revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Pierre DARDOT e Christian LAVAL
Tradução: Martha COSTA

O neoliberalismo, um sistema fora da democracia

 


 

“Não pode haver escolha democrática contra os tratados europeus”. Jean-Claude Juncker, Le Figaro, 29 de janeiro de 2015.

 

As derrotas do movimento social se acumularam nesses últimos anos, a arrogância dogmática dos dirigentes políticos e dos dominantes em geral é cada vez mais evidente, a certeza de que a única política a seguir é a das “reformas” neoliberais é amplamente compartilhada entre os economistas do mainstream. O neoliberalismo não está morto e talvez não esteja perto de morrer. É evidente que ele se reforça e se radicaliza. Nenhuma crise é capaz de freá-lo. Ao contrário, ele se reforça na mesma proporção dos desastres que engendra. Essa é a triste lição que somos obrigados a tirar dos anos que nos separam do paroxismo da grande crise de 2008. Logo após o seu desencadeamento, certo número de observadores ou de dirigentes políticos de diferentes orientações havia decretado que “o neoliberalismo estava morto”. Era esse, por exemplo, o tema do célebre artigo de Joseph Stiglitz de julho de 2008 intitulado “O fim do neoliberalismo”, título que fazia eco ao famoso texto de Keynes, “O fim do laisser faire”, escrito em 1926. Distante desse artigo pelos 82 anos que os separam, a crítica de Stiglitz era quase a mesma: o mercado, deixado a si mesmo, sempre conduz a uma má alocação dos recursos, à especulação, à crise. Se é possível concordar com a constatação do fracasso do neoliberalismo, de modo algum é possível concordar com a conclusão que Stiglitz tira dela, a saber, que o “benefício da crise mundial” consistiria no afastamento definitivo do “fundamentalismo de mercado”. Percebemos, atualmente, que a crise ainda não trouxe nenhum benefício desse gênero e que assistimos, antes, a uma radicalização das políticas neoliberais. Portanto, a questão consiste em saber por que a crise de 2008 não desembocou num questionamento do neoliberalismo, como pensava Stiglitz (e tantos outros). Para colocar a questão de outra maneira: é preciso nos perguntar por que a analogia com os anos 1920 e 1930 não parece pertinente, ao menos até o momento. Esta é uma questão maior que ainda não foi resolvida.
Evidentemente, não queremos concluir que o neoliberalismo seja dotado de uma eternidade qualquer. É possível até mesmo pensar que a rigidez própria ao sistema econômico-político do neoliberalismo recoloca na agenda das sociedades o imperativo propriamente revolucionário: o de uma autoinstituição da sociedade. Em primeiro lugar, é importante nos interrogarmos sobre o caráter sistemático do dispositivo neoliberal, que torna difícil, e mesmo impossível, toda inflexão das políticas adotadas. Na realidade, não nos interessamos mais apenas por “políticas neoliberais” no quadro de um regime político-econômico que poderia aceitar políticas diferentes, por exemplo, socialdemocratas, no sentido mais tradicional do termo.Interessamo-nos por um sistema neoliberal mundial que não tolera mais distância em relação a um programa de transformações que visa reforçá-lo sempre mais. Esse sistema neoliberal nos faz entrar na era pós-democrática.

