revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Tatiana ROQUE

Subjetividades no ponto cego da esquerda: crise do trabalho e do bem-estar

 


Há uma dificuldade, no campo da esquerda, em enxergar as dinâmicas que envolvem as subjetividades e os diferentes processos de subjetivação que estão em jogo no capitalismo atual. Essa limitação, que tem atrapalhado a necessária reinvenção do campo, remete a um problema de fundo: definir a categoria de trabalho sem levar em conta as transformações das últimas décadas. Essa cegueira também tem consequências no pacto que estabelece o Estado de bem-estar social.
Salta aos olhos, nos dias de hoje, o papel adquirido pela figura do empreendedor, que vai de par com certo esgotamento do poder de resistência do trabalhador. O empreendedorismo mobiliza o campo do trabalho em todas as camadas sociais, desde os empresários das grandes corporações até pequenos comerciantes, motoristas de Uber e trabalhadoras do setor de serviços. Diante dessa abrangência, é difícil não concluir pela insuficiência da figura do trabalhador, ao menos como pensada nos moldes clássicos do trabalho na fábrica. Imprecisões em nosso modo de conceber o trabalho na contemporaneidade acaba tendo consequências sobre a análise do avanço recente do neoliberalismo sobre as instituições do Estado de bem-estar social. Isso explica, em parte, porque a defesa dos direitos sociais não tem mobilizado a população contra o desmonte – em curso – do pouco que tínhamos desde 1988. Em sua relação com o trabalho, o Estado de bem-estar social sustenta-se na divisão entre as esferas da produção e da reprodução social dos meios de produção e da força de trabalho, divisão que parece se diluir no mundo contemporâneo.
Veio das feministas uma das primeiras iniciativas de apontar como, na análise marxiana, a caracterização do trabalho – feita pela teoria do valor – deixou de lado a singularidade de uma gama de tarefas executadas por mulheres, como o trabalho doméstico. Ao não considerar a reprodução da força de trabalho como trabalho, ou seja, como passível de remuneração, a categoria de trabalho excluía todo um campo de atividades que foram naturalizadas como afeto, cuidado ou amor. Daí os questionamentos dos anos 1970, capitaneados por movimentos como o de salários para o trabalho doméstico, que sugeriam uma inflexão na definição de trabalho. Mais recentemente, o debate sobre reprodução social tem se ampliado, incluindo atividades muito variadas do âmbito dos cuidados, que adquirem importância social cada vez maior e exigem uma reconfiguração da própria concepção de trabalho – incluindo, fundamentalmente, o setor de serviços. Ora, quando as atividades realizadas na esfera da reprodução adquirem o mesmo estatuto daquelas realizadas na esfera da produção (ou seja, tornam-se trabalho), como manter a divisão fundante do Estado de bem-estar social? A dificuldade dos discursos de esquerda em incorporar de modo satisfatório as pautas de raça e gênero indicam um descompasso associado a esse problema. Não se trata de conciliar “raça” e “gênero” com a noção de “classe”. Uma saída possível para o que tem afligido grande parte da esquerda pode estar em uma atenção renovada ao papel das subjetividades dentro do modo de produção neoliberal. Talvez as lutas das ditas “minorias” – que são estranhas à esquerda – mobilizem pautas em sintonia com o lugar que mulheres, indígenas, negras e negros ocupam hoje diante dos modos de valorização do capital.
Temos inúmeras evidências de que é urgente repensar a figura do trabalhador. Definir o neoliberalismo como sistema econômico não é suficiente, pois essa redução deixa de fora as múltiplas práticas que constituem seu modo de governo – dispositivos que atravessam as relações sociais, o Estado e as subjetividades. O governo neoliberal constitui-se por modos de ser e de pensar, modos de instituir relações específicas entre governantes e governados que não se esgotam no comando ou no poder soberano. Assim, refletir sobre os processos de subjetivação, indicando aqueles que estão em jogo nas reconfigurações do trabalho, parece ser um desafio incontornável em qualquer projeto que pretenda destituir a governança neoliberal.
Faremos uma releitura da teoria marxiana do valor, incluindo o poder disciplinar e as técnicas biopolíticas descritas por Foucault. Claro que o capital produz os sujeitos de que precisa para se reproduzir, mas essa constatação pura e simples nos deixaria ainda mais pessimistas. O trabalho vivo e a as subjetividades são produtivos e, por isso, são imanentes ao capital, e não apenas um de seus efeitos. Mostrar como o neoliberalismo expande a valorização capitalista a todas as esferas da vida é um modo de reposicionar as lutas. Mais do que isso: é um modo de enxergar lutas de novos tipos ali onde já estão em curso, muitas vezes invisíveis ao enquadre interpretativo da esquerda. A esquerda precisa de novos rumos, capazes de convocar aqueles que se sentem desmotivados e incrédulos. O governo neoliberal constitui-se a partir de modos de vida e processos de subjetivação que lidam diretamente com afetos e desejos. Que afetos, desejos ou perspectivas de emancipação acompanham os projetos da esquerda? Que modos de vida, para além do trabalho na fábrica, podem ainda mobilizar corações e mentes? Sem enfrentar essas questões conceituais, a esquerda continuará perdendo a disputa, seja na sociedade ou no próprio exercício de governo.

