revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Fábio ZANONI

Entrevista com Anna Muylaert, diretora de Que horas ela volta?

 


Anna, em primeiro lugar, gostaríamos de falar um pouquinho contigo a respeito do filme Que horas elas volta? Uma das ideias centrais da argumentação do artigo acima consiste em levantar alguns prós e contras relativos ao encaminhamento narrativo do seu filme. Ora, se nos for permitido inverter o jogo, perguntaríamos: quais os prós e contras que você identificaria nessa leitura particular do filme?    

Entendo que esse texto e outros criticam uma suposta caricaturização da elite que seria o ponto fraco do filme. Num debate com o professor Rubens Machado, da ECA, no entanto, ele ressaltou que esse ponto fraco é o que o torna o filme possível, portanto ele seria um ponto fraco necessário. Do meu ponto de vista da realizadora sei o esforço que tive e tivemos todos para evitar essa vilanização da elite -  principalmente na construção de Dona Barbara. Queríamos que todos os personagens fossem ricos e contraditórios, mas no caso da patroa chega uma hora em que ela faz algumas ações de vilania - sem as quais a narrativa não poderia ir pra frente. Mesmo assim, no final tentamos fazer com que ela fosse compreensiva no que concerne ao pedido de demissão de Val.  Ou seja , nós tentamos fazer com que a elite fosse o mais humana possível, mas se mesmo assim, se o “rabo lhe aparece” é porque foi necessário para levantar a história; talvez no contexto político atual possamos perceber cada vez mais que o filme pegou leve. Bem leve.  

Sabemos que o filme Que horas ela volta? teve uma enorme repercussão, tanto no Brasil quanto no exterior. Daí assim: ainda que de maneira esquemática, você poderia elencar quais as críticas te pareceram mais interessantes, ainda que pouco amigáveis, e quais as que te pareceram totalmente equivocadas, ainda que elogiosas?

Olha, foram centenas de críticas. Não sei dizer. Tem uma publicada em um blog brasileiro por um menino pernambucano chamado Felipe André Silva que falava do filme sob um ponto de vista muito pessoal - falando sobre a mãe dele e com uma foto no final , dele no colo da babá.  Só que a babá era a mãe. Por ser muito afetivo, é uma crítica que me marcou. Sobretudo porque a patroa da mãe acabou assistindo ao filme, achando essa crítica e reconhecendo sua foto na crítica; ela acabou financiando a faculdade para o Felipe. Então é mais que uma critica, tornou-se uma história da vida real.

Também na esteira do artigo, fica clara a preocupação em refletir, digamos, não sobre a recepção e as diferentes leituras que se pode fazer a respeito do filme em causa, mas, sobretudo, sobre o processo de produção de narrativas fílmicas em geral. Donde a questão: para poder criar um filme como o Que horas ela volta? Qual o sistema de captura, por assim dizer, que você adotou diante de outros filmes? Ou, dizendo de maneira simples, quais os principais aprendizados você reteve de outros filmes que te auxiliaram na confecção do Que horas ela volta?

Olha, sofri uma influencia clara de O som ao redor, que me ajudou a entender melhor  a conjuntura social brasileira atual e, por fim, atualizar a personagem da Jéssica - mais no sentido ideológico do que dramatúrgico. Do ponto de vista da direção o filme El Custodio, argentino de Rodrigo Moreno, ajudou-me a entender onde iria a câmera para sentirmos o ponto de vista da empregada. O filme uruguaio Whisky foi uma inspiração na tonalidade das interpretações, da direção de arte e da decupagem. Esses dois foram fotografados pela diretora de fotografia uruguaia Barbara Alvarez - que também fotografou Que horas? Sobre a personagem da Regina, havia uma influência de Chaplin e atores populares como Oscarito, por exemplo - essa ideia de usar a fisicalidade. Do ponto de vista de filme-inspiração, eu mantive um cartaz de O anjo exterminador, de Buñuel, sempre perto de mim, como que pedindo uma benção ao mestre para conseguir ir mais longe do que eu jamais tivesse ido - no sentido de perder o medo, de não fazer concessão, nenhuma concessão.  

Dando continuidade ao problema da identificação dos impasses e dos dilemas que acossam a criação de novas narrativas fílmicas, cumpre dizer que a figura do gênio, sob nossa perspectiva, talvez represente um dos maiores entraves ao aparecimento de novos criadores, na medida em que faz supor que os roteiristas e os diretores possuiriam um saber idiomático não partilhável com os demais mortais. Quer dizer, via de regra, tendemos a apontar os ditames econômicos, sobretudo os de origem estadunidense, como a causa da rarefação da emergência de novas narrativas cinematográficas, quando, na verdade, é sabido que outros fatores concorrem para o estabelecimento de uma espécie de monopólio cultural à volta de certos diretores. Em suma, sem desconhecer o peso dos interesses de ordem econômica, o que você acha que poderia encorajar as pessoas a lançarem-se na escrita de novos roteiros?    

