revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Paulo ARANTES por Alexandre CARRASCO

extinção

 

Paulo Arantes, Ed. Boitempo, São Paulo, 2007, 315 pp.

 

Extinção é um conjunto um pouco desigual de ensaios, entrevista e textos de circunstância, divido em seis partes. Desigual porque há ensaios de extenso fôlego, e que cobrem um conjunto amplo de problemas, alinhados a artigos menores e, diríamos, mais retóricos. Diríamos se fosse o caso não levar em consideração também que a prosa sincopada e compacta do autor (bem verdade, sujeita a certo maneirismo), que percorre de um a outro extremo o livro, não valesse igualmente como argumento e figuração para suas posições: assim essa forma ultramoderna de apresentação, justapondo no mesmo plano uma extensa e amplíssima série de elementos heterogêneos, sem a “elegância” discreta das mediações, deve dizer sim algo sobre o mundo que o Autor pretende descrever: um mundo em que as nossas tradicionais mediações modernas (e civilizatórias) sucumbiram em nome da “exploração nua e crua, a céu aberto, do pagamento em dinheiro”. Claro que essa violência do “pagamento em dinheiro” nos diz aonde o capitalismo pretende nos levar, partindo de onde parte hoje: parece que à “extinção”. E extinção tanto quando a da própria inteligência – e das “inteligências” que o Autor não se furta cobrar e só agora, depois de quase duas décadas de “fim” da guerra fria , se sentem levemente incomodados com este admirável mundo – é também extinção da própria “modernidade”: a potência algo reguladora que colocava em ação certas categorias clássicas, por exemplo, a luta de classes a dar substância à “política” e ao “progresso” que sempre foi sobretudo o do capital, e que sumiram do mercado (em sentido próprio e figurado) graças ao capitalismo triunfante que pode agora se dar ao luxo de regredir para progredir no seu destino espiritual de valorização do valor. Bom, sem muito aviso, já estamos no assunto do livro falando sua língua, e ao leitor, minimamente habituado ao Autor e um pouco desavisado, não resta senão sucumbir a tentação de mimetizar sua prosa à medida que apresenta seu assunto, a tal “bizarria estilística” como alguém já escreveu para indicar o justo oposto. Mas antes de voltarmos às nossas chinelas, vale notar, como primeira constatação básica, que, se entre os textos de circunstâncias e os longos ensaios, havendo algum ruído como parece haver, a mesma toada percorre todos dos textos, o que nos parece mais revelador da natureza do livro do que pretenderia ser uma ou outra vã incongruência menor.


Pois bem, e voltando modestamente a nossas chinelas, o projeto do livro, e falamos em projeto porque parece que ele não se limita a indicar um conjunto de problemas, mas propor um método (levando em conta o que isso significaria em um livro dessa natureza), se desdobra em pensar o que ele identifica, com alguma razão, com o brutal e amplo aggiornamento do capitalismo consigo mesmo, um virada pós consenso keynesiano e fim da guerra fria, e que o autor pretende datar sob o triunfo da era Reagan e seu típico reaquecimento da então guerra fria, bem mais fria nos anos Carter – após a famosa política triangular de Nixon e seu sucedâneo, a “coexistência pacífica”. Tudo isso, somado às políticas econômicas correlatas dos anos Reagan a disciplinar as muitas crises dos anos oitenta, aqui e alhures. A datação pode ser controversa e aparece de modo difuso no livro, mas parece que é ali que encontramos o segredo do que viria a ser a “nova guerra” de um mundo, em tese, mas só “em tese”, “pacificado”, elemento chave para compreender de que fala o Autor e, segundo o próprio, de que capitalismo se trata. Retomemos e expliquemos. A constatação inicial de que estamos diante da guerra e pode ser resumida como segue: “Pois, a Segunda Guerra Fria também terminou. E, no entanto, continuamos diante da guerra. Ou, por outra: se Hobsbaw tem razão, ninguém saberia dizer ao certo o que, afinal, temos pela frente. A seu ver, “ainda é um tema a ser debatido o quanto as ações em que as Forças Armadas norte-americanas têm estados envolvidos, desde o fim da Guerra Fria, em várias partes do globo, constituem ou não uma continuação da Era da Guerra Mundial”. Mesmo assim, creio que ajudará um pouco perceber de saída que, a rigor, não estamos mais – literalmente – diante da guerra”. (p. 26).


