revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Thais Mantovanelli1

Narrativas Mẽbengôkre-Xikrin: a importância do fluxo das águas contra o barramento do rio Xingu.

 

 

     
 

Do jeito que está no mapa parece que não existe povo indígena ali. Parece que não tem ninguém. Para essas empresas, parece mesmo que não tem ninguém.

Trecho de áudio de entrevista de Mukuka Xikrin cedida à equipe do Instituto Socioambiental em 21 de março de 2017.

 
     

 

No dia 21 de março de 2017, o Ministério Público Federal (MPF) realizou na cidade de Altamira (PA) uma audiência pública para discutir as situações atuais de impactos sobre os modos de vida de povos indígenas e ribeirinhos da região da Volta Grande do Xingu resultante do processo de licenciamento e construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte. Além disso, discutiu-se o atraso das ações de mitigação pela concessionária Norte Energia, maior acionista do empreendimento. A pedido dos povos indígenas e ribeirinhos da região, a audiência pública considerou também como pauta os impactos atuais e futuros relacionados ao processo de licenciamento e instalação da mineradora canadense Belo Sun na região, cujo projeto propõe a abertura da maior mina de ouro a céu aberto no país com estimativa de extração de 600 toneladas do minério em doze anos de operação, gerando imensas quantidades de rejeito de material estéril e quimicamente ativo, somando uma área de 346 hectares e 504 milhões de toneladas de rochas, sem provisão para sua remoção.2
Nessa ocasião, Mukuka, guerreiro Mẽbengôkre-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá (TITB), disse ao microfone:

     
 

Antigamente nós navegávamos pelo rio Bacajá e pelo rio Xingu. Dois anos depois do início das obras de Belo Monte, nós não navegamos mais, principalmente na época da seca. Antigamente, nós trazíamos nossos peixes pra cidade, trazíamos nossos produtos. Hoje não acontece mais isso. Isso porque o rio Xingu está muito baixo. Quando o Xingu fica baixo, o rio Bacajá diminui também. Se o rio Xingu estivesse cheio, o rio Bacajá também estaria. Isso é o impacto que está acontecendo. A Norte Energia fala que não tem impacto e que tudo está normal. Nesses dois anos não estamos mais comendo peixe. [...] Nossas crianças, nossos velhos e nossas mulheres estão tomando banho de lama, bebendo lama, comendo peixe de lama, caça de lama. Tudo de ruim está acontecendo agora. E ninguém fez nada até hoje. [...] As Terras Indígenas estão sendo invadidas por todos os lados. Ninguém faz nada. A Norte Energia não fez nenhum monitoramento de nosso rio. Estamos com medo do que está acontecendo com ele. Do mesmo jeito que aconteceu com Belo Monte vai acontecer com Belo Sun. Nossos parentes mostraram no mapa. Belo Sun vai passar na nossa Terra Indígena, bem no meio dela. Eu não sei bem como é tudo isso. As leis só valem para os brancos. Para nós, povo indígena e população tradicional, leis não valem nada. A gente fala, grita, faz manifestação e não acontece nada. Nada. Isso é o que eu queria dizer. 

 
     

 

A proposta desse artigo é partir da afirmação de Mukuka acerca da pouca efetividade das falas dos povos indígenas em relação aos projetos de desenvolvimento voltados ao crescimento econômico nacional. Desse modo, proponho problematizar como a escrita etnográfica, enquanto procedimento da prática antropológica, pode ser tornada um instrumento político que seja dominado pelas chamadas teorias nativas, cuja preocupação seja tanto a realização de um debate interno à disciplina quanto, sobretudo, a evidenciação dessas outras narrativas, costumeiramente negligenciadas em peças técnicas documentais que acompanham esses projetos desenvolvimentistas (Mantovanelli, 2016).
Interessa a este artigo dar ênfase à consideração de homens e mulheres Mẽbengôkre-Xikrin da TITB de que os brancos de Belo Monte ignoram suas falas e as expressões de seus conhecimentos. Em diversos encontros com os membros da empresa consorciada, certas composições de falas eram repetidamente verbalizadas pelos guerreiros indígenas para os membros da empresa: “Vocês precisam aprender, entender as coisas, ouvir os homens e as mulheres Mẽbêngôkre” ou “Vocês precisam entender que nosso conhecimento e nossa cultura não é uma coisa fraca. Nós é quem sabemos o que vai acontecer com o nosso rio, vocês não sabem e precisam ouvir nosso conhecimento”.
A questão que irá percorrer meus argumentos, inspirada no trabalho de Strathern (2014a, 2014b), é como tornar as pesquisas etnográficas em experimentações narrativas que criem descrições assim como os homens e as mulheres Mẽbengôkre-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá criam um adorno cerimonial, utilizando-as tal como esses guerreiros utilizam suas bordunas3 nas reuniões com membros da empresa concessionária Norte Energia.
Para cumprimento de sua proposta, o artigo será dividido em três partes: a primeira irá tratar da relação entre o povo Mẽbengôkre-Xikrin da TITB e os impactos de Belo Monte; a segunda irá se voltar para a importância do fluxo das águas tematizadas em narrativas míticas ou fala dos velhos ou antigos; e a terceira apresentará algumas reflexões sobre o problema do barramento e da barragem do rio Xingu relacionando-o com a estatização como fim da vida. 

Era dos impactos: o povo Mẽbengôkre-Xikrin da Terra indígena Trincheira-Bacajá e a usina Hidrelétrica de Belo Monte


Figura 01: Homens guerreiros Mẽbengôkre-Xikrin com suas bordunas na chegada para reunião com Norte Energia no centro de convenções da empresa na cidade de Altamira. Acervo: Arquivo pessoal da autora.

