POLÍTICATEORIA
CULTURA
ISSN 2236-2037
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Apresentação |
Depois de uma longa interrupção provocada por dificuldades de ordem múltipla, eis aqui o número 10 da revista Fevereiro. O número reúne artigos sobre a atualidade política brasileira e mundial, mas contém igualmente duas seções especializadas (fora a seção em língua estrangeira), um dossiê sobre um grande intelectual brasileiro recentemente desaparecido e algumas resenhas críticas. Roberto Fragale Filho e José Francisco Siqueira Neto, em “Reforma trabalhista: uma cartografia das discussões equivocadas, esquecidas e frustrantes” fazem uma análise do curso lamentável do processo de reformas das leis do trabalho, e do não menos lamentável leque de discussões que se faz em torno do tema. Apenas aprovada, a Consolidação das Leis do Trabalho já era objeto de crítica, e hoje se faz valer um pretenso “envelhecimento” da legislação, como se o tempo fosse por si mesmo um argumento. Os dois autores mostram como há uma verdadeira ofensiva patronal e política contra os direitos dos trabalhadores, e também contra a justiça do trabalho (os juízes do trabalho são chamados de “loucos” e reputados como “mal formados”, e chega-se mesmo a propor a extinção pura e simples da justiça do trabalho). Entretanto, a situação não é muito favorável também no interior do campo crítico: o recurso aos esquemas binários, a incapacidade de analisar com rigor os problemas em tela, o corporativismo e ausência de espírito democrático campeiam ali, embora não faltem exemplos em contrário. O artigo é um salutar chamado de denúncia de patrões e políticos reacionários, e um apelo à renovação e ilustração do campo crítico. Em a “Extrema-direita de hoje e o Brasil: modos de usar”, Tales Ab'saber traça uma importante análise psicopolítica da produção ideológica delirante da extrema-direita brasileira, pela qual esta constrói, em sua narrativa onírica, projeção de ódio e desejo de destruição, a imagem do Inimigo absoluto da civilização a ser abatido em uma guerra iminente que teria por objetivo regenerar a nação e salvar as tradições dos “bons brasileiros”, ameaçadas pela ação conspiratória do agente “comunista, corrupto e moralmente degenerado”. Tales nos faz notar que a produção de energia mobilizadora da ideologia de ódio da extrema-direita teve, no processo do golpe de Estado brasileiro, uma importância para muito além dos guetos. Esquadrinhar as tendências e descaminhos da esquerda e dos candidatos (hoje governantes) tecnocráticos, como Macron, é a linha do artigo da dupla Christian Laval e Pierre Dardot. “A urgência democrática” é, ao mesmo tempo, uma análise da conjuntura (pré-eleitoral) com sobrevoos teóricos de maior monta: critica-se as candidaturas à eleição, mas também as teorias, as ideologias e a as estratégias que subjazem essas plataformas políticas. Entre crítica ao populismo, à tecnocracia, à impotência da esquerda para reinventar a democracia, os autores também retomam sua análise sobre a potência do neoliberalismo de se reinventar e sobreviver mesmo às crises do sistema. “A tragédia de outubro: descontruindo os mitos em torno da insurreição bolchevista de 1917”, de Ruy Fausto, reexamina o sentido da insurreição de outubro de 1917. Como já fizera em artigos anteriores, o autor tenta mostrar como há dois processos simultâneos no outubro russo: um, revolucionário, e, outro, de forma muito sui generis, contrarrevolucionário. Lênin não quer à toa que a tomada do poder se dê necessariamente antes da reunião do congresso pan-russo dos sovietes. E o medo da contrarrevolucão (em sentido clássico) não foi certamente o seu único motivo (se é que foi um motivo). Em “Trump e os trumpistas”, o sociólogo alemão Wolfgang Streeck analisa os determinantes da eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Munido de instrumental marxista – retomando o clássico XVIII Brumário e o conceito de bonapartismo – e também recorrendo à discussão acerca da formação de classes sociais e de grupos identitários, Streeck sublinha todos os erros, recentes e não tão recentes, da esquerda norte-americana, erros esses que claramente facilitaram a ascensão do empresário. José Lindgren-Alves analisa em “Principismos que corroem a luta pelos direitos humanos” um certo número de deformações no interior dos movimentos e mobilizações identitárias ou libertárias. Protesta-se contra a execução de um animal portador do vírus da ebola, com base na defesa (em si mesma justa, mas aqui abstrata) dos direitos dos animais. Multiplicam-se os apelos às identificações regionais (também justas em princípio, mas aqui levadas ao paroxismo e ao arbitrário). Inibe-se o protesto contra as violências a mulheres, em nome do respeito pelas particularidades culturais etc. O artigo contém um recenseamento de exemplos que ilustram os descaminhos de certos movimentos identitários ou libertários. O segredo dessa atitude, o autor vê refletido na camiseta de um jovem em Barcelona, onde se lê: “não penso, sinto”. Trabalho salutar o de