Este é o sentido de “Diante da guerra”: ela não chega mais, pelos jornais, está aí, incorporada à normalidade. Poderíamos presumir que não é tanto da constatação de que a Guerra (com g maiúscula) mudou de sentido, mas que seu sentido só muda quando o capitalismo muda igualmente de sentido. Pensando as duas guerras do Golfo (mais a intervenção da Otan nos Balcãs) e o mundo pós 11 de setembro, Paulo Arantes pergunta-se o que mudou no alvissareiro (nem tanto) capitalismo à la Keynes para se transforma na Besta de todas as formas de precarização e violência de nossos dias. Não por acaso, para o Autor, o fim do ciclo keynesiano coincidi com o ativismo político, econômico, e agressivamente militar e estratégico da era Reagan. Daí nossas breves referências à dupla visada da doutrina Reagan: não só uma ofensiva militar e estratégica como um redesenho econômico do mundo. Ao alinhar poder em estado bruto (para onde migrou a política) e vanguarda da acumulação – dois aspectos que o Autor não informa exatamente a natureza de sua correlação – os EUA estariam em condição de forjar um novo Império (também com letra maiúscula) já agindo como tal: é neste novo contexto que há uma nova guerra, agora sob a gramática desse novo Império. Para simplificar, digamos que a melhor imagem para indicar a natureza desse novo império tenha que ver com um retorno ao status quo prévio a Guerra dos Trinta Anos e seu termo com a Paz de Westfalia (1648): sabendo que é a Paz de Westfalia que normaliza o sentido jurídico de soberania e do direito a guerra redesenhando o ordenamento internacional, estamos agora diante de um estado de coisas em que o Sacro Império Romano Germânico (contra quem a Paz de Westfalia é feita) permanece o árbitro absoluto das soberanias (relativizadas) e que as “razões de estado” passam a sem outras tantas indisciplinas em relação à “nova ordem mundial”, a critério sempre da última razão do Império. Como isso é possível? Mais uma vez, formulamos a hipótese tentando acompanhar o autor: em tempo de Doutrina Truman (contenção) o poder seguia uma agenda específica, em muitos momentos convergentes, em todo caso, interdependente em relação aos mecanismos de acumulação. Tanto que há quem não identifique a Doutrina Truman com o Plano Marshall, entendo-as como duas iniciativas que obedecem a lógicas distintas. Assim, nada ligaria imediatamente a manutenção da posição “compradora” do mercado europeu diante da escassez de divisas com o fim da Segunda Grande Guerra com a primeira intervenção americana na Grécia. Resumimos um pouco brutalmente, é certo, o acúmulo de poder militar e estratégico seguia pari passu com um novo ciclo de modernização conservadora (às vezes, nem tanto) que incorporava territórios, recursos e força de trabalho na roda viva da produção capitalista, com o qual não coincidia imediatamente, ao mesmo tempo em que criava condições objetivas para a disputa política (segundo os expedientes clássicos, sindicatos, partidos de classe, etc.) de sua parte no produto nacional. O que pretendemos dizer, porém, é que o desenho geopolítico mundial exigia mediações civilizatórias (o consenso keynesiano), arbitradas, em última instância, politicamente, como, por exemplo, certa paridade dólar/ouro acordada em Bretton Woods e que foi chave para a nova vaga de industrialização mundial pós Segunda Grande Guerra. Era o sonho de um capitalismo domesticado.