O povo indígena Mẽbengôkre-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá vive na região da Amazônia paraense, nas margens do rio Bacajá, tributário direito do rio Xingu, alvo do barramento de Belo Monte. Antes do estabelecimento do contato oficial, ocorrido em meados dos anos 1970 e consolidado em 1996 com a demarcação da Terra Indígena, homens e mulheres Mẽbengôkre-Xikrin viviam deslocando-se na região e travavam guerras com outros povos como os Assurini, os Parakanã e os Araweté (Cohn 2005, Fisher 2000). Nessa época, realizavam também expedições de guerra contra grupos de kubẽ [brancos (não-indígenas)], que passaram a ocupar mais regularmente a região em busca de recursos naturais como madeira, seringa, peles de onças e ouro. Diferentemente das guerras com os povos indígenas, quando em geral capturavam-se mulheres e crianças para serem criadas e tornadas pessoas Mẽbengôkre, as expedições de guerra contra os grupos regionais não indígenas eram geralmente estimuladas pela aquisição das coisas que esses grupos portavam como facões, machados, espingardas, panelas, enxadas, fumo.4
Os Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, os Xikrin do Cateté e diversos grupos Kayapó autodenominam-se Mẽbêngôkre. Apesar da explicação sobre o significado do etnônimo ser controversa entre os pesquisadores desses grupos, mantenho aqui, no que se refere aos Xikrin do Bacajá e para fortalecimento de minha coreografia argumentativa, a tradução oferecida por Vidal (1977) como “povo que saiu do buraco d’água” [mẽ: coletivizador, nós; ngô: água; kre: buraco]. Associar os Xikrin a essa tradução do etnônimo permite que o aspecto criativo e criador dos fluxos das águas, tematizado em várias narrativas [iarem tum], seja evidenciado logo de início. Além disso, considerar os Xikrin como povo que saiu do buraco d’água permite que uma poderosa imagem se desenhe levando em conta que atualmente eles vivem um processo de barramento das águas do rio Xingu. Essa imagem, portanto, produz uma analogia poderosa em relação aos impactos vividos pelos Xikrin decorrentes do processo de licenciamento e construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte.  Isso porque, como espero mostrar, os fluxos e as circulações (sejam de coisas, capacidades, nomes, águas) movimentam o modo de existência Mẽbengôkre; ao passo que o barramento, o trancamento, a estatização levam ao fim do movimento, ao fim das capacidades inventivas e agentivas, ao fim da vida. 5
Atualmente o povo Mẽbengôkre-Xikrin vive o que eu chamo de “a era dos impactos”, expressão cunhada pela influência tanto do uso corrente da palavra impacto entre homens e mulheres da TITB, durante minhas pesquisas de campo, quanto pela discussão político-filosófica-epistemológica acerca da irrupção do Antropoceno, e da intrusão de Gaia, como uma nova era geológica decorrente da capacidade humana de alteração radical das condições de existência de vida na Terra, principalmente após a Revolução Industrial.
Os debates sobre a inauguração da era do Antropoceno e da intrusão de Gaia têm sido realizados por muitos pesquisadores e pesquisadoras de diversas áreas. Esses debates têm promovido importantes reverberações teórico-metodológicas nas ciências humanas enquanto um ponto de partida para reflexões críticas acerca dos efeitos do sistema capitalista, da proliferação de projetos desenvolvimentistas em nome da necessidade do crescimento econômico nacional ou mundial, da constituição da ciência enquanto uma disciplina para justificativa de ações políticas estatais e empresariais, do silenciamento das vozes que destoam dos projetos para o desenvolvimento econômico capitalista, entre outros.
Pesquisadores e pesquisadoras como Tsing (2007, 2015), Haraway (2015, 2016), Stengers (2002, 2015), Latour (2004, 2014), Viveiros de Castro (2012, 2015), Danowiski (2014) têm defendido a relevância do conceito Antropoceno e Gaia como uma necessária chamada de atenção acerca dos efeitos perversos decorrentes da separação natureza e humanidade, que levou ao tratamento da primeira como recurso passível de exploração. Neste sentido, a irrupção da era do Antropoceno e a intrusão de Gaia permitem, segundo Stengers (2015), uma chamada de atenção para a proliferação de “outras narrativas” que anunciam modos de resistência e reafirmam a capacidade de agir e pensar conjuntamente, que contam sobre estratégias para a fuga de ciladas impostas, que descrevem experiências práticas de sobrevivência e manutenção da vida, que “buscam criar possíveis”.
Para levar em consideração a reflexão de Mukuka sobre a desconsideração e o silenciamento das vozes do povo Mẽbengôkre-Xikrin referente à atual situação de impacto, suas teorias hidrológicas que preveem a seca do rio Bacajá com o barramento do Xingu e suas previsões assustadoras acerca da incerteza de seu futuro por parte dos grupos técnicos empresariais vinculados a Belo Monte, proponho relacionar essas teorias de impacto com um conjunto de narrativas míticas ou falas dos antigos [iarem tum] que compõem a cosmologia Mẽbengôkre e que tematizam a importância do fluxo das águas como proporcionador da continuação da vida e da formação das pessoas. Assim, pretende-se refletir etnograficamente sobre o problema do barramento e da imposição do fim do fluxo das águas e sua relação às características do egoísmo e da sovinice que marcam a política dos brancos de Belo Monte.
Essa proposta é consoante com as constantes reivindicações Mẽbengôkre-Xikrin para que suas falas sejam ouvidas e seus conhecimentos, sua cultura e seus modos de existência sejam respeitados e considerados pelos brancos vinculados com a construção do empreendimento hidrelétrico. Ao longo de minhas pesquisas de doutorado, percebi a realização de um movimento que tinha como procedimento certos modos de mostrar kukràdjà ou cultura Mẽbengôkre para os brancos de Belo Monte. Esse movimento estava relacionado com a indignação das pessoas Mẽbengôkre-Xikrin em relação a esses brancos de Belo Monte que, sumariamente, desconsideravam os seus modos de existência.

