POLÍTICATEORIA
CULTURA
ISSN 2236-2037
Alexandre de Oliveira Torres CARRASCO |
Variações em torno do Vampiro de Curitiba |
para ARL.
Ao calor das três da tarde, dormia a cidade sob o zumbido das moscas. O rapaz de linho branco dobrou a esquina - “Eis que vejo a sarça ardente” ; o asfalto mole e pegajoso debaixo dos pés. Todas as ruas desertas, mas não aquela, apinhada de gente e de tal maneira que transbordava das calçadas. “É um enterro” , disse consigo, “ mas não há morto” . “A velha querida”, Novelas nada exemplares, Dalton Trevisan.
Onde estão as neves de antanho?, e o Vampiro acorda tarde, melancólico, olhos remelentos e de chinelas trocadas sai do esquife da melhor araucária de lei. Põe-se a contemplar o mundo do doutorzinho de preto: o mundo é uma faca no coração, quanto mais mexe, mais sangra.
1. Balada do Vampiro Ele desce a Trajano, contorna a Catedral e chega à praça Tiradentes. No caminho, os mais variados tipos. Dá um suspiro, um sorriso nervoso, e pensa na última paixão. Para esconder o medo assovia. Mas descobre não saber assoviar e não tem mais tempo para aprender. Escapa dos olhares selvagens que o perseguem - os variados tipos - pelo calçadão estreito, do lado direito, a salvação, do esquerdo a perdição, e não percebe imediatamente naqueles rostos amarrotados e rotos, naquela oferta bizarra de mercadorias baratas expostas no chão, a mesma sina e destino que o dele, almofadinha de gomex no cabelo: dor de cotovelo, mil anos de paixão, amor incurável no tango de passinho floreado de Ney Traple. Ou melhor, intui vagamente essa filiação metafísica, mas não pensa nem se incomoda com suas consequências. O cogito bateu asas e voou. Estamos todos perdidos? Segue até a Araucária do meio da praça. Uma revoada de pombos encardidos o saúda. Para, e pensa em colocar o cigarrinho na boca. Bendito cigarrinho. Mas eu não fumo, surpreende-se. E ,então, o Vampiro pensa em primeira pessoa. Foram três ou quatro badaladas? Foram seis. Passa a multidão dos mortos-vivos, e eu fico preso a um silêncio atroz, a essa cidade perdida, a um amor. A praça se calou? Para onde foram todas as vozes? Segue em direção à Rio Branco. Ficaram seis badaladas ressoando e todos calados. Quem entrou na Catedral antes de fecharem a porta? No mercado de Flores a mocinha me oferece rosas, em buquê, sortidas, vermelhas: “hoje pra você eu sou espinho, espinho não machuca a flor”. Será que já beijou? Nem todo dia é dia de beijo, e o Vampiro moço mal desconfia dessa verdade; hoje beija, amanhã não beija, e segunda-feira ninguém sabe o que será.
2. Que fim levou o Vampiro de, etc, etc, etc. Pelo calçadão da Quinze sigo rápido. Tem um sol imenso no céu, e faz um calor atípico. Escondo-me atrás de imensos óculos escuros, escuríssimos, e sigo palmilhando a cidade em horário impróprio. Escaparei do exército de humanos? E se o domador do circo me encontra? Mesmo quente, Curitiba é fria, gelada, e já se vê essa fria substância no olhar da mocinha, de sapatos na mão, chinelinho estalando (salto alto só no escritório, meu bem), na jovem mamãe com a filhinha no colo, as duas sérias e compenetradas em suas seriedades. Vamos mamãe, que paradas é que não ficamos. O vampiro não estranha a frieza desses olhares coloridos nem a seriedade dos bebês. Pelo contrário, acolhe todos e sente o coração aquecido pelo frio cortante dessas gentes, enquanto a rua se inflama, esquenta e faz sublimar os últimos bons sentimentos. Não eram muitos, afinal. 3. Carta perdida na gaveta, de ARL Remexo papéis antigos e encontro a tua carta. Tem a data de um dezembro antigo. As lágrimas me assustam. Vem-me não sei que pavor de tudo que aconteceu. Dessas tristezas tuas, das minhas indelicadezas. Procurava a carta, como quem te procura. Estás na ponta de meus dedos, ao alcance de mão, e não te toco. Hesito. “Vamos viver intensamente”. Mas a intensidade devastou uma, duas vidas e sobrou uma areia quente e incômoda, de tudo que antes era rio e floresta. Mas “vamos viver intensamente”, porque você desceu a rampa, e eu, sem graça, te esperava para mim. Quase nada disse porque não sabia o que dizer, mas falei: “vamos viver intensamente. E não. “Vamos viver intensamente” : ouvindo a música que você me ensinou, rindo alto e conversando horas a fio. Você me dizia: “vamos viver (intensamente)”. E a carta. Volto à carta. Há tiros, barulhos ruins, e sinto o frio d’ alma de quem ouve um ruído distante, no meio da noite e se pergunta: sou eu? Será assim? Vamos viver intensamente: roubar bancos, montar uma guerrilha, mudar o mundo e depois viver com os últimos índios à margem de um rio imenso, caudaloso, dançando uma dança sem fim, que começa em uma madrugada em que não amanhece. Riremos à noite, contaremos as histórias de um dezembro antigo e cantarei a canção que você me ensinou. No fundo do rio viro peixe, viro escama, viro espinho, viro barbatana, viro lama, viro terra. Você voa, vira estrela e entre tuas sardas suaves e a pele branca, a estrela inventa uma galáxia, uma via láctea particular, um planeta de órbita elíptica e irregular, um sistema solar.
