarela surge uma faixa negra carregada por dois jovens vestidos de negro. A faixa porta uma inscrição em fontes góticas que com dificuldade pode ser lida, pois o seu texto está grafado de trás para frente. A mensagem presente no texto é tautológica, já que apresenta escrito “Esta imagem está invertida”. A ação faz parte do projeto artístico Opacidade Transitiva para Ocupação que nesse caso culminou com o quase linchamento do artista e seus comparsas em meio à marcha.
Antes de adentrarmos com cuidado as questões estéticas dessa obra intitulada Faixa - PROUN, cabe uma breve apresentação tanto de seu artista Deyson Gilbert, como do problema que iremos esboçar por meio da análise de duas obras criadas por ele. Trata-se de obras de arte que, embora realizadas há algum tempo, são extremante atuais e nos permitem com precisão apontar problemas que enfrentamos hoje e que se tornaram ainda mais graves em 2016.
Comecemos pelo problema fundamental, tendo em vista a recente, explícita e galopante reorganização social autoritária que o Brasil vem sofrendo desde que as manifestações de junho de 2013 tomaram as ruas do país, como, nesse contexto, ainda a partir da especificidade do campo das artes plásticas contemporânea (atualmente mais chamado de artes visuais) produzir uma relação tensa e crítica entre arte e vida, arte e sociedade e arte e política? A dificuldade da questão se coloca de modo agudo quando percebemos que as novas configurações que muitos tinham como esperança de um novo espaço para uma reorganização de uma política de esquerda - como a formação de uma nova subjetividade dada principalmente a partir de uma lógica da política das redes virtuais e como as crescentes manifestações políticas na rua - acabaram por se transformar, também, em importantes instrumentos de um discurso e de uma ação autoritários de direita e extrema direita.
Para esboçar uma resposta, iremos trabalhar com duas obras de Deyson Gilbert, um jovem artista, que seriamente encara problema do engajamento na arte contemporânea. Gilbert, recentemente entrevistado sobre a relação entre arte-política em sua obra (em um grande livro originalmente organizado por uma associação de galerias brasileiras de arte), ao invés de dar a esperada resposta tipicamente engajada, com cuidado responde: “Chegamos a uma situação paradoxal, em que o uso de termos como ‘crítica’ e ‘política’ se tornou vazio e contra-produtivo. ‘Crítica’ e ‘política’ se tornaram para o circuito [artístico] o equivalente a ‘ecologia’ e ‘sustentabilidade’ para o empresário contemporâneo: os termos foram avacalhados a tal ponto que hoje servem muito pouco”.1 De fato, um segundo problema vem a ser que a própria arte engajada se tornou uma mercadoria especialmente rentável para o meio artístico; contudo, por meio de duas obras, ou melhor, de expulsões estéticas desse artista, vejamos como, a contrapelo dessa anulação crítica contemporânea, ainda seria possível produzir um deslocamento e tenso entre arte, vida, sociedade e política, operando nas fronteiras dos limites do próprio limite da instituição artística.2
I - Primeira expulsão
Comecemos com uma obra que ocorreu cinco anos antes das Jornadas de Julho e que nos permitirá esboçar uma primeira relação entre arte e política que nos ajudará a pensar a nossa situação atual. Em 2008, na Galeria do Instituto Britânico de São Paulo, o artista produz uma instalação em que os convidados da vernissage eram expulsos da galeria através do avanço bem rápido e mesmo violento de um grande portão metálico que, a cada cinco minutos, velozmente abria e fechava pontualmente, varrendo todo o espaço expositivo sem exceção. Um detalhe importante da obra é que o artista, instantes antes do início da exposição e sem o conhecimento dos curadores, sorrateiramente colocou uma placa com o texto: “Homenagem ao caso Jean Charles”; a ação ocorreu três anos após Jean Charles, o cidadão brasileiro e inocente ter sido assassinado em Londres pela polícia antiterrorista britânica. 3
Na obra há uma relação imediata com a vida e mais precisamente com a morte. A morte de um brasileiro inocente pela polícia Londrina sendo forçosamente relembrada no Instituto de Cultura Britânica pela sorrateira e inesperada colocação da placa em “homenagem” ao caso do assassinado. Sem dúvida, a obra denota uma postura política que incomodou os desavisados cônsules, convidados britânicos, curadores, etc. O dado explicitamente político é de grande importância, assim como a enganação da equipe curatorial da exposição, pois o projeto a partir do qual a obra foi selecionada tratava da pontualidade do humor britânicos, assim como de relações históricas entre o Brasil e a Inglaterra.
