revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Alexandre de Oliveira Torres CARRASCO

Seção etnográfica, Outro mundo, mesmo lugar – etnografia & política

 


Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver.
João Guimarães Rosa, Grande Sertão, Veredas.

O número 10 da Revista Fevereiro inaugura uma novíssima seção, que ora faço amodestaapresentação, modesta em respeito a minhas chinelas, não sem antes mencionar a preciosa colaboração, central, vale dizer, do e das colegas Jorge Mattar Vilela, Yara de Cássia Alves, Thaís Mantovanelli, Suzanne de Alencar Vieira, Karina Biondi.1 A ideia da seção ganhou movimento a partir de trocas teóricas (talvez práticas) com o colega Jorge Vilela, no melhor sentido maussiano do termo, e quando há trocas, há frutos. Dar e receber em sentido simbólico também é isso, aprender e repercutir. A partir daí pensamos a possibilidade de uma seção especificamente etnográfica para a Revista Fevereiro, discutida em conjunto com os editores da Revista, e saudada por todos. Talvez caiba uma explicação mais pormenorizada, menos da gênese desta seção, cujo interesse é menor, e mais acerca de seu efeito e contexto na Revista Fevereiro. Vale notar que a pertinência e a agudeza das etnografia ora apresentadas dão relevo mais à iniciativa que também é da Revista e prestam enorme favor a nós e a nossos leitores.
Logo, a questão imediata é simplesmente: qual o sentido da seção no contexto da Revista Fevereiro? Podemos dispensar as apresentações da Revista, feitas e reiteradas na própria, mais de uma vez, como manda o figurino. O que parece ser premente responder seria o quanto a seção pode ser incorporada a um projeto crítico de pensar e repensar umponto de vista, teórico e prático, de esquerda, local e internacional.  Talvez, para o nosso leitor, a questão não tenha tantoassim os ares de suma teológica que a formulação anterior inadvertidamente lhe dá. Talvez. Mas para os editores da Revista, entre os quais eu mesmo, a questão repete-se, com tons um pouco menos drásticos, mas repete-se. Eis o ponto: poderíamos pensar os problemas teóricos e práticos colocados pelos extratos etnográficos tão generosamente apresentados, efeitos de uma pesquisa muito maior, que o leitor bem poderá consultar,2 como elementos novos para pensar os impasses, os problemas e as possibilidade de uma política para a autonomia e para o autogoverno, portanto, uma política de resistência e enfrentamento da ordem que nos assola, e, por extensão, e em sentido um pouco mais restrito, uma política de esquerda, em que autonomia e autogoverno sejam correlatos de igualdade política e material? O enunciado é longo e quase vale um manifesto. Resumo, enfim: o que essas etnografias nos ensinam?