Lindgren-Alvex, que reforça e não enfraquece as lutas identitárias e libertárias. Que representou a vitória de Emmanuel Macron, e do Pela República em Marcha, nas eleições presidenciais francesas? pergunta-se Ruy Fausto, no artigo que consagra ao tema. O texto faz a crônica das eleições presidenciais francesas, com as suas peripécias, das quais a mais importante (além do seu resultado) foi a debacle da candidatura tida como quase vitoriosa do ultraliberal François Fillon, por causa de um affaire de uso indevido de facilidades públicas em proveito da própria família. No início da campanha, ninguém dava nada pelo candidato Macron, que fora ministro de Hollande. Ele acabou eleito. No primeiro momento, subsistiu alguma ambiguidade sobre o que ele representava. Mas em seguida, ele apareceu claramente como o candidato de uma direita modernizada, que substitui velhos corruptos e incompetentes, que se afirmavam de direita, por quase-jovens, modernos, supostamente competentes, e que se declaram não de direita mas de centro. Macron é a nova face (de centro direita, sem dúvida) das forças de conservação do sistema. Mudar tudo para que nada mude, segundo o dito bem conhecido: alguma coisa mudou, é claro, mas a operação se fez e se faz claramente em proveito da direita, e não por acaso tem todo o apoio das centrais patronais. Em “Subjetividades no ponto cego da esquerda: crise do trabalho e do bem-estar”, Tatiana Roque analisa o envelhecimento da narrativa clássica da esquerda em torno da oposição de classes e da figura do “trabalhador”. O capitalismo contemporâneo misturou as cartas, e já não reconhecemos as velhas figuras, ou elas aparecem enredadas em diferenças e oposições que os clássicos não conheciam ou não reconheciam. No centro destas está a questão do trabalho doméstico, não reconhecido como “produtivo” pela esquerda clássica, mas também outras complicações introduzidas por fenômenos que não são novos mas que tomaram um peso considerável, como o das lutas identitárias. No cerne desses problemas está a questão da subjetividade: que subjetividade podemos propor a explorado(a)s e oprimido(a)s, numa época em que o “espírito empresarial” ou o “empreendedorismo” penetra mesmo nas camadas mais pobres da população ? Não temos resposta, mas a figura clássica do “trabalhador” certamente já não responde ao problema. Abre-se assim uma perspectiva nova, numa situação em que a subordinação ao capital é mais do que real, e penetra muito mais fundo na subjetividade do que supunham os clássicos. A grande repercussão do texto que Fernando Haddad publicou na revista Piauí gerou uma infinidade de comentários e novas intervenções. Ainda que as questões econômicas tenham sido longamente discutidas com Marcos Lisboa nos números seguintes da revista, algumas questões propriamente políticas parecem ter ficado pela caminho. Passado algum tempo – no seu texto, “Levar aos livros o que se aprendeu na pele” – Arthur Hussne volta ao artigo e procura desenvolver um diálogo crítico, visando dois pontos principais: o significado das manifestações de junho de 2013, e o debate sobre patrimonialismo e corrupção. Apesar de muitas concordâncias, esses dois pontos podem gerar uma longa discussão sobre o cenário atual e os anos do PT no governo federal. Em “Brasil, ano zero”, Alexandre Carrasco faz um diagnóstico do momento político brasileiro, começando pela ideia de um ciclo de rupturas, que, regressivamente, nos leva do momento presente a 1964, de lá a 1945, a 1930 e a 1889. O autor focaliza depois o que une e separa o momento presente do golpe de 64, a começar pelas diferenças no contexto internacional. A redemocratização tem o seu momento forte, apesar de tudo, na Constituição de 88, estranho produto democrático de uma maioria conservadora. Mas essa Constituição foi feita para não ser efetivada: segundo alguns, ela “não caberia no orçamento”. Daí o empenho em “reformas” que garantiriam a “modernização” do país. Mas a condição para o êxito destas, patrocinado por uma coalisão em que o PSDB e o PMDB são atores decisivos, é que o sufrágio universal não estrague a festa: é preciso, pois, controlar o processo eleitoral, pelo menos a lista dos eventuais candidatos à presidência. As propaladas “reformas” não poderiam surgir de maiorias representadas. O número 10traz resenhas críticas sobre dois autores. O número 10 traz ainda, e pela primeira vez, uma seção etnográfica, organizada por Alexandre Carrasco. A apresentação, redigida pelo organizador, serve como introdução tanto ao projeto de criação de uma seção etnográfica, como os artigos de Yara de Cássia Alves, Jorge Mattar Villela, Thais Mantovanelli, Suzane de Alencar Vieira e Karina Biondi, incluídos neste número. Para não prolongar demasiadamente a presente apresentação, remetemos o leitor àquele texto introdutório. Na seção em língua estrangeira, publicamos a versão inglesa, The Limits of Politics, do ensaio de Alexandre Carrasco, que sai também em português, nesse número. Boa leitura!
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