Precisamente, gostaríamos de abordar essa obra como uma contraposição ao uso atual da ideia de estética relacional, uma ideia que,a partir do final dos anos 1990, em uma perspectiva neoliberal, tomou e ainda toma de forma quase hegemônica o pensamento contemporâneo da relação entre arte e vida, arte e sociedade, arte e política. A ideia foi cunhada em um livro de 1997 cujo título é propriamente Estética relacional, 4 lançado pelo filósofo, curador, historiador e crítico de arte francês Nicolas Bourriaud, atualmente uma das figuras mais importantes no cenário internacional de arte contemporânea. Mas o que propõem a estética relacional acerca da interação entre arte, vida e sociedade que a tronou mundialmente tão significativa, impondo-se como uma peça-chave em curadorias e na produção artística, tanto brasileira, como internacional?5
A principal ideia, que assume uma aparência emancipatória, é que esse novo tipo de arte descrito e filosoficamente sustentado pela estética relacional implica na passagem da tradicional relação de contemplação entre o público e o objeto artístico para elaboração de uma relação comunitária do público consigo mesmo; o espaço de exposição passa de um lugar em que frequentávamos para ver a produção artística enquanto objetivação da manifestação subjetiva do artista na obra, para um ambiente que propõe um espaço em que vamos para ser visto e para ver outras pessoas, conduzindo a uma relação de intersubjetividade do público que se torna o centro da manifestação estética. Para Bourriaud, as obras de arte relacional procuraram estabelecer encontros intersubjetivos em que o significado é elaborado coletivamente e não no espaço privatizado do consumo individual de uma obra de arte enquanto um objeto.
Um dos exemplos paradigmáticos de Bourriaud é a obra do artista argentino Rirkrit Tiravanija. Em 1992, em Nova York, ele criou uma de suas mais célebres obras, que foi descrita por um crítico como uma “cozinha de refugiados improvisados”, com pratos de papel, facas e garfos de plástico, bujões de gás, utensílios de cozinha, duas mesas; na galeria ele cozinhava macarrão oriental para os visitantes. Contudo não há refugiados na galeria e sequer a comida é importante, mas, a participação do público é o foco de seu trabalho, a comida é mais um meio para permitir uma relação de convívio entre público e artista e do público consigo mesmo - um público formado por artistas, galeristas, jornalistas, marchands, curadores, colecionadores, marqueteiros, críticos de arte e demais entusiastas da arte contemporânea.
Mas o que isso tem a ver com o neoliberalismo e com a transformação de procedimentos emancipatórios da esquerda em instrumentos autoritários da direita? E por que a obra de Gilbert rechaça tal proposta estética?
Para Bourriaud, a arte relacional é uma resposta direta à mudança da economia baseada na mercadoria para outra baseada em serviços.6 Somado a isso, o autor toma o novo tipo de artista como síntese de um mundo marcado pela mobilidade resultante da porosidade entre estados nacionais, pelas migrações, pelos fluxos financeiros acelerados e pelas navegações na internet. 7 Uma frase lapidar de Bourriaud é a que o artista de hoje reage à “aceleração do capitalismo global” não buscando barrá-la, mas com “mais movimento”.8
Há duas ideias fundamentais para a sustentação da estética relacional: a de que a complexidade das relações humanas a despeito de uma posição política autorregula-se espontaneamente, garantido uma experiência coletiva emancipatória democrática; e a ideia de que a teoria da lógica das redes da internet seja capaz de, por meio de sua própria complexidade, produzir uma plataforma democrática e igualitária. Cremos que ambas ideias venham ser um reflexo da liberdade e da espontaneidade de autorregulação de mercado imposta pelo neoliberalismo. E, de fato, se a fronteira entre arte e vida é rompida segundo o modelo de Bourriaud, temos uma arte que se torna una com o tipo de vida regido pela economia, política e subjetividade neoliberais.
Mais complicado ainda vem a ser o fato de que, em seus argumentos, a estética relacional é sustentada a partir de um grande repertório de temas invocados por filósofos e artistas de esquerda. Temas como neoliberalismo, biopolítica, lógicas de rede, multiculturalismo, questões de gênero e autores como Marx, Foucault, Deluze, Habermas são abundantemente citados como suportes da argumentação de Bourriaud, embora seja nítido que o conteúdo crítico de tais autores e termos seja completamente pervertido9 - um problema próximo mas que extrapola o escopo de nosso texto, não entraremos nesta ceara, mas nos centraremos nas referências artísticas do livro.
