POLÍTICATEORIACULTURA ISSN 2236-2037
Ruy FAUSTO |
a ofensiva teórica do anti-humanismo |
em torno das teses de Alain Badiou e Slavoj Zizek |
Ocupo-me aqui só de dois autores dessa galaxia, Alain Badiou e Slavoj Zizek. Por que Badiou e Zizek? Meu interesse por esses dois autores não vem do reconhecimento de uma suposta “importância“ dos seus trabalhos, mas quase do contrário. Ambos vão ocupando uma posição de destaque não só nos meios de uma certa extrema-esquerda, mas também no interior do establishment universítário da Europa e dos Estados Unidos, sem falar do espaço crescente que ocupam na mídia. A acrescentar a circunstância de que, progressivamente, vão sendo promovidos, no Brasil, como grandes representantes do pensamento teórico-político atual “da esquerda“. Ora, o que é perturbador nessa nova onda, que, sob vários aspectos, com roupa mudada, é um retorno ao anti-humanismo dos anos 60 e 70, é por um lado o teor das teses políticas que ela carreia (as quais abrem a porta à violência e ao terror, quando não os promovem pura e simplesmente), e por outro, suas insuficiências propriamente teóricas (insuficiências que, de resto, são relativamente distintas, conforme se considere um ou outrodos dois autores). A acrescentar que, não só para a França e a Europa, mas também para o Brasil, esse discurso é regressivo: vários trabalhos universitários, aos quais não se poderia negar pelo menos a seriedade, empenharam-se, aqui, dos anos 70 a 90, em desmontar o anti-humanismo althusseriano (essa atividade critica – observo desde já – se fez não em nome do humanismo, mas, de um modo que só aparentemente é paradoxal, no interior de um movimento teórico que recusava tanto o anti-humanismo como o humanismo). Badiou e Zizek reivindicam, assim, o anti-humanismo, ou uma forma de anti-humanismo. Zizek, principalmente, volta a cada momento ao “inumano“ como a uma pedra de toque. Que significa isto? Vou considerar as respostas de apenas um livro de cada um dos dois autores. A Ética de Badiou (Éthique, essai sur la conscience du mal, Paris, Nous, 2003 [1993] (E), e o livro de Zizek, Em Defesa de causas perdidas (In Defense of lost Causes, Londres, N. York, Verso, 2008). O que apresentarei aqui é apenas o primeiro de uma série de trabalhos em elaboração[i]. A tese central é formulada com clareza por Badiou. “Não faremos aqui nenhuma concessão à opinião segundo a qual haveria uma espécie de “direito natural“ (...). Posto em relação com a sua simples natureza, o animal humano deve ser situado sob a mesma etiqueta (“enseigne“) que os seus companheiros biológicos. Esse massacrador sistemático busca, nos formigueiros gigantes que ele edificou, interesses de sobrevivência e de satisfação nem mais nem menos estimaveis do que os das toupeiras ou das cicindelas [besouros de mau cheiro que se alimentam de insetos, RF]. Ele se revelou o mais astuto (“retors“) dos animais, o mais paciente, o mais obstinadamente submetido aos desejos cruéis da sua própria potência. (...) (...) Assim pensado (e é o que sabemos dele), é claro que o animal humano não remete “em si“ a nenhum juízo de valor“ (E, pp. 87 e 88, grifos de RF). Quanto a Zizek – sou obrigado a resumir muito – um romance serve de ilustração para a sua antropologia. O romance é The Shining, de Stephen King, que conta a história de um escritor mal sucedido que se transforma gradativamente em assassino, e mata toda a família. Para Zizek, o anti-humanismo é a única filosofia capaz de dar conta desses “fenômenos traumáticos“, e escapar do que ele chama de “gesto de denegação fetichista“, em que incorreriam as éticas não anti-humanistas. (In Defense..., p. 15-16). Que pensar desses argumentos? A meu ver, uma resposta humanista ao anti-humanismo – que por exemplo negasse a presença desses elementos destrutivos no homem, ou pregasse o amor universal, ou recusasse de uma forma absoluta todo tipo de violência (inclusive a contra-violência) em qualquer situação – não se sustenta. Não por acaso, a argumentação de Zizek (que não posso