Com o fim da guerra fria, com o esfacelamento soviético, a “contenção” passou quase imediatamente a ser “policiamento” e todo o poder estratégico e militar acumulado nos anos de concorrência mundial (o simpático hard power) passou a funcionar em sinergia irrestrita com o processo de acumulação, eis que estamos diante do novo imperialismo americano. Ao operar com essa conjunção como pedra de toque crítica, o Autor recupera, com muito pertinência, o que pode ser entendido como as origens ideológicas do Imperialismo americano (aliás, o termo já foi usado por Raymond Aron, explicando, em alguma medida, a excepcionalidade da política externa gaullista): o destino manifesto, a teoria americana para as fronteiras a serem ocupadas, os sucessivos corolários da Doutrina Monroe e o padrão de imperialismo interior praticado pelos EUA sob a rubrica de “expansão interna” a partir das treze colônias (algo que Hobsbaw faz menção em “A era do Capital”) dão a primeira de mão espiritual do novo império. Mas não é só isso: mesmo o ordenamento jurídico internacional e seu adensamento formal depois da Segunda Guerra Mundial e com a criação das Nações Unidas, no que ele tem de mais avançado, o direito internacional dos direitos humanos e a criminalização da guerra no direito internacional, também, no contexto deste novo Império que se anuncia, passam a funcionar ideologicamente (isto é, como uma nuvem de palavras que nada revela de seu conteúdo) e legitimam uma nova polícia mundial, máscara da nova ordem política mundial, levada a cabo pelo único garantidor de última instância, o complexo industrial-militar americano. E assim o é porque esses tantos “discursos” só funcionam “ideologicamente” se há o tal garantidor de última instância. Sobre o nosso arraial, vale lembrar que cem anos de política externa americana (EUA) no subsistema americano (o continente) não deixa as melhores lembranças: tirando a política da boa vizinha de Roosevelt, excepcional por óbvias razões; da política do dólar (somada ao big stick) do começo do século até o consenso de Washington, (Iniciativa para as Américas e Alca) – passando pela Aliança para o Progresso (de resultados praticamente nulos), não há como alimentar boas expetativas sobre o que nos espera. A política externa americana sempre foi agressivamente invasiva (sobretudo depois da Guera com a Espanha em 1898) em nome dos seus interesses, a ponto de a história de nossa política externa reputar a manutenção da Amazônia como território brasileiro, diante das investidas americanas (reais, é bom notar), na segunda metade do século XIX, como um dos grandes feitos da política externa do Segundo Reinado. Como contra-prova, basta olhar, um pouco acima no mapa, o que foi e é o Panamá.


Enfim, retomando e traduzindo agora essa visada mais geral do Autor em linguagem popular, podemos dizer que por aqui, nas terras de Santa Cruz, Paulo Arantes localiza o momento chave de grandes mudança semânticas (e nada que ver com as novas narrativas). Pela enésima vez, um golpe foi dado contras as tai “reformas” de base e eis que, nos anos oitenta do século passado, as reformas reaparecem, depois de uma conexão em Washington, prontas para circularem nos mais restrito jetsets. E estamos há quase trinta anos nisso. Desse modo, para explicar aquilo que passou quase batido pelas mais delicadas inteligências, a saber, que já não há mais guerras de nação (como foi para nós e para nossos sócios no cone Sul, guardadas as proporções, a guerra da Tríplice Aliança, nossa conhecida guerra do Paraguay, exceção feita ao próprio Paraguay), que o estado de guerra perdura e que as guerras não têm fim porque não são mais “guerras”, o autor forja o conceito chave “guerra cosmopolita”. Mas, então, o que há? Eis o que ele pretenda que seja a novíssima figura da “guerra cosmopolita”: normalização da guerra sob o arcabouço material e ideológico do Império. Antes de entramos mais detalhadamente nos pressupostos materiais da nova guerra, detenhamo-nos em seu sentido. Por que “guerra cosmopolita”? Menos por ser uma guerra permanente, em que o estado de guerra faz as vezes do estado policial e mais por ser efeito de um notável rearranjo das forças produtivas e seus reflexos em termos de poder e projeção de poder. Há, pois, um duplo diagnóstico: com o fim do consenso keynesiano (segundo o diagnóstico do Autor) o processo de acumulação retorna à sua infância refoulée: estamos diante de um novo ciclo de acumulação primitiva, com tudo aquilo que o caracteriza: genocídio, escravidão e guerras justas. Genocídio e guerra justas contra as populações da nova orbis, escravidão africana, crony capitalism, capitalismo de acesso, novos cercamentos, passado e presente do capitalismo embaralham-se.


Há ainda outros elementos que detalham o quadro montado pelo Autor: a especialização e profissionalização da guerra por parte do Império pós Vietnã e o fim da circunscrição obrigatória – e seu sucedâneo, a espetaculização da guera a uma sociedade que não mais participa dela enquanto tal –, o recente arranjo financeiro mundial (China e bônus do tesouro americano) que permite ao EUA fazer da guerra permanente um estado de relativa desmobilização interna, de modo a normalizar ainda mais a guerra.


Entre nós, os esquemas do Autor reforçam a “dependência”, a teoria de que continuamos sempre nós mesmos: no mundo que emerge, ou seguimos os fortes ou perecemos com os fracos.


Pode-se dizer que é deste enjeu crítico, cristalizado ao longo do livro, que o Autor faz a roda do fado girar. E nessa apresentação de dois fôlegos percebe-se que são muitas as direções em que se aponta, impossível repertoriá-las todas.