Empreendedor x trabalhador

No neoliberalismo, o bom funcionamento do mercado deve ser produzido por uma política geral de intervenção na sociedade, que afeta desde a ação dos governantes até a conduta dos governados. Como propõe Foucault, com a noção de biopolítica, governar significa organizar, facilitar e estimular a concorrência nos mais diversos âmbitos da vida social. A noção de “racionalidade” é usada precisamente para evitar a confusão dessa técnica de governo com qualquer tipo de poder centralizado ou de doutrina – “nem repressão, nem ideologia”. No final dos anos 1970, quando o projeto neoliberal ainda estava em gestação, Foucault já identificava o surgimento de uma nova racionalidade, distinta do liberalismo.1 Autores como Hayek, analisados no Nascimento da biopolítica, partem da constatação de que o liberalismo teria deixado a dimensão da utopia como exclusividade do socialismo, o que seria responsável pelo vigor histórico dos movimentos socialistas. Era preciso, portanto, criar utopias que permitissem fundar um neoliberalismo como técnica efetiva de governar, o que devia incluir a imaginação e os modos de vida. Começou a ser gestada, a partir daí, uma racionalidade política envolvendo um tipo preciso de organização social, um modelo de Estado e mecanismos eficazes de produção de subjetividade. Todos esses ingredientes precisam ser incluídos em práticas de governança que se traduzam, nos termos de Foucault, como uma razão política normativa, capaz de abarcar muitos campos para além daqueles ligados ao mercado.
Um exemplo paradigmático é a teoria do capital humano, que representa o avanço da análise econômica sobre um domínio antes inexplorado em seu conteúdo: o trabalho. A economia política clássica neutralizou a natureza específica do trabalho ao rebatê-lo sobre o fator tempo. Essa interpretação quantitativa, atribuída por Foucault a Ricardo, reduz o trabalho a um fator de produção. A teoria do capital humano propõe uma nova interpretação do trabalho, pois pretende analisar o modo como os indivíduos alocam seus recursos raros para certos fins, e não para outros. Ou seja, a economia passa a ser vista como ciência do comportamento humano e de sua racionalidade interna, um investimento sobre a programação estratégica dos indivíduos. O trabalho, nesse contexto, faz parte de uma estratégia, pois se baseia em um cálculo; o trabalhador passa a ser um sujeito ativo, e não apenas parte de uma engrenagem, como na economia clássica. Os fatores físicos, psicológicos, afetivos que tornam alguém capaz de obter uma renda de seu trabalho são, nessa nova episteme, um capital, uma vez que podem se constituir em fonte de obtenção de renda. Cada trabalhador aparece, assim, para si mesmo e para a sociedade, como uma empresa – surge o empresário de si. Cada um é seu próprio capital, seu próprio meio de produção, sua própria fonte de renda. Por isso, o capital humano recorre frequentemente ao investimento em si mesmo: aprendizagem profissional, formação continuada e mesmo atenção aos filhos tornam-se fatores de produção.
Em que tipo de sociedade vivem essas inúmeras empresas individuais entrelaçadas? Em um mundo assim reconfigurado, os modelos econômicos tornam-se modelos de relações sociais e modos de existência em sociedade inevitavelmente atrelados à concorrência. É a racionalidade econômica que funda a estratégia de comportamento de cada um. Assim, o mundo econômico torna-se opaco e não totalizável, pois passa a ser constituído por pontos de vista cujos funcionamentos convergem – aparentemente, de modo espontâneo – para uma lógica econômica que ninguém sabe bem como funciona, pois se coloca como inalcançável.
Estamos plenamente imersos em um mundo de empreendedores, sejam eles mais ou menos bem-sucedidos. O empreendedorismo é um modo de gestão social que mobiliza desde os empresários propriamente ditos até o setor de serviços e a economia informal, ou seja, é um modo de vida que diz respeito à maior parte dos trabalhadores hoje em dia. Jessé Souza (2010), ao traçar os perfis do novo “batalhador brasileiro”, inclui o batalhador do microcrédito, a empreendedora que vende doces e quitutes, as redes informais, o feirante, a família ampliada e a igreja neopentecostal. Boa parte dos antigos assalariados, moradores de periferias, dedica-se atualmente a um pequeno negócio, como lanchonete, costura, salão de cabeleireiro ou oficina mecânica. Quem ainda não tem seu próprio negócio, gostaria de ter e a maior parte dessa população atribui qualquer melhoria de vida ao seu esforço pessoal.2 Não à toa, a subjetivação empreendedora mobiliza corações e mentes, seja nas grandes corporações ou nas igrejas neopentecostais.
A ética da empresa – a partir da qual as pessoas se autogovernam no neoliberalismo – não envolve somente a competição, ela exalta a autoestima, o pensamento positivo, a luta pelo sucesso, as habilidades pessoais, o vigor e a flexibilidade. Isso engloba diversas dimensões da vida, desde o casamento, os filhos e os amigos até as igrejas, os clubes e as corporações, todas as relações interpessoais participam do networking necessário ao sucesso dos negócios.