desenvolver aqui) é em parte construida em torno da refutação do humanismo, como se, da refutação deste, pudéssemos, sem mais, concluir a legitimidade do anti-humanismo. Minha perspectiva – já sugeri é a da crítica tanto do anti-humanismo como do humanismo, embora deva reconhecer que, tudo somado, este último tem consequências bem menos funestas do que o primeiro. A meu ver, a dificuldade da tese de Badiou e Zizek não está em ter constatado a presença de um “inhumano“ no homem. Isto é incontestável. O problema é definir a modalidade desta presença. Ninguém duvida de que o homem, individual ou coletivamente, é capaz dos piores horrores, nem de que, no interior de cada um de nós haja (ou possa haver) algum impulso desta ordem. Mas esses impulsos constituem o “núcleo“ do ser humano, como pretende Zizek? O que me autorizaria a fazer essa afirmação? Eu diria duas coisas a esse respeito. Em primeiro lugar, a possibilidade de se transformar em “serial killer“ – que, admitamos, existe em qualquer ser humano –, não exclui, parece, outras possibilidades: a de condutas pacíficas, mesmo generosas, de piedade, o que for. Em segundo lugar, trata-se precisamente de possibilidades. Todo indivíduo pode se transformar no personagem do livro em questão, mas muitos, a enorme maioria, não se transformam, e há boas razões para supor que essa possibilidade é em muitos casos, na maioria sem dúvida, muito pequena. Ora, entre o possivel e o efetivo, a diferença é enorme. Uma característica do que poderíamos chamar de pensamento anti-dialético – a noção de “dialética“ foi “desvalorizada“, mas ela é perfeitamente rigorosa, e essa desvalorização explica, de resto, que se possa escrever impunemente essas coisas – é, entre outras, precisamente a subestimação da diferença entre potência e ato, ou a confusão entre os dois. É absurdo definir o homem simplesmente pelo “humano“, como é absurdo, também, defini-lo apenas, pelo “anti-humano“. Resumidamente, se deve dizer que os dois elementos existem como potencialidades. Dessas duas potencialidades, há razões para preferir o lado “humano“ ao lado “anti-humano“. O lado “anti-humano“ é o do assassinato, da violência, de uma cultura de morte (uma cultura da “jungle“); o outro lado permite a coexistência dos indivíduos, a cooperação, a sobrevivência, a vida em suma. Dir-se-á que a violência em certos casos é necessária, o que é verdade. Esta é, de resto, uma das razões pelas quais o humanismo não é defensável. Mas, de uma forma geral, a violência só pode ser justificada como contra-violência, e – o mais dificil – deve-se discutir aí, de que forma, em que medida, e em que circunstâncias esta é legítima, pois é essencial o exame de cada caso. Se, ao pensar assim, saimos a rigor do humanismo, não caimos por isso, de forma alguma, numa ética anti-humanista[ii]. Vejamos agora como se desenvolve a argumentação de Badiou. Como vimos, para ele, não haveria por que supor a legitimidade de quaisquer “direitos do homem“. O homem só entra na esfera dos valores em circunstâncias especiais, quando ocorre um Acontecimento («Événement», a distinguir de um simples evento), ocasião em que emerge um Sujeito (um processo subjetivo) de que ele, homem, é um suporte. Quais seriam esses Acontecimentos? “ (...) a Revolução francesa de 1792, o encontro de Heloisa e Abelardo, a criação da física por Galileu, a invenção por Haydn do estilo musical clássico (...) Mas ainda: a Revolução cultural na China (1965-1967), uma paixão amorosa pessoal, a criação da teoria dos Topos pelo matemático Grothendieck...“ (E, p. 68). Em todos esses casos, mudar-se-ia de registro, haveria uma “subjetivização“ (nasceria um Sujeito), e o animal humano se investiria de uma espécie de transcendentalidade ou infinidade. Vejamos em que implicam essas teses, quais as suas dificuldades, e que caminho alternativo seria possivel propor. Em primeiro lugar, é preciso observar que Badiou põe no mesmo plano grandes rupturas artísticas ou científicas, e alguma coisa tão contestável como a chamada Revolução Cultural Chinesa (mesmo se ele a considera só no primeiro período), que foi na realidade uma grande mobilização opressiva e um massacre (ver a respeito, além da biografia de Mao por Philip Short[iii], que não é a biografia mais critica que existe sobre Mao, o importante livro de Roderick MacFarquhar, e Michael Schoenhals Mao's Last Revolution)[iv]. Observe-se, quanto à Revolução Francesa, que Badiou exclui o período 89 a 91, o que deixa fora, entre outras coisas, a primeira declaração dos direitos do homem. Mas façamo-nos de advogados do diabo e, por ora, ponhamos entre parênteses os seus piores exemplos. Perguntêmo-nos: teses como esta não permtiriam legitimar qualquer forma de violência? Ora, é interessante observar que Badiou se manifesta da maneira mais enérgica, quando trata da questão da Shoah: “(...) a exterminação nazista, (...) exemplifica o Mal radical, indicando aquilo cuja imitação ou repetição deve ser impedida a qualquer preço (...) (E., p. 92). Mas, como justificar essa atitude à luz das passagens anteriores? Páginas antes, num texto que termina com uma referência a Chalamov, Badiou se refere às figuras do algoz e da vítima, à situação nos campos, e também à tortura. Ele escreve o seguinte a respeito: “Enquanto algoz, o homem é uma abjeção animal, mas é preciso ter a coragem de dizer que enquanto vítima, em geral ele não vale mais. Todas os relatos de torturados e de sobreviventes indicam com força: se os algozes e burocratas das masmorras e dos campos podem tratar suas vítimas como animais destinados ao abatedouro, e com os quais, eles, os criminosos bem nutridos, não têm nada em comum, é porque as vítimas se tornaram mesmo (“bel et bien“) animais como esses (“de tels animaux“). Fez-se o que tinha de ser feito (“ce qu’il fallait“) para isso.“ (E, p. 31-32, grifo de RF). Bem, os judeus liquidados nos campos hitlerianos não entrariam nesse quadro conceitual? Se eles foram tratados como animais “é porque eles tinham se tornado animais“: os judeus mortos nos campos de concentração não valeriam, assim, “mais (mieux)“do que os seus algozes“[v]. De qualquer modo, “neles mesmos“, eles não teriam “nenhum direito à vida“ (à menos – talvez – que eles tivessem sido elevados à infinidade, pela revolta ou por alguma forma qualquer de resistência). Em termos dos fundamentos da sua ética, a resposta de Badiou só poderia ser esta. Entretanto, já disse, Badiou condena a Shoah. Como? O seu argumento – de uma rara e estranha artificialidade – é o de que o nazismo é um simulacro da revolução, um processo que imita a “subjetivação“[vi]. E na medida em que o nazismo é simulacro de um Acontecimento, ele participa, mesmo se negativamente, do registro infinito dos valores. Isto é: só se pode condenar o nazismo como Mal, porque se trata do inverso do Bem. Se não se tratasse disse (digamos, se se tratasse não dos massacres nazistas, mas do massacre de alguns milhões de camponeses, como ocorreu, na Rússia e na Ukrania, nos anos trinta), não haveria como protestar: o evento remeteria ao simples animal humano, e quando se trata disso, a legitimidade do protesto não seria maior, parece, do que o que se fizesse em favor de um outro representante qualquer do reino animal[vii]. O que obriga Badiou a seguir de perto – ele o admite – a tese dos historiadores revisionistas alemães: a “revolução“ nazista é essencialmente a contrapartida histórica, e no caso também lógica , da revolução comunista[viii]. Em resumo, deveriamos dizer, segundo Badiou: a Shoah é passivel de julgamento ético porque é um simulacro da revolução; se não fosse, estariamos simplesmente“ diante de seis milhões de animais humanos cuja sobrevivência ou liquidação seria, a rigor, em si mesma, indiferente. Mas voltemos aos fundamentos. Retomo os argumentos críticos que utilizei a propósito de Zizek, mas numa vertente um pouco diferente, para explicitá-los melhor e tentar esboçar uma resposta alternativa. Se é verdade que o homem se revelou predador e cruel, é indiscutivel que ele desenvolveu, ao mesmo tempo, uma característica que não deve ser estranha a todo o mundo animal, mas que no caso do homem toma um lugar muito particular – o de ser capaz de respeitar, ou pelo menos de poupar, o outro homem, e a vida em geral. De fato, se a tendência à predação existe, em maior ou menor grau, nos representantes da espécie, é inútil negar que para muitos homens pelo menos – milhões deles certamente – a idéia de destruir um outro homemparece repugnante (embora eles possam legitimá-la em circunstâncias especiais), como parece repugnante também a própria idéia de destruir a vida (ou uma vida suficientemente articulada e desenvolvida, e não nociva, ou então em situação de ataque). Pensemos, num plano fenomenológico, na atitude que temos diante de uma grande árvore. Há os que, diante dela, se dispõem a destrui-la, afim de utilizá-la para tais ou tais fins ou simplesmente pelo prazer de destruir. Mas há aqueles – também muitos – a quem repugna a idéia da destruição, e que condenariam ações desta ordem. Dir-se-á que a árvore é um mau exemplo porque ela não ataca ninguém. Ponhamos no lugar da árvore, digamos, um animal doméstico, que já é um vivente menos pacífico. A atitude do homem diante deste último é, de novo, dupla, e mais ou menos a mesma: ou atacar e matar o animal; ou então protegê-lo e acariciá-lo, ou pelo menos condenar toda violência contra ele (essa dualidade separa alguns homens de outros, mas dentro de certos limites, ainda que com polos de intensidade variável, ela deve existir em cada indivíduo). Não vou discutir de onde vem essa dupla reação, e em particular a reação postiva. Identificamos o objeto vivo com nós mesmos ? Ou é outra a razão ? Não importa. O que importa é, em primeiro lugar, que ela existe. Ora, se esse impulso provavelmente não está ausente do mundo animal não-humano – lá, quando não há agressividade, há em geral indiferença, mas existe também, aparentemente, certo tipo de afeto, e não só dentro da mesma espécie –, o fenômeno toma, no homem, embora coexista com o seu contrário, uma importância e uma intensidade particulares. Nessas condições, poder-se-ia dizer que essa sociabilidade positiva é um traço que distingue o homem da animalidade tout court. Mas é preciso dizer também que certas formas de violência gratuitas distinguem o homem do animal não-humano. O animal humano é, digamos, ao mesmo tempo muito pior e muito melhor do que o animal não-humano (o humanismo esquece o primeiro termo, o anti-humanismo, o segundo). Historicamente, se o lado negativo não deixou de se desenvolver – ele atinge, até aqui, um climax no século XX –, o lado positivo também foi se afirmando e como uma espécie de transcendental. De um modo que só aparentemente é paradoxal, dir-se-ia que houve um processo, ele mesmo histórico, de passagem do histórico ao transcendental (ou preferindo, a algo que remete de certo modo ao transcendental). Os direitos do homem só se fundam na “natureza do homem“ neste sentido e dentro desses limites, isto é, eles nascem de uma determinação humana (que é, na realidade, uma potencialidade ou virtualidade) – a de recusar a violência contra o outro. Esta potencialidade foi se cristalizando como idéia[ix] no curso da história, coexistindo com um prática que a contradiz em geral, mas nem sempre, no plano coletivo, e que pode contradizê-la ou não, no plano individual. Passos importantes nesse sentido positivo foram acontecimentos históricos como a Revolução Francesa, em especial as declarações dos direitos do homem, e antes delas a Revolução Americana, como também a moral kantiana e, em parte pelo menos, a filosofia clássica. Assim, se não se pode mostrar que “existe“ num plano puramente transcendental um “direito do homem“, é possivel mostrar que houve algo como uma constituição histórica de um transcendental (por estranha que pareça a formulação) ou a emergência de um quase [como se ] transcendental. Isto nos dá os fundamentos, digamos, não do grau zero, mas do grau mínimo de respeito que merece o outro homem e, em medida