Fluxos das águas: modo de existência Mẽbengôkre

As narrativas míticas ou falas dos velhos e antigos [iarem tum] são importantes expressões do complexo kukràdjà, termo traduzido pelo povo Mẽbengôkre-Xikrin como “cultura”.6 Expressas em situações diversas como nos rituais de iniciação masculina e de nominação, nas conversas vespertinas dos homens na casa do guerreiro [ngàb], nos diálogos femininos nas cozinhas/quintais das casas, essas narrativas podem ser tomadas como formulações da cosmopráxis Mẽbengôkre. Isso quer dizer que tais expressões são ao mesmo tempo verbalizações de conhecimentos ontológicos ou regimes de pensamento e expressões estéticas que inspiram práticas de cuidado e de comportamento específicas que influenciam os modos de existência Mẽbengôkre.
As falas ou narrativas dos antigos [iarem tum] são consideradas pelos Mẽbengôkre-Xikrin como conhecimento das pessoas mais velhas que já possuem muitos filhos, filhas, sobrinhos, sobrinhas, netos e netas. Essas pessoas são as únicas a pronunciarem essas falas, seja em situações de encontros vespertinos ou matinais na casa do meio [ngàb] com a presença de muitas pessoas da aldeia ou nas cozinhas das casas para um público mais específico.7
Essas enunciações são uma das expressões que os Xikrin costumam referir como parte de seus conhecimentos e de sua cultura [mẽbêngôkre nho kukràdjà]. A expressividade dessas narrativas depende de um “tipo particular de conhecedor”, nas palavras de Coelho de Souza (2014, p. 199). Entre o povo Mebêngôkre-Xikrin os conhecedores que são considerados aptos a operarem as verbalizações dessas narrativas são os homens velhos com muitos netos, netos, sobrinhos, sobrinhas, filhas e filhos.8 Isso não significa que as mulheres desconheçam os conteúdos e a formalização estética dessas falas; ao contrário, quando um homem velho [mẽbengêt] realiza uma enunciação dessas narrativas, é comum que as mulheres acompanhem em sussurros cada um dos versos proferidos.
As verbalizações das narrativas míticas são marcadas por um gênero narrativo bastante erudito e caracterizado pelo uso intensivo de metáforas que dificultam os processos de tradução. Segundo Franchetto (1989, 2012), as execuções das falas rituais estilizadas são reconhecidas por traços poéticos, musicais e por elementos formais como a recorrência de paralelismos exigindo do ouvinte um conhecimento amplo da língua nativa. O apelo estilístico das narrativas é interpretado por Franchetto (2012) como um processo de desindividualização do sujeito do discurso, de modo que essas comunicações sejam expressões de conhecimentos e saberes ligados diretamente ao universo cosmológico dos espíritos das matas e das águas, agências animais, fenômenos meteorológicos e origem da humanidade. Entre o povo Mẽbengôkre-Xikrin, conforme análises de Cohn (2005), tais narrativas tematizam também a origem dos povos estrangeiros e o aparecimento da sociedade dos brancos, relações de guerra e estabelecimento de acordos de paz com essa sociedade e a possibilidade assustadora do fim do mundo como o conhecemos.
Devido à dificuldade de transcrição e tradução das narrativas míticas que, como sugere Franchetto (1989, 2012), envolvem procedimentos de prosificação que sejam fiéis à forma poética e aos sentidos literais e figurativos dos conteúdos, apresento em seguida alguns excertos de narrativas míticas Mẽbengôkre-Xikrin a partir da publicação de Vidal (1977). A escolha do registro das narrativas realizado por Vidal (1977) refere-se ao fato de ser um dos primeiros esforços de compilação do conjunto mítico como parte de uma ontologia específica do povo Mẽbengôkre-Xikrin.
Os trechos das narrativas em questão são significativos por tratarem da importância das águas e seus fluxos para a produção Mẽbengôkre de humanidade e cultura. A valorização dos fluxos de águas informam a cosmopráxis Mẽbengôkre que prioriza a necessidade de mecanismos de circulação de nomes, prerrogativas, cerimoniais, itens alimentares e presentes, devendo configurar comportamentos cotidianos entre os parentes e amigos formais de uma mesma aldeia ou de aldeias distintas.9
O tema referente ao surgimento da humanidade é bastante recorrente entre as narrativas míticas transcritas e analisadas pelos etnógrafos e etnógrafas dos povos Mẽbengôkre (Kayapó e Xikrin). Essas narrativas animam com frequência várias falas formais realizadas pelos homens mais velhos em ocasiões de rituais de nominação femininos, masculinos ou mistos e iniciação masculina de quebra dos ninhos de marimbondo.  
Segundo essas narrativas, o leste ou o céu [koikwa-krai] figura o ponto de origem e o começo da humanidade e das águas. Mais a leste no céu, encontra-se a morada do gavião-real [àk kaikrit] que é antecedida por uma imensa teia de aranha. Essa grande ave é responsável pela iniciação dos xamãs desde os tempos imemoriais até os dias atuais.  Em oposição ao leste, o começo da humanidade, está o oeste [koikwa-enhôt] que, contrariamente, não possui uma localização específica e é associado ao fim do mundo, ao fim da vida, à escuridão.