Três interpretações da radicalização neoliberal

A Europa oferece, desde 2010, o espetáculo particularmente instrutivo dessa radicalização neoliberal: ainda que as políticas de austeridade tenham demonstrado seu fracasso, elas continuam a ser impostas com o pretexto de que não há nenhuma outra solução para os Estados senão reembolsar as dívidas públicas até o último euro devido. Por um formidável passe de mágica, confundindo o efeito e a causa, “o Estado superendividado” foi designado como o primeiro responsável por todos os infortúnios das sociedades. E as consequências da austeridade - efeitos recessivos maciços sobre a atividade econômica, fraco crescimento, desemprego, queda dos rendimentos -, constituíram a ocasião para impor uma série de “reformas estruturais” visando desregular o mercado de trabalho, aumentar os lucros e proteger os altos rendimentos. Tudo se passou como se a crise financeira de 2008 tivesse permitido a acentuação e a aceleração do programa neoliberal. A suposta “busca do crescimento” serve ainda hoje de pretexto para aplicar as medidas mais socialmente regressivas, para aumentar as vantagens concedidas ao capital, para aprovar os acordos comerciais internacionais mais favoráveis às grandes empresas. Não faltam explicações encarregadas de dar conta dessa radicalização. Podemos distinguir, dentre elas, teses “ideológicas”, “sociológicas”, “econômicas”: as que fazem do neoliberalismo uma doutrina que funciona por imposição maciça de evidências indiscutíveis, as que realçam, sobretudo, o extraordinário desequilíbrio nas relações de força entre as classes e, enfim, as que mostram que as formas do novo capitalismo mundializado e financeirizado são as instâncias “profundas” das políticas praticadas. Disso se extraem três tipos de explicação que é preciso examinar: a recusa da realidade; o desequilíbrio crescente das forças em competição; a lógica intrínseca do capitalismo contemporâneo.

    1 - A recusa da realidade

Como explicar que os detentores do monopólio da palavra pública legítima, jornalistas, editorialistas, políticos tenham tão rapidamente ocultado a crise, esquecido seus fatores e encadeamentos, reprimido todo questionamento sobre os riscos de uma repetição do crash financeiro, fechado os olhos para os sofrimentos suportados pela população e para os efeitos políticos da crise social? Depois de um tempo brevíssimo de hesitações sobre a conduta a adotar, acompanhado de algumas autocríticas (lembramos a mea culpa de Alan Greenspan perante os representantes americanos), o espaço midiático foi novamente inundado por um fluxo de mensagens idênticas àquelas que prevaleciam antes da crise: somente existe e existirá um único sistema econômico, e esse sistema é fundamentalmente sadio. A continuação das políticas neoliberais seria, portanto, devida à persistência dessa repetição bombástica do “pensamento único” feita pelos editorialistas econômicos, e mesmo pela maioria dos jornalistas. Seguindo essa explicação, os neoliberais travaram, através dos meios de comunicação, uma guerra unilateral que lhes permitiu impor uma percepção comum da realidade (o senso comum de Gramsci). Propriamente falando, eles não ganharam a “batalha das ideias”, pois nunca houve, realmente, um “campo de batalha” entre adversários declarados. E, aliás, não são ideias claramente expostas e articuladas que triunfaram, pois, se o fossem, elas deveriam remeter a um referente no real. Trata-se, antes, de uma construção da realidade percebida, que torna natural, evidente, fatal, o curso das coisas e que explicaria a anestesia das sociedades.
Isso poderia se explicar, inicialmente, pelo fato de a economia mainstream, que justifica essas políticas neoliberais, ser essencialmente autista, como há muito tempo mostraram os “heréticos” do pensamento econômico.1 É impressionante observar que, apesar da falência completa das teses sobre a eficiência perfeita dos mercados, a teoria econômica padrão foi tão pouco abalada por esse fracasso e continua sendo arquidominante nas universidades do mundo inteiro. Quando certas autocríticas se tornaram inevitáveis - pensamos nos “erros” dos economistas do FMI que subestimaram os efeitos multiplicadores da austeridade -, elas não foram acompanhadas por nenhuma revisão das políticas desastrosas adotadas na Europa. Nesse sentido, os neoliberais são bastante “fundamentalistas”, para retomar a fórmula de Stiglitz, fechados no jugo de uma doutrina dogmática que os torna impermeáveis ao real. Esse enclausuramento voluntário poderia também resultar da característica revolucionária do neoliberalismo, que Pierre Bourdieu enfatizava. A “revolução conservadora” neoliberal consistia, segundo ele, em realizar uma utopia de traços científicos, isto é, a utopia do mercado autorregulado.2 Essa utopia tem seu dinamismo próprio, seus efeitos de entusiasmo e de cegueira. Os fracassos são sempre insuficiências e incompletudes na aplicação do modelo de sociedade que encorajam a “ir mais longe e mais rápido” na realização do sonho utópico. Numa palavra, os neoliberais são promotores de uma “revolução conservadora permanente” imunizada contra todas as provas do real e que vê nos fracassos apenas razões de uma radicalização crescente.