Mas a conta não tarda a chegar. O self empreendedor sobrecarrega o indivíduo, que também deve ser responsável por todos os riscos, assumindo a culpa quando não consegue garantir o básico para si e seus próximos. O endividamento crescente contribui para a culpabilização, gerando necessariamente mais insatisfação com os dispositivos de subjetivação neoliberal. Os ideais de emancipação, mobilidade e liberdade, prometidos nos anos 1980 e 1990, anos de glória do projeto neoliberal, foram desmascarados pela multiplicação de sujeitos endividados, como aponta Maurizio Lazzarato (2014). Tal constatação motiva esse autor a atualizar o diagnóstico foucaultiano mostrando que, hoje, a governamentalidade neoliberal não se contenta em incitar, favorecer ou solicitar certas condutas: ela precisa interditar, dirigir e comandar. Isso porque a promessa de emancipação pela via da liberdade e da flexibilidade do trabalho não consegue mais convencer tão facilmente, sobretudo porque gera insegurança e precarização. Um bom exemplo está nas políticas colocadas em prática depois da crise de 2007 na Europa, quando as instituições financeiras e bancárias e as instituições políticas transnacionais passaram a definir princípios incontornáveis, que devem ser respeitados independentemente de seus efeitos sobre a população: reembolsar os credores, cortar despesas sociais, sanear as contas do Estado. Com o declínio da governamentalidade neoliberal, o exercício soberano e disciplinar de uma sociedade securitária volta ao primeiro plano, instalando governos autoritários que convivem com as formas mais sutis instituídas pelo neoliberalismo.
Esse endurecimento pode indicar a passagem de um modelo capitalista a outro (de um modelo de acumulação a outro), o que gera conflitos intensos, pois estão em jogo mudanças das técnicas de governança. Na passagem do fordismo ao capitalismo financeiro, aponta também Lazzarato, houve batalhas em diversos níveis: luta pelos salários e garantias do trabalho, luta pelo emprego, manutenção do welfare; mas também uma luta no interior das instituições capitalistas, onde as elites neoliberais batalharam para impor seus axiomas contra as elites keynesianas. O que está em jogo na crise atual? Como a esquerda pode atualizar seu projeto para disputar os modos de governança que buscam se impor no neoliberalismo? O paradigma do desenvolvimento – que embasa nossos programas de esquerda – é suficiente para fornecer as respostas necessárias?
Com todos os riscos, a figura do empreendedor parece ter grande apelo, mesmo nas classes populares. Além das pesquisas citadas, relacionando as mudanças no mundo do trabalho e o crescimento das religiões neopentecostais, há outras recentes, indicando fortes valores empreendedores nas periferias de São Paulo.3 A cegueira das esquerdas para compreender o avanço dessas religiões só confirma sua dificuldade em assimilar as mudanças nas esferas da produção e do trabalho. Que tipos subjetivos podem se contrapor ao self empreendedor que define a racionalidade neoliberal? A tarefa mais urgente para a construção de um novo projeto de esquerda é a construção de modos de vida alternativos à subjetividade empreendedora fundada na concorrência.
A única figura subjetiva invocada sem hesitação nos projetos de esquerda é a do trabalhador. Mas será que insistir no emprego e na figura tradicional do trabalhador fornecerá o elã subjetivo necessário para que novas pessoas possam aderir aos projetos da esquerda? O trabalhador, subjetividade fundadora do projeto socialista, está em crise, e não somente por razões passageiras, mas por causa das transformações profundas por que passou o mundo do trabalho. O crescimento do setor de serviços faz com que o trabalhador de hoje se aproxime do empreendedor. Além disso, o pacto do bem-estar social, que sustentava o mundo do trabalho, está se dissolvendo em escala mundial. Seus termos fundadores dependiam da separação entre as esferas da produção e da reprodução da força de trabalho: era preciso garantir condições mínimas de existência ao trabalhador para que fosse possível extrair mais-valor de sua produção na fábrica. Como manter um pacto desse tipo diante das configurações atuais do mundo do trabalho? Trabalho que vem sendo expandido para diferentes âmbitos da existência, com um papel cada vez mais preponderante de todas as esferas da vida nas relações de trabalho, como no setor de serviços, no trabalho dos cuidados e na economia do conhecimento. Em todos esses casos, para continuarem produtivas, as pessoas precisam realizar um investimento contínuo sobre si mesmas, ou seja, precisam empreender-se. Num ambiente social degradado, são os valores reacionários que têm conseguido suplantar a fragilização institucional generalizada. A direita estilo-Trump acena com a restauração de projetos nacionais autoritários, fundados em discursos que valorizam o trabalho na fábrica, cujos modos de subjetivação – centrados no macho-adulto-branco – são velhos conhecidos.
Nossa crise é de inadequação dos modelos produtivos disponíveis às formas de subjetivação que explodem, de modo irreversível, na sociedade contemporânea. Não dá para imaginar um novo modelo produtivo sem levar em conta o que desejam essas subjetividades. Nesse ponto, coloca-se o desafio da reconstrução das esquerdas. A insistência na figura do trabalhador, sem levar em conta as transformações do mundo do trabalho e o papel do setor de serviços, da economia informal e do conhecimento, não nos levará muito longe. Precisamos analisar como o trabalho vem sendo expandido para diferentes esferas da existência – e explorado de novas formas. Para isso, é fundamental dar atenção às dinâmicas de produção de subjetividade, dinâmicas que sempre foram fundamentais para a exploração capitalista, mas que passaram a ter um papel distinto – e mais central – no neoliberalismo.