A questão para mim é que escrever roteiro é uma coisa muito difícil e, como não sou um gênio, só a experiência me trouxe a capacidade de entender o que se passa e conseguir ir além dos clichês. Então creio que primeiramente um autor de cinema ou qualquer coisa tem que dominar uma técnica narrativa, tem que se sentir íntimo dela para poder ir além, mas só isso não basta. Ele tem que querer ir além. Ele tem que estar disposto a arriscar tudo para ir além e creio que a maioria dos roteiristas e autores do mundo estão mais interessados em ficar aqui, em ficar aquém, em fazer mais do mesmo para estabilizar-se num mercado que é reacionário por definição. Eu já tive diversas experiências em que produtores ou distribuidores jogam fora o ouro, jogam fora o novo para ficar com o velho - fazer mais do mesmo. A maioria das pessoas gostam de rever o que já viram e têm muita dificuldade em enxergar o valor daquilo que estão vendo pela primeira vez.

Se pensarmos em um filme tão sagaz e instigante como o Branco sai, preto fica, podemos constatar não apenas a viabilidade de se produzir filmes política e esteticamente potentes, mas também, e sobretudo, podemos vislumbrar que a democratização da criação de novos filmes não se limita aos documentários. Na sua opinião, qual seria o melhor meio de mostrar que o cinema é uma arte que pode e deve ser feita por mais pessoas? Ou, dito de outro modo, se é verdade que uma das tarefas políticas que devemos enfrentar é a de não subscrever a ideia de que o teto das políticas culturais reduzir-se-ia à ampliação do acesso ao cinema, quais outros fantasmas - além da figura do gênio - você indicaria como responsáveis por impedir ou dificultar a ida das pessoas em direção à escrita e realização de novas obras?

Acho que já respondi acima. Quando uma pessoa quer, tem algo a dizer e está disposto a se arriscar, ela pode fazer um filme até com iphone. Mas essas pessoas são raras.

Você acredita que as universidades de cinema vieram para ajudar o processo de democratização da criação de novas obras cinematográficas? Ou elas apenas vieram aumentar a sensação de que o cinema só poderia ser feito por alguns, ainda que agora não sejam os gênios, mas os técnicos devidamente diplomados os verdadeiros detentores do saber sobre cinema?

Acho que não só as faculdades de cinema, mas também a recente política da Ancine e do Minc visaram uma democratização e uma descentralização da política cinematográfica sim. Hoje, além da potência pernambucana, vemos filmes de todas as regiões do Brasil, inclusive da Amazônia - o que não existia antes.

Por fim, por quais razões você imagina que, a despeito de hoje o acesso à câmera e afins ser mais barato do que jamais foi um dia, ainda não fomos capazes de ensejar um movimento no Brasil à moda do que ocorreu a partir da década de 1960 com o aparecimento do Cinema Novo?

Olha, eu nunca volto meu olhar pra trás. O Cinema Novo aconteceu ali naquela hora, naquele contexto político com aquelas pessoas - assim como a bossa nova ou a tropicália. Embora hoje não tenhamos nenhum movimento assim batizado, considero a produção pernambucana, desde a retomada, não um movimento, mas uma onda muito poderosa de pessoas que têm muita consciência do que estão fazendo e de por que estão fazendo.

Como estamos falando de democratização, não temos como não fazer uma baldeação para o contexto político atual. Depois da efetivação do golpe contra a presidenta Dilma, todos sabemos que o MinC foi extinto e, em seguida, reabilitado. Ora, nossa posição de repúdio a um governo ilegítimo é clara. No entanto, a fim de não ficarmos reféns de uma lógica binária, como se fossemos obrigados a aceitar que uma oposição ferrenha ao Temer tivesse que redundar necessariamente na aceitação irrestrita de todas as políticas petistas implementadas ao longo desses anos, gostaríamos de saber o que você reconhece como positivo e negativo do governo Lula e Dilma, tanto no que diz respeito às medidas sociais, no geral, como às culturais, em particular?

Não sou uma profunda entendedora de todos os aspectos desse quádruplo governo PT. Mas o que vi e senti do meu ponto de vista foi uma democratização social tanto do ponto de vista econômico quanto cultural. Estamos vendo a inclusão de muitos jovens na universidade pela primeira vez na historia de suas famílias e também o início de um processo de inclusão dos negros em ambientes que antes eram restritos para eles.   Tudo isso eu vejo como muito positivo - um início de construção de uma ideia de nação mais justa. De negativo, eu não sei dizer - talvez devessem ter sido mais radicais. Mas não sei, não tenho dados para fazer essa crítica.

Nesse tempo de cretinização ética e política, vale a pena terminar nosso bate-papo retomando a pergunta que o Abujamra lançava ao final do seu programa Provocações: qual a pergunta que nós não fizemos e que você gostaria que nós tivéssemos feito?

Sinceramente, nenhuma.


    
    

 









fevereiro #

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