    2 - O desequilíbrio crescente da relação de forças

A crise não é um fator que acelera a chegada da revolução, como, Marx chego ua pensar, assim como não é um meio de reforçar o poder dos dominantes, porque ela permite transferir o custo de sua “resolução” (na realidade, de sua perpetuação) para as classes populares e assalariadas. É inútil ver nisso uma estratégia deliberada ou mesmo uma conspiração. A crise permite criar uma reserva de mão-de-obra disponível e uma insegurança social geral que disciplinam o assalariado, desorganizam-no, impedem-no de resistir à demolição de suas conquistas. No fundo, ainda que não tenha sido deliberadamente provocada, a crise se tornou, uma vez desencadeada, um formidável instrumento que serve os interesses dos mais fortes. É a tese segundo a qual a vingança dos ricos e dos poderosos sempre fará que eles exclamem: “Viva a crise”. Talvez essa explicação conceda uma parte excessivamente grande à programação estratégica da classe dominante, no entanto, ela tem para si certa credibilidade histórica. A luta travada pelos mais ricos e detentores do capital para recuperar o tempo perdido ou, mais exatamente, para recuperar o lucro perdido durante os “trinta gloriosos”, não terminou, mas durará tanto quanto for permitida pelo estado muito favorável da relação de forças entre a classe dominante e a classe dos assalariados.3 A luta travada pela classe dominante com o apoio das oligarquias político-burocráticas se acentua à medida que as classes dominantes ganham terreno, se reforçam, estendem sua dominação sobre os meios de comunicação, as instituições, no interior dos espíritos. A radicalização neoliberal decorre, em primeiro lugar, do fato de que a classe rica não terminou sua guerra de agressão contra as classes pobres, em todos os planos: privatizações, reduções fiscais, aumento dos lucros, queda das “conquistas sociais”, enfraquecimento dos serviços públicos, precarização do emprego, intensificação do trabalho, aumento do tempo de trabalho (inclusive o domingo), etc. De um ponto de vista sociológico, ainda não se formou nenhum sujeito coletivo baseado no modo e com a potência da antiga classe operária. A dessindicalização operária prossegue sem ser compensada pela organização e pela mobilização de novas forças sociais. Em suma, o neoliberalismo, visto como expressão doutrinal e alavanca política das classes dominantes, não estará perto de desaparecer enquanto não houver adversários organizados munidos de um projeto alternativo de sociedade.