O livro em sua argumentação remete com grande vigor a propostas radicais de transformação na relação entre arte e vida, arte e sociedade e arte e política provenientes da década de 1960 e 1970. Ele tem como exemplo, dentre outros, o grupo Fluxus, a Internacional Situacionista e obras brasileiras de Hélio Oiticica e Lygia Clark, contudo, Bourriaud dilapida o fato de que tais propostas jamais visaram meramente aderir à vida cotidiana em sua forma liberal, mas, sim, criticar e transformar esteticamente a própria vida e, no caso dos situacionistas, a partir de uma nítida preocupação política de cunho radicalmente marxista. O próprio Bourriaud em seus textos tem em mente essa diferença e vê como uma grande transformação positiva o fato de que os artistas de nossa época, muito distantes de uma agenda crítica ou utópica dos artistas da década de 1960 e 1970, procuram apenas encontrar soluções provisórias no aqui e agora e, em vez de mudar seu ambiente, são artistas que simplesmente vão aprender a habitar o mundo de uma maneira “melhor”.
Voltando à obra de Gilbert apresentada na Galeria do Consulado Britânico, o que acho destacável é que ela radicalmente produz uma antiestética relacional, pois ela não gera um espaço para interatividade do público que poderia espontaneamente compartilhar, durante certo tempo, “novos modos possíveis de habitar” o mundo existente, mas, pelo contrário, a obra procura expulsar o público do espaço expositivo; ela procura, por meio da arte, expulsar o público do próprio espaço da arte, conduzindo-o a um outro espaço de uma reflexão sobre as condições de vida em uma democracia nada harmônica, mas sustentada pela violência.
Não estamos equivocados em pensar que a expulsão da instituição arte e a explosão dos limites entre política, arte e vida, propostas por Gilbert, retomam procedimentos comuns às mesmas referências da estética relacional, porém operando não apenas com as transformações formais da arte da década de 1960 e 1970, mas também com a elaboração estético-crítica das relações de violência e poder que sustentam a sociedade.
Nesse sentido, a obra de Gilbert ecoa a particularidade de muitas propostas artísticas das décadas de 1960 e 1970 que consolidaram a arte contemporânea em nosso país. Propostas exemplares para repensarmos uma forma de engajamento crítico na interação entre arte e vida e arte e sociedade. É importante lembrarmos que o ano do golpe de 1964, no âmbito da arte internacional, é marcado pela consolidação da arte contemporânea devido a três das principais manifestações artísticas que vieram se contrapor e suplantar à proposta modernista, sendo elas: a arte pop, o minimalismo, e o Grupo Fluxus, além de uma quarta, a arte conceitual, que se consolida na virada do ano.10
Respectivamente, cada uma delas irá a sua maneira se contrapor aos preceitos do alto modernismo americano conceitualizado e defendido pela crítica de Clement Greenberg por meio de suas ideias modernistas de alta cultura, de excelência do gosto, de fatura manual e de autonomia estética. Um alto modernismo que exalta através da sua autonomia a completa anulação de conteúdo - algo patente no expressionismo abstrato americano, então símbolo da democracia do país -, operando não apenas como uma oposição direta à arte do realismo socialista, mas também e principalmente como uma barreira ao conteúdo politizante de grande parte da arte moderna europeia e internacional. Uma arte moderna que até então havia se expressado em larga medida em sintonia com engajamento político e com o pensamento marxista, basta lembrarmos da Guernica de Picasso e que o artista recebe da União Soviética em 1962 o prêmio Lenin da Paz; ou que os muralistas mexicanos, como Rivera e Siqueiros, davam continuidade ao imaginário da Revolução Mexicana; ou que o surrealismo encabeçado por Breton tinha Trotsky ao seu lado; ou que abstração do suprematismo de Malevich era uma arte para a organização de uma sociedade revolucionária. Em muitos sentidos, a arte contemporânea, a despeito da radical transformação de seus procedimentos estéticos, retoma esse lugar do engajamento histórico do modernismo europeu e internacional.
