POLÍTICATEORIACULTURA ISSN 2236-2037
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Revista FEVEREIRO |
Entrevista com o deputado federal pelo Rio de Janeiro Chico ALENCAR |
Revista Fevereiro: Prezado Deputado, gostaríamos de começar a entrevista resgatando um pouco da história do seu Partido, o PSOL. Em 2005, terceiro ano do Governo Lula, o PSOL obtém seu registro eleitoral definitivo, concluindo um processo iniciado logo após a aprovação da Reforma da Previdência do Governo Lula. O documento que anuncia a fundação do PSOL intitulado “Movimento por um novo partido” prenunciava que “o governo Lula se determinou à tarefa” de “fazer, pelo grande capital, aquilo que a direita tradicional não teria condições de concretizar”; e propunha uma alternativa partidária que se mostrasse “democrática e plural […] com mecanismos que garantam a participação ativa da militância. Mesmo não figurando entre os signatários originais, gostaríamos que o senhor analisasse os acertos e desacertos do prognóstico e da alternativa que o PSOL apresentou naquele documento, considerando, de um lado, os 11 anos de existência do PSOL e, de outro, os 13 anos de governo do PT.
Chico Alencar: O prognóstico que orientou a formulação e a atitude dos militantes políticos - ativistas nos movimentos sociais, no sindicalismo classista, no pequeno e combativo núcleo de parlamentares, sem falar das milhares de assinaturas do apoio cidadão que tornou possível a criação de um novo partido - foi, sem qualquer sombra de dúvida, de um acerto histórico indiscutível. Tratou-se de um momento grave e difícil, fato que valoriza a firmeza e a coragem dos que apostaram na difícil tarefa da construção de uma nova alternativa partidária. Muitas das questões então debatidas, no documento citado e em tantos outros, vieram a se confirmar nas conjunturas subsequentes. Visto com os olhos de hoje, envoltos na crise profunda que nos coloca diante de novas encruzilhadas, o arrazoado que sustentou o esforço inaugural do PSOL adquire até a feição premonitória das profecias. Algumas expressões, muito usadas no debate interno da época, fornecem um roteiro seguro das marcas de nascença do novo partido. Ao se intitular como “abrigo” para as esquerdas que resistiram ao “transformismo” petista, o partido projeta a nitidez de esquerda numa perspectiva plural. Ao se definir como “um partido novo contra a velha política”, estabelece os termos da ruptura formal com o PT, que “saíra de si mesmo” e deixara de buscar uma “nova gramática de poder”. Por outro lado, ao falar em “mudar de enxada para continuar o plantio”, a nova proposta revela, para além da ruptura formal, a busