revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Fernão Pessoa Ramos

Cinquenta anos de Terra em transe e uma certa crise ética em 19681

 

 


Em maio de 2017 comemorou-se o cinquentenário do lançamento de Terra em transe, filme de Glauber Rocha que influenciou não só a geração cinemanovista, mas igualmente um conjunto amplo de artistas contemporâneos. De Hélio Oiticica a José Celso Martinez, passando por Caetano Veloso, todos possuem declarações ou escritos atestando a dimensão da surpresa com o filme num período-chave da história brasileira, inclusive pela sensibilidade do que, em seguida, seria chamado Tropicalismo. Terra em transe foi realizado no segundo semestre de 1966, ainda respirando os últimos ares da surpresa com o golpe militar de 1964. Apesar dos primeiros longas do Cinema Novo serem mais intimistas (ver Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Cacá Diegues), tanto a produção ligada aos Centros Populares de Cultura da UNE de antes de 1964 (o longa de episódios Cinco vezes favela e também o inconcluso Cabra marcado para morrer), como o primeiro longa de Glauber (Barravento), ou Os fuzis de Ruy Guerra, desenvolvem um universo ficcional no qual desponta, como alteridade, de modo inovador no cinema brasileiro, a figura do povo ou do “popular”. Ponto essencial a ser realçado é que essa figura surge como um “outro” que não é “si mesmo” (os cineastas têm sua origem no ambiente social da classe média brasileira). Olha-se para esse “outro” inicialmente com desconfiança e espanto, depois com exasperação e, finalmente, com deslumbramento. No conjunto do olhar, encontramos um autodomínio sobre a representação da alteridade “popular”. Ele caminha de uma inicial certeza, com naturalidade, para uma pesada má-consciência com o próprio ato da representação, antes de querer exorcizá-lo nos modos do congraçamento. É um movimento que perdura e que iremos encontrar em filmes já distantes do Cinema Novo, no período chamado de Retomada e nas primeiras décadas dos anos 2000.
Os contornos iniciais da representação do ‘popular’, conforme serão desenvolvidos na década de 1960, podem ser encontrados na primeira obra de Nelson Pereira dos Santos, Rio, 40 Graus,de 1955, filme que marca em seu modo de expressão o novo cinema brasileiro da década de 1960. Respira-se ainda a representação da alteridade do “popular” com naturalidade e sem culpa, numa abertura similar àquela que inaugura a presença de novos ritmos na canção brasileira e a própria noção de uma música popular brasileira. A diferença central, para entendermos as particularidades da arte do cinema, é que, na canção, o outro-povo produz sua arte (a tradição do samba, por exemplo), influenciando o conjunto, enquanto no cinema a atividade artística do outro-popular estará por inteiro ausente, até muito recentemente. Nunca houve uma tradição de autoria popular no cinema brasileiro. Talvez por isso a fissura com a alteridade popular, e os dilemas de consciência que a envolvem, sejam agudos e sentidos com tanta intensidade.
Nos filmes da geração cinemanovista anteriores a 1964, a representação da alteridade popular embute um saber sem má-consciência sobre o outro. Há uma naturalidade na qual a fissura da diferença é engolida sem dilema. O saber sobre outro serve, inclusive, para negar a cultura popular em sua expressão nas formas próximas ao transe (no candomblé, no futebol, nos ritmos fortes do samba e nas atividades das escolas), conforme podemos verificar em obras como Barravento, Os fuzis,nos cinco episódios de Cinco vezes favela, nos médias do grupo Farkas que mais tarde comporiam Brasil Verdade (Viramundo, subterrâneos do futebol, Nossa escola de samba, em menor grau Memória do cangaço), no curta Maioria absoluta de Leon Hirszman, entre outros. Dos filmes anteriores à 1964, Deus e o Diabo na Terra do Sol é aquele que estoura de modo inédito a representação clássica e a posição na qual o saber sobre o outro popular é emitido. Vidas secas,que vem de uma tradição anterior ao Cinema Novo, como um último suspiro do realismo do pós-guerra, também é recuado na intensidade das lições que quer ensinar. De todo modo, a produção anterior a 1964, ou realizada logo a seguir ao golpe, possui a inocência arrogante de quem enuncia que sabe a práxis correta para a liberdade do “outro” popular. É um saber que embute conhecimento sobre os mecanismos da alienação que envolvem a consciência reificada do valor do trabalho social e a possiblidade, por meio de uma espécie de pedagogia artística, desse universo de fetiches a ser desvendado e revogado.
