revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Ricardo CRISSIUMA

Dossiê Antonio Cândido – Apresentação

 


A Revista Fevereiro publica na seção seguinte um conjunto de textos dedicados ao prof. Antonio Candido (1918-2017): o primeiro consiste em uma republicação da resolução do Partido Socialista Brasileiro, veiculado originalmente na Folha Socialista em 1952 e depois coligido no livro organizado por Vinicius Dantas, Textos de intervenção;1 o segundo a republicação de uma entrevista de Candido concedida a Rodrigo Savazoni e Cláudio Cerri, veiculada originalmente no site da campanha de Lula para presidência de 2002; e, por fim, um texto de memórias escrito por Ruy Fausto a respeito da convivência com o casal Candido e Gilda de Mello e Souza.
Com esses textos pretende-se oferecer ao leitor um breve com foco na trajetória política de Antonio Candido. Trajetória que, grosso modo, poderia ser resumida a alguma militância clandestina no começo da década de 1940, os anos de Partido Socialista Brasileiro; à atuação na fundação da Associação Docente da Universidade de São Paulo (ADUSP), exercendo a sua vice-presidência na década de 1970; e à esporádica participação nas campanhas e fóruns internos do Partido dos Trabalhadores.
É presumível que ante a envergadura de sua atividade como crítico literário e acadêmico essa discreta biografia política empalideça, empurrando-a quase para o esquecimento. E no entanto, há um significado singular nesse percurso político de Antonio Candido que merece maior atenção. Desde a sua militância clandestina em pequenos grupos até a sua entrada no Partido Socialista Brasileiro,2 ele prima por uma esquerda crítica, antissectária e orientada por uma leitura dos problemas do país. A despeito da parca visibilidade, tanto os grupos políticos do início da década de 1940, quanto PSB, que durou de 1947-1964,3 tiveram um papel importante na história da esquerda brasileira ao se afastar das teses do Partido Comunista e inserir a democracia no eixo da agenda progressista. As resoluções partidárias escritas por Candido, e depois referendadas em reunião partidária, que republicamos aqui mostram-se mesmo um documento importante de um explícito e contundente afastamento de partes da esquerda do país dos destinos tomados pelo Estado Soviético, pelo fato de já ter dado provas suficientes de um distanciamento definitivo do ideário democrático.        
É importante notar que mesmo depois de cassado o registro do PSB após o golpe de 1964, quando já nomeado professor da USP, Candido tomava seu trabalho acadêmico como via para se perseguir uma importante transformação social no país. O que não significava colocar os estudos universitários diretamente a serviço da resolução dos problemas nacionais, mas ser consequente com a crença de que “as soluções práticas dependem de germinações obscuras, um lento acumular de trabalhos aparentemente gratuitos, mas que vão formando uma atmosfera, uma tradição, um estilo, dentro dos quais as atitudes adquirem sentido e consistência”4 . Ante o colega Cruz Costa que condicionava o valor do pensamento à sua capacidade de voltar ao nível dos problemas concretos provados do povo brasileiro, aconselhando, por conseguinte, estudar antes a dieta do caiçara do a Fenomenologia do Espírito, Candido sai com a seguinte boutade:

Rapazes, o pensamento tem valor na medida em que contribui para melhorar a vida dos homens; logo, sereis tão dignos estudando a dieta do caiçara quanto a fenomenologia do espírito, segundo Hegel. Da sinceridade e da profundidade do vosso estudo brotará o essencial, que á a formação de uma mentalidade incompatível com a atual dieta do caiçara.5