    3 - A lógica intrínseca do capitalismo contemporâneo

A terceira série de explicações da radicalização neoliberal, às vezes de inspiração marxista (mas não sempre), combina dois fatores: a dinâmica da dominação do capitalismo financeiro e os efeitos autossustentados da globalização econômica. O princípio desse tipo de interpretações é o seguinte: o capitalismo contemporâneo segue uma trajetória autônoma e potente que determina as políticas executadas, que são sempre efeitos de mecanismos e encadeamentos econômicos dotados de uma lógica própria. Para tais explicações, essa lógica é, ao mesmo tempo, a do “sempre mais” do capital em geral e a de um “sempre mais” financeiro muito específico. A financeirização da economia é um canibalismo especulativo que devora, progressivamente, a economia produtiva. Podendo, nesse caso, apoiar-se sobre o Livro III do Capital, esse tipo de explicação mostra que o capital fictício, portador de interesse, emancipa-se da produção e vem parasitar, em seu próprio benefício, a repartição da mais-valia, de modo que, para manter um mínimo de investimento produtivo, é preciso cada vez mais arrochar os salários e aumentar a taxa de exploração.4 A constatação do peso crescente da renda na repartição do produto é uma variante não marxista dessa explicação, que se encontra em Thomas Piketty, por exemplo.5 Esse aspecto parasitário do capitalismo contemporâneo é, no fundo, somente uma das dimensões de uma globalização que não diz respeito apenas aos mercados financeiros. A globalização aumentou a mobilidade e a volatilidade dos capitais, o que colocou em concorrência o conjunto das condições de valorização do capital e, entre outros, o nível dos salários, a proteção social, a tributação dos lucros. Ela criou um imenso exército de reserva industrial, do setor terciário e intelectual numa escala planetária. Ela acentuou as disparidades de vantagens e dinamismo dos territórios (cidades globais prósperas/ territórios periféricos abandonados). Ela não apenas colocou em concorrência os assalariados e os territórios, mas também polarizou a mão de obra na cadeia de valor, organizada, a partir de então, à escala mundial entre os “cognitivos” e os executores taylorizados. Passado o seu período inicial, essa concorrência e essa polarização na especialização levam a regressões sociais violentas e a déficits comerciais e orçamentários para os países menos bem situados. Para recuperar competitividade “fiscal ou social”, os dirigentes dos países capitalistas são impelidos a organizar uma desvalorização interna, baixando salários e proteção social, isso porque não podem mais desvalorizar a moeda nacional devido às pressões financeiras que os credores fazem pesar sobre eles.
Essas explicações são sedutoras, todas elas contêm uma parcela de verdade, mas continuam unilaterais e parciais. Elas não chegam a apreender a originalidade histórica do neoliberalismo porque reduzem a uma única dimensão, seja ideológica, sociológica ou econômica, um processo que exige ser compreendido, antes de tudo, em sua sistematicidade. Ora, combinando as três, não se faz mais do que juntar três explicações heterogêneas sem conseguir dar conta dessa característica sistêmica. Com isso, queremos dizer que é na articulação e na coerência de um sistema de regras e de instituições econômicas, políticas, culturais, sociais e subjetivas que, a partir de então, é preciso buscar apreender essa originalidade histórica.

Um sistema fora da democracia

Convém levar a sério a hipótese segundo a qual entramos num sistema social pós-democrático inédito na história, que rompeu com o velho sistema que articulava capitalismo nacional, Estado social, democracia liberal. Uma certa distribuição dos poderes entre o “político”, o “econômico” e o “social” era estabelecida, deixando às forças políticas e sociais uma margem de ação e um jogo de iniciativas e propostas. Entre essas forças, o sindicalismo participava do equilíbrio dinâmico de um capitalismo nacional regulado, garantindo, no entanto, avanços sociais e progressões salariais pela negociação e por uma conflitualidade relativamente instituída. Capitalismo e democracia - parlamentar, mas também em parte social - pareciam poder se conciliar até certo ponto. Com o neoliberalismo, essa conciliação não está mais na ordem do dia. O neoliberalismo, pela extensão de seus efeitos e manifestações, é um verdadeiro sistema político-econômico cuja originalidade é preciso apreender. Essa originalidade provém, inicialmente, do fato de que o neoliberalismo visa esvaziar a democracia (em sua dupla forma política e social) de seu conteúdo. Percebe-se melhor agora que as políticas neoliberais obedeceram a uma estratégia de “desdemocratização”6 , segundo a fórmula de Wendy Brown, que conduziu progressivamente ao estabelecimento de uma situação em que a “soberania popular”, na orientação das escolhas políticas, é destituída em proveito das “forças de mercado”.

    1 - Um princípio de governo

Para compreender o neoliberalismo, é preciso voltar àquilo que constituía o problema estratégico para os liberais dos anos 1950 aos anos 1970: como se imunizar contra a democracia “excessiva” e “totalitária”, que tornava os países capitalistas “ingovernáveis”? Na visão deles, não se tratava mais de gerir, quase pacificamente, uma conflitualidade social segundo uma “partilha dos benefícios”, que podia enganar com a extensão do consumo de massa, mas de promover, em todos os níveis, um novo princípio social e político que tivesse um valor e uma força quase constitucionais capazes de limitar as reivindicações populares. É isso que a construção europeia assegurará com grande sucesso a partir dos anos 1980, como mostraremos adiante. Esse princípio geral é o da concorrência de mercado, que se inscreveu aos poucos nas regras do comércio internacional, na organização da finança, nas relações entre os países, na gestão dos serviços públicos. É ele que está no cerne do “consenso de Washington”, assim como é ele que está no centro dos tratados da União europeia.
Esse princípio institucionalizado define um jogo que tem suas regras opressivas. Uma vez aceitas e cristalizadas, é o conjunto das políticas adotadas que devem obedecer, sem recuo possível, à dita lógica de competitividade. A ausência de “opção de saída” deve-se ao fato de que os governantes ligaram-se por compromissos constitucionais, como ocorre na Europa, ou por tratados e acordos comerciais de todas as espécies que, pouco a pouco, adquiriram o caráter de obrigações sistemáticas incontornáveis, particularmente em razão da vigilância exercida pelas instituições da “governança mundial” (OMC, FMI, Banco Mundial, etc.) e pelas agências privadas de classificação. No fundo, é como se os governos tivessem produzido uma malha cada vez mais cerrada de normas e regras que limitassem de facto,para eles, toda possibilidade de aplicar uma política não mais guiada pelo imperativo de competitividade. O sistema neoliberal se constrói e se solidifica, portanto, segundo uma dinâmica autossustentada: as políticas de competitividade difundem a norma concorrencial a todos os setores da sociedade, da economia e do Estado, e essa norma ultrapassa qualquer outro princípio de vida em comum.
O sonho hayekiano de uma democracia limitada está prestes a se tornar realidade. Para ele, havia duas maneiras de alcançá-la: seja pelo golpe de Estado militar à maneira chilena, seja pela via dita “incremental”, ou seja, progressiva, que era sua opção preferida. Hayek tivera a intuição de que a dominação efetiva das forças de mercado devia passar por um processo de constitucionalização da ordem do mercado. Certamente, esse processo não correspondeu àquela “descoberta cultural progressiva”, que os cambistas poderiam ter feito na versão idílica do pensador austríaco. Ele se desenvolveu ao colocar em concorrência todos contra todos, até se tornar uma forma generalizada de subjetividade que destrói as próprias raízes da cidadania. Uma vez maduro, o sistema de normas que rege as relações econômicas e sociais, tal como foi produzido pelos governos, domina, efetivamente, toda decisão que um corpo eleitoral supostamente “soberano” poderia tomar. A ordem do mercado prevalece, portanto, sobre a democracia. O princípio de concorrência, que se torna uma obrigação geral de competitividade, adquire então o sentido de um verdadeiro “princípio”, no sentido que Montesquieu dá a esse termo: a “paixão” ou a “força” que faz agir um tipo de governo. Lembremos que para Montesquieu cada regime repousa sobre um princípio que o singulariza: honra para a monarquia, virtude para a república, medo para o despotismo. A concorrência é o princípio político do novo governo neoliberal. Mas a analogia para aqui. O neoliberalismo não constitui um novo regime político que viria se acrescentar à tipologia clássica herdada de Aristóteles: monarquia, aristocracia, democracia, ou, como em Montesquieu, monarquia, república, despotismo. Trata-se, antes, de um “complexo” histórico inédito, de caráter essencialmente normativo, ao mesmo tempo político, econômico e jurídico-institucional, que tem por efeito tornar caduca a própria noção de “regime político”, recolocando diretamente em causa a autonomia dos “poderes públicos” em relação às forças do mercado.