Algumas versões transcritas para a língua portuguesa e analisadas por Giannini (1991, p. 37) contam que para acessarem o plano terrestre [pukà] onde estão agora, os Xikrin tiveram de atravessar diferentes domínios: desceram do leste ou céu, atravessaram o buraco do tatu (perdendo a capacidade de voar enquanto gente-ave), passaram pelo buraco do cachorro (ou da onça, dependendo da versão) e saíram pelo buraco das águas atingindo a terra [pukà].10 Nessa época, também apareceram alguns seres da parte subterrânea, associados ao oeste, e chamados kuben kamrik. Esses seres malévolos e canibais acessaram esse domínio a partir de um buraco na terra, de onde emergiram para consumir a carne crua dos humanos Mẽbengôkre, arrastando-os para o mundo subterrâneo. Os domínios do leste estão suspensos por varas e troncos, distanciando-se do domínio terrestre; ao passo que o domínio do oeste liga o plano cósmico atual diretamente aos perigos dos mundos subterrâneos, de onde podem aparecer esses perigosos seres míticos canibais, como já ocorreu em tempos imemoriais. 
Tomando a narrativa sobre a origem dos Mẽbengôkre como um povo que saiu do buraco da água para atingir a terra ou o domínio terrestre onde vivem atualmente, é possível compor analogicamente uma imagem significativamente nefasta em relação à Usina Hidrelétrica de Belo Monte que barra o rio Xingu. As águas relacionam-se diretamente com os processos contínuos de transformação dos ancestrais Mẽbengôkre de gente-ave para a condição humana. Além disso, essas narrativas também refletem sobre os perigos ocasionados pela ação canibal dos estrangeiros do oeste ou do mundo subterrâneo, os kuben kamrik. Se imaginarmos as ações dos brancos de Belo Monte, uma gente também vinda do oeste (aqui no sentido de ocidente), como semelhante às práticas mortíferas dos estrangeiros canibais mencionados na narrativa, é possível elaborarmos uma forma bastante potente da “era dos impactos” vivida pelo povo Mẽbengôkre-Xikrin atualmente. Porque, como constata Giannini (1991) os perigos advindos do mundo subterrâneo (oeste ou ocidente) podem aparecer novamente e colocar em risco a vida dos Mẽbengôkre e seus modos de existência.
Além da associação direta das águas e seus fluxos com a formação da humanidade Mẽbengôkre, as profundezas das águas e seus movimentos de cheia e vazão também são vinculadas à aquisição de certas capacidades agentivas de heróis ancestrais que acabaram por fazer surgir os vários tipos de pássaros e os adornos cerimoniais de penas.
Na versão coletada e transcrita por Vidal (1977, p.221) 11 , a narrativa trata da vingança de dois irmãos, Kukrut-Kako e Kukrut-Uíre, a um gavião que havia comido sua avó [kwatyi] (MM, FM, FZ)12 quando eram crianças. Para que os netos 13 pudessem matar o gavião, seu avô [ngêt] (MF, FF, MB)14 os imergiu num grande rio profundo e os deixou ali por dois meses. Os meninos eram alimentados dentro da água e quando atingiram o tamanho adequado, de modo que seus pés já apontavam do outro lado do rio, saíram da água para matar o gavião com as bordunas que seu avô lhes fizera. Os irmãos, após cansarem o gavião, mataram-no usando suas bordunas e lhes retiraram as penas usando-as como enfeite. As pessoas cortaram as penas do gavião morto que se transformaram em pássaros.
A profundeza das águas também tem sua capacidade agentiva relacionada com a aquisição dos nomes belos de prefixos Bep e Bekwỳ e das cerimônias específicas de nominação desses prefixos. Essa narrativa, também transcrita por Vidal (1977, p. 221), refere-se à ação de um avô xamã que se jogou no fogo do berarubu15 de sua irmã ao perceber que seu neto havia queimado o pé. O avô ficou muito queimado e correu mergulhando nas profundezas do rio para curar seus ferimentos, onde ficou por três invernos e três verões. Quando o avô voltou para aldeia com muitos peixes em seu cabelo, foi até a casa do meio e dançou, cantando uma música que ninguém conhecia e que ele havia aprendido com os peixes numa cerimônia de nominação feita pelos animais no fundo do rio. O avô xamã transmitiu os nomes de prefixo Bekwỳ para sua neta e de prefixo Bep para seu neto, realizando essa cerimônia de confirmação dos nomes na aldeia.
Ambas narrativas mostram as profundezas das águas como importantes fontes de apropriação de bens, prerrogativas, capacidades e nomes para os Mẽbengôkre. Por meio das profundezas das águas, os Mẽbengôkre aprimoraram e expandiram seu conhecimento e cultura, kukràdjà [mẽkukràdjà].
No primeiro caso, os irmãos, após a imersão nas águas, conseguiram matar o gavião, adquirindo adornos cerimoniais de penas e criando, por meio da transformação das penas do gavião morto, as várias espécies de pássaros. No segundo, após uma longa temporada sob a profundeza das águas, o avô xamã transmitiu aos netos e às netas os nomes aprendidos com os peixes e ensinou a cerimônia de confirmação desses nomes para as pessoas nas aldeias.
Levando em conta as exortações das narrativas míticas em questão, é possível indagar acerca de quais benefícios poder-se-á extrair de águas rasas, de um rio em condição permanente de seca. Dito de outro modo, como lidar com o barramento do rio Xingu, que, segundo as teorias de homens e mulheres Mẽbengôkre-Xikrin, fará o rio Bacajá perder seus regimes de cheia, tornando-o inerte, improdutivo e incapaz de promover adequadamente a vida? Essas questões afligem as pessoas da TITB de modos brutais, como podemos ver abaixo, a partir da reflexão de Irekà, uma mulher com muitos netos, netas, sobrinhos, sobrinhas, filhos e filhas.

