revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Fernão Pessoa Ramos

Cao Guimarães, o pensamento do mundo e o abridor das coisas

 

 


Cao Guimarães é um dos principais documentaristas brasileiros contemporâneos, possuindo uma obra que dialoga de perto com o universo das artes plásticas e das instalações audiovisuais. Alguns resistem, talvez com razão, em chamá-lo de “documentarista”. No entanto, se deslocamos o conjunto da tradição documentária do universo das proposições assertivas audiovisuais para o campo da enunciação lírica, puxando a perna por um “eu” mais subjetivo, não é difícil encontrarmos companheiros para Cao como o alemão Harun Farocki, o português Pedro Costa, o húngaro Péter Forgács, os franceses Chris Marker ou Agnès Varda. Possuem todos ampla produção fílmica documentária, sendo também autores de obras marcantes no universo das instalações museológicas. Em bienais, ou galerias, penduram o filme na parede, que assim deixa de sê-lo, ao perder seu modo de durar. De toda maneira, o importante é frisar que a obra de Guimarães se debruça de modo preferencial sobre o universo propriamente fílmico, entendido como arte da duração, movimento do tempo que transcorre e traz amarrado nesse transcorrer, desde o início, em seu fim (o “the end”). O filme passa só para esse fim (espécie de sinfonia, melodia que também dura na medida), mas que ao ter o movimento, ou tempo, como matéria, vê-se mergulhado/fissurado na duração de tal modo que, se a torção bastar, vislumbra na fresta o cosmo que lhe cerca.
Cao Guimarães, em sua obra, às vezes parece cansar de conversar com o mundo e passa a cifrá-lo, numa régua própria. Como se fosse preciso, para chegar lá, passar por cá. Guimarães é o artista das coisas, que as vê respirando, soluçando, aparecendo e desaparecendo, pairando, abrindo-se na fresta que vibram para nós, ou além de nós. Então para que o número? Para que os inventários (Inventário de raivinhas); as regras nos documentários dispositivos (Rua de mão dupla); as listas de raivinhas, gambiarras (Gambiarras), paquerinhas das coisas (Paquerinhas), nomes de cidade (Acidente)? Para que os sistemas com os quais sua obra flerta? Ao listar coisas e matéria, o corpo as pressente em dois modos: quando é flexionado por elas e a elas retorce (Gambiarras) e quando de algum modo resiste e delas recebe seu peso de matéria (Raivinhas). Também pode perceber que elas se entendem sem ele (Paquerinhas). As listas oscilam, emaranhando-se nesse pressentimento obtuso do mundo.
Que o mundo conversa é a constatação maior que retiramos da arte de Guimarães. E esta conversa pode tomar o modo de um pensamento. Modo de sujeito humano, demasiadamente humano. Mas o percurso é marcado por sensações que são, antes de tudo, nossas e de nosso corpo. Assim, porque as gambiarras mostram a resistência das coisas ao corpo e as raivinhas mostram o modo impertinente, cabeçudo, delas se portarem contra nós, vamos listá-las. Pela multiplicação talvez possamos vencer seu fechamento teimoso e percebê-las em seu próprio campo (no fundo é o que Cao busca, de cabo a rabo, em sua obra). A lista não vem da resistência. Ela nos antecede. O pulo do gato consiste em se servir delas, apontar a antecedência.
Existe outro modo de dar a volta por detrás e chegar. Modo mineiro. Pois se as coisas vibram em seu mundo, há de haver um meio de penetrar. Principalmente quando temos como ferramenta a imagem-câmera, elemento que Guimarães, em seus curtas, longas, fotos e instalações, usa com maestria. A câmera serve para cindir e fazer emergir o cosmos, não em seu mistério, mas em sua evidência. Para fissurar serve a arte, no modo de um traço que é quase substância. Walter Benjamin escreve, ao comentar Baudelaire, que “perceber a aura de uma coisa significa dotá-la da capacidade de olhar”. Em seus melhores momentos, a arte de Guimarães é atraída como ímã por esse olhar aurático da coisa, esponja perceptiva dela (não nossa), que se deixa enganchar no tempo, alimentada pela memória involuntária. Jean Epstein, tanto em seus escritos, como em seu cinema, percebeu a potencialidade das imagens-câmera, das imagens-câmera ainda mudas, para poder respirar junto ao mundo. E sabia explorá-las. Guimarães vai em caminho similar, recuperando a “naïveté” perdida do início do século XX, quando o grande espetáculo da natureza muda foi transfigurado pelo maquinismo câmera, pioneiramente.