Embora tais experiências estéticas contemporâneas fossem em muito proveniente dos Estados Unidos, elas se colocavam muito distintamente da abstração autonomista do alto modernismo americano, trazendo em seu bojo, não a afirmação da política cultural da direita americana,11 mas uma internacionalização de suas formas, conteúdos e propostas. Com exceção ao minimalismo, são três movimentos de caráter internacional: o Fluxus, com importantes filiações na França, Alemanha, Japão e Inglaterra; a arte conceitual, fortemente concentrada no grupo inglês Art and Language; além do importante papel do pop inglês que dista do americano por concentrar mais claramente a sua estética em uma crítica à sociedade de consumo. Além disso, os três grupos possuíam preocupações e influências marxistas, produzindo uma volta à problematização estética de um conteúdo simbólico em relação à sociedade.
Para o nosso objetivo, torna-se importante atentar para o que acontece quando essas transformações estéticas que inauguram e dão forma à arte contemporânea chegam ao Brasil em um momento concomitante ao golpe de 1964. O que representa “iniciar” nossa arte contemporânea justamente com o início de um regime ditatorial que permanecerá por 21 anos? Quais lições podemos aprender dessa peculiar experiência (comum também a Argentina, Chile e Uruguai) que nos permite elaborar expressões tensas e críticas entre arte contemporânea e política para nossa época atual?
Cremos haver algumas especificidades que marcam a apropriação da arte contemporânea no solo brasileiro sob o terrorismo de estado implantado pelo golpe. A primeira diz respeito a um rechaço pelas artes ao projeto moderno que se confunde com a implementação concreta, autoritária e conservadora do projeto de modernização do país executado pelos militares. O milagre econômico do Brasil, potência que é concomitante aos anos de chumbo de um regime que, tendo suspendido as garantias constitucionais, irá produzir um aparelho repressivo policial-militar que soma incontáveis torturas e assassinatos. Um obsceno terrorismo de Estado que foi ideologicamente sustentado por um patriotismo ufanista reafirmado, na grande mídia, entre a beleza da Miss Brasil, as comemorações do 7 de setembro, a vitória da Copa do Mundo, e o perverso mote “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Esse conluio entre nacionalismo, modernização e terror de estado acabou por configurar no campo artístico, a despeito da violenta censura, o seu próprio contra-discurso. Assim, a imagem de nação assume um importância fundamental, pois cabia à resistência promovida pelas artes desconstruir o imaginário de nação oficialmente veiculada pelo estado na mídia golpista. Por exemplo, grande parte de nossa arte pop não se dedicou a uma simples crítica à sociedade de consumo, mas, sim, a apresentar uma contra versão da identidade nacional, apropriando-se de forma irônica e crítica dos mesmos elementos que veiculavam a imagem unitária do ufanismo verde-amarelo e, ao invés das fotos de mercadorias e de grandes ícones midiáticos, ela trazia uma mistura entre fotos de bananas, mapas do Brasil, violência policial, passeatas, mortos políticos, torturas, demonstrando haver sangue por trás das imagens que atravessavam o nosso cotidiano. Algo similar ocorre com a arte conceitual e outras manifestações contemporâneas que assumem no interior de suas experiências formais conteúdos de resistência ao regime.
Nesse sentido, é importante lembrar que grandes experiências estéticas em sua experimentação máxima com a linguagem artística, ao limite do questionamento da própria instituição arte, ocorreram por aqui, naquela época, sem dúvida porque estavam aliadas a uma preocupação política de resistência - basta lembrarmos da produção de artistas como Cildo Merieles, Arthur Bárrio, Calos Zílio, dentre tantos outros, que fizeram, então, da arte engajada inúmeras das mais radicais experiências estéticas de nossa arte contemporânea.
Para elaborarmos uma relação crítica de engajamento entre arte e vida e arte e sociedade e arte e política para o nosso tempo, cremos ser extremamente significativo uma volta ao referencial histórico e político que marcou boa parte de nossa arte contemporânea nas décadas de 1960 e 1970, com o cuidado preciso para compreendermos as saídas conceituais e formais propostas por tais obras.
II - Segunda expulsão
Tendo em mente a memória do contra discurso produzido por boa parte de nossa arte contemporânea frente ao regime totalitário inaugurado em 1964 e, também, a atual e violenta onda conservadora que, nos últimos anos, tenta a todo custo tomar o país, voltemo-nos, agora, para a segunda expulsão do artista, a da faixa negra na Marcha da Família com Deus pela Liberdadeem 2014, com que abrimos o nosso texto.