Tomemos agora o nosso e novo fôlego. Se, de início, mencionáramos a tal prosa sincopada de nosso Autor, também não era para fins de nossas próprias negaças estilísticas. Tal “modo de usar” tem a ver com a maneira que o Autor investe de realidade seus dispositivos críticos: mobilizando os vários elementos que mobiliza, histórico, literários, jurídicos, geopolíticos, militares, e, mesmo, afetivos, ele pretende que essa poderosa conjunção explicativa, reduzida a nós ao binômio, poder & dinheiro, dê conta da atual idade espiritual do capitalismo como se a história do capitalismo passasse por sua lógica, que sua lógica fosse sua história. Mas não é só isso: seu discurso é algo fechado de tal modo que você é convidado/convocado a entrar no conteúdo e frequentemente na forma. E aí, presos na Arapuca do Autor – não raro falamos sua língua como ventríloquos – , pensamos com sua cabeça sem pensar com a nossa (fenômeno, aliás, bastante recorrente). E qual o fora desse discurso? Tal como seu discurso é, cerradamente encadeado, seu fora é o que dentro dele não é dito, é sou não-dito.


Tomemos, então, o sentido da tal “acumulação primitiva”: a expropriação violenta, garantida pelo Estado, que se afirma como tal, de um bem público. Sem Estado não há acumulação primitiva e nem o mercado higiênico com suas curvas de oferta e demanda. Mas se a história da violência, infelizmente, não se resume a história do capitalismo, poderíamos nos perguntar se estamos dentro ou fora do capitalismo, independentemente de estarmos no interior de uma tirania? Mais ainda, e se a história da democracia também não se resumisse a história do capitalismo? Democracia não é mero constitucionalismo à inglesa: o sufrágio universal (masculino e feminino) foi conquistado lá na empiria, onde o pau come, durante todo o século XIX, a despeito do próprio capitalismo e da economia política de um David Ricardo, por exemplo. Mas dirá (ou pretendemos que diga) nosso Autor que alavancado por um processo modernizador, pós guerras napoleônicas, a tal luta de classes fornecia, por assim dizer, as condições de possibilidade de um processo integrador a dar relevância à política. Aí está o ardil: no interior de sua prosa, de tal modo compacta, as condições (clássicas) de possibilidade coincidem com a história (que lhes revelaria?): e não temos muito mais vela para chorar tantos defuntos, quando cessa o sentido clássico de tais “condição de possibilidade”. Também a “extinção”. Ainda: que não se pense que se está aqui a se considerar como “gente séria, que faz coisas sérias” e dar sentido menor ao nosso brutal estado de crueldade social, como bem descreve o Autor a falar de nossa anomia (mas quê anomia, para um país escravocrata?). Para o sujeito que perambula pelo marco zero dos altos do Piratininga, nada mais evidente que a violência social em estado bruto. Mas se o fora desse discurso, bloqueado pelo não-dito, também se permitir pensar “coisas verdadeiramente novas e ruins”? Estaríamos, afinal, a “dez mil metros acima do mar”?


A pergunta não é meramente retórica como não pretendemos expiar o famigerado capitalismo de seus pecados mortais. Mas, a constatação da natureza da violência (como da democracia) como “simplesmente capitalismo” (o simples aquilo leva a isso) por meio da forma de apresentação estrita e fechada que caracteriza o Autor (e não deixa de ser uma das suas altas qualidades) parece ocultar mais que revelar: ele não revela o agenciamento contingente de matérias e formas do próprio capitalismo. O “fora” do capitalismo, não poucas vezes também violência capitalista – está aí a China – , desaparece na noite em que todos os gatos são pardos. Notemos, porém, que também não é isso que “simplesmente” nos diz o Autor: seu não-dito muito astutamente não é o que ele não diz, mas sobre o que se cala. Com toda sofisticação. Daí que avançar na franja do que ele diz, como tentamos fazer, é em parte fazer seu jogo, mesmo que tenhamos a impressão, em certos momentos, de que ele mesmo avança nas franjas de seu próprio esquema crítico pensando já não mais propriamente o capitalismo ou um capitalismo, mas uma Tirania que intervertendo o processo se apropria do capitalismo, para ser menos capitalismo mais Tirania (mesmo que, nesses termos, o Autor não mencione o caso exemplar da China e sua vocação igualmente imperial).