O que sucede seria, naturalmente, nem tanto à terra, nem tanto ao mar, quais as questões que os textos ora apresentados suscitam para quem quer pensar politicamente o mundo em que estamos, contra sua brutal violência e desigualdade? Essas também são nossas questões, repitamos nos interrogando.
Vamos aos textos, allegroma non troppo. Como leitor ingênuo e desarmado, diria que há questões de duas ordens que se cruzam e se recobrem, principalmente.  A primeira ordem de problemas que as etnografias apresentam diz respeito ao próprio conceito de campo e de pesquisa de campo, que os trabalhos apresentam com muita sofisticação.  Esse debate, por si só, valeria o soneto, como se diria em outras épocas. A força ordenadora do campo, (“teu claro raio ordenador”) apesar das aparentes desordenque ele causa “em processo”,e quando bem levado a cabo, vem do fato de que não há campo, pesquisa de campo, em sentido próprio, se não se acaba por colocar o objeto da pesquisa em causa, melhor, em campo, devido à própria experiência que o campo exige. O que parece ser bastante trivial, aqui adquire um abrangência inusitada. Vejamos.Parece-me, e deixo aqui meu palpite,  que o sumo da experiência de campo é sua negatividade, usando um termo que não sei se me é permitido usar. Todos os textos se deparam com isso: o campo centrifuga o objeto eleito, ele exige uma reformulação permanente do objeto em nome de sua experiência mais própria,e a melhor experiência do objeto é a de seu avesso como objeto. Eis o melhor sentido material de alteridade, o que se depreende dos trabalhos aqui apresentados. O que essas etnografias nos ensinam é como lidar, menos com a instabilidade do próprio objeto, e mais com a consciência cada vez mais aguda de que o objeto do campo pode sercada vez mais sujeito de campo, enquanto nós mesmo, em campo, objetos de nós mesmos na experiência em que nos colocamos. A antropologia é a ciência social do outro, na definição clássica de Levis-Strauss.Daí pode vir toda uma enciclopédia. Ainda no campo das generalidades, não podemos não mencionar, por obrigação profissional, um quase aforismo merleaupontyano, normalmente muito mal compreendido, de modo a fazermos o arremate desse primeiro movimento, bastante pedagógico e feito sobretudo para nós mesmos, e não sem trazer o problema do campo para o centro de outro problema, a política: não há política que não seja opinião e, completa, não há álgebra da história que não seja um tratado das paixões da alma. A agudez de uma política qualquer (ou mesmo de um político) é reconhecer que a ação não recai sobre objetos e meros objetos, tal como as leis de Newton organizam maçãs e planetas, mas que os sujeitos não precisam de existir para haver.  Eles estão lá, mesmo quando não existem.

O campo não ensina só isso, que já parece enorme. Há outros elementos ainda a considerar. Porque o campo nunca é mera empiria,apreciação bastante vulgar que se pode fazer dele, ele sempre éexperiência interpretada, como diria o mesmo Merleau-Ponty, e acrescentamos, experiência interpretada dos dois lados do mistério, poderia dizer o antropólogo.

Ocorre que podemos sair das generalidades, manias filosofantes com as quais é preciso ter cuidado e precaução, e podemos nos deparar com a polpa das etnografias. O que nos damos conta, à primeira vista, é queas muitas camadas de discursos sobre o outro e sobre nós, o “Brasil e suas variações” devem, por princípio, ser insuficientes como material de “fala” para a boa etnografia. O “Brasil” diante de nós acaba por oscilar entre o que podemos ver e ainda não vemos com clareza e aquilo que nos dizem que é visto. E poderíamos cometer o deslize de falar em redescobrir o descobrimento, o que, reconheçamos, é muito problemático para nós.  Descobrimento e redescobrimento são formulações involuntariamente (não tão assim) ufanistas e explicitamente infelizes, e quase esbarramos no populismo esclarecido (e passadista, é bom frisar) de Darcy Ribeiro (com o qual faço algum gosto, e reconheço os meus pecados de homem branco). O fato é que a experiência oficial, por exemplo, a formação acadêmico-científica pode, sob certas condições, encontrar o seu outro e se desmentir, muito felizmente. Dizer que Brasil (significante vazio em que colocamos o que nos convém, segundo modo tempo pessoa e número) não parece o que é, é obviedade a dez centímetros do senso comum. Dizer como e o que essa não aparência é ou seria, é coisa completamente diferente. Evidentemente que a fatura desses trabalhos não se limita a isso. Apenas isso já nos informa: talvez o “popular” (outro significante vazio) esteja e opere em outro registro do que já imaginou nossa vã filosofia. 