Biopolítica como adjunção à teoria do valor

A noção de biopolítica oferece um modo de interpretar e atualizar as categorias de valor e mais-valor propostas por Marx. Pensar como o indivíduo se sujeita à forma valor, pela via escolhida por Foucault, é conferir ao capitalismo uma influência sobre os indivíduos ainda mais irresistível do que a sugerida pela noção de ideologia. Quando associada à fase neoliberal, a ação biopolítica torna-se clara, dada a especificidade dos modos de produção dominantes. Mas Foucault já compreendia, em termos próximos, a relação capital/trabalho contida na apresentação, feita por Marx, das técnicas de poder em funcionamento nas oficinas e nas fábricas – técnicas disciplinares que possibilitam a extração de mais-valor e que são submetidas a políticas exercidas sobre a população.
A teoria do valor busca entender como o capitalista consegue obter mais-trabalho do que aquele pelo qual ele paga e que se mede por um salário equivalente à necessidade de subsistência do trabalhador. É possível obter mais-valor absoluto fazendo com que o trabalhador trabalhe mais horas, mas isso tem um limite. Logo, o mais-valor relativo torna-se essencial e pensar sua extração depende de um conceito original introduzido por Marx: a força de trabalho. Passa a ser possível, assim, traçar uma diferença entre o trabalho realizado e a potencialidade do trabalho (a capacidade de trabalhar, dada pela força de trabalho). O segredo da extração do mais-valor, ou seja, da forma especificamente capitalista de exploração, está na apropriação da força de trabalho.
Apesar de descrita inicialmente como um modo de baratear as mercadorias necessárias à subsistência – a fim de aumentar a proporção do mais-trabalho em relação ao trabalho necessário –, a extração de mais-valor (apresentada por Marx na seção IV do Livro I de O capital) requer meios mais eficientes: cooperação, divisão manufatureira ou fabril e intensificação do trabalho. Para aumentar a produtividade do trabalho, o capitalista precisa “revolucionar as condições técnicas e sociais do processo de trabalho” (Marx, 2013, p. 390). Os capítulos que compõem essa seção são essenciais na leitura de Foucault, que destaca como as diferentes formas de dominação e de sujeição funcionam localmente no ambiente de trabalho, constituindo formas locais de poder, com técnicas adequadas. Esse é um dos indícios da necessidade de se investigar os poderes localizados em especificidades históricas e geográficas, ao invés de focar a análise política sobre o poder soberano. Citando as seções IV, V e VI (que compõem o segundo tomo da edição francesa4 ) de O capital, Foucault afirma ter sido Marx um dos primeiros a mostrar como a partir da existência de pequenas regiões de poder – a propriedade, a escravidão, a oficina, a fábrica e o exército – formaram-se grandes aparelhos de Estado que, na prática, são secundários em relação aos poderes locais. Justamente nesse ponto, citando Marx, Foucault sublinha que esses poderes não têm a função de proibir ou de impedir, e sim de produzir eficiências e aptidões. “Podemos encontrar facilmente entre as linhas do livro II do Capital [correspondente de fato às seções IV, V e VI do Livro I] uma análise, ou ao menos o esboço de uma análise, que seria uma história da tecnologia de poder tal qual se exercia nas oficinas e nas fábricas”.5 Quando as pequenas oficinas dão lugar a fábricas com muitos operários, é preciso instituir uma divisão do trabalho e forjar técnicas que permitam coordenar os gestos e constituir uma disciplina. Foucault mostra, ainda, que a descoberta da população é um investimento sobre esse corpo moldável, nicho tecnológico de procedimentos políticos. É aí que entra a noção de biopolítica.
Nosso objetivo é recuperar a inspiração marxiana da redefinição do poder proposta por Foucault. Desenvolvemos sugestões dadas por Pierre Macherey, para quem esse novo estatuto do poder resolve a aparente impossibilidade de acordo entre as noções de liberdade e necessidade – caras à análise de Marx, mas, em princípio, contraditórias: “necessidade na liberdade: essa é a grande invenção do capitalismo. E, de fato, isso teve que ser inventado e procedimentos apropriados precisaram ser encontrados para colocar essa ideia em prática” (Macherey, 2012). Foucault investiga como técnicas de poder atuaram para otimizar as forças sem que elas se tornassem, por isso, mais difíceis de governar. Introduzem-se, desse modo, procedimentos que podem ser pensados como uma economia das forças. Como Macherey observa, Foucault aponta que é essa economia das forças que permite explicar como a noção de força de trabalho torna realmente possível a extração de mais-valor relativo. Isso porque, quando o trabalhador cede sua força de trabalho em troca de um salário (durante um tempo e num local específico), ele deve ser livre para fazê-lo. Mesmo livre, é preciso que ele seja levado a fazê-lo. Só assim o trabalhador, possuidor de sua força de trabalho, é levado a trabalhar em condições que não são produto da sua vontade.
O campo do trabalho é aquele em que o capitalista organiza a produção a fim de aumentar a extração de mais-valor relativo, ou seja, a fim de aumentar a produtividade da força de trabalho por meio das técnicas normativas de assujeitamento, como as descritas por Foucault. Técnicas como as do taylorismo fazem com que o trabalhador não apenas venda sua força de trabalho, mas seja posto a trabalhar em condições que garantam sua produtividade. Essas condições incidem sobre o corpo do trabalhador – sobre suas capacidades, suas habilidades e sua formatação – e não são plenamente visíveis no momento do contrato. O poder não pode aparecer como relação a uma autoridade imposta, de forma repressiva ou negativa, sob o risco de gerar revolta e resistência (análogas às lutas, descritas por Marx, pela redução da jornada de trabalho, mas que se voltariam também contra a extração do mais-valor relativo). Por isso, foi preciso instalar técnicas de organização da produção (a fim de aumentar a produtividade do trabalho), sem que isso aparecesse como um comando. Um poder normativo, ou disciplinar, aparece aqui como um poder que não vem de fora, que não é imposto.
Um pouco mais tarde, Foucault expande a redefinição do poder, em relação com sua teoria do sujeito (como fica claro em “O sujeito e o poder”). Ele insiste sobre a condição essencial de que o poder possa ser definido levando em conta sujeitos livres, capazes de várias condutas, reações ou comportamentos, sujeitos que têm um campo de possibilidades diante de si. Daí a caracterização do poder como conjunto de ações sobre ações possíveis, constituindo um campo de possibilidades no qual o comportamento dos sujeitos se inscreve. Quanto ao poder, “ele incita, ele induz, ele desvia, ele facilita ou torna mais difícil, ele amplia ou ele limita, ele torna mais ou menos provável; no limite, ele obriga ou impede absolutamente; mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos agentes, e isso enquanto eles agem ou são suscetíveis de agir” (Foucault, 2014, p. 133).
A biopolítica tem a ver com esse modo pelo qual o poder antecipa ações possíveis e estrutura um campo de ações, modo pelo qual funda-se uma segunda natureza diretamente sobre o corpo (pois produzida de modo não consciente), sem que nada lhe seja imposto – uma natureza contraída por tentativas e erros. Nada disso se processa no domínio da ideologia. Experimenta-se um tipo específico de subjetivação que não depende de comandos, de palavras, nem de ideias, e sim dos diferentes modos de se incluir os indivíduos em multiplicidades sociais. Na obra de Foucault, essa teoria começa a ser apresentada nos cursos de 1977/1978 (Foucault, 2008a) em que as multiplicidades sociais são compreendidas como um domínio de intervenção. Não se trata mais de um meio social povoado por indivíduos capazes de ações voluntárias, como no caso da soberania. Ao invés de corpos capazes de desempenhos, que eram objetos das técnicas disciplinares, vai-se procurar atingir uma população, que assume um papel primordial. A ideia de população aponta para uma multiplicidade de indivíduos que só existem biologicamente ligados. Assiste-se à “irrupção do problema da ‘naturalidade’ da espécie humana dentro de um meio artificial” (Foucault, 2008a, pp. 28-29). Essa “naturalidade” da população faz com que ela seja percebida não a partir da noção jurídico-política de sujeito, mas como objeto técnico-político de um modo de governo e a artificialidade em questão remete às relações de poder.
Interessam-nos, nessa passagem, dois aspectos: o modo como a subjetividade deixa de estar associada a um sujeito individual autônomo e o fato de que os processos de subjetivação, trazidos para frente da cena, não se passam no domínio da ideologia. A biopolítica pode ser entendida como fator diretamente econômico, pois se traduz em mecanismos que possibilitam a extração de mais-valor, logo, que determinam o valor.6   Marx designa como uma segunda descoberta o fato de que, antes de qualquer análise sobre a renda do capital (lucro ou juros), é preciso situar a origem dessa renda na transformação do mais-trabalho em mais-valor. O mais-trabalho é incorporado ao capital na forma de força de trabalho de indivíduos homogêneos e intercambiáveis, produzidos por técnicas biopolíticas. Uma observação-chave na leitura feita por Étienne Balibar (2011/2012) sobre a teoria do valor em Marx é que o mais-valor comanda a inteligibilidade do valor, e não o inverso. Mesmo que o processo em que a força de trabalho é vendida ao capitalista esteja mascarado sob a aparência de uma relação contratual (entre um indivíduo trabalhador e um indivíduo capitalista), é o mais-trabalho que, ao gerar mais-valor, comanda a valorização das mercadorias.7 A política, como biopolítica, torna-se, diretamente, uma economia. É essa face econômica que tornará o conceito de biopolítica ainda mais relevante na análise das transformações do trabalho ocorridas a partir da virada neoliberal.
O poder disciplinar era considerado por Marx na análise da divisão do trabalho e das relações de poder na fábrica; Foucault apenas explicita um traço já presente, ainda que não tematizado, no texto de Marx. A noção de biopolítica aponta, todavia, para algo novo: não é mais possível naturalizar fatores biológicos que atuam na esfera da reprodução. A reprodução da força de trabalho e a reprodução política das relações de produção estão ligadas, sem que seja possível separar os domínios da economia e da ideologia.

Quando reprodução vira produção: o trabalho sai da fábrica

Nos Resultados do Processo de Produção Imediata (Capítulo 6 Inédito de O Capital), Marx fala da “mistificação do capital”, deslocando o problema da produção de valor do trabalho vivo para o desenvolvimento de um aspecto característico do modo de produção capitalista: a produção de novas relações e estruturas sociais. Marx não investiga apenas como o capitalismo produz, mas como ele é produzido a partir de uma relação social específica. O funcionamento do capitalismo passa pela produção de capitalistas e trabalhadores, logo, pela produção dos modos de vida e das subjetividades necessárias à valorização do capital. Todos esses processos remetem ao terreno da reprodução social, que inclui a reprodução dos meios de produção, da força de trabalho e das relações sociais de produção – um terreno fundamental para a valorização capitalista e distinto do âmbito da produção de mercadorias.
Mudanças ocorridas nas últimas décadas tornaram cada vez mais difícil distinguir as esferas da produção e da reprodução social. Isso porque a natureza do trabalho mudou, principalmente a partir da desconexão entre a produtividade e o espaço-tempo da fábrica.8 A jornada de trabalho, por exemplo, deixou de ser um parâmetro adequado para diferenciar o trabalho submetido diretamente ao processo de valorização e as atividades realizadas no tempo livre, para sobrevivência ou lazer.
Novas características passaram a ser valorizadas no trabalho, sejam de natureza cognitiva ou afetiva, o que levou à hipótese de que estaríamos na fase do “trabalho imaterial”.9 Essa denominação é bastante problemática, como reconheceram mais tarde alguns de seus proponentes (como Lazzarato e Negri), pois traz o risco de invisibilizar diversos tipos de trabalho que continuam sendo materiais, além de materialmente explorados. Além disso, o trabalho imaterial estava por demais associado à identificação de uma fase do capitalismo marcada por empresas modernas, como as do ramo da informática, que seriam típicas do “capitalismo cognitivo”. Se nos anos 1990, ou 2000, ainda era possível associar o advento de novos tipos de empresa a algum tipo de emancipação pessoal pelo trabalho, como alardeava a propaganda neoliberal, hoje, o projeto está desacreditado. A verdadeira face do neoliberalismo tornou excepcionalíssima a figura de altos executivos da propaganda ou gênios da programação, personagens a quem acabou remetendo a noção de trabalho imaterial. Não muito longe desses personagens, assistimos, de fato, à precarização desenfreada e à instabilidade crescente no mundo do trabalho.
Serão as feministas a sugerir conceitos capazes de resolver o impasse. Podemos dizer que as relações capitalistas avançam, atualmente, sobre este que não era considerado um terreno da valorização capitalista: a reprodução social. Adquire importância cada vez maior, no mundo contemporâneo, serviços que produzem e fazem circular bem-estar e cuidados, além de todo um tipo de trabalho afetivo comumente associado ao campo da reprodução social. Essas atividades abarcam todo o domínio dos cuidados, desde a produção de alimentos até o acompanhamento de idosos, passando pela saúde, pela educação e pelas instituições do bem-estar social de modo amplo.
Feministas marxistas apontam, desde os anos 1970, para a reprodução social como um domínio de produção ativa, porém invisibilizado enquanto tal pelo marxismo. O trabalho doméstico, por exemplo, que sempre foi condição da reprodução da força de trabalho, esteve, durante muito tempo, naturalizado pela ideia de família, nunca reconhecido como trabalho propriamente dito. Mesmo a noção de força de trabalho é fruto de um imaginário político associado ao macho-adulto-branco, excluindo da categoria de trabalho todas as atividades relegadas à esfera privada, ou seja, realizadas fora da fábrica. Autoras feministas, associadas ao movimento por salários para o trabalho doméstico, como Silvia Federici e Mariarosa Dalla Costa, mostraram como o trabalho das mulheres sempre foi central para a reprodução da força de trabalho e para a manutenção das relações capital-trabalho. O contrato estabelecido entre o capitalista e o trabalhador livre era garantido, nos bastidores, pelos cuidados dispensados por uma mulher, trabalho interpretado como afeto, quer dizer, naturalizado como não-trabalho.
Quando o trabalho afetivo, cognitivo e corporal passa a ser explorado em todas as dimensões da existência, para além da fábrica, as críticas feministas à concepção marxista de trabalho adquirem uma importância renovada. Esse reconhecimento está na origem dos discursos e dos novos movimentos que se articulam em torno do conceito de “reprodução social”.10 Essa percepção é reforçada pela transformação em commodities das atividades de cuidado e do trabalho doméstico, operada por agências de serviços que explicitam regimes de trabalho hierarquizados e mobilizam diferenças de gênero, étnicas e raciais. Multiplicam-se ofertas de serviços em todo o âmbito da reprodução social.
Além disso, é fato que os produtos do trabalho são perpassados, cada vez mais, por dimensões cognitivas, simbólicas ou afetivas. As mercadorias remetem a uma imagem, a um estilo de vida, ou seja, a uma aura que se torna essencial ao processo de valorização.11 Esses aspectos não são apenas criações da propaganda, mas apropriações de práticas culturais e modos de vida singulares realmente existentes. O paradigma da reprodução, mostram Federica Giardini e Anna Simone (2015), aumenta a capacidade descritiva do que se convencionou chamar “trabalho cognitivo”, ou “trabalho imaterial”. Para além da valorização das capacidades afetivas, relacionais e linguísticas, destacadas pelas teorias do capitalismo cognitivo, inserem-se atividades antes vistas como “naturais”, que são justamente aquelas exercidas por mulheres, negros ou imigrantes. Essa reconfiguração do trabalho vai exigir a redefinição de diversas outras noções: medida, valor, salário, tempo de vida, tempo produtivo, necessidades, consumidores, público e privado.
Em Marx, a produção de subjetividade já estava incluída no modo de produção capitalista. Esse modo de produção pressupõe, por si só, uma divisão do trabalho e a reprodução de formas específicas de sociabilidade e subjetividade, o que faz intervir técnicas disciplinares e normativas. Há uma mudança qualitativa por volta dos anos 1960 e a subjetividade torna-se diretamente produtiva. Essa mudança pode ser descrita pela passagem à subsunção real do trabalho – em todas as suas dimensões – ao capital, fazendo com que toda a sociedade apareça como produzida pelo capital: “In formal subsumption the production of subjectivity is linked primarily to reproduction, while in real subsumption the production of subjectivity itself becomes productive for capital” (Read, 2003, p. 136).
Antes do capitalismo, o trabalho não era indiferente a habilidades e pressupostos subjetivos forjados na esfera da reprodução. O trabalho abstrato é, justamente, um modo de estabelecer a equivalência entre diferentes corpos e pertencimentos, o que torna a esfera da produção distinta da esfera da reprodução (aquele na qual se reproduzem as condições biológicas e sociais da produção).  Althusser já destacava o papel dos aparelhos ideológicos de Estado na reprodução das relações capitalistas, descrevendo sua atuação na esfera da reprodução social – que envolve a reprodução dos meios de produção e a reprodução da força de trabalho a partir de instituições como a família, a escola, a saúde, o casal etc. A biopolítica de Foucault também trata dessa dimensão, ao analisar, por exemplo, ação do Estado sobre a saúde e o bem-estar da população. Essas análises, contudo, concentram-se ainda sobre o terreno reprodução, definido de modo independente do terreno da produção (ainda que o primeiro seja subsumido formalmente ao segundo). Na subsunção real, ao passo que a subjetividade se torna diretamente produtiva, não é mais possível separar a produção – localizada no tempo e no espaço – da reprodução – processos que constituem as subjetividades e as relações sociais. O capital migra para novos espaços e relações sociais e abarca os processos da reprodução social. A subsunção real do trabalho ao capital expande-se agora para toda a sociedade, o que implica a transformação das relações sociais, dos desejos e do conhecimento. Não se trata apenas da extensão quantitativa do modo de produção capitalista, mas de um processo de intensificação – uma mudança qualitativa na natureza do trabalho.
André Gorz (2005), que foi um dos primeiros a abordar essas transformações, apontava para o surgimento de um tipo de trabalho que mobiliza todo o tempo social, tempo que é posto a serviço da empresa, mesmo se gasto em atividades efetuadas no tempo livre, como o trabalho autônomo ou o trabalho sobre si. É a vida que é colocada a trabalhar. O modelo taylorista da prescrição de tarefas, tempos e gestos dá lugar a um modelo de prescrição da subjetividade que tem por função o controle total do tempo de vida e do espírito dos trabalhadores. Isso provoca uma crise da medida. O trabalho permanece sendo a única fonte de valor e mais-valor, mas ganha fortes traços cognitivos e afetivos, não se prestando mais à avaliação segundo uma medida objetiva, já que o tempo de trabalho efetuado no espaço da empresa torna-se apenas uma fração do tempo social efetivo de trabalho. No modo de produção capitalista clássico, a exploração era extorsão de mais-trabalho, ou seja, de trabalho não remunerado fornecido involuntariamente no contexto de um contrato de trabalho (que estipula um salário). Quando o trabalho não é medido em unidades de tempo, como estabelecer um salário? Além disso, o trabalho não pago é aquele que as pessoas executam voluntariamente em seu tempo livre, acreditando estar trabalhando por conta própria. Essa caracterização descreve bem o que acontece os modos de subjetivação implicados em novas empresas, tipo Uber, com as novas formas de exploração que as acompanham. Tecnologias de ponta, investimento sobre si e exploração do tempo livre conjugam-se, permitindo que o capital avance sobre domínios antes inexplorados.
Essas mudanças se adaptam perfeitamente à teoria do capital humano. O investimento em si mesmo como forma de gerar capital, característico dessa teoria (descrita na primeira parte deste artigo), requer a mobilização de atividades não pagas que são corriqueiras na vida de cada indivíduo, e costumavam se encaixar na esfera da reprodução social. É o caso do investimento sobre o corpo e sobre a aparência, é o caso da formação continuada, é o caso do uso das redes sociais, enfim, é o caso de um sem número de atividades que fazíamos sem que fosse trabalho e que passaram a ser. São esses investimentos que tornam as pessoas capazes de interagir, comunicar, aprender, evoluir, fazer amigos – dimensões da vida englobadas, como trabalho, pelo capital. As empresas valorizam cada vez mais a mobilização total de seus empregados e “vestir a camisa da empresa” torna-se uma postura essencial para manter a empregabilidade e subir na carreira. Obviamente, esse tipo de trabalho só dá certo se a pessoa se identifica voluntariamente com sua função na empresa. Daí dizermos que a produção de subjetividade passa a fazer parte do processo de valorização.
Como veremos em seguida, essas mudanças têm consequências no desmonte do Estado de bem-estar social. Muitas das tarefas realizadas em suas instituições vêm migrando para o setor de serviços. A reprodução social tornou-se, ao mesmo tempo, um ponto de partida para a atualização do marxismo e uma perspectiva a partir da qual desenvolver novas críticas ao poder do Estado nas democracias liberais e nos projetos socialistas. Por isso mesmo, as críticas feministas, do movimento negro ou do pensamento pós-colonial podem dar um passo além nas análises sobre a reprodução social feitas, por exemplo, por Althusser ou Foucault.

Fragilização do bem-estar social e dissolução da democracia

Uma consequência fatal de se borrar os limites que distinguiam de modo nítido as esferas da produção e da reprodução da força de trabalho é a fragilização do Estado de bem-estar social. Esse aparato envolveu uma combinação complexa de técnicas de individualização com procedimentos totalizadores. A política social devia constituir a sociedade por um processo de normalização, cujo papel estava em garantir e apoiar a vida de cada um. Trata-se de um tipo específico de racionalidade, como destaca Foucault, que investe na subjetividade mais íntima, tornando-se o modo pelo qual o Estado disciplinar retoma essa subjetividade para reintroduzi-las em suas relações de poder.
Mas parte do que o welfare foi capaz de gerar acabou sendo apropriado pelas mulheres, por trabalhadoras e trabalhadores, pelos desempregados, pelos pobres, pelos jovens, pelos imigrantes, pelas negras e negros. Exatamente o que ocorre na universidade brasileira. Depois de ter se tornado acessível para uma maior parcela da população – pobre e negra, de ter se tornado um mecanismo de mobilidade social e de democratização do conhecimento, é preciso desmontá-la e privatizá-la. Não à toa, impõe-se o modelo da universidade americana, paradigma do assujeitamento por meio da dívida que é típico da atual fase capitalista.
Será que o welfare ainda é capaz de resolver as contradições estruturais entre as esferas da produção e da reprodução social? Sobretudo tendo-se em vista sua relação ambígua com o estado? É exatamente sobre tal fragilidade do welfare que a razão neoliberal se expande, tentando não apenas controlar e desfazer as instituições welfare, mas produzir novos meios de acumulação a partir do que deixa de fazer parte do bem-estar social, como educação e saúde públicas e previdência.
Por outro lado, não é possível deixar de lado a constatação de que os termos que fundaram o pacto do bem-estar social ancoravam-se na separação entre as esferas da produção e da reprodução da força de trabalho: era preciso garantir ao trabalhador condições mínimas de existência para que fosse possível extrair valor de sua produção na fábrica. Como manter um pacto desse tipo diante da nova configuração do mundo do trabalho?
Pierre Dardot e Christian Laval (2016) sugerem que os serviços públicos são ainda o único terreno a oferecer alguma sobrevida livre da concorrência, sem que as condições básicas da existência dependam da premiação do esforço individual. A nova razão neoliberal avança a passos largos para conquistar esse terreno, visando submeter os regimes do bem-estar social à lógica da concorrência. O neoliberalismo é distinto do liberalismo clássico, sublinham os autores, justamente pelo papel proeminente do Estado, que tem por atribuição construir o mercado e se construir segundo as normas do mercado. Cabe ao Estado, nesse quadro, garantir o bom funcionamento da concorrência. Seu papel é deslocado da esfera da justiça e das garantias ao cidadão para a esfera da gestão, cuja função é gerar um ambiente propício para a ação das empresas e dos sujeitos empresários de si. A partir dessa lógica, podemos entender que apareça como mais importante respeitar a meta fiscal do que garantir o investimento nos programas sociais ou o financiamento da educação e da saúde. Mais do que o risco de qualquer regime autoritário, estamos imersos na indiferenciação dos regimes políticos: não importam os partidos, não importam os governos, as práticas de gestão e as políticas de austeridade serão as mesmas.
Para dar um exemplo recente no Brasil, a aprovação da PEC do teto de gastos visa instaurar uma lógica concorrencial dentro das despesas públicas. Para ser possível respeitar o limite, mantendo os padrões atuais de investimento em saúde e educação, deve-se compensar essas despesas pela redução de outras (ainda que não exista margem para isso). A razão da PEC é submeter os gastos públicos a uma dinâmica concorrencial: saúde e educação pressionam os gastos com previdência e funcionalismo; ensino básico pressiona os gastos com ensino superior. A demanda de produtividade aumenta e a concorrência é inserida na racionalidade das despesas primárias do Estado, ao mesmo tempo em que as taxas de juros mantêm-se fora do jogo.  
Essa PEC, sem paralelo em outros países, radicaliza ao extremo uma política que vem sendo, todavia, a marca de governos socialdemocratas ao redor do mundo. É duvidoso afirmar que a onda não chegaria por aqui, ainda que sob formas mais suaves, com a manutenção do governo do PT. Há tempos a socialdemocracia age como linha auxiliar do sistema financeiro no desmonte da proteção social e dos direitos do trabalho.  Torna-se cada vez mais evidente sua incapacidade de cumprir a missão original de conciliar economia capitalista e justiça social, pois, ao invés de proteger a população dos efeitos do neoliberalismo, alia-se reiteradamente às suas formas de governo. No máximo, há medidas excepcionais no interior de governos atravessados por múltiplas contradições, como a expansão da universidade e do SUS no Brasil. Não à toa, esses serão os setores mais afetados pelo teto de gastos. Com feições e temporalidades próprias, o desmonte do Estado bem-estar social adquire grandes proporções no Brasil.  
Dardot e Laval destacam ainda o papel do Estado como agente ativo na implementação das políticas capazes de atender as demandas das empresas. É importante colocar em perspectiva as relações intrincadas do Estado com o neoliberalismo, pois não se trata de diminuir o tamanho Estado, como se costuma interpretar. Ao invés de funcionar como proteção aos direitos sociais, tentando um equilíbrio entre a lógica do capital e alguma justiça social, o Estado passa a ser um ator-chave na implementação de um ambiente fértil para os negócios. Assim, as velhas receitas do nacional-estatismo são inoperantes. O Estado é um dos atores em uma teia complexa que garante a instalação da racionalidade neoliberal em todo o tecido social. Grandes empresas multinacionais exercem pressões contínuas sobre as autoridades políticas para se beneficiarem de subvenções, vantagens fiscais e trabalhistas que garantam a deflação dos salários. Esse fenômeno, que acontece em escala mundial, atuou fortemente para a política desastrosa de desonerações fiscais que contribuiu para a derrocada da economia no governo Dilma.12
A aliança entre Estado e mercado gera um ambiente social degradado, em que valores reacionários suplantam a fragilização institucional, tornando profícuo um casamento improvável: neoliberalismo e neoconservadorismo. Essas duas racionalidades se afinam, como explica Wendy Brown (2006), na dissolução que promovem dos ideais de universalidade, igualdade e justiça. Uma das sensações mais compartilhadas nos últimos meses é a de que a democracia está em perigo. A dissolução da democracia é justamente uma das facetas da racionalidade neoliberal, que responsabiliza o indivíduo pela solução de problemas tipicamente sociais, como educação e saúde. Essas mudanças gestam um mundo no qual a participação política é percebida como inócua: só nos resta cuidar de nossas vidas, pois a ação coletiva não tem consequência. Como consequência, os direitos do cidadão seguem cada vez mais de uma lógica de direitos do consumidor. É dentro da mesma lógica que a lei adquire um papel tático que pode ser flexibilizado em prol da performance. O esvaziamento da política é a consequência mais imediata, bem como o desinteresse do cidadão pela esfera pública, a desvalorização do bem público e da ordem jurídica. A dissolução da democracia, marca do momento que vivemos, corresponde ao esgotamento dos pressupostos da democracia liberal e do Estado de bem-estar. O neoliberalismo, em sua nova fase, implica a desativação de diversos princípios-chave da democracia liberal. Wendy Brown chega a dizer que vivemos um período de “des-democratização”, associado à desativação de fundamentos como: igualdade, universalidade, laicidade, autonomia política, liberdades civis, cidadania, regras ditadas pela lei e imprensa livre. Aparecem, assim, fenômenos que ressoam perfeitamente com o que presenciamos no contexto brasileiro: suspensão da separação entre esfera pública e esfera privada; desvalorização simbólica da lei, considerada mais tática do que princípio, com consequente fragilização do sistema jurídico; confusão entre as esferas política e econômica.
Diante desse quadro, a democracia liberal segue operando como esfera política ideal, mas perde sua face normativa. Por outro lado, a esquerda encontra-se na posição desconfortável de defender um regime em declínio, não raramente pedindo mais Estado. Construir novos projetos requer diagnósticos mais eficazes que nos levem a ser capazes de inventar racionalidades políticas à altura do que o neoliberalismo tem de inédito e de operacional em todas as esferas da existência.