A obra, como já mencionado, faz parte das ações artísticas de Opacidade Transitiva para Ocupação, de Deyson Gilbert. Antes de nos centrarmos propriamente na obra, comecemos por um esboço de interpretação dos três termos que definem tais ações. 12
1) Opacidade: como a qualidade do que não é claro, do que não pode ser claramente explicado, algo obscuro, sem contornos definidos, uma qualidade enigmática que, em lugar de produzir uma identidade, vem produzir o estranhamento.
2) Transitiva: como uma qualidade que está entre coisas, já como um efeito próprio da opacidade capaz de desestruturar os limites entre elas. A constante passagem do “entre”, a necessidade de transitar de um ao outro, de si para um outro. Como o trânsito irresoluto entre obra e espectador, sujeito e objeto, arte e vida, rua e galeria, privado e público, história e presente; entre arte e política e vice-versa - o vice-versa sendo muito importante. Um movimento de trânsito no interim entre a ida e a volta, em que a arte precisa sair de si e, por meio da própria arte, negar a sua autonomia artística em direção ao seu outro: a vida, a sociedade e a política.
3) Ocupação: no sentido de tomar um lugar, a tomada de uma posição que contudo deve ser transitiva entre a estética, o social, a política e a arte. A ocupação enquanto uma espécie de resistência opaca que, por exemplo, ocupa o presente por meio da memória. A opacidade de uma ocupação que não toma ou vem definir o poder. Ocupar as ruas, os museus e, sobretudo, o nosso imaginário. Uma ocupação negativa, por meio da opacidade e da transitividade, que contraditoriamente se funde ao próprio ato da expulsão.
Voltemos, finalmente, para 2014 e para obra Faixa - PROUN.Nessa experiência estético-política, Gilbert, com mais três amigos13 vestidos com roupa social preta e com faixas brancas na lateral do braço direito, erguem uma faixa negra bem grande em frente à passeata de reedição de 50 anos da Marcha da Família com Deus pela Liberdadeem São Paulo. A faixa simplesmente contém um símbolo abstrato que traz a imagem de uma cruz quebrada somada ao ramo de uma planta e também a frase “Esta imagem está invertida” grafada em grandes letras góticas brancas; além disso, a frase se encontra escrita de modo invertido, de traz para frente, como se tivesse sido espelhada, dificultando sua leitura.
De imediato, um número grande de pessoas e jornalistas vêm tirar fotos de Gilbert e de seus comparsas, pois o artista e seus companheiros vestidos em negro com uma faixa banca no braço e segurando a grande faixa negra com letras góticas produzem um impacto imagético forte. Em instantes um número significativo de skinheads se identifica com o aspecto visual da obra e se aproxima, imaginado que eles também fossem um grupo pró-fascista; muita gente de verde amarelo se aproxima. Começam a perguntar sobre o que está escrito na frase, a resposta do artista e seus companheiros é simples e direta: “Esta imagem está invertida”. Isso não satisfaz a turma verde-amarela que não compreende o sentido da faixa e insiste em perguntar sobre o seu sentido. A resposta continua sendo a mesma: “É uma faixa com a frase: esta imagem está invertida”, começa uma confusão, xingamentos são ouvidos - “traidores, comunistas filhos da puta, veado, bicha, petistas”. Coletivamente, eles começam a entoar o coro “lincha, lincha” que se alterna com “fora PT, fora PT”. O cerco torna-se mais fechado, gestos raivosos empurrões, dedo na cara, tapa na nuca, e a polícia se aproxima para supostamente tentar evitar o linchamento, embora nesse caso o temor dos artistas se torna ainda maior pela grande probabilidade de a polícia emprestar o cassetete para o linchamento e, em seguida, de prender Gilbert e seus dois camaradas. Os artistas rapidamente dobram a bandeira e saem correndo da passeata em direção à Catedral da Sé, onde a marcha mais tarde irá se encaminhar. Lá em frente à catedral eles abrem a faixa para estrategicamente tirar fotos antes que a furiosa marcha verde e amarelo os alcance.