Belo Monte: fim do fluxo das águas

As pessoas da TITB chamam a usina de Belo Monte de ngô beyêt, água parada, água barrada, água trancada. Essa tradução é constantemente ampliada para “água podre, água suja, água velha, água morta”. A ampliação da tradução realizada por homens e mulheres Mẽbengôkre-Xikrin concorda com as expressões das narrativas míticas acerca da relação entre vida e humanidade com fluxo e profundeza das águas ao mesmo tempo em que associa o barramento de um rio com sua morte e sua improdutividade.
A visão pavorosa dos perigos da transformação das águas em rios estáticos que levarão ao fim da vida das próprias pessoas Mẽbengôkre-Xikrin tem sido constantemente afirmada nas comunicações de homens e mulheres em reuniões com setores das burocracias empresariais e estatais, como se pode constatar na fala de Mukuka que iniciou este artigo. Admitindo essas falas como narrativas de impacto desconsideradas pelos documentos e peças técnicas ligadas a projetos de desenvolvimento econômico nacional, eu gostaria de associá-las com as bordunas, armas de guerra do povo Mẽbengôkre-Xikrin.
Em reuniões com as empresas relacionadas a projetos de desenvolvimento, os homens apresentam-se enquanto guerreiros, portando suas bordunas, seus adornos cerimoniais e pinturas corporais típicas das expedições de guerra. O engajamento guerreiro de homens e mulheres Xikrin nessas reuniões pode ser tomado como um mecanismo de transmissão de uma imagem específica aos brancos, uma tentativa de se fazerem ouvir e de terem suas teorias de impacto consideradas pelos documentos técnicos dos projetos desenvolvimentistas. A postura rígida dos corpos dos homens guerreiros – pintados com urucum, jenipapo e ornamentado com penas dos adornos cerimoniais – nas reuniões e suas formulações verbais marcadas pela repetição dos conteúdos das falas compõem uma imagem que se deseja veicular enquanto um coletivo de parentes que vivem a “era dos impactos” e que luta pela manutenção de sua sobrevivência.
Tomar as teorias de impacto de homens e mulheres da TITB, a partir das narrativas míticas que evidenciam os fluxos e a profundidade das águas como condição e continuação da vida, permite que suas falas sejam consideradas como bordunas ou armas de guerra contra a possibilidade de secamento do rio Bacajá, uma assustadora ameaça aos seus modos de existência em decorrência do barramento do rio Xingu.
As teorias de impacto Mẽbengôkre-Xikrin expressas nessas falas enquanto armas de guerra operam também a visibilização da constante crítica acerca de seu silenciamento nos documentos técnicos de análise de impacto ambiental, e suas desconsiderações nos indicadores necessários para formulações de ações de mitigação e/ou processos de indenização vinculados à implantação do empreendimento hidrelétrico.16
Numa manhã, durante uma de minhas estadias em campo, as mulheres da aldeia Bacajá, com seus facões e paneiros em mãos, chamaram-me para acompanhá-las em mais uma de suas atividades: a retirada de uma casca de árvore [bàt prãn] usada como carvão para confecção da tintura de jenipapo [mroti kango] que compõe as pinturas corporais.
O trajeto em um pequeno barco de madeira com motor rabeta cruzava a névoa matinal do rio Bacajá cuja paisagem seria brutal e permanentemente modificada pela barragem. No meio da sensação de uma futura nostalgia que se desenhava, Mopkure ajeitava pacientemente seu cachimbo entupido pelo excesso de tabaco consumido nos dias anteriores. O silêncio da nostalgia visionária foi quebrado por Irekà ao ver dois filhotes de tracajás [krantoe ngrire] tomando sol no tronco de uma árvore caída na margem do rio. Diante da cena, disse:

     
 

Barragem é punure [feia, horrível], as tracajás vão morrer, os filhotes das tracajás vão morrer, á agua vai secar, não terá mais água boa para banhar nem para beber. Barragem é punure, as mulheres não querem barragem. Nós vamos bater no chefe da barragem e vamos cortar a orelha dele. Estamos bravas. Não estamos brincando. Os homens brancos fazem muitas reuniões falsas. Nós mulheres, somos fortes, não somos fracas não. Vamos falar duro contra a barragem. Vamos tomar as chaves das máquinas e nunca mais vamos devolvê-las.  