A “missão” da universidade para Candido sempre foi essa: não só acatar problemas concretos pontuais, mas promover uma verdadeira transformação da mentalidade. E para isso era crucial se construir um acúmulo capaz de superar a sujeição da vida pensante nacional ao sabor do fluxo e refluxo dos modismos intelectuais estrangeiros que vinha de par com a dominação econômica a que o país estava submetido. Por certo, o engajamento de Candido nas paritárias da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, a atitude destemida de defesa dos estudantes quando do ataque à Maria Antonia e à perseguição de seus estudantes e a criação da combativa Revista Argumento testemunham a importância que conferia à universidade. Depois com a fundação da ADUSP, vemos que Candido conta conferir um novo rumo à luta pela educação democrática no Brasil a partir da pressão de fora para dentro e não apenas aprimoramento dentro dos marcos institucionais já dados. Alguns professores recordam do período em que Candido exerceu a vice-presidência da ADUSP, como agitado por uma série de debates e seminários, donde transparecia o esforço de transplantar para os barracões do Butantã a convivência universitária que vigia na Maria Antônia.
Com a redemocratização, Candido vai se reposicionar no quadro partidário que estava se abrindo. A experiência no Partido Socialista Brasileiro já lhe plantara a inquietação a respeito das limitações de um partido que se restringe apenas a intelectuais e mais uma rala porção de profissionais liberais. A decisão de seguir um grupo de amigos para ajudar na fundação do Partido dos Trabalhadores é vista como uma espécie de amadurecimento para a importância de se atuar em um partido de massas capaz de garantir força e viabilidade eleitoral para implementar as reformas sociais necessárias ao país. Aquele PT incipiente, pela participação popular na sua concepção, parecia destinado a esse papel. Mesmo a diversidade de tendências que abrigava, por maiores que fossem os conflitos, era vista a seus olhos como capacidade democrática de abrigar as diferenças.
Mas a política deveria estar voltada para Candido a buscar um processo de redemocratização que efetivamente atacasse os entraves mais profundos e arraigados do conservadorismo brasileiro. Para tanto, a política mais uma vez teria de se aliar ao trabalho acadêmico, como fica claro na conferência proferida por ocasião do Centenário da Abolição no Brasil , onde Candido oferece uma reconstituição de todo o processo que permitiu que a faculdade de filosofia chegasse a colocar a questão do negro no centro da compreensão do que é o povo brasileiro. E indicava também como sem que essa questão fosse enfrentada, não seria possível constituir uma verdadeira democracia no país:

o sentimento de insegurança que corrói a personalidade e é agravado pelas situações de humilhação. Ora, é impossível conceber uma sociedade democrática na qual grande parte da população é privada dos meios de viver com dignidade por causa da cor da pele, e na qual é submetida a formas degradantes de discriminação.6