 

Bibliografia

Balibar, Étienne. “Les ‘deux découvertes’ de Marx”, Actuel Marx, 50, 2011/2, pp. 44-60.

Brown, Wendy. “American Nightmare : Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization”, Political Theory, 34 (6), 2006, pp. 690-714.

Dardot, Pierre e Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.  Boitempo, 2016.

Foucault, Michel. Segurança, território, população. São Paulo, Martins Fontes, 2008a.

Foucault, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo, Annablume, 2005.

Lazzarato, Maurizio. La fabrique de l’homme endetté: Essai sur la condition néolibérale. Paris: Éditions Amsterdam, 2011.

Lazzarato, Maurizio. Gouverner par la dette. Paris: Les Prairies Ordinaires, 2014.

Macherey, Pierre. “Le sujet productif”. Texto publicado no site do grupo La philosophie au sens large, http://philolarge.hypotheses.org/1245, 2012. O texto modificado foi publicado como um dos artigos do livro do mesmo autor Le sujet des normes, Paris: Amsterdam, 2014.

Marx, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. São Paulo, Editora Moraes, 1985.

Marx, Karl. O Capital, Livro I. São Paulo, Boitempo, 2013.

Read, Jason. The micro-politics of capital: Marx and the prehistory of the present. NY: State University of New York Press, 2003.

Singer, André. “Cutucando onças com varas curtas: o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014)”. Novos Estudos-Cebrap, 102, 2015, pp. 43-71.

Souza, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010.

    
    

 









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ilustração: Rafael MORALEZ

1 Aulas de 14, 21 e 28 de março de 1979 em (Foucault, 2008b).

2 Ver pesquisa citada em: https://www.nexojornal.com.br.

3 Feita pela Fundação Perseu Abramo: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/Pesquisa-Periferia-FPA-04042017.pdf

4 Essa indicação é dada por Pierre Macherey no texto que citamos em seguida, ele remete à publicação do Livro I em três tomos pela editora Éditions Sociales.

5 “As malhas do poder”, Barbárie, 4, 1981, pp. 23-27 e Barbárie, 5, 1982, pp. 34-42. Tradução de “Les mailles du pouvoir”, conferência feita por Foucault na Universidade Federal da Bahia em 1976.

6 Na verdade, é a economia que irá se fundar como técnica de governo. Foucault mostra como a palavra “economia” designa, originalmente, o governo da casa para o bem da família (por exemplo, em Rousseau) e a questão essencial do governo será a introdução da economia na prática política: “Governar um estado será portanto aplicar a economia, uma economia no nível de todo o Estado, isto é, [exercer] em relação aos habitantes, às riquezas, a conduta de todos e de cada um uma forma de vigilância, de controle não menos atenta do que a do pai de família sobre a casa e seus bens” (Foucault, 2008a, pp.126-127).

7 Balibar afirma que a doutrina implícita de Marx é o inverso da ordem lógica da derivação dos conceitos: o mais-valor é a condição do valor, e não o inverso. É o mais-valor determina o valor e, como é o mais-trabalho que determina o mais-valor, pode-se concluir que é o mais-trabalho que determina o valor, o que se aproxima da formulação que Deleuze e Guattari apresentam em O Anti-Édipo: é o mais-trabalho que determina o trabalho.

8 Alguns autores associam essa transformação ao crescimento proporcional do capital constante em relação ao capital variável, devido aos avanços tecnológicos. Economias que eram baseadas no tempo de trabalho, com a automação, levam a uma diminuição do valor produzido e, tendencialmente, do preço. As empresas tentarão, então, fazer funcionar a lei do valor pela raridade e singularidade de seus produtos, o que permite aumentar o preço em função da posição social ocupada pela empresa. Busca-se compensar a contração do valor trabalho dos produtos pela novidade de mercadorias com atributos não mensuráveis.

9 Nomenclatura usada, entre outros, por Maurizio Lazzarato e Toni Negri em Trabalho imaterial, Rio de Janeiro: DPA, 2001.

10 Ver número especial sobre o tema, disponível em linha, da revista Viewpoint Magazine www.viewpointmag.com/2015/11/02/issue-5-social-reproduction/.

11 O fato de que essa aura inclui dimensões imateriais foi uma das razões para a sugestão do conceito de trabalho imaterial.

12 As medidas e suas contradições são descritas em detalhes por André Singer (2015).