diversa, também o vivente em geral[x]. Porém, é preciso ir mais longe. E aqui entra o problema da elevação do homem senão até o “infinito“, pelo menos para além da finitude do cotidiano. Como vimos, Badiou introduz a esse propósito o exemplo das grandes rupturas (ou do que ele considera como grandes rupturas) na arte, na ciência, na política, e também no amor. Mas não faltaria nada nesse quadro ? Não seria necessário incluir aí mais um caso (caso, que não é un outro, simplesmente, mas introduz uma mudança essencial)? Refiro-me precisamente – e isto representa um passo a mais em relação à argumentação crítica anterior – à elevação efetiva à postura ética, à capacidade que têm certos homens – não a simples capacidade de proceder de forma ética, porque, em princípio, é de supor que todos a têm – mas a capacidade de efetuar essa capacidade (dizendo de um modo rebarbativo), a capacidade de efetivação. De fato, se a potencialidade do respeito parece ser universal, a efetivação dessa potencialidade não é. Há os que chegam a isso, há os que não. Por trás dessa banalidade, há algo que, a meu ver, é muito sério e profundo. Os indivíduos são éticamente desiguais. Se não há vontade santa, há individuos melhores e indivíduos piores. Pois bem. A capacidade efetiva do respeito deve ser incluida entre as passagens do finito ao infinito que estão abertas ao homem. Deve-se dizer ( não se trata de um problema de “reciprocidade“, nem o argumento é circular): a efetuação da capacidade de respeitar merece respeito. Isso não elimina o respeito “no primeiro nível“, mas se acrescenta a ele. Se todo homem pode (e deve) ser respeitado enquanto homem (com as precisões e ressalvas necessárias), o homem que respeita deve ser respeitado num nivel superior. Esse, a meu ver, o caminho (um esboço de caminho) para fundar uma ética, ao mesmo tempo transcendental e histórica, ou histórico-transcendental. Assim, voltando aos nossos autores, Badiou e Zizek erram duplamente. Primeiro, deve-se dizer que aquém do nivel mínimo por eles fixado para a possibilidade de uma ética, já existe um registro de valores e de universalidade. E, segundo, no nivel mesmo em que, neles, a ética desponta (em Badiou, pelo menos), há um vazio que, em si mesmo, reflete a primeira insuficiência. De fato, o preenchimento desse vazio remete à efetivação daquilo que eles não viram como potência, e potência já carregada de valor num primeiro nivel. Termino – antes de uma pergunta final – com algumas considerações sobre certas diferenças que se manifestam entre os dois autores. Nas páginas finais da sua Ética, e de um modo um pouco surpreendente, Badiou introduz um elemento de “moderação“ no seu discurso – se podemos dizer assim – ao falar da exigência do que ele chama de “reserva“ (E, p. 126). Trata-se, na sua linguagem, de criticar “a língua“ que “a partir de seus próprios axiomas“ pretende “nomear a totalidade do real“ (id., p. 118), e assim “transformar o mundo“. Ele dá o exemplo de guardas vemelhos que fizeram “imensas destruições“ (id, p. 120), isto é, praticaram certos excessos, e sem dúvida pensa também no stalinismo[xi]. Enfim, ele introduz aqui uma espécie de correção ao seu argumento. (Também nesse caso, ou se toma a precisão como uma observação en passant, ou, levada a sério, ela obrigaria, aparentemente, a recomeçar tudo). De qualquer forma, ela foi suficiente para provocar uma crítica de Zizek. Este não tolera “reservas“. Assim, ele recusa essa passagem de Badiou, advertindo que a verdade é sempre “uma imposição (“enforcement“) excessiva“, ela “é sempre imposta“. Quando não funciona, não é porque foi excessiva, mas porque “em si mesma não era uma Verdade“ (In Defense..., p. 306-307). Essas observações de Zizek interessam por mais de uma razão. Por um lado, mostram que Zizek se dá conta de que a passagem ameaça o conjunto da “máquina“. E, observemos, no que se refere ao exemplo dado por Badiou, é verdade que o problema não está no “excesso“, mas na própria idéia ou, preferindo, que o excesso é aqui excesso