 
     

A formulação de Irekà ocorreu após a ocupação do canteiro de obras da hidrelétrica, ocorrida entre os meses de julho e agosto de 2012. A imagem da parede de pedra obstruindo as águas do rio Xingu tinha se tornado uma realidade e assombrava as conversas das pessoas nas aldeias. Especialmente, as mulheres evidenciavam em suas conversas a possibilidade da mudança radical dos seus modos de vida decorrentes do barramento das águas do Xingu. Ver as tracajás ao sol no tronco caído levou Ireká a expressar seu pavor e fúria fazendo-a imaginar o secamento do rio Bacajá, o desaparecimento dos animais aquáticos, a fuga dos animais de caça, a morte das plantas que compõe as margens do rio, o fim das regiões alagadas na época das cheias e, sobretudo, a incerteza em como gerir suas vidas naquelas condições. Um pavor que se associa com a possibilidade da perda do controle de seus modos de existência.
Tomar as chaves das máquinas pareceu a Irekà uma maneira eficiente de interromper a continuidade da construção da obra, de manter o fluxo das águas e garantir o regime de cheias do rio Bacajá. Fazer parar as máquinas pode ser tomado como a expressão de Irekà em tentar desenvolver ações de controle, em tentar retirar os brancos de Belo Monte do controle de suas máquinas, em impedi-los de barrar o rio Xingu.
Irekà, ao imaginar a tomada das chaves das máquinas, formulou uma imagem interessante que associo agora com uma proposta de ação para evitar a invasão do leste, ponto de origem da vida, pelo oeste, morte. Segundo as narrativas que compõem a cosmologia Mebêngôkre, mencionadas na primeira parte deste texto, o leste [koikwa-krai] é um ponto de origem da humanidade, da vida e das águas; o oeste [koikwa-ênhôt], por sua vez, não é referido por meio de localização, mas por meio dos seus efeitos decorrentes da capacidade de destruição do mundo e, por isso, associado à escuridão e ao fim do mundo.
Quero tomar de empréstimo essa reflexão cosmológica de leste e oeste para situar conceitualmente os brancos de Belo Monte, a barragem do Xingu e a política dos brancos ao lado do oeste, do fim do mundo, fim da vida e escuridão. O ponto de surgimento dos Mẽbengôkre ou da humanidade, leste, é também designado como origem dos fluxos das águas, das corredeiras e rios. Juntos, fluxos de água e pessoas Mẽbengôkre, povo que saiu do buraco d’água, originaram-se no leste. As águas, seus fluxos e a humanidade (Mẽbengôkre) relacionam-se mutuamente de modo a se estabelecerem como condições imbricadas de existência, formatando poderosas conexões de origem e continuidade. Belo Monte é a concretização da imagem pavorosa do oeste, do barramento de um rio, fim da vida e dos fluxos da água. Belo Monte é uma invasão do oeste no leste.
O leste [koikwa krai], a referência originária dos fluxos, opõe-se ao oeste [koikwa ênhôt], o estático. O oeste, meio de produção do homem branco e da civilização ocidental ou, mais precisamente, da política dos brancos, ao se intrometer no leste, quer por fim aos fluxos das águas. O oeste quer o fim dos modos de existências outros, a morte da ontologia caipora, diria Almeida (2013) e o silenciamento de vozes que enunciam “outras narrativas” (Stengers, 2015).
Com Belo Monte, segundo as teorias apavorantes de homens e mulheres Mẽbengôkre-Xikrin, o rio Bacajá perderá seu fluxo, perderá seu regime de cheia e entrará num estado de inércia e improdutividade, ou fim da vida. O barramento das águas causa a morte, de espécies animais, vegetais, e pode se estender aos próprios Xikrin, que constantemente anunciam suas preocupações e medo: “o que irão comer os nossos netos? Como iremos viver assim?”. Belo Monte, emblema da devastadora política dos brancos, o oeste, o fim das águas, a escuridão, o fim da vida.
Em uma das reuniões com membros da empresa Norte Energia, Bep Tok cacique antigo da aldeia Bacajá expressou a preocupação com a sobrevivência dos seus parentes com o barramento do rio Xingu.

     
 

Bom dia. Meu nome é Bep Tok Xikrin, sou chefe antigo da aldeia Bacajá e moro na aldeia Pytako. Meu filho hoje é chefe da aldeia Pytako. Estamos com medo do que vai acontecer com a gente depois da barragem. Porque, nosso rio vai secar depois que barrarem o Xingu e até agora não existe nenhuma garantia para nós. O que iremos comer? Os peixes vão morrer, as caças vão embora para longe. Como iremos fazer? Vamos deixar nossos filhos morrerem? Se continuar assim, nós povo Mẽbengôkre iremos acabar. Muitos povos indígenas já acabaram. Mas nós vamos lutar. Vamos lutar pelos nossos direitos e nossas vidas, vamos lutar pela vida dos filhos e dos netos. É isso que eu queria falar.

 
     