Então vamos resumir. Se a arte, por diversos meios, a este percurso pode se dedicar (nós, pelo pensamento, nele não avançamos), Guimarães utiliza uma ferramenta particular que serve como abridor de coisas: a câmera, a imagem-câmera. E claramente não se trata de uma trilha solteira, pois pode ser imersa em universo audiovisual. Universo que não ilustra o caminho, mas fornece ferramenta. O abridor de latas é o filme, não o plano. A trilha sonora de O grivo, cuja importância na obra de Cao deve ser frisada, serve para abrir coisas e chegar junto no cosmos, dando-lhe a espessura que já possuiu numa grande antecedência. É então que ele parece poder ser, para se encontrar na duração sonora. O desafio é grande, pois quando a câmera se vira para as coisas ela já sabe que o mundo vai vibrar. Não existe a coisa em si, existe o filme para qual ela veio, desde sempre, encontrar. Desde a tomada, na qual a montagem já a destina pelo sujeito que sustenta a câmera, por antever. É para isso que serve a percepção do poeta e assim faz parecer magia, quando nada mais é que um encontro. Esta é a “mise-en-scène” de Cao Guimarães, se pudermos distender esse conceito até chegar a seu cinema, ou a sua arte.
Em seus longas, como Andarilho e A alma do osso, nos quais a sensibilidade fenomenológica se finca no embate com o outro, o movimento de encontro está no modo insistente de postar-se na duração que parece condensar-se num pequeno ponto, cabeça de alfinete, onde tudo se junta para então escorrer. É através do ponto que a imensidão do de fora crê poder passar, ao ser de tal modo estendida. É lá que vibra aquilo que não somos e é de lá que consegue sinalizar. Distender o transcorrer é estratégia, de mesmo modo que o encontro com o humano, torcido pela medida da duração. Assim se busca levá-lo, pela repetição relentada, para além das âncoras que o cravam no mundo. Mas, evidentemente, são nos curtas, mais dedicados à descoberta da vibração do cosmos (Sopro, Nanofania, Concerto para Clorofina, Sin Peso, Limbo, Quarta-feira de Cinzas, Peiote, Através dos Olhos de Oaxaca e outros), que explode o universo que situamos no núcleo de sua criação. Da janela do meu quarto talvez seja sua obra mais conhecida. Nela está claro que tudo já estava lá, e desde sempre. Nessa hora, espécie de buraco negro denso de subjetividade, se tudo convergir (e os sons e ruídos descortinados por O grivo nos levam a isso), aí sim, poderemos descortinar uma franja daquilo que irremediavelmente nos perfura e envolve. É longo e extenso o tempo da duração e curto o tempo de fora. Guimarães nos faz ver pela dilatação da fresta (janela do quarto) do que está lá, por ter estado sempre lá. Parece responder à provocação do filósofo que, face ao desafio revelador, fecha as contas na impossibilidade de uma ainda maior dilatação e consegue, num engasgo último, murmurar: “Então me dê um corpo!” (a frase, assim consta, é de Gilles Deleuze, que se virava para a fenomenologia do século XX). Pois esse corpo, aqui, nos é negado. É afirmação da forma de comunicação com a matéria que a imagem-câmera e seu maquinismo inauguram e determinam (certamente deve haver outras). Nas mãos de Cao Guimarães é lâmina fina que destroça, enrola e torce, tanto coisa como carne.
O método para isso pode ser subtrativo (as listas, o pensamento) ou perfurativo (pela evidência das coisas e da expressão). O indício é caminho para detonar (embora a explosão seja mixa, luz breve) o vulcão do ente e fazer vibrar o ser. E por evitar a camada gorda das sensações e seus afetos (em geral piegas), furando diretamente, o percurso é feito sem rodeios. Se o artista escorrega pela crosta do mundo para evidenciar o que de si já é evidente (e tem graça em sabê-lo), não há aposta em sua apoteose. É referência para quem quiser enfrentar o desafio e encontrar a potência do que vem de fora, exatamente ali onde não esperamos.

 

    
    

 









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