da própria idéia, excesso inerente à idéia em questão. Mas ao mesmo tempo, a reserva diante da reserva, por parte de Zizek, mostra como a sua filosofia está comprometida com os “excessos“ (ele não critica Badiou, porque este recusa os excessos de uma idéia que, nela mesma, já é excessiva – isto é, ele não se limita a mostrar que há aí uma incompreensão, digamos, num plano formal, a propósito do como funciona o “excesso“ – ele o critica, também e sobretudo, por tomar alguma distância em relação ao próprio excesso: para Zizek, uma idéia, em si mesma excessiva é, por isso mesmo, eminentemente positiva). Zizek não suporta “reservas“; sua fiosofia é sempre fiel ao “excesso“ (ressalvada a sobrevivência da espécie)[xii]. As consequências práticas desse radicalismo aparecem num exemplo, um caso bem sintomático, referido por um de seus críticos. Trata-se da posição que Zizek assumiu no que concerne a certos fatos ocorridos na guerra do Vietnã. Tendo ocupado uma cidade, os americanos, provavelmente por razões de propaganda, tomaram a iniciativa de vacinar (no braço) um certo número de crianças. A cidade veio a ser reconquistada pelos vietcongs. Para eliminar definitivamente a possibilidade de iniciativas como aquelas, que poderiam melhorar a imagem dos americanos perante as populações, os vietcongs simplesmente cortavam o braço das crianças vacinadas. Zizek comenta essa medida: “ (...) ainda que seja dificil sustentar como modelo literal a seguir, esta plena rejeição do Inimigo precisamente no seu aspecto de ajuda “humanitária“ (“in its helping “humanitarian“ aspect“) qualquer que seja o seu custo, deve ser apoiada na sua intenção básica“[xiii]. Apesar da concessiva “mole“ no seu início, como se dizia antigamente não se sabe o que mais admirar nesse texto: se a ignomínia moral do apoio a um ato cruel e brutal contra uma criança, ou se a cegueira teórica e prática, de quem supõe – mas supõe mesmo, ou aprecia a violência pelo amor da violência ? – que meios como este podem ajudar numa luta que, em principio, seria um combate por uma sociedade emancipada. A anfibolia é, de novo, de tipo anti-dialético: não se entende que, a partir de certo limite, determinados meios entram em contradição com seus fins e os intervertem. Diante de tudo isto, cabe a pergunta final : que grau de confusão, no interior da esquerda – o que não significa, deixo claro, que as luzes da direita sejam mais brilhantes – explica esse fenômeno estranho da aceitação de um discurso como esse por parte de muita gente (e nem sempre medíocre), enquanto modelo teórico “interessante“ ou rigoroso de uma política para a esquerda ? abril 2009, março de 2010 |
fevereiro #
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[i]Renunciei a preparar um livro crítico mais ou menos volumoso e relativamente sistemático sobre os dois, como projetara inicialmente. Entre outras razões, porque seria prestar-lhes uma espécie de homenagem teórica, mesmo se sob forma crítica, o que quero evitar, por razões que, espero, ficarão claras ao leitor.
[ii]Como, há mais de três décadas, escrevi um texto de crítica do humanismo e do anti-humanismo
(“Dialética marxista, humanismo, anti-humanismo“, texto do final dos anos 70,
incluido no meu Marx: Lógica e Política, investigações para uma
reconstituição da dialética, vol. I, São Paulo, Brasiliense, 1983) advirto o
leitor de que a posição que defendo aqui é diferente da do artigo em questão,
embora ela possa ser considerada como um desenvolvimento, mas muito crítico, das idéias daquele texto. Para a diferença entre minha posição atual e a expressa naquele artigo, remeto à entrevista que dei ao jornal Valor
Econômico (São Paulo, 20/1/10). A entrevista foi prejudicada por um introito, que contém
imprecisões, e pelo qual não tenho nenhuma responsabilidade; mas o texto
propriamente dito – no que se refere à parte teórica, pelo menos –, é perfeitamente fiel.
[iii]Mao: a life,N. York, H. Holt, 2000, Mao Tsé-Toung, tradução francêsa de Colette Lahary-Gautié, Paris, Fayard, 2005.