Já em 1988, Candido denunciava que a Universidade não deveria se eximir de adotar políticas no sentido de lidar com este problema, reivindicando “medidas que aumentem as possibilidades de recrutamento entre os nossos patrícios considerados de cor e, a este título, sujeitos às restrições de um preconceito tão tenaz quanto dissimulado”.7 Mas, apesar do relevo que conferia ao papel da universidade, Candido nunca deixou de dialetizar a relação entre política e esclarecimento, convicto de que sobretudo na America Latina havia a necessidade de um projeto popular para uma “inversão estrutura” que permitisse levar a Ilustração adiante.8  
Daí a necessidade de se passar agora da academia à luta política. É esse o prisma que vai levá-lo a ressaltar a perspectiva de chegada do PT ao poder (vide a entrevista que republicamos abiaxo). Sem deixar de demonstrar sua preocupação ante o laxismo no desenho do quadro de alianças do partido para o combate eleitoral, Candido tinha bastante convicção da importância da esquerda popular chegar ao poder no país: “Políticas de alianças envolvem riscos, mas tudo em política é risco”. Candido alertava como aceitar certos riscos é inerente à atividade política:  “Então, a opção é a seguinte: ou eu não quero o poder, ou eu quero o poder. Se quero, tenho que correr os riscos inerentes a essa decisão”. Mais uma vez, era a conjugação de combate às desigualdades e ao conservadorismo com a democracia que se revelava como o fundamento de seu apoio ao projeto eleitoral de 2002. A capacidade que Candido via no PT era aquela de articular e elaborar as expectativas dos diversos atores importantes para a redemocratização do país. Por mais que à luz favorável do desenrolar da história há quem possa querer questionar o diagnóstico de Candido, é necessário reconhecer sua luzidez em apontar que um projeto de poder a serviço da transformação social envolve  riscos e sacrifícios.
O texto de memórias de Ruy Fausto, todo pontuado de anedotas muito reveladoras, mostra como Candido, e também Gilda, foram talvez os mais longevos zeladores do “duplo solo” que era aquele da Universidade de São Paulo durante as suas primeiras décadas. Pois se a sala de aula da geração do começo de 1960, quardadas as suas devidas exceções, já era dominada pelo conteúdo disciplinar e a metodologia mais “científica” trazida pelos professores franceses, nas conversas de corredor, nas assembleias e nos bares do centro9 ainda correia a seiva cultural que remontava ao modernismo dos anos 1920. Nomes como Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Joaquim Pedro de Andrade, Graciliano Ramos circulam nos textos desses dois autores na dupla condição de “amigos” e, por assim dizer, “objeto de pesquisa”.
A prontidão para a defesa da universidade ao longo dos anos de chumbo não vai deixar de ser requisitada ao longo do final dos anos 1970 e começo de 2000; agora contra o sacrifício da docência em prol dos currículos acadêmicos, contra o sufocamento das humanidades em nome de um conceito mercadológico de accountability, e todo o processo de se criar uma universidade sem cultura. O duplo solo da faculdade foi se perdendo ao passo da funcionalização de todas as atividades da vida acadêmica. Em texto cujo título faz uma paródia ao de uma peça de Wilde, “A importância de não ser filósofo”, Candido não deixa de brandir oportunamente a memória de um dos professores mais marcantes de sua geração contra a bitola acadêmica que já arriscava cortar o fio ligando conhecimento e experiência.
O advento da universidade de massas trazia junto com a democratização um corte definitivo com as vantagens e desvantagens daquele modelo em que professores que, acionando contatos aqui e ali, procuravam traçar “as grandes linhas” do “destino intelectual” de seus alunos. A solidariedade difusa que devia se manter mesmo sob as maiores discordâncias intelectuais como condição para a continuidade da formação de novas gerações no contexto de um regime que despertava inimizade comum de toda a inteligência cedeu lugar para uma concorrência que mina a convivência universitária e cala o diálogo na desconfiança e no ressentimento. E nem mesmo agora, quando governo e parcelas representativas da sociedade voltam claramente a se indispor contra à inteligência de maneira quase indistinta, as disputas internas cessam de ganhar mais força e ramificações.
A trajetória política de Antonio Candido parece apontar para um dos grandes desafios da esquerda hoje: reencontrar o vínculo entre socialismo e democracia diante de um súbito recrudescimento do conservadorismo brasileiro aliado a uma lógica capitalista extremamente concentradora e excludente. A resistência e os avanços das forças de esquerda parecem depender da capacidade de recuperar um horizonte transformador, sem recair em sectarismo. Isso passa por denunciar o sequestro e o falseamento da “radicalidade” do pensamento de classe média,10 tão importante para diversas conquistas progressistas na história brasileira, pela mentalidade conservadora travestida de modernidade e juventude e a apreender os processos em curso nas  bordas da nossa sociedade periférica. Nesse cenário onde há tanto a ser feito, a consolidação de partidos e de coletivos deve estar subordinada a um senso coletivo de reconstrução, teórica e prática, do campo progressista. É preciso, portanto, ter a capacidade de reconhecer erros e diferenças sem perder a solidariedade própria àqueles que, ainda que de formas distintas, estão em uma mesma luta. E olhar para a história da esquerda é cuidar para que não sucumbamos, também na política, à descontinuidade que nos condena a um recomeçar do zero, e incapacita nossa experiência de lidar com as estruturas que marcam a nossa formação social.

    
    

 









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ilustração: Rafael MORALEZ



1 Candido, A. “Repúdio à doutrina do capitalismo de Estado”. In: Candido, A. Textos de Intervenção, org. Vinicius Dantas, São Paulo, Editora 34, 2002, p. 360-64.

2 Para um balanço sobre esse período, conferir Antonio Candido, “Paulo Emílio: a face política”. In: Candido, A. Vários escritos. São Paulo/ Rio de Janeiro, Duas Cidades/ Ouro sobre Azul, 2004, pp. 253-69.

3 Alexandre Hecker, O socialismo sociável: a história da esquerda democrática em São Paulo (1945-1965), São Paulo, Ed. Unesp, 1998. Agradecemos a indicação bibliográfica a Vinicius Dantas.

4 Candido, A. A filosofia no Brasil. In: Candido, A. Textos de intervenção, op. cit., p.263.

5 Candido, A. Idem, ibidem, p. 264.

6 Candido, A. “A Faculdade no centenário da Abolição”. In: Candido, A. Vários Escritos, op. cit., p. 236.

7 Idem, ibidem, p.236.

8 Candido, A. “A Perversão da Aufklärung”. In: Candido, A. Textos de Intervenção, op. cit., p. 264.

9 Bento Prado Jr., “A biblioteca e os bares na década de 50”, in: Revista Fevereiro, n. 8.

10 Candido, A. “Radicalismos”. In: ______. Candido, A. Vários Escritos. São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades/ Ouro sobre Azul, 2004, pp.193-214.