Esse problema pode ser melhor formulado a partir de um pressuposto que lanço sem maiores explicações, por hora, e que pretendo articular com parte dos detalhes das etnografias que ora apresentamos: a modernidade e a experiência moderna brasileira se dá pelo “atraso” e não pelo “progresso”.  Há toda uma vulgata crítica que nos ensina desde o berço e da mamadeira que nossas mazelas são as mazelas de nosso atraso. Boa parte da boa pesquisa universitária se organiza em torno disso, o que não é irrelevante.  É, porém, e já há algum tempo, bastante insuficiente. Que se suponha o contrário, ainda sem maiores explicações.  Ocorre que não há esse “atraso” (o desigual e combinado, para alguns saudosistas), menos ainda no sentido teórico que se supõe, porque ele, o atraso, é justamente o que nos moderniza. Um exemplo singelo. Notemos os enormes ganhos de produtividade dos quadros médios e superiores durante o milagre (a década de 1970sobretudo), e que repercutiram em crescimento importante da produtividade média da economia brasileira, tudo cantados em prosa e verso. Eles, os ganhos de produtividade, não podem ser dissociados da apropriação, por esses quadros – nossa classe média profissional sobretudo, de origens diversas, mas unificada no vigoroso projeto econômico da ditadura –  de uma imensa massa de trabalho de baixa produtividade, os pobres, os deserdados, os humilhados, os migrantes de toda espécie, provedores de serviços baratíssimos (a baixa produtividade), sobretudo dos serviços domésticos e congêneres, condenados, por esse mecanismo ardiloso, ao destino da baixa produtividade e tudo que lhe pode ser correlacionado em uma sociedade autoritária, singularmente antidemocrática : subserviência, submissão, subalternidade, cujo bloqueio da via política, via golpe, funcionou justamente, por um lado, para vender a ideologia da emancipação econômica por meio de uma modelo econômico que não emancipa, por outro, para garantir uma não emancipação controlada, o sentido político profundo do golpe de 1964.  Daí que as categorias clássicas da boa crítica social tenham vigência restrita e deformada entre nós e, por extensão, entre a esquerda. Por óbvio, não são raras as vezes que não conseguimos não reconhecer atores (comunidades e povos) cuja experiência, ação e gramática não permitem aquele enquadramento confortável para a crítica de salão. O “popular” aqui não é o ardor contra a técnica, braços nus contra a burguesia reacionária, final do século XVIII europeu. É “ardor” anti-técnica. Ainda é, e isso é imensamente grave, o “ardor” contra a ocupação.