Voltemos ao capitalismo diante do espelho: ontem e hoje: acumulação primitiva, pré-história da pré-história? Quer dizer, a crítica a(d)o capitalismo, no sentido clássico e auto-proclamado materialista pelo Autor, basta para compreender o sentido da tirania nossa de cada dia? Não há sentido pensar violência que não seja capitalista no interior do próprio capitalismo, há de nos responder o “Manual do Zero à Esquerda” a este zero à esquerda. Mas mesmo quando o capitalismo mobiliza violências “não capitalistas” para operar (como nosso notável exemplo, a escravidão) ele obedece a sua lógica ou aceita a lógica da sua “matéria”? - E poderíamos voltar ao “Escravidão no Brasil Meridional” do primo rico da família paulistana, e o atraso que nosso sucesso escravocrata proporcionou. Quando o capitalismo busca seu fora, não seria por que também podemos pensar de fora contra ele (e contra a concepção clássica do malfadado “progresso social”)? Talvez cheguemos bem perto do sentido de nosso reparo: o autor pretende que o ultrapassamento do capitalismo por si mesmo limpe completamente o terreno, não deixando restos a pagar: é sua prosa fechada. Mas se, ao operar com o fora, o tal capitalismo aceite sua própria anomia, não reduzindo tudo a seu mesmo, pura e simplesmente, nem permitindo que seu “resto” seja outro: temos um outro problema, e a idéia de uma Império, tal como descrito, fica muito mais problemática. Se mesmo nessa conjunção crítica – dinheiro & poder, império e vanguarda da acumulação – há menos razão e mais entendimento, menos imanência e mais exterioridade, nós, da Federação dos Tamoios, não deveríamos pensar esse desajuste do própria capitalismo pensando sua história anterior a sua lógica, também como enjeu crítico? Estas questões surgem à margem da imensa gama de problemas apresentados por Paulo Arantes. A nossa “critica”, portanto, é “crítica” da “critica” (e, mesmo, da “crítica”) : talvez falte ao livro ainda “mais coisas novas e ruins”, que buscamos um pouco erraticamente por fora e pelos lados deste livro. Por exemplo, a China, pela terceira vez. Se a China desafia, como faz, relativamente, o Império Americano. Ela é uma candidata fortíssima a superpotência de tipo muito especial (vale notar que o livro, algo datado sobre isso, pouco fala da China): capitalismo selvagem, o verdadeiro passado do capitalismo que é nosso presente, com uma brutal disposição à acumulação primitiva, substituindo o taoísmo como ideologia de Estado (Imperial, é bom frisar) pelo comunismo-leninismo: este não é, afinal, um verdadeiro “ornitorrinco”? E não são poucos os partidários do progresso social a “louvar”o modelo chinês. De quê? De acumulação primitiva? Assim, como fica o Império americano com a não desvalorização do Yuan, pós crise de 2009? Evidentemente que não se cobra profecias do Autor (às vezes, suspeita-se que mesmo isso ele poderia oferecer, sob certas condições), mas o que podemos pensar disso com o livro em questão? A resposta não é simples nem simplesmente negativa (“nada”).


Tomemos, puxando um pouco a brasa para nossa sardinha, o problema da política. Sem cair no vazio sem mais do fim da política, o “fim da política” de que fala o autor faz seu sentido relativo.


Por partes, e tomando o segundo ensaio “Notícias de uma guerra cosmopolita” e uma entrevista da quinta parte do livro “Qual política?”. E façamos assim para, ao tomarmos a opinião que circula fluída em vulgata de extrema esquerda sobre o fim da política, revelarmos que o Autor a advoga sob certas condições, que fazem sua diferença. Ou, para trocar em miúdos, dizer que aqui o problema é outro. Para o leitor apressado, nada mais claro – se clareza é aqui categoria válida – de que estamos falando do fracasso modernizador de uma esquerda que chega ao poder depois de quase trinta anos de chamada democratização, e etc, etc, etc. Bem entendido que o capítulo PT das nossas desilusões tem lugar certo no livro e neste pequeno arrazoado, mas não se trata, no caso do livro, de juízo propriamente “político”, mas de como o autor pensa as condições de possibilidade da política e sua ausência ou “superação”. E muito astutamente, ao falar do PT o autor está falando de outra coisa. Façamos nos entender:


