revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Tradução: Vinícius Nicastro HONESKO

Por uma polícia democrática

 

 


Levantemos uma hipótese absurda: o Movimento Estudantil toma o poder na Itália. De modo pragmático, claro, sem ter premeditado, por puro ímpeto ou ardor ideológico, puro idealismo juvenil etc. etc.. É preciso "agir antes de pensar", portanto... agindo pode acontecer tudo. Bem. O Movimento Estudantil está no poder: estar no poder significa dispor dos instrumentos do poder. O mais vistoso, espetacular e persuasivo instrumento do poder é a polícia. Assim, o Movimento Estudantil se encontraria com a polícia à disposição.
O que faria dela? Iria aboli-la? Nesse caso, é claro, perderia imediatamente o poder. Mas continuemos com a nossa absurda hipótese: o Movimento Estudantil, visto que tem o poder, quer conservá-lo, e isso com a finalidade de mudar, finalmente!, a estrutura da sociedade. Dado que o poder é sempre de direita, o Movimento Estudantil, portanto, para atingir o fim superior consistente na "revolução estrutural", aceitaria um regime provisório - por assembleia, não-parlamentar, em última instância - de direita e, desse modo, entre outras coisas, deveria decidir ter à sua disposição a polícia. 
Nessa absurda hipótese, como o leitor pode ver, tudo muda e se apresenta sob forma miraculosa, inebriante, diria. Só uma coisa não muda de fato e permanece o que é: a polícia.
Por que levantei essa hipótese maluca?
Eis o porquê: a polícia é o único ponto cuja necessidade de "reforma" nenhum extremista poderia objetivamente criticar: a propósito da polícia não se pode ser mais do que reformista.
O que fez o Poder em Avola (o Poder atual: o da democracia burguesa, parlamentar centralista)? Causou quatro vítimas.
Por meio de um velho espírito de caridade (que, entretanto, vem a coincidir com a atualíssima exigência de democracia real), eu não saberia dizer se são mais infelizes os dois mortos ou os dois policiais que dispararam.
Pensemos por um momento: como o Poder criou os dois mortos? Discriminando os cidadãos privilegiados e os cidadãos não privilegiados. Criando "carne humana" de preço alto e "carne humana" de preço baixo.
Ser: 1) siciliano (ou seja, pertencente a uma área pré-industrial e pré-histórica), 2) trabalhador braçal [bracciante] (isto é, pertencente à mais pobre das categorias pobres dos trabalhadores), significa ser um homem do corpo sem valor e que pode ser morto sem demasiados escrúpulos (a polícia, para dar um exemplo, praticou todo tipo de atos vis contra os estudantes, carne humana com valor médio bastante alto, mas jamais disparou contra eles).
E como o mesmo Poder cometeu os dois assassinos? É simples: tomando dois daqueles homens "de baixo custo" (meridionais, potenciais trabalhadores braçais) e transformando-os: de "pobres" a "assassinos" (ao Poder, para fazer isso, basta dar um generoso salário de quarenta mil liras mensais).
Como faz o Poder para transformar os pobres em instrumentos inconscientes? (É uma operação fácil: de fato, a inocência dos pobres é indefesa porque é natural; e é por meio dessa "inocência" - inconsciência política - que o Poder, em centros de treinamento, depois de ter persuadido alguns dentre os pobres com o sonho das quarenta mil liras, cria reflexos condicionados: que são algo muito diverso de uma educação e assemelham-se muito mais a um adestramento de autômatos do que de homens. Aos pobres "inocentes" se contrapõem assim os mesmos pobres facilmente "corrompidos". É uma notória técnica fascista para cumprir sua influência sobre as massas lumpemproletárias.)
Me dirão: mas tu partes do pressuposto de que os dois policiais que dispararam, nas origens sociais e na "cultura", são de todo semelhantes aos dois mortos. Sim - respondo -, parto do pressuposto que representa melhor a condição média dos policiais, a massa dos policiais. É verdade que, fisicamente, os que disparam e matam podem ter sido dois velhos policiais, provenientes dessas classes médias desgraçadas e terrivelmente incultas; mas essa seria a exceção, que seria a intervenção "direta" do Poder, e que não representaria tanto a tipicidade da intervenção "indireta", consistente em opor pobres a pobres, inocentes a inocentes. Ambos "marcados", diria, racialmente.
O massacre de Avolo tornou-se então o pretexto para pedir uma "reforma" da polícia que consista, neste momento, numa primeira medida radical: desarmá-la.
É apenas uma reforma e, como tal, a sua exigência é sentida também pela parte mais lúcida do Poder atual. Eu penso que também a parte mais avançada e extremista deveria apoiar a imediata realização dessa reforma.
Desarmar a polícia significa, com efeito, criar as condições objetivas para uma imediata mudança da psicologia do policial. Um policial desarmado é um outro policial. Ruiria nele, de pronto, o fundamento da "falsa ideia de si" que o Poder lhe deu ao adestrá-lo como um autômato.
De tal "mutação" psicológica derivaria, sempre "objetivamente", e talvez na própria consciência do policial, a necessidade de outras reformas: isto é, nasceria no policial "desarmado" uma nova consciência dos próprios direitos civis. E ele mesmo seria o primeiro a pretender um novo tipo de "treinamento profissional", que não se aproveite de modo tão brutal da sua inocência e pobreza. Por meio de tal consciência, ele se tornaria um policial socialdemocrata em vez de fascista. O que não é pouco. A menos que não se queira instrumentalizar as mortes provocadas pela polícia, fato que, entretanto, colocaria os opositores do Poder no mesmo nível de desumanidade do Poder.  

 

Pier Paolo Pasolini. Da "Il caos" sul "Tempo" 1968. In.: Saggi sulla Politica e sulla Società. Milano: Arnoldo Mondadori, 2012. pp. 1160-1163. Trata-se de uma parte da seção Il Caos, que Pasolini mantinha no semanário Tempo, de 21 de dezembro de 1968.

 

 

 

 

 

 

 

 

                          Vitor BUTKUS

 









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