4. Epílogo. Diálogos entre o Vampiro de Curitiba e o Profeta do Acontecido, seguido de um epílogo do epílogo. 4.1. Blá, blá, blá, nhêm, nhêm, nhêm Scientia vinces e lá em cima São Paulo pede para que São Pedro regue o jardim dos paulistas, desde que cada um cuide do próprio.
4.2, Blá, blá, blá, nhêm, nhêm, nhêm, mimimi Roberto Carlos = subproduto da Ditadura Militar.
4.3 Peripatético Caminho pela Paulista, avenida dos e para os, em dia de arroubos melancólicos e turismo incidental. Qual a novidade? Pra variar, dou na Livraria Cultura, tanta gente de bem e tanto sangue ruim, e seu ar radical chique, sem ser uma coisa nem outra. Há um alvoroço, como se diz nas plagas de minha natividade, e lá está o Dado Vila-Lobos lançando “Memórias de um legionário”. Não fez a guerra nem foi mercenário, mas do milagre do golpe, os legítimos filhos da revolução gastaram seu tempo livre, bem acomodados no colchão do milagre econômico, com os rockinhos de sempre. Penso no legionário que fui e já não sou, nas guerras que fiz, de graça e a soldo, e olho pelo retrovisor o assim chamado, em prosa e verso, “rock brasileiro dos anos oitenta”. Que triste definição… Dado Vila-Lobos à minha frente, esse rock, revoltadinho, no passado, e me conformo em ser apenas quem eu sou, sem ter muita certeza disso: a soma imperfeita da abertura pós-ditadura, mais quase hiperinflação dos anos 1980, governo Sarney, PMDB governando 23 estados, plano Cruzado, congelamento e fiscais do Sarney, Lula versus Collor, Colégio dos Santos Anjos, ETT, Glória Futebol Clube e a inconfundível metafísica da Regente Feijó. Não dou em nada, f(x)= - raiz y, mas e só porque uma menina me ensinou quase tudo que eu sei, não sei e não tenho meios de saber. Concluo lembrando que não temos tempo a perder. No amontoado de clichês dou-me conta de como é coisa triste tentar ser proustiano na era da memória terceirizada. Na saída do happening encontro o Lobão, esse mesmo, imaginem, saudado por um incauto, desses que brotam aos montes por aí. Estamos juntos, ele diz. Eu não. O sol não pode viver perto da lua. Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com minha dor. No sonho do Profeta, o anjo Gabriel revela: laranja você secou, leite azedou, banana estragou, inconformado, você pede menos que Diógenes, e se esconde na sombra do tonel.
Misturou-se com o povo que, ora diante das portas, ora de cabeça erguida para as janelas, adorava as imagens douradas nos seus nichos, dir-se-ia indiferentes à aflição dos homens, não fora o gesto de esperança com que todas balouçavam a mão direita, unindo em círculo perfeito o polegar e o indicador, no convite ao gozo da inocência perdida e recuperada, até que o rapaz de linho branco as deixou para trás, enquanto duas varejeiras lhe zumbiam em volta da cabeça e mais uma vez repetiu: “Tudo já passou. Não foi nada. Já passou. Agora estou bem.” “A velha querida”, Novelas nada exemplares, Dalton Trevisan.
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fevereiro #
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