Existe um ponto que constitui o núcleo da desconfiança do cineasta de classe média na representação da cultura do outro-popular. É o ponto que aparece como obstáculo em fazer valer seu saber racional sobre a práxis política correta e fornecer o mapa da reificação. Trata-se dos afetos e das sensações de um “de-dentro” sensível do sujeito, pulsões indistintas de vontade e prazer, envolvendo sensações próprias que se articulam aos estados exaltados da subjetividade, abrigadas sobre a denominação de “transe”. O transe produz comportamento que envolve conjunto de ações e atitudes exaltadas, voltadas a um afeto de si irresolúvel e fechado, indiferente às asserções e argumentos racionais. Passa ao largo das estratégias expositivas que buscam deslocar a posição alienada do sujeito da história, pela transmissão do saber da reificação. Os estados de transe – conforme largamente presentes na cultura popular pelo transe religioso do candomblé, no transe do gol e fruição da expectativa no futebol, ou na absorção sensorial completa dos ritmos afro-brasileiros (e nas atividades que o circundam, como as escolas de samba) – são abordados de modo explicitamente negativo nesse primeiro encontro e embate (pois é disso que se trata) da geração cinemanovista  com o outro-popular. O modo de fruição artística (samba) e comportamental (religião, futebol) pelo transe, na cultura popular, choca-se com o saber da reificação e com a pedagogia da práxis que essa geração crê possuir e poder transmitir de modo clarividente. O poder e voz do saber sobre o que é melhor para o outro, embute o poder de ensinar e educar. A posição inferior do outro, na bruma do universo reificado, justifica moralmente a negação da alteridade sobre a qual esse poder é exercido. Negação que envolve a lição de moral (Os fuzis, Barravento, Maioria absoluta, Zé da Cachorra/Cinco vezes favela) e também a visão negativa (ou desconfiança) da cultura popular do transe quando ela é figurada em Nossa escola de samba e Escola de samba, Alegria de viver/Cinco vezes favela (alienação devida ao transe com o samba), Subterrâneos do futebol e Garrincha alegria do povo (alienação devida ao transe com o futebol) e Viramundo, Barravento (alienação devida ao transe com a religião/umbanda-candomblé). Nesses filmes é moralmente justo e positivo ter ascendência e saber sobre o outro. A cultura popular surge em marcha reduzida, desfigurada, ainda quando puxada à ambiguidade, para formatar-se à denuncia da alienação. Constata-se a fraqueza do polo popular ou sua desorientação, devido à empatia com o transe. Não há ainda má-consciência sobre esse saber que traz em si a negação do outro, como posteriormente ficará evidente na crise ética que vive o Cinema Novo, em seu segundo fôlego, ao aproximar-se do marco de 1968. Manifestação clara da ideologia desse primeiro instante podemos encontrar num texto como o “Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura” de Carlos Estevam Martins, ideólogo dos CPCs, caracterizando a arte popular como “ingênua”, campo favorável para o exercício de um saber/poder fora de campo, que cristaliza e oferece o mapa da reificação. Com todas conhecidas distâncias, proximidades e conflitos entre CPC e Cinema Novo, o horizonte do discurso de Martins cala fundo nesses primeiros filmes.
O segundo momento do Cinema Novo pode ser exposto em torno da trindade Terra em transe, O desafio e O bravo guerreiro. Dá-se a volta nessa primeira posição da boa consciência e retorna-se sobre si num modo de exasperação – que oscila e depois se afirma no paradigma da contracultura, da curtição e da exasperação (do “irracionalismo”, conceito caro à época) do final da década. Terra em transe, portanto, em 1967, reflete a eclosão da crise ética que teve em seus fundamentos o esgotamento da ascendência professoral, sem máconsciência, sobre o campo da cultura e ações cotidianas do “outro-popular”. Momento de crise ética e de fissura inédita na subjetividade do saber sobre si, marca de um acontecimento, talvez grande, se quisermos falar de uma nova epistème para utilizar conceito caro a certa filosofia que lhe é contemporânea. Ela passa a dominar e irá claramente predominar até as primeiras décadas do século XXI. Nela, além da impossibilidade do fechamento do saber sobre o outro, trazendo-o para a voz de si, a cultura do outro-popular, como experiência do transe, vem para primeiro plano numa postura afirmativa e desafiadora. Os dilemas existenciais necessários para aceitar esse desafio compõem o âmago que move o protagonista de Terra em transe.A ideia da cultura popular e do transe como motor da reificação, a ser superado por um saber iluminista, claramente ficam para trás e sua constatação carrega consigo uma certa má-consciência do momento anterior. A abertura para além da pedagogia da reificação no contexto do Tropicalismo irá além e conseguirá deglutir não só o transe popular, mas também a própria cultura de massas e suas mercadorias culturais – desenvolvimento que foge aos limites desse ensaio.
Portanto, não é só a fissura que explode sobre o “si mesmo” ao reconhecer a alteridade como algo a ser problematizado. Também o desconforto e o mal-estar com essa cisão (e com o passado de certezas no qual o império do saber sobre o outro foi construído), estão no centro dos dilemas que enfrentam o Cinema Novo e setores significativos da cultura brasileira na segunda metade dos anos 1960, particularmente no pós 1968/AI-5. Na valorização do eixo da experiência do transe e sua abertura para uma experiência de si, além da dimensão de uma pedagogia luckacsiana da reificação, desponta a emergência da contracultura que cristaliza a abertura de portas para a sensibilidade de corte tropicalista que é contemporânea na cultura brasileira. Aqui ainda seria necessário fazer a ponte entre a experiência do transe, fora do eixo do saber da reificação da mercadoria, e a abertura da mesma sensibilidade para a experiência do “pop” em seu encontro ativo, deglutidor (dentro das antigas tradições antropofágicas das vanguardas brasileiras) com o universo da cultura de massa e seus produtos industriais que circulam no mercado. Se o tropicalismo mantém um vínculo inegável com a sensibilidade “pop” e a deglutição do universo da mercadoria, a particularidade brasileira (clara em Oiticica, em Martinez, na canção e em Glauber) está em introduzir a fissura da representação da cultura popular, e seus dilemas como alteridade, na geleia geral do pop.
Existe, portanto, uma “crise ética” sentida em filmes chaves deste período, expressa em Terra em transe (1967), O desafio (1965) e O bravo guerreiro (1968). Se Terra em transe inaugura a janela para a fragmentação tropicalista, enquanto ainda sente no rosto os ventos do passado de 1964, O desafio e O bravo guerreiro são obras que dialogam mais diretamente com a circunstância que vai ficando para trás. Teremos de esperar filmes como Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, ou Brasil Ano 2000 (1968), de Walter Lima Jr para, no cinema brasileiro, encontrarmos um diálogo frontal, e sem má-consciência, com a sensibilidade tropicalista. Terra em transe, O desafio, O bravo guerreiro, compõe o quadro do que chamamos de “segunda trindade” do Cinema Novo, obras que possuem, nos pés de barro, o claro peso de uma crise ética que as atormenta e que tem em seu núcleo o deslocamento nas expectativas de ação do outro-popular. São filmes que mostram o drama do rapaz de classe média enfrentando um contexto ideológico que lhe foi caro um dia e se esvai repentinamente no pós-1964. Possuem, como notou Jean-Claude Bernardet, o diálogo franco e sincero da própria geração cinemanovista com o universo que a cerca, jovens pós-púberes de classe média urbana, com suas dúvidas e dilemas. Ao contrário do período anterior a 1964, os filmes desta segunda trindade trazem um universo ficcional que aparece próximo ou colado ao cotidiano dos cineastas. O personagem central não é mais o distante caminhoneiro (Os fuzis), o retirante (Vidas secas)ou o matador de cangaceiro (Deus e o diabo na Terra do Sol), que se exaspera diante da passividade popular, mas o próprio jovem enfronhado em dilemas existenciais que envolvem a ação política que clama o agudo momento histórico. O universo cultural do “outro-povo” é visto agora de prisma diverso. A crítica ao conceito de alienação é direta e rebate dúvidas existenciais. O conceito de “alienação” parece haver crescido em sua abrangência. Depois dos dilemas provocados pela constatação de que o povo e sua cultura são “alienados”, agora se descobre que também a classe média pode ser alçada no mesmo conceito. O “si mesmo” alienado, nas dúvidas entre ser ou não engajado, é a força motriz da crise de consciência que cerca os filmes desse segundo fôlego do Cinema Novo. Terra em transe é sua expressão maior, quando as certezas pré-1964 ficaram para trás e a eclosão fragmentária de 1968 (os “superbacanas” “estilhaços sobre Copacabana”) do Tropicalismo, da luta armada e da contracultura – da curtição e da exasperação – despontam pioneiramente na sensibilidade do poeta. O dilema interior volta-se à própria subjetividade do jovem protagonista, em um recorte existencialista que busca eco, mas não encontra, tentando se firmar numa ação que lhe foge sob os pés.
Em 1966, Glauber Rocha inicia a produção de Terra em transe, logo após haver filmado o curta Maranhão 66, sobre a eleição de José Sarney para o governo do Maranhão. O diretor declara ter gastado seis meses entre o início das filmagens de Terra em transe e a primeira cópia. Muitas das dificuldades devem-se à necessidade de se criar um novo país – o “Eldorado” – em cenários no Rio de Janeiro. O país onde se ambienta a ficção é uma ilha tropical. Sua capital (Eldorado) liga-se a única província no interior, chamada “Alecrim”. A trama “se desenvolve entre idas e vindas dos personagens de Eldorado a Alecrim”. O filme é narrado em flashback a partir da morte de Paulo Martins (Jardel Filho), que rememora em delírio sua existência passada. Poeta e militante político, Paulo hesita entre as forças políticas de Eldorado que disputam seu apoio. De um lado temos Porfírio Diaz (Paulo Autran), líder populista de direita com o qual Paulo esteve ligado na juventude; de outro, Felipe Vieira (José Lewgoy), líder com tonalidades esquerdistas, mas que oscila em suas alianças e para o qual Paulo é atraído por Sara, militante comunista. Há também a figura do poder midiático, encarnado por Júlio Fuentes (Paulo Gracindo). Entre Vieira e Diaz, Martins deve lidar com as lideranças populares e o povo propriamente, cuja manifestações fogem às suas expectativas e parecem ser um estorvo para suas certezas. Na época de seu lançamento, Terra em transe foi criticado por não se situar de modo claro e didático em relação às forças sociais que figura no movimento da história. O filme traz para si o embate com o outro-popular como expressão de um mal-estar e nele se finca a seco, sem estabelecer um caminho de saída para os afetos de identificação em modalidades redentoras.
Terra em transe pode ser visto como obra síntese dos dilemas da geração cinemanovista. É seu grande instante, seu momento operístico, quando o fôlego tem densidade para atingir o tom de exaltação dramática no contato com a grande História e nele penetrar com desenvoltura e naturalidade. Oscilações existenciais, que antes engatinhavam, adquirem densidade para um salto qualitativo e conseguem sua figuração em tragédia. Paulo Martins é a cristalização direta desse salto, personagem raro em nossa filmografia pela facilidade com que cresce e ganha densidade para pular, sem artificialidade, do corriqueiro cotidiano para o instante único e extremo dessa grande história – “o cosmos sangrento”, como ele mesmo define. Depois de Terra em transe, outros tentarão imitar o trânsito, mas poucos farão o caminho com sucesso. Nos anos seguintes, o cinema brasileiro parece ser inundado de pequenos “Paulo Martins” se debatendo para sair da vida e entrar na história, mas o pulo é frágil e fica aparente a artificialidade do movimento. A questão do “transe”, que surge no título e logo na abertura do filme com a trilha de atabaques e cânticos de uma cerimônia de candomblé, é chave para a compreensão do filme. Também é evidente a metáfora do momento político turbulento. Por meio do “transe” temos a visão da cultura popular que está no âmago dos dilemas existenciais que atormentam o protagonista e que farão com que rodopie em agonia barroca.
Paulo Martins tem um grande tormento, uma grande culpa que carrega nas costas e atravessa o filme como móvel: ele, no fundo, despreza o povo e sua passividade, sua servilidade, “seu sangue sem vigor”, como diz a determinada altura. É um desprezo que surge em sequência do início, quando conflita o líder camponês recriminando-o de ser “tão covarde, tão servil” e define o “outro-popular” como “gente fraca sempre, gente fraca e com medo”. A fissura da consciência sobre a visão do outro popular como “alienado”, já mencionada, agora dilata-se. Abre-se em abismo e situa a obra de Glauber num núcleo dramático do qual avançará posteriormente. O dilema torna-se mais agudo pelo assassinato, em seguida, do camponês que havia provocado o desprezo de Martins por sua fraqueza e passividade. O protagonista sente-se culpado, mas não se dispõe a lidar com esse sentimento de modo passivo, para purgá-lo na compaixão. Ativamente, cria no contraditório um clímax de exasperação. O resultado, no universo ficcional, é que abandona Vieira, o líder populista de esquerda da província, e retorna para as noites de orgias e prazeres na capital urbana de Alecrim.
A forma da má consciência que persegue Paulo Martins em seus rodopios tem uma figura: a do povo. É ela que faz com que oscile entre os leques possíveis da ação política que o filme aponta, remetendo à situação política do Brasil de 1966/1967. Por outro lado, como âncora que lhe arrasta para além, está a amarga experiência existencial interior, coberta por insatisfação e náusea. É a sensação que será recorrente no cinema brasileiro da segunda metade do século XX e início do XXI. Aparece configurada em Terra em transe senão em modo pioneiro, em nitidez cristalina. Este é o momento que eclode o que estamos chamando de segundo fôlego do Cinema Novo, marcado pela má consciência num contexto que segue aos primeiros filmes mencionados anteriormente. Momento que já pode ser antevisto em O desafio, de 1965, e que atravessará o cinema brasileiro de final de século.
A sequência-chave de Terra em Transe na qual o engajamento fracassado e a náusea são delineados é isolada do fluxo narrativo por um letreiro com os dizeres “Encontro de um líder com o povo”. Centra-se na relação do protagonista Paulo Martins (Jardel Filho) com o ‘outro-popular’, o homem do povo, em seu retorno das noites de Alecrim para os braços do líder populista de esquerda Vieira (José Lewgoy). O motivo do destaque da sequência, para fora do fluxo narrativo, é sintetizar, com certa ironia (“Encontro de um líder com o povo”), o que se vai mostrar: o dilaceramento e o autoflagelamento de Paulo Martins ao não conseguir congregar, em sua experiência interior, a empatia com o “outro-popular” que sua consciência, e a sociedade que lhe cerca, demandam. A recepção de Terra em transe foi polêmica na época exatamente pelo filme não se posicionar criticamente nessa impossibilidade.
Oscilando sempre, Paulo não tem sucesso em fazer vibrar a experiência subjetiva de seus afetos e sensações num modo que adira, como admiração, ao transe do “outro-popular”. O transe que emana do povo na sequência “Encontro de um líder popular”, na forma de uma espécie de marcha carnavalesca, com políticos e passistas populares evoluindo juntos num ritmo musical constante e envolvente, é cercado por uma miríade de vozes simultâneas que transbordam em enunciados relâmpagos e contraditórios. Sara (Glauce Rocha), a militante engajada representando a esquerda comunista tradicional, quer se contrapor ao atormentado Paulo Martins. Este vê o transe do povo pelo lado negativo da alienação, rodopiando em agonia com frases cortantes de ironia e expressões de angústia. Sara se dirige em desespero para o protagonista atormentado pelo mal estar, querendo fisgá-lo das dúvidas e da náusea: “por que, por que você mergulha nessa desordem?”, afirma ela nesse momento-chave do filme.
Sara quer escapar da visão do povo como alienado no transe e provar que existe algo diferente para Paulo Martins. Ela retira então um líder sindical do meio da confusão, Jerônimo (José Marinho), pedindo-lhe com insistência para que “fale”. Um militante comunista, companheiro de Sara, abre espaço para o pronunciamento de Jerônimo metralhando os ares. Nesse ponto, o transe popular e a balbúrdia cessam. O silêncio se faz para escutar Jerônimo. A liderança popular autêntica, o “outro-povo”, o personagem popular, começa seu discurso: “[estou] na luta das classes [...] está tudo errado, eu não sei mesmo o que fazer, o melhor é aguardar a ordem do presidente”. A situação é constrangedora, a imagem do povo submisso e covarde, da qual Sara quis escapar ao dar a palavra a Jerônimo, evidencia-se e se reafirma. A representação que o filme fornece do “povo” sindicalizado é caricata. Os demônios interiores de Paulo Martins novamente afloram. Não suportando a exibição da submissão, ele avança em direção a Jerômino e lhe tapa a boca com a mão. Olhando fixo para a câmera, dirige-se diretamente ao espectador (furando o universo diegético da ficção), para pronunciar a frase-chave do filme que causou muito repercussão na época: “vocês estão vendo o que é o povo, um imbecil, um analfabeto, um despolitizado – já pensaram Jerônimo no poder?”. Sua voz é pausada e grave, a última frase é pronunciada de modo gutural.
Imediatamente o transe, com o batuque em alto som e o povo sambando, volta à toda e cerca os personagens. Outra figura popular desponta, ascendendo numa montagem rápida que leva o segundo personagem popular de baixo para cima em três planos sucessivos. Um autêntico “homem do povo” (interpretado por Flávio Migliaccio) consegue se afirmar na confusão e manifesta querer falar. Destapa a boca do líder sindical, tirando a mão de Paulo Martins, e pede “licença dos doutores”. Diz então, com rosto tímido, que “seu Jerônimo faz a política da gente, mas não é o povo, o povo sou eu que tenho sete filhos e não tenho onde morar”. Todos se calam, então, para ouvir esse segundo “homem do povo”, mas assim que ele termina a reação é imediata. É acusado de “extremista” aos berros. O “homem do povo” simples, que não é sindicalizado, mas tem carne, voz e corpo de povo, acaba morto logo em seguida, com um revólver figurado em sua boca e os olhos fechados. A reação à manifestação desse segundo “homem do povo” humilde, ignorante e passivo, leva a narrativa de volta a Paulo Martins, que se afunda noutro de seus “mergulhos na desordem” existencial, olhando exasperado para os lados. Questiona-se sobre o “transe dos místicos” e é cercado pelos gritos agressivos dos militantes, próximos de Sara, que querem mais atitude de sua parte. Aos gritos de “sua irresponsabilidade política” e “seu anarquismo”, ou ainda “suas teorias reacionárias”, lhe cercam, figurando no filme o discurso dos militantes políticos da esquerda engajada. Resumem o tipo de cobrança que dilacera a consciência de Paulo que não tem escala valorativa entre náusea, indiferença e culpa – síntese de um contexto ideológico no qual está mergulhada toda uma geração.
A morte do “homem do povo”/Flávio Migliaccio pode novamente ser debitada a Paulo Martins/Jardel Filho. É a segunda morte de um homem do povo que cai em sua conta, em sua culpa. É lastro pesado, que faz ancorar o motor da má consciência. Está numa linha não distante dos parâmetros sartreanos, com forte presença no pós-guerra até a primeira metade da década de 1960, que tem foco nos dilemas existenciais do engajamento, seguindo-se a náusea no exercício da liberdade. Aqui surge no desprezo, que provoca em Paulo Martins, a passividade e a subserviência popular, levada ao paroxismo dentro do transe que cerca suas manifestações culturais. Existe nele, Paulo Martins, uma espécie de recuo fenomenológico do qual olha e se estabelece sobre a balbúrdia que aparece distante, num modo que limita e congela suas sensações e afetos. Ele não consegue – nem quer – ultrapassar a distância que o mantém avesso ao universo cultural do povo e seu modo de ser. Não o compreende, não vê desafio em querer compreendê-lo, nem se permite um retorno egóico para ter satisfação ou experimentar catarse na compaixão com o outro. Quer exercer sua potência, sua vontade de ação, mas a passividade do outro o trava, na mesma medida em que dele, povo, necessita para ter sua demanda de ação satisfeita e suprir sua consciência. Esse é o conflito e por isso a agonia. Também antevê a falácia dos dilemas mais simples, presentes nas demandas da práxis, conforme cobrada pelos militantes (aqueles que acusam sua “irresponsabilidade política” e “seu anarquismo”), dilemas que repercutem de modo progressivamente distante em sua alma. No plano final do filme ainda aparecerá com armas em punho, esvaecendo-se ao longe com som de música épica. Mas é a memória que o leva até lá, não o encadeamento lógico ou consequente da ação engajada. As dúvidas existencialistas de Paulo Martins para desabrochar a ação não se conflagram no modo de fulgurar uma práxis (como ainda vinga no final de O desafio), e é isso o que causa espanto e polêmica na recepção do filme. Para fazer valer sua “liberdade” na “situação”, agora não repercutem as demandas de Sara e seus companheiros, abrindo espaço para a náusea e a melancolia exasperada, cobertas por certo “ennui”. Negação da práxis que se agiganta em sua teimosia, querendo pairar por cima da cultura do transe, para além das opções fáceis entre Vieira/Lewgoy e Diaz/Autran, afirmando simultaneamente a alienação do povo engajado/sindicalizado, sem também resgatar o povo espontâneo, o homem comum do povo, que o personagem de Migliaccio representa.
A negação do povo por Paulo Martins tem um fundo de culpa, equivalente àquela que nutre a negação cristã do filho ao Pai, na cruz. É o vórtice de um rodamoinho existencial que impede a experiência de plenitude na ação política em plena sintonia com as oscilações que o momento histórico embute. Não conseguindo escapar do autoflagelo pela negação da cultura popular por alienada, abre fenda para a comiseração na culpa. Da acusação de “irresponsabilidade política” à de “irracionalidade” (ou afirmação da experiência não racional/não política do transe) há o passo que Glauber dá em 1971, no caminho que faz na direção do manifesto conhecido como “Eztetyka do sonho”. Nesse texto, temos o Glauber de uma fase posterior, que manda às favas as demandas de “responsabilidade” que cercam a ideologia do “povo alienado” e do saber da reificação, carregadas pela razão instrumental do engajamento esclarecido. Assume então definitivamente, sem remorsos e sem culpa, a potência das pulsões e o transbordamento irracional em busca do que chama de “integração cósmica”: “(na) existência contínua da arte revolucionária no Terceiro Mundo [...] o povo é o mito da burguesia. A razão do povo se converte na razão da burguesia sobre o povo”.
O povo é o mito da burguesia e um bom chicote para nutrir sua culpa ou a busca de redenção na forma de catarse pela piedade. Ódio a si da burguesia que abre espaço para a negação da potência, que então se encolhe na experiência, de fundo cristão, da compaixão, em contradição com o recorte afirmativo da vontade. É algo (essa afirmação) que irá surgir e irradiar-se claramente, no modo pleno de seu exercício, na obra tardia glauberiana. Estamos, na realidade, no centro nuclear das exasperações de Paulo Martins. Traz a impossibilidade de afirmar a potência ao carregar a culpa pelo Cristo popular que havia ele próprio, Glauber, pregado na cruz em Barravento e também, noutra medida, em Deus e o diabo na Terra do Sol. Cruz que vai surgir de modo explícito em O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro,na crucificação na caatinga do cangaceiro popular, como figuração da purgação merecida de Antônio das Mortes que atravessa o filme culpado e cabisbaixo por haver, de tal forma, regateado e oscilado na valorização da expressão popular. É também motivo para o intelectual/professor (Othon Bastos) inspirar-se e tomar uma atitude, tomar armas, o que acaba se efetivando de modo retorto.