É disso que trata as etnografias ora apresentadas. O teria em comum os quilombolas (do Vale do Jequitinhonha, MG, e de Catité, BA) com os Mêbengôkre-Xicrim?3 Todos são titulares das possibilidades de um tipo de ação, uma ética no sentido clássico, aquilo que organiza os sentidos e os corpos, seja a resistir, seja a se projetar no tempo, e, ainda, a apropriação de um pelo outro, do corpo pelo sentido, do sentido pelo corpo,de tal modo que parecesseser o estigma ideal de nosso atraso. O juízo também vale, com mais mediações, para impressionante etnografia do PCC, de Karina Biondi. Somos “índios”, “ladrões”, “posseiros” de toda ordem e origem. Estrangeiros de uma ocupação feroz. Em uma imagem, a pirraça conta o energia eólica.4 Seria mais cômodo falar da pirraça contra a energia nuclear, a extração de urânio no sertão da Bahia, agradaríamos mais sensibilidades (também é o caso). Mas a pirraça contra a energia,vejam só, é surpreendente. Energia limpa, renda, “progresso”, desde de que se abra mão de... si e dos cuidados de si. Neste caso, como bem demonstra Suzane Viera, há outra ecologia, desde há muito presente, e que correlaciona a preservação do território à preservação de si e à experiência de si. Não só outra ecologia que se arma, há outra gestão do território e dos recursos, que não é estanque nem monolítica, mas que não aceita negociar com o si em troca de um nada coroado com algumas benesses materiais de alcance bastante relativo. Essas resistências (seria o nosso obsessivo “popular”?) podem ser armadas, essas possibilidade de discursos em regime prático-retóricopodem ser a melhor crítica ao nosso progresso, não ao progresso em geral, mas aquele, o nosso, o real atraso. Há uma inversão inusitada em tudo isso, com a qual fazemos alguma graça: por se pôr à margem, o que seria vulgarmente o “nosso” atraso, pode ensinar a melhor resistência àquilo que avança, que “progride” sobre nós. Se voltássemos as teses tanto do “Brasil Grande” da ditadura, reeditadas recentemente não sem ambiguidade, o que nem todos perceberam, quanto de certa esquerda nacional-desenvolvimentista em permanente busca da burguesia nacional, (Cercamento de Almostazin?) poderíamos prescrever a saída “jaguaribe”, universalizando-a: transformemos todos os povos indígenas, e por extensão, os outros quistos do “atraso” (quilombolas, ribeirinhos, caboclos, caiçaras, etc., etc., etc.) em operários sindicalizados. Ocorre que já são (nem todos sindicalizados), agora, grande parte desempregados ou subempregados. Seria esse o nosso oásis do finalmente moderno? A considerar o critério, estamos quase lá, uma vez que isso já sucedeu em enorme escala. Mais da metade da população indígena brasileira vive nas cidades, os índios urbanos são trabalhadores urbanos, normalmente mal remunerados porque isolados nas ilhas da baixa produtividade, diria o parceirinho liberal. O sucedâneo da modernização, a autonomia, não veio junto, e não virá, porque o passado não desmente o futuro, é o futuro que desmente o passado.  A população à margem se moderniza à margem. Esse é o segredo de nosso sucesso, o sucesso de uma sociedade imóvel em sua notória violência e brutalidade. A autonomia e o autogoverno não vieram, não virão, pode-se suspeitar com muita razão.  Mas o que seria nossa modernização que não emancipa senão o “atraso” que nos moderniza? E o que seria o atraso que resiste senão a luta permanente e inusitada por autonomia que nossa modernização não pode nem deve oferecer, se se quer moderna? E como ficou chato ser moderno, reconheçamos.

Enfim, em cada extrato etnográfico aprendemos a possibilidade de recontar uma experiência mais geral, partindo de onde mesmo se espera, daqui mesmo. Um outro mundo no mesmo lugar.
Aos leitores, boa leitura.

    
    

 







fevereiro #

10



ilustração: Rafael MORALEZ





1 Jorge Mattar Villela, PPGAS-Ufscar, Yara de Cássia Alves, doutoranda PPGAS-USP, Thais Mantovenelli,  doutora em Antropologia, PPGAS-UFScar, Suzanne de Alencar Vieira, UFG, Karina Biondi, doutora em Antropologia, PPGAS-UFScar.

2 Yara de Cássia Alves, Etnografia a partir e a favor das desestabilizações: As teorias dos moradores de Pinheiro – MG sobre as transformações contínuas da vida e do mundo, Thaís Mantovenelli, Narrativas Mẽbengôkre-Xikrin: a importância do fluxo das águas contra o barramento do rio Xingu, Suzanne de Alencar Viera, Micropolítica da pirraça, ou por que resistência não é uma noção obsoleta, Karina Biondi, Uma ética que é disciplina:
Formulações conceituais a partir do “crime” paulista.

3 Narrativas Mẽbengôkre-Xikrin: a importância do fluxo das águas contra o barramento do rio Xingu, MANTOVENELLI, Thais.

4 Essa prática discursiva é disparada como uma arma que pretende acertar o interlocutor de modo a comprometer suas possibilidades de reação. Para esses usos, é preciso saber responder, ou em termos nativos, “saber responsar” uma provocação. Os encontros com os funcionários das empresas de energia eólica eram narrados sem poupar detalhes do enfrentamento discursivo. O ponto alto dessas narrativas era justamente quando o narrador ressaltava para a audiência de parentes e amigos a resposta certeira que “tirou os homens do certo”. VIEIRA, Suzanne de Alencar, Micropolítica da pirraça, ou por que resistência não é uma noção obsoleta, p. 9.,