“Trocando em miúdos mais tangíveis, digamos que padecem todos os egressos da ressaca dos últimos vinte anos de uma espécie de nostalgia politicamente correta da luta de classes, como quem diz: no seu tempo tais lutas foram mais integradoras – daí o mantra da “inclusão”. Os órfãos do dissenso não suspiram pelos combates sociais de ontem, contra cujos excessos, de resto, não havia garantia nenhuma, longe disso: a ausência pela qual vestem luto é outra, embora também da ordem da pacificação de conflitos, a virtude inibidora das pulsões destrutivas que se foi com a sábia calibragem política da luta de classes. Vistas as coisas do ângulo oposto, o roteiro é mais familiar. Houve de fato um tempo em que as idas e vindas da luta de classes arrancavam, na forma de tréguas mais ou menos duradouras, “instituições” que não brotariam por geração espontânea no terreno adverso de uma sociedade antagônica: sindicatos, sufrágio universal, legislação do trabalho, seguridade social, etc. Como era de se prever, tais conquistas provaram não ser cumulativas nem irreversíveis, as que sobrevivem continuam a se esvaziar” (p.277)


“Aliás, a política de poder das grandes potências – como se diz no execrável jargão das chancelarias – está de volta, vivinha da silva. Vamos nos alinhar e marchar para o matadouro, como em agosto de 1914? A política que está se tornando, já se tornou irrelevante, nunca será demais repetir, tal estado de prostração diante do cadáver errado, é a política burguesa, enfim emancipada, por isso o Estado não cessa de transferir poder para o mercado – o neoliberalismo é isso, uma tecnologia de poder e governo para que haja mercado, e não a despeito do marcado, para corrigir suas disfunções – quer dizer, cada vez mais transfere soberania para as empresas, até o limite do poder punitivo penal” (p. 289).


Bom lembrar, de antemão, que “grandes potências” é vocabulário do Congresso de Viena de 1814 e sua indefectível política de “regresso” reacionário pós revolucionário, com direito há uma direita da direita, capitaneada pela Santa Aliança. Mas, se podemos entender (de modo bastante problemático, é verdade) o Congresso de Viena como um termo – o que veio a ser a pax britanica – a uma nova guerra dos trintas anos – a disputa pela hegemonia continental que transborda do processo revolucionário francês (mudando também de natureza) – seu princípio de “legitimidade”, reconhecendo o status quo pré napoleônico, seguia pari passu com um processo de “modernização” social irreversível, cuja face sensível, por assim dizer, era a tal política “burguesa” (com muitíssima luta popular), com substância. O que se dá hoje, segundo nos sugere nosso Autor, não é uma nova rodada de negociações conservadoras à la Metternich, que, de todo modo, aceita a inexorável modernização, mas certo retorno ao Sacro Império Romano Germânico, logo, uma regressão violentíssima. Até aqui, tudo muito conforme ao espírito do livro. Mas, se ainda nesse esvaziamento, a tal “política” ainda operar relativamente, como opera relativamente a esfera da circulação simples no interior do capitalismo, mas operar pressionando, com o que há e o que tem, o tal acesso, ainda que o acesso ao altos funcionários do capital e ao próprio, na forma de anti-valor, seja ultra-hierarquicamente controlado e essencialmente antidemocrático? Ainda que menos a política e mais a representação pareça ter entrado em uma idade de desfuncionalidade radical (a representação não representa, podemos muito facilmente dizer hoje) elas operam relativamente (em sua disfuncionalidade). Como pensar, mais uma vez, essa franja que não se extingue completamente, e resiste no espaço (pré, ante, anti) capitalista da circulação simples (aquilo que o capitalismo “recalca” nele mesmo como seu outro), no interior do capitalismo?