    2 - Normas e atores

O sistema neoliberal de normas concorrenciais permitiu a emergência de três potências políticas e econômicas: as grandes empresas, os atores financeiros, a oligarquia político-burocrática. Essas três potências controlam os Estados por diferentes meios: as empresas multinacionais por meio de seu poder sobre o emprego e o crescimento, devido à chantagem em relação aos investimentos, que elas podem ou não realizar; os atores financeiros, enquanto compradores da dívida pública, por meio dos fundos de obrigação; e a oligarquia política por meio do papel de comando sobre as burocracias nacionais postas a serviço das duas primeiras potências.

    a) As grandes empresas

O sistema neoliberal é caracterizado pela dominação das grandes empresas (giant corporations) sobre os governos, empresas elas próprias governadas por acionistas estritamente interessados na maximização do valor da ação e no montante do dividendo.7 Vários processos estão na origem desse poder político: o crescimento do tamanho das empresas, que lhes dá um poder de mercado e uma influência sobre o emprego consideráveis; sua extraterritorialidade, em particular sobre o plano fiscal, que lhes permite colocar os próprios Estados em concorrência; sua riqueza acumulada, que é posta a serviço do apoio aos partidos políticos; suas contribuições à potência dos Estados capitalistas no mundo (Estados Unidos, Europa, etc.). A desregulação financeira, a flexibilização dos mercados de emprego, a redução dos impostos sobre os lucros do capital e sobre os rendimentos dos mais ricos, obstáculos colocados à reforma da saúde nos Estados Unidos ou à taxa Tobin na Europa, freios múltiplos à transição ecológica, são tantos resultados da ação coletiva das grandes empresas. Um dos mais importantes meios é o lobbyng direto, que permite comprar os votos dos representantes e orientar as campanhas eleitorais. Outro é a chantagem da fuga dos capitais, da greve de investimentos, da destruição do emprego. Esse poder das grandes empresas foi reforçado pelas privatizações. Às empresas privadas foram concedidas missões de serviço público em múltiplos domínios (telecomunicações, informações, internet, pesquisa, rodovias, saúde e mesmo operações militares ou policiais, etc.). As grandes empresas se tornaram, assim, organizações políticas que exercem poderes dominantes sobre os governos. Os acionistas encontram na grande empresa moderna uma forma de ação coletiva particularmente eficaz para se imiscuir no mecanismo da decisão política e assim aumentar seus rendimentos e patrimônios, conjugando uma tripla dominação: sobre os assalariados, sobre os consumidores, sobre os contribuintes.

    b) Os atores financeiros

As reduções de imposto concedidas às classes dominantes e às grandes empresas, a enorme tolerância com a evasão fiscal, num momento em que o desemprego e o envelhecimento implicavam despesas sociais mais importantes, levaram a um crescimento da dívida pública que literalmente explodiu depois de 2008, quando foi preciso emprestar dinheiro aos bancos e adotar medidas de estímulo para salvar certos setores. Como mostrou W. Streeck,8 a passagem de uma crise da dívida privada a uma crise da dívida pública acelerou a mutação em direção ao novo sistema político. O centro de gravidade do poder se encontra, a partir de então, nas mãos dos credores dos Estados, os famosos “mercados financeiros”. São eles que impõem normas financeiras e políticas que entram em contradição direta com o financiamento dos serviços públicos. Os interesses da finança internacional impõem, através das agências de classificação e do FMI, as escolhas políticas na medida em que é a própria capacidade de funcionamento dos Estado que está em jogo. Mas esse poder financeiro não para aí. São os próprios Estados que integraram o risco sistêmico ao comprar novamente os títulos da dívida privada e que fazem os contribuintes assumir a responsabilidade dos credores. As relações internacionais entre os Estados sucederam às relações entre credores privados e Estados. É esse o sentido de todas as disposições tomadas pelo Conselho europeu desde 2008. Pressões, controles e sanções de todas as espécies para com os países mais endividados estão institucionalizados desde então. A prioridade absoluta dada ao reembolso das dívidas e a proibição absoluta de sua reestruturação justificam a austeridade generalizada, tão catastrófica quanto os seus efeitos. Em suma, são os imperativos dos mercados financeiros que remodelaram as instituições e os dispositivos políticos, fazendo a proteção dos detentores da “dívida soberana” passar à frente de todo imperativo social. Num tal sistema, são os compromissos junto aos credores que têm prioridade sobre a vontade dos cidadãos.