[iv]Cambridge, Massachussets, e Londres, The Belknap Press of Harvard University Press, 2006. Quem quer
que tenha lido com atenção esse livro rigoroso não poderá deixar de constatar
com espanto o fato de que Badiou não só considera como “positivo“ o que se
passou então na China, mas o compara com as grandes realizações humanas em
matéria de arte e de cultura, e o toma como modelo de experiência política. É
verdade que alguns dos participantes da revolução cultural evoluiram para uma
posição democrática, e talvez seja verdade que ela tenha reforçado, a longo
prazo, uma tendência ao protesto. Mas isso não define a sua essência. Diferentemente de outros eventos históricos só aparentemente análogos, como a Revolução Francesa, a revolução cultural chinesa, mobilização que nasce de
um impulso de cima por parte de Mao, visando neutralizar os seus adversários, e
se prolonga numa violência não menos arbitrária de baixo, foi essencialmente uma
sequência de episódios sangrentos – e quase só com significação negativa em
termos das lutas pelo progresso social – marcados por matanças, torturas,
humilhações de inocentes, rituais de submissão ao lider, e devastação do país
(parece bem estabelecido que houve até canibalismo). Tudo isso em meio a um
discurso dogmático-delirante em nome do “proletariado“ e da “luta de
classes“, e cujo fundamento era a palavra do grande lider. Que isso tudo apareça
como modelo de política (e aparentemente também de uma certa ética) mostra
bem que Badiou está do outro lado, que ele patrocina a causa de uma
certa barbárie. O que não parecem ter entendido nem certos
universitários, que estão prontos a abraçar o “badiouismo“ como a última flor do
pensamento de esquerda, nem certas revistas (estas talvez tenham entendido
muito bem) que se apressam em “faturar“ pesado com a promoção dessas pretensas
grandes figuras. Não esqueçamos que Stálin, um dos maiores assassinos que a
história conheceu, foi, de certo modo, um homem de esquerda.
Dir-se-á: então, a idéia de esquerda se perdeu, não haveria mais diferença entre
esquerda e direita? Há diferença sim, mas o problema é que, pelo menos a partir
do século XX, não basta ser “de esquerda“. É preciso ser ao mesmo tempo de esquerda e
anti-totalitário.
[v]Uma das dificuldades desse texto, seja dito de imediato, é o fato de que “se
ter tornado animal“ (ou, antes, de ter sido reduzido à animalidade) –
mesmo se Badiou explica que “se havia feito o necessário para [que] isso
[ocorresse]“ – vale afinal como equivalente de “ser um animal“. Ele reduz o “ter
sido transformado“ ao “ser“. De fato, se não fosse assim, como justificar a tese
de que as vítimas valem tão pouco como os algozes? Por outras palavras, no
momento de tirar as consequéncias, Badiou oblitera o movimento que, entretanto,
ele mesmo assinala, de redução da vítima à animalidade pelo trabalho do algoz. E já que ele fala em
Chalamov (com o qual, diga-se de passagem – o que fica claro para qualquer
leitor atento do escritor russo – Badiou não tem nada em comum), valeria a pena
lembrar que Chalamov observa muitas vezes a diferença entre o que são os homens
quando chegam ao campo, e aquilo que eles serão, após algum tempo (de
fato, curto) de vida no campo. Seja dito em passant, se a experiência dos campos
é essencial para pensar o homem (e Badiou entendeu pouco do que diz
Chalamov sobre os campos e sobre o homem), a situação dos campos, que é
uma situação limite, não define por si só o homem. De fato, reduzido à condição
animal (ou a pior do que isto: na situação de fome crônica em que ele se
encontra, a sobrevivência passa a ser o objetivo quase exclusivo da existência)
só com muito esforço (ou só quando se trata de figuras superiores da individualidade) o indivíduo humano pode reagir segundo as possibilidades mais altas da espécie.
[vi]No prefácio à edição inglesa de 2000 da sua Ética, Badiou diz
que, com o nazismo, emerge um “sujeito obscuro“, o que representa uma mudança em
relação à versão original. Mas isso é um detalhe “técnico“ da construção
pseudo-especulativa de Badiou, e não muda nada de essencial, para efeito da
nossa discussão.
[vii] Observe-se que, se esse massacre escapa do “caso especial“ de Badiou, ele também fica fora
do limite definido por Zizek. Em Zizek, o limite é a ameaça à sobrevivência da
espécie. Por isso aliás, ao contrário do seu comparsa, Zizek desconfia do
maoismo que andou brandindo a ameaça da arma atômica com excessiva desenvoltura
(ver In Defense..., pp. 187 e 219). Digamos, juntando os dois comparsas, que, para eles, se não se
tratar nem de nazismo nem de ameaça à espécie, tudo é permitido.