Restaria ainda uma observação sobre o que o Autor diria hoje sobre a política externa brasileira: o desdém com que o tema é tratado ao longo do livro tem a ver com a irrelevância que um país como o Brasil deve ter para uma “teoria”(com muitas aspas) do Império. Isto não se trata exatamente de uma objeção. Mas fica a curiosidade: quando as críticas a tal política – a política externa brasileira – se acirram na “opinião pública”, na exata medida em que ela começa a se notar mais anti-hegemônica, como ficamos? Tomemos rapidamente o episódio do Irã e seu programa nuclear, e a recusa do Brasil em assinar protocolos adicionais do TNP: se cobra do Brasil a aceitação sem mais da política de polícia americana, sem levar em conta que, para além do óbvio novo grande problema geopolítico que significa a nuclearização do Irã e o desequilíbrio de poder regional que está em jogo no Oriente Médio, o Brasil é o único país do mundo que detém a tecnologia do ciclo do combustível, tem um programa relativamente bem sucedido de uso pacífico de energia nuclear (fins médico e de suprimento de energia) e possui a terceira maior reserva de urânio do mundo, o que dá auto-suficiência tecnológica e material para programa nuclear do país e, a longo prazo, um fonte estratégica de suprimento de energia. Soma-se a isso o fato de o país não ter nem o dispositivo nuclear (a bomba) nem capacidade de “entrega” (means of delivery). A ofensiva brasileira, neste caso, bastante legalista, aliás, é, por óbvias razões de soberania, nosso último recurso contra um ímpeto de policiamento que pode sim nos atingir estrategicamente mais cedo ou mais tarde. Daí a se notar que o direito à “última razão dos reis” estar mitigado diante das prerrogativas de polícia do Império.


Concluindo provisoriamente: “aqui se encontra o que o tal Crates dizia dos escritos de Heráclito, que era necessário um leitor bom nadador afim de que o peso e a profundidade da sua doutrina não o afogasse”: adágio que deve valer para textos tão dialéticos quanto aqueles tão impetuosamente anti-dialéticos. Observação que em nada pretende dizer do alcance de nossas braçadas. E que ninguém duvide da integridade do livro e do projeto crítico do Autor. Nada mais distante dele que falta de inteligência: o livro, com seu vários elementos datados, sobrevive como esforço notável, resultados relevantes e possibilidade que dá para pensar em seu contorno, entorno, dentro e fora dele e contra ele. Não nos furtaremos, entretanto, a uma última observação.


E mudemos, então, repentinamente de registro. Por uma óbvia questão de falta de classe. De que classe fala nosso Autor? É a nossa vez de perguntar “com quem você acha que está falando” tão típico das classes bem educadas brasileiras. Mais do que um membro de bonne souche da escola dos Paulistas, o Autor tem lá seus ares de paulista de quatrocentos anos, a sua própria revelia, é bom frisar. Bom, e antes que me acusem de mau leitor, de um “processo de intenção”, lembremos que o autor não se furta a localizar e mesmo reiterar sua condição de “boa” classe (o adjetivo um pouco por nossa conta): da família espiritual dos paulistas, “frequentou os maiores espíritos de seu tempo”, intelectual brasileiro pau para toda obra, formado em sua notável tradição crítica e membro hoje algo recalcitrante, Paulo Arantes também fala de e reafirma seu lugar de classe. E lamenta (sem muito admitir) que sua classe, outrora, além de pertinentemente crítica, era também “vanguarda” da modernização conservadora (preferível) que a crueldade (bem real) de um país “que não sai do lugar”, e que dê em um fim de linha tão, mas tão óbvio – e aí é bom frisar, não tão óbvio para aqueles que, treinados pela nossa permanente sociabilidade regressiva, sempre desconfiaram da tal solidariedade de classes, os pretos e pobres de sempre – : precarização (dos outros) sob todas as formas, fuga generalizada do espaço público (se houve), apagão da inteligência. Desde o “Manual do Zero à Esquerda”, Paulo Arantes não se cansa de lamentar estridentemente (a palavra não é bem essa, repitamos) os destinos de sua classe dos inteligentes – que destino dos paulistas, “a teoria crítica tornar-se teoria tradicional, assim, simples assim”. Sem propriamente escapar dela e da vulgata da “dependência”, outra fina flor paulista, nosso Autor tem lá suas ladainhas. Daí que sua música no livro seja Ronda (do notável Doutor Vanzolin): “de noite eu rondo a cidade, a te procurar (...)”, - e quem disse que não se samba miúdo em São Paulo? - mais pertinente que o trecho citado “cena de sangue num bar da av. São João” (p. 234). Não acha mais, do seu lugar de classe, o que estava acostumado a encontrar. Nós, mais ou menos desclassificados, exército de macabeus, filhos de pais populares (como atestou o juízo de um dos melhores da escola do Club Athlético Paulistano) ficamos com Volta por Cima, porque, como os índios de Parelheiros (todos remanescentes de um capitalismo regressivo, com seu passado e futuro coincidentes), não temos como escapar – da condição de classe e do capitalismo, seja ele qual for: reconhece a queda, não desanima – levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.































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