    c) As oligarquias políticas

A tomada de controle das instâncias de decisão por grupos e indivíduos estreitamente ligados aos lobbies econômicos e financeiros é, sem dúvida, um dos aspectos mais impactantes do sistema neoliberal. A substituição brutal dos governos na Itália ou na Grécia por “técnicos” dirigidos por antigos banqueiros de Goldmann Sachs é o signo dessa influência cada vez mais direta dos mercados financeiros. De modo mais geral, é o conjunto do aparelho e da equipe política que se transformou. Longe de constituir um contrapeso aos poderes das grandes empresas e dos credores, as oligarquias políticas se tornaram os intermediários institucionais indispensáveis cuja função principal é trazer para o interior do campo político e para as estruturas burocráticas as normas e os imperativos do novo capitalismo. É o que se faz ao fazer com que os assalariados, os contribuintes e, finalmente, a grande maioria da população suportem o custo da crise do capitalismo financeiro. A retórica “nacional”, que os dirigentes políticos usam e abusam, encobre o fato de que o poder de produção das normas foi transferido para organismos intergovernamentais ou internacionais não eleitos, que funcionam fora de todo controle dos cidadãos. É o caso, especialmente, da Troika (FMI, BCE, Comissão europeia), estabelecida na sequência de um acordo intergovernamental, cujos funcionários elaboraram, para a Grécia, um programa de governo completo, que exerce sobre os ministros gregos uma verdadeira chantagem de crédito. A própria oposição direita-esquerda foi esvaziada de todo conteúdo desde que os partidos da “socialdemocracia” se dobraram à nova ordem por “realismo”, desvinculando-se, assim, das camadas populares que, por muito tempo, haviam constituído sua base eleitoral. Esses círculos dominantes, independente de sua “coloração” política, aplicam as políticas desiguais, que são influenciadas ou, às vezes, pura e simplesmente ditadas pelos grupos patronais. Isso leva ao empobrecimento das classes populares e, além disso, das classes médias, que eram os pilares da democracia parlamentar. Corrupção, conflito de interesses, “revolving doors” e, mais geralmente, fusão sociológica crescente do mundo dos negócios e do mundo político caracterizam esse mundo pós-democrático. Doravante, é essa tripla aliança das oligarquias burocráticas e partidárias, das grandes empresas e dos fundos de credores que manipulam o essencial das orientações políticas. Disso decorre que a democracia eleitoral é completamente desativada, reduzida a uma ilusão num teatro de sombras onde sempre a política da “tripla aliança” tem a última palavra.