[viii]Diga-se de passagem, não é isto que é grave. Mesmo se a tese dos revisionistas é
falsa (segundo eles, o nazismo teria sido essencialmente uma reação ao
comunismo), há, aparentemente, no interior desse argumento, um elemento de
verdade: a repercussão negativa, junto às classes médias principalmente, dos
horrores do regime leninista e depois stalinista deve ter de algum modo
sobredeterminado os avanços do nazismo nos anos 20 e 30.
[ix]“Idéia“ não tem aqui o sentido técnico kantiano de simplesmente “regulador“. Remete pelo
contrário a um dever-ser que enquanto dever-ser se torna constitutivo, mesmo se ele coexiste com
seu oposto.
[x]Evidentemente não estou afirmando que “provei“, de algum modo, que se deve ter respeito pelo
outro. Em forma muito geral e abstrata (mas somente nessa forma), o velho
argumento que afirma a impossibilidade de passar de um juízo de realidade a um
juízo de valor é verdadeiro. O que se pode mostrar (até aqui) é: 1) que, se o
homem tem disposições negativas, ele tem também disposições positivas, as quais
se manifestam inclusive na história; 2) Que há boas razões (a vida, a
coexistência entre os indivíduos etc) para preferir essas últimas às
primeiras.
[xi]Há também uma passagem em que Badiou distingue a atitude que se poderia ter em relação,
digamos, aos simples inimigos do “sujeito“, e a atitude a tomar em
relação a esses inimigos especiais que são os agentes do “simulacro“ (o
nazismo). Ele observa que no primeiro caso “podemos (...) combater os juizos e
opiniões que ele troca com outros para corromper toda fidelidade, mas não
sua pessoa, que na circunstância é indiferente, e à qual em última
análise toda verdade se dirige também“ (id, p. 110, grifado no original), pois
“por inimigo que seja de uma verdade, um “qualquer um“ é sempre representado na
ética das verdades, como capaz de se tornar o Imortal que ele é“ (id.). É de se
perguntar, se um texto como este não introduz uma espécie de respeito pelo
outro (ou menos, exigência do não emprego da violência para com ele, e
portanto uma sorte de direito a não sofrer a violência por parte
do outro), pela via da presença virtual do Infinito, em cada animal-humano.
Parece-me que, ou se toma uma passagem como esta como reflexão não substantiva,
ou ela ameaça arruinar toda a construção. Aparentemente, a coerência
poderia ser salva insistindo no fato de que se diz que a pessoa do inimigo é
“indiferente“, o que pareceria remeter a uma consideração mínima, de teor
pré-ético. Mas: 1) diz-se que “não podemos“ (“podemos
(...) mas não“) combatér o inimigo como pessoa; e 2) a razão dessa recusa não é de ordem puramente pragmática, mas envolve a idéia da capacidade( ele é “capaz de...“) que tem o outro, inimigo embora, de “se tornar o Imortal que ele é“ (grifo de RF).
[xii]Entretanto, não se deve opor, a partir daí, um Badiou moderado a um Zizek radical. Ainda
desenvolverei o problema da relação entre os dois. Digamos por ora o seguinte.
Eles tem muita coisa em comum: ambos são anti-democratas (o inimigo seria bem
mais a democracia do que o capitalismo!), os dois são leninistas (um com
tonalidade néo-maoista, o outro é um quase-stalinista), os dois são
anti-humanistas. Badiou é o fundador de toda essa construção funesta, e, dos
seus fundamentos, se tira imediatamente a legitimação de massacres; o outro
pratica um estilo mais extremista principalmente nas consequências.
[xiii]"Zizek live", entrevista, em Rex Butler, Slavoj Zizek: Live Theory, N. York,
London, Continuum, 2005, p. 147, citado parcialmente por Ian Parker,
“The truth of over-identification“, in The Truth of Zizek, ed. por
Paul Bowman e Richard Stamp, Londres, N. York, Continuum, 2007, pp. 157–158,
grifos de RF). No mesmo contexto, pode-se econtrar uma outra pérola. O apoio dado ao sinistro Sendeiro Luminoso
peruano, no assassinato de consultores agrícolas representando os Estados Unidos ou a ONU.