A trajetória traz dilemas que são progressivamente deixados para trás. A formulação é clara e, já no Glauber de 1971, a racionalidade não emerge no povo ou do povo, mas é uma forma (o discurso racionalista) da burguesia exercer seu poder sobre o povo. É o destino da culpa da classe média ao eleger o povo como alvo da compaixão e o motivo para o autodesprezo, combustível para alimentar o sentimento exaltativo e seguro da catarse pela piedade ou elevação. O novo foco e a valorização positiva da força pulsional do transe que encontramos em “Eztetyka”, agora realçado em si mesmo, como não havia sido (nem poderia ter sido) em Barravento, é nítido. A distância com as desconfianças e a visão negativa da cultura do transe no candomblé de Barravento estão longe em “Eztetyka do sonho”, mostrando como evolui, nesse ponto central, a sensibilidade dominante da obra glauberiana. Terra em transe é o momento de passagem no qual as “descontinuidades” de uma arte revolucionária passam a ser debitadas “às repressões do racionalismo”, embora nesse filme o caminho não seja percorrido na forma radical que encontramos nos longas de 1970 (particularmente Cabezas cortadas) e depois no manifesto de 1971. A “razão da burguesia sobre o povo”, como a define Glauber, é a mesma razão iluminista que fundamenta o didatismo da “arte popular revolucionária”, conforme vimos em manifestos dos Centros Populares de Cultura. A verdadeira ordem da “razão do povo” toma uma nova configuração em “Eztetyka do sonho”, sem percalços e dúvidas existenciais, sem culpa, para adentrar afirmativa os modos do transe místico do candomblé, do futebol, da música fortemente rítmica (samba) e outras formas de manifestação da cultura popular às quais o primeiro Cinema Novo nutria desconfiança. É posição que Glauber respirará plenamente somente nos longas do exílio e no seu último longa e que tematizou em texto escrito, de modo límpido, nesse janeiro de 1971 quando, em visita à Universidade de Columbia/Nova York, fez a comunicação “Eztetyka do Sonho”. Em Terra em transe,os dilemas do protagonista com a ordem do discurso burguês de esquerda ainda possuem massa crítica para provocar ebulição sob a pele e divagações barrocas. E as irrupções dessa ebulição são os “mergulhos na desordem”, tão próprios a Paulo Martins, no modo de exasperação existencial.
A descrença com a falta de perspectivas na saída pelo engajamento não deixa mais dúvidas e aqui possui seu instante inaugural, como figuração propriamente nas artes brasileiras. Será acompanhada pela progressiva radicalidade que marca os próximos anos, principalmente a partir de dezembro de 1968. É a época breve e extrema do Cinema Marginal (Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach, Luiz Rosemberg, Neville d’Almeida, Elizeu Visconti, Geraldo Veloso e outros) e do terceiro fôlego do Cinema Novo, o qual Glauber inaugura com Câncer, seguido de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro e da produção de exílio (Cabezas Cortadas, Der Leone Have Sept Cabeças), além dos agudos Os deuses e os mortos (Guerra); Os herdeiros (Diegues); Pindorama (Jabor); Sexta-feira da Paixão, Sábado de Aleluia (Hirszman); Fome de amor (Nelson); Quem é Beta? (Nelson), entre outros. O horizonte agora está aberto para experiências radicais, oscilando entre a curtição, o desbunde, o deboche rabelaisiano, o “esculachar”, de um lado; a exasperação, a representação do horror desmedido, o auto “se esculhambar”, as formas do animalesco e do escatológico, de outro. Na realidade, são duas faces da mesma moeda que apontam para um momento histórico terminal. Apenas cinco anos transcorreram desde as ilusões pré-1964, mas muita coisa se passou nessa época de extremos.

    
    

 









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1 Parte deste texto compõe o capítulo “Cinema novo/Cinema marginal, entre curtição e exasperação”do livro Nova história do cinema brasileiro (Edições SESC, no prelo), organizado por mim e Sheila Schvarzman.

2 Intuindo a proximidade desse dilema, a presença do universo da música popular na alta cultura é o tema central do segundo longa de Nelson Pereira, Rio Zona Norte.

3 Glauber Rocha, “Como e por que realizei Terra em transe”, O Estado de Minas, Belo Horizonte, 18 set. 1982.

4 Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, São Paulo, Cosac Naify, 2004. pp. 248-51.

5 Idem, “Eztetyka do sonho”, Revolução do Cinema Novo, p. 249, grifos do original.

6 Ibidem, p. 249.