Nesse sentido, Belo Monte e o trancamento ou o barramento das águas do rio Xingu estão associadas diretamente a ações de egoísmo e sovinice que marcam a política dos brancos que pode promover o desaparecimento dos povos indígenas, como declara Bep Tok. Contrariamente ao egoísmo das ações dos brancos de Belo Monte, que desconsideram os modos de existência Mẽbengôkre-Xikrin, os homens e mulheres Xikrin empenham-se em expurgar ações egoístas nos seus cotidianos ao mesmo tempo em que lutam para que suas considerações sejam levadas a sério. Entre os Xikrin, a vida cotidiana passa pela constante circulação de provisões alimentares como cultivos da roça, carnes de caça, peixes, jabutis, óleo de coco, babaçu, farinha, óleo de soja, café, leite em pó, tabaco, açúcar, arroz, feijão entre as pessoas das casas de uma mesma aldeia ou entre casas de aldeias diferentes.
Relações de egoísmo e avareza [odjỳ] como se negar a colocar em circulação, de determinadas maneiras, alimentos, nomes ou prerrogativas cerimoniais são consideradas incorretas, horríveis, execráveis [punu/punure].  Essas relações detestáveis são as que marcam a origem do branco e da família do branco, associada à ação egoísta de um ancestral que capturou algumas mulheres Mẽbengôkre, após ter esquartejado sua antiga esposa, trancando-as numa casa de alvenaria e as levando embora num barco com motor de popa para lugares longínquos, deixando muitos homens Mẽbengôkre viúvos e muitas crianças órfãs. Uma época em que o povo Mẽbengôkre, por conta da ação egoísta do estrangeiro branco ancestral, esteve perto de desaparecer ou de “se acabar”, como afirmam os homens quando contam essa narrativa. 
Devido à repulsão das ações egoístas do horizonte de seus comportamentos cotidianos, pode-se dizer que circulação e fluxo são as palavras mais adequadas para referência a seus modos de existência ou cultura, kukràdjà. A vida Mẽbengôkre é uma ação contínua para manutenção da movimentação e do fluxo, de modo que não se deve reter e nem barrar nada, incluindo as águas de um rio. O barramento é acompanhado do estático, do improdutivo, da morte.
Assim como os nomes circulam entre casas, as águas devem seguir seus fluxos de vazão, relegar um rio ao estado de uma seca perene é, portanto, impor o fim do fluxo, o fim da vida. O barramento e a retenção, seja do que for, é a ação primordial do egoísmo e da sovinice. É o impedimento proposital do movimento e da circulação. É o fim da generosidade e da partilha. É um mundo incorreto com gente horrível. É o fim da condição correta de humanidade.
Apesar da invasão devastadora do oeste no leste, que poderíamos chamar de intrusão de Gaia, e como homens e mulheres Mẽbengôkre-Xikrin insistem em dizer, eles e elas não deixarão de lutar por suas condições de existência e por seus modos de sobrevivência. Uma luta que pode ser figurada pelas narrativas e verbalizações de teorias de impacto enquanto armas de guerra, enquanto bordunas que se levantam mesmo com o silenciamento deliberado nos documentos e são postas em circulação segundo seus modos de expressividade guerreira característica dos regimes de fala da cultura mẽbêngôkre [kukràdjà] que luta contra a possibilidade de seu próprio desaparecimento.

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fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ




1 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, com a tese chamada “Os Xikrin do Bacajá e a Usina Hidrelétrica de Belo Monte: uma crítica indígena à política dos brancos”, sob orientação de Clarice Cohn, com financiamento de pesquisa pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

2 A gravação da audiência pública está disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/audiencia-discute-condicoes-de-vida-de-atingidos-por-belo-monte-nesta-terca (acesso em 21/04/2017). Importante registrar que a mineradora Belo Sun propõe a expansão de suas atividades em 120 quilômetros ao longo do rio Xingu, o que irá gerar impacto direto em quatro Terras Indígenas: a TI Paquiçamba, dos Juruna, TI Ituna/Itata, dos isolados, a TI Arara da Volta Grande, dos Arara, e a TI Trincheira-Bacajá, dos Xikrin. Maiores informações sobre o projeto de mineração de Belo Sun podem ser encontradas em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/avanca-destruicao-do-rio-xingu (acesso em 21/04/2017).

3 As bordunas são armas bastante utilizadas e apreciadas pelos povos indígenas Mẽbengôkre (Kayapó e Xikrin). Elas são confeccionadas por homens guerreiros, que tenham muitos filhos, filhas, netos e netas, e podem ser feitas de vários tipos de madeira. Essas armas podem ser utilizadas como armas de caça e de guerra. Atualmente, os homens guerreiros Mẽbengôkre-Xikrin da TITB, quando entoam suas falas em reuniões com representantes da burocracia política estatal e empresarial, costumam empunhar suas bordunas, gesticulando-as conforme suas entonações de voz, marcando o que Lea (2012) chama de “estilo guerreiro”.

4 Segundo Cohn (2011), as plantas cultivadas nas roças desses grupos regionais tornaram-se um grande interesse das mulheres Mẽbengôkre-Xikrin que incrementavam suas roças com essas espécies apropriadas, do mesmo modo como ocorria com a apropriação dos itens cultivados nas roças dos povos indígenas com quem guerreavam. Deixo de fora de minha argumentação a questão da roça e da apropriação de seus itens cultivados para voltar-me mais especificamente ao interesse Mẽbengôkre-Xikrin pelas coisas dos brancos e suas mercadorias. Essa opção relaciona-se com o movimento argumentativo pretendido no artigo. 

5 A associação acerca da apreciação negativa de homens e mulheres Mẽbengôkre-Xikrin à política dos brancos e sua ineficácia promovida pela vinculação de três de seus artefatos – reunião, documento e projeto – pode ser encontrada em Mantovanelli (2017).