    3 - As regras europeias

Tal como se afirmou tratado após tratado, a lógica da integração europeia recuperou, indiscutivelmente, um lugar muito particular nesse sistema normativo. Com efeito, esses tratados constitucionalizaram três “regras de ouro”: a estabilidade monetária, o equilíbrio orçamentário, a concorrência livre e não falseada. Esse edifício foi recentemente coroado pelo Tratado sobre a estabilidade, a coordenação e a governança (TSCG), que prevê sanções imediatas para toda violação dessas regras. Segundo o dogma do ordoliberalismo, essas regras definem uma “constituição econômica” que deve se inscrever no direito positivo dos diferentes Estados europeus. Ora, essa “constituição” deve supostamente preencher a mesma função que uma constituição política, garantindo, em especial, a “separação dos poderes” na ordem econômica. Disso resulta a consagração da independência do Banco Central: não pertence aos Estados a decisão sobre a política monetária, mas eles são incumbidos de aplicar uma política decidida pelo Banco. Podemos dimensionar o crime político assim perpetrado: enquanto o princípio constitucional da separação dos poderes deve permitir “deter o poder pelo poder” - impedindo, sobretudo, que o poder de fazer as leis se confunda com aquele que as executa -, esse mesmo princípio, arbitrariamente transposto para a ordem econômica, vê-se encarregado de justificar o fato de que a política monetária seja subtraída a toda deliberação e a toda decisão públicas. Em outros termos, trata-se de subordinar, irrevogavelmente, o poder político a um “poder econômico” supostamente guardião do interesse geral devido à sua imparcialidade e à sua independência em relação aos cidadãos organizados; isso significa que todo poder político eleito e submetido à exigência de uma prestação de contas é acorrentado às decisões de outro poder, que, não importa o que digam, também é político, embora não eleito e incontrolável. Graças a essa proeza, ergue-se a “constituição econômica” acima de toda alternância eleitoral, obrigando todo novo governo a “respeitar os compromissos” aos quais todo governo está submetido, qualquer que seja a maioria política do momento.9 O caso da Grécia é emblemático: pois, se o Eurogrupo e a Troika concordaram sobre uma extensão de quatro meses do programa de financiamento, foi com a condição de insistir sobre a continuidade do programa proveniente do acordo de 2012, que devia continuar a ser aplicado a qualquer custo, apesar dos sofrimentos infligidos ao povo grego.

Conclusão
Enquanto se acumulam os signos de uma nova fase econômica e financeira caótica, tudo parece indicar que nos dirigimos, de maneira acelerada, a um novo sistema caracterizado pelo enclausuramento das sociedades num colete disciplinar de regras e obrigações, das quais terão grande dificuldade para se desvencilhar, especialmente num contexto marcado por um enfraquecimento das forças organizadas dos assalariados. Ora, o sistema neoliberal não pode ser travado e contido, a fortiori desconstruído e superado, senão por movimentos que se situam fora do jogo da “tripla aliança”, ou seja, fora do jogo do Estado neoliberal. O que suporia uma forte mobilização das populações hoje resignadas ou tentadas pela via xenófoba.
Nessas condições, o único horizonte realista é um afrontamento cada vez mais duro entre a finança (ou seja, os proprietários da dívida) e a população. Mas até onde os governos poderão ir nessa guerra conduzida, por delegação, contra sua própria população? E até quando a população vai suportar essas agressões sem reagir brutalmente e numa direção imprevisível?

    
    

 









fevereiro #

9


ilustração: Rafael MORALEZ



1 Podemos aqui remeter a uma abundante literatura que reúne correntes críticas bastante diversas. Na França, o coletivo dos “economistas estarrecidos” acusa o irrealismo e a inconsequência das políticas de austeridade. Cf. Manifeste d’économistes atterrés (Éditions Les liens qui libèrent, 2011) et Nouveau manifeste des économistes atterrés (Éditions Les liens qui libèrent, 2015).

2 Cf. Pierre Bourdieu, Contre-feux, Raisons d’agir, 1998.

3 Essa explicação em termos de luta de classes se encontra na maioria dos autores que reclamam o marxismo. Cf. David Harvey, A Brief History of Neoliberalism, Oxford University Press, 2007; et Gérard Duménil e Dominique Lévy, La grande bifurcation, En finir avec le néolibéralisme, La Découverte, 2013.

4 Cédric Durand, Le capital fictif, Comment la finance s’approprie notre avenir. Les prairies ordinaires, 2014.

5 Cf. Thomas Piketty, Le capital au XXIe siècle,Le Seuil, 2013.

6 Cf. Wendy Brown, Les Habits neufs de la politique mondiale. Les Pairies Ordinaires, 2007.

7 Cf. Colin Crouch, The Strange Non-Death of Neoliberalism, Polity, 2011.

8 Wolfgang Streeck, Du temps acheté: la crise sans cesse ajournée du capitalisme démocratique. Nrf Essais, Gallimard, 2014.

9 Sobre essa questão da “soberania da constituição”, ver nosso artigo “Cambiare Europa o cambiare l’Europa?”, na Lettera Internazionale, nº 120, IIe trimestre 2014.