O que ocorreu estética e politicamente nesta expulsão? O que leva à expulsão é o fato de eles simplesmente não dizerem quem eram, não se identificarem, não aderirem à identidade recíproca de direita. Eles, no entanto, não estavam falando do PT, não tinham nenhum símbolo nítido de esquerda, não trajavam roupas vermelhas; pelo contrário, suas roupas negras sociais com a faixa branca no braço, o cabelo com gel, as letras góticas e a frase e invertida, tudo isso estimulava a uma identidade pró-fascista, mesmo em relação à frase, eles poderiam ter inventado uma outra resposta: “a imagem do Brasil está invertida pelo poder corrupto comunista bolivarista, é o nosso dever e das forças armadas desinverter essa imagem e restituir o Brasil a sua verdadeira ordem”. Com certeza naquele momento eles seriam a aplaudidos por boa parte da multidão, quem sabe até poderiam tirar um self com o Coronel Telhada, Bolsonaro ou com o governador de São Paulo.
O que acontece é a opacidade de uma faixa com uma frase que, em si mesma, não possui manifesta ou explicitamente nenhum significado simbólico evidente; a opacidade da falta de clareza ou a falta da definição de seu sentido tornaram-na imediatamente a frase de um inimigo. Assim operam as identidades no comportamento de massa: ainda que sem um plano ou um projeto político definidos, a massa se torna una por meio da falsa identidade de um país unitário e positivo, sustentada pela imagem ufanista de unidade que denega violentamente a contradição, a diversidade e a luta de classes sociais, de (trans)gêneros, de etnias, de movimentos sociais e de distintos e múltiplos interesses no interior de uma nação democrática. A unidade imaginária é colocada na simplificação da frase “meu país sou eu”, “somos nós” (classe média, branca, cisgênero, católica evangélica), meu país é meu partido (Bíblia, Boi e Bala), minha bandeira política é a bandeira do Brasil (embora entremeada com os interesses da bandeira americana) e, principalmente, tudo que contradiz esta perversa unidade imaginária cabe ao massacre. Nós somos um, somos um país, uma identidade e tudo que estiver contrário a isso é o inimigo: o não Brasil, a corrupção seletiva de certos partidos, a não família, o comunismo, o que precisa ser massacrado. O primeiro momento estético-político da Faixa a Proun vem de sua expressão negativa de opacidade que a contrapelo manifesta a contradição real no interior dessa unidade ideológica e violenta do comportamento de massa verde-amarelo.
Porém, é possível, ou melhor, necessário, também pressupor que a opaca frase invertida não seja meramente tautológica; podemos transitar para um sentido além da mera inversão das letras, nesse caso a imagem invertida a que a frase se refere vem a ser justamente o que se encontra ao seu redor: uma grande passeata de direita, pedindo, como a cinquenta anos na véspera do Golpe, a intervenção militar contra os comunistas (no caso atual os “perigosos comunistas corruptos do PT”).
Só podemos compreender tal imagem como uma inversão de valores democráticos e de valores sociais e de uma mínima compreensão histórica. Conclamar nas ruas por uma intervenção anticonstitucional, por meio de um golpe infinitamente mais corrupto que as próprias acusações realizadas pelos golpistas, procurar, pela bandeira da corrupção e do anticomunismo e por uma distorção do sistema jurídico derrubar uma presidente legitimamente eleita, tal como há cinquenta anos, só pode ser uma inversão histórica, de um país que contudo parece não ter passados pelas atrocidades inesquecíveis desenvolvidas na Ditadura Militar iniciada com o Golpe de 1964. Por isso, a precisão histórica dessa dupla marcha (e das marchas verde amarelo que tomam o país) só pode ser uma imagem invertida que aparece pela primeira vez como tragédia e, agora, como uma brutal farsa histórica.
Se olharmos sob esta nova perspectiva, o símbolo que temos na faixa começa a tomar o aspecto de uma estilização do símbolo do martelo e da foice comunistas, o martelo do trabalhador urbano, pelo simplificado “T” na horizontal; e a foice do trabalhador rural que é metaforizada pela forma do ramo curvado, expressando a colheita do campo. De fato, analisando a obra em questão e conhecendo a trajetória de obras do artista, a ação com a faixa negra com as letras invertidas possui uma forte perspectiva de esquerda. A ação com a faixa expressa esteticamente o desconforto de uma posição de esquerda frente a grande marcha verde-amarela de 2014, que porta uma inversão do sentido original, histórico e emancipatório e que as ainda recentes manifestações de rua das Jornadas de Junho promoveram em 2013.
Observemos atentamente a obra e nos perguntemos que outras inversões e transições ela produz. Podemos nos perguntar por que os artistas correram para Catedral da Sé e lá novamente abriram a faixa? Vejamos com atenção a fotografia diante da igreja, 14 podemos notar duas cruzes: a primeira, ao fundo da imagem, onde Cristo jaz morto, presente na própria Catedral; e uma segunda, uma cruz quebrada emprega pelo artista na faixa (que também se encontra em boa parte de seus trabalhos).
O símbolo de Gilbert traz a imagem de uma cruz amputada que, de forma opaca, expressa os descaminhos da própria cruz cristã - lembremos que se trata de uma segunda Marcha da Família com Deus pela Liberdadeque celebra, como no passado, em 1964, uma fraturada espiritualidade que está tão em voga em nosso tempo. Uma religiosidade que se soma à defesa do Golpe à homofobia e aos interesses mais radicais da direita que o nosso tempo pode conceber.
A opacidade dessa cruz amputada também se refere, no entanto, a outra inversão, ou melhor, transição histórico-religiosa. Uma transição que nos remete a uma relação entre arte política e espiritualidade na Rússia pré-revolucionária e ao conjunto de cruzes pintadas pelo artista Kazimir Malevich. A espessura e o formato simplificado da cruz na faixa de 2014 são os mesmos das cruzes nas obras do artista russo; o próprio título Faixa Proun - o seu segundo termo é um sigla russa que provém de uma relação com a arte de Malevich.
As pinturas suprematistas do russo chegaram a uma radicalidade formal quase inacreditável para o modernismo da segunda década do século XX, impulsionando o próprio modernismo a uma radicalidade formal e conceitual, então, sem precedentes. Basta lembrarmos da importância histórica e literalmente iconoclástica de sua célebre pintura Quadrado Negro de 1915, uma revolução artística, produzida por Malevich, diretamente impulsionada pela revolução social que estava acontecendo na Rússia e também por sua fé religiosa e mística no poder de transformação social da arte. Tanto que a primeira vez que o Quadrado negro foi exposto em 1915, em Petrogrado, a pintura foi colocada no alto da parede em um dos cantos da sala, no mesmo local sagrado em que um ícone ortodoxo de um santo seria colocado em uma casa tradicional da Rússia. Para Malevich, a arte necessariamente possuía um significado estético, espiritual e político relacionado à formação de uma nova sociedade emancipada.
Já Proun, presente no título, foi desenvolvido, logo após a Revolução Russa de 1917, por El Lissitzky, um artista extremamente próximo a Malevich. O termo procura indicar a passagem dos ideais formais da pintura suprematistas para o espaço da tridimensionalidade. Nas palavras de Lissitzky, seria “o patamar onde alguém muda da pintura para a arquitetura”.15 O projeto Proun visou produzir de maneira precursora instalações estéticas tridimensionais como um modo de organizar o espaço real e coletivo da então principiante sociedade revolucionária.
O Proun, no caso da obra de 2014, vem nos trazer a memória de transitividade histórica com as propostas de estéticas revolucionárias de outra época. Já em relação à passagem do plano da pintura ao espaço tridimensional da arquitetura que Proun traz, podemos compreender que a Faixa nos convida, em nossa época, a pensar em uma passagem do plano institucional e autônomo da arte para o espaço coletivo da vida, da sociedade e da política.
III - Outras expulsões
A expulsão da Faixa - PROUN de Deyson Gilbert, como um convite aos artistas, à esquerda e a nós, de um modo geral, vem nos lembrar da importância da ocupação do lugar estético frente à onda conservadora. E, dentre os inúmeros modos de luta e resistência, vem enfatizar a consciência a respeito das possibilidades dessa resistência opaca e transitiva como uma ocupação do presente por meio da memória de nossa história, a memória do golpe e de sua violência, mas também do contra discurso frente a este; enfatizar a ocupação da liberdade sexual frente a uma religiosidade e moral conservadoras; a ocupação não apenas dos museus e galerias, mas principalmente das ruas e redes; a ocupação sobretudo de um imaginário capaz de revelar um Brasil diverso, complexo, socialmente classicista e violento frente a identidade unitária, autoritária e ufanista propagada pela mídia golpista. Por meio de experiências estéticas, as mais experimentais e disruptivas possíveis, ocupar um lugar, sim, de esquerda, ainda que com a plena consciência de que, sim, seremos expulsos. Mas talvez haja mais gente, muito mais gente do lado de fora do que dentro.
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