6 A terminologia é de difícil tradução, sendo um conceito metassemântico com significados diversos, dependo da situação. Essa amplitude de significação pode ser percebida também nas diferentes traduções oferecidas por etnógrafos e etnógrafas dos povos Mẽbengôkre Xikrin e Kayapó. Para Vidal (1977), kukràdjà representa uma peça central da ontologia Xikrin. Cohn (2005) considera o conceito como sendo ao mesmo tempo a condição para produção de pessoas e coisas belas e as capacidades ou conhecimentos necessários para a ação correta na realização dessas produções. É comum, na bibliografia especializada, associar krukràdjà à tradução de conhecimento, envolvendo tanto conhecimentos rituais tradicionais, quanto saber pilotar voadeiras (Gordon, 2011). Kukràdjà serve também como tradução para cultura, tradição, hábitos, práticas, conhecimentos, saberes, modos de vida. Mebêngôkre nho kukràdjà (conhecimento dos Mẽbengôkre) é a cultura caracteriza o modo de existência Xikrin e Kayapó. Para Turner (1991), associar kukràdjà à denominação de cultura, apesar dos problemas semânticos que tal aproximação acarreta, é uma maneira de frisar um componente imaterial dos fenômenos, como algo que perdura, demora no tempo, formas que permanecem, conhecimentos necessários para recriação de corpos e objetos ao modo Mebêngôkre. Segundo Lea (2012) kukràdjà refere-se tanto aos conhecimentos gerais, quanto aos conhecimentos específicos para cada classe de idade ou gênero e pode ser pensado como partes de uma totalidade material ou imaterial.

7 Existem muitos tipos de falas entre os Mẽbengôkre-Xikrin: as falas cotidianas que são referidas como mẽ kaben [nossa fala]; as falas em seus encontros, referidas como aben kaben mari mejx [fala recíproca bem entendida] ou kaben pudjỳ [fala única]; as falas das mulheres, referidas como menire ne kaben [fala das mulheres]; as falas ruins ou fofocas, referidas como kaben punú [falas ruins]; as falas mentirosas, referidas como enire ou kaben kaigo [mentira ou fala à toa]; as falas duras, referidas com kaben tojx [fala forte]; e as falas corretas e boas referidas como kaben mejx. Lea (2012) considera o choro ritual feminino como a fala formal característica das mulheres composta por muitos elementos estilísticos cuja expressão é bastante complexa.

8 Trata-se de homens que ocupam a categoria ngêt, que podem ser avôs maternos ou paternos, tios maternos ou primos cruzados matrilaterais.

9 Meu argumento associa a importância da circulação e do fluxo como marca da generosidade e da partilha que caracteriza o ideal de comportamento das pessoas Mẽbengôkre-Xikrin. O que não significa que essas pessoas vivam cotidiana e exclusivamente de maneira a praticarem a generosidade e o compartilhamento alimentar. Como nota Lea (2012), acusações de roubo de nomes, apropriação indevida de cultivares da roça, má distribuição de recursos e dinheiro, não são situações raras. Entretanto, é a imagem da partilha e da generosidade que promove o contraste e a oposição com os brancos de Belo Monte que vivem sistematicamente por meio de ações egoístas e sovinas. E é esse contraste que proponho evidenciar aqui.

10 Para uma dessas transcrições, ver: Vidal (1977, p. 18).

11 Utilizo aqui uma adaptação das versões publicadas pela autora por ainda não ter conseguido realizar a tradução dessas narrativas, contadas a mim por Motmar. Durante uma parte de minha estadia em campo, Bep Nho realizou comigo algumas traduções dessas falas do mẽkukràdjà tum [cultura Mẽbengôkre dos velhos]. Bep Nho e eu demoramos mais de dois meses para realizar a transcrição de apenas uma dessas falas, já que não era possível que ele se dedicasse exclusivamente a essa tarefa. Consideramos então mais adequado realizar esses processos de tradução em outros momentos e de preferência com algum recurso financeiro disponível que pague pelo trabalho de tradução. Cohn (2005) apresenta uma série de reflexões e análises sobre as narrativas míticas Mẽbengôkre-Xikrin, tanto a partir do processo de tradução por meio do uso de gravador, quanto em relação aos resultados das traduções transcritas.

12 Mãe da mãe, mãe do pai, irmã do pai.

13 A categoria adequada é tabjwỳ que se refere aos filhos dos filhos ou filhos das filhas e filhos das imãs, no caso dos meninos.

14 Pai da mãe, pai do pai, irmão da mãe.

15 Berarubu ou djwy kupu é uma massa feita de massa de mandioca assada do forno de pedra [ki] e enrolada com folhas de bananeiras. Essa massa pode ser assada junto com a carne de animais de caça [mru kupu] ou com peixe [tep kupu]. As mulheres Xikrin também fazem essa massa com banana [tuturi kupu].

16 Recentemente, em 7 de dezembro de 2015, o Ministério Público Federal encaminhou uma Ação Civil Pública denunciando a implantação de Belo Monte como uma ação etnocida do estado brasileiro e da concessionária Norte Energia. Nesse documento, além de denunciar o não cumprimento das ações de mitigação, o MPF critica a implantação do Plano Emergencial como uma ação ilegítima cujos efeitos negativos ainda não foram mensurados por nenhum órgão competente. Nas palavras do órgão denunciante: “O que ficou vulgarmente conhecido como ‘Plano Emergencial’ foi um caminho à margem das normas do licenciamento, definido longe dos espaços legítimos de participação e protagonismo indígena, por meio do qual o empreendedor obteve o êxito de, ao atrair os indígenas aos seus balcões, mantê-los longe dos canteiros de obras de Belo Monte, mesmo sem cumprir condicionantes indispensáveis. Uma política maciça de pacificação e silenciamento, que se fez com a utilização dos recursos destinados ao etnodesenvolvimento. E que, dos escritórios da Eletronorte aos balcões da Norte Energia, rapidamente atingiu a mais remota aldeia do médio Xingu, com danos nem sequer dimensionados, mas já presentes”. Para acesso ao documento e à notícia da vinculação da denúncia, ver: http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/mpf-denuncia-acao-etnocida-e-pede-intervencao-judicial-em-belo-monte (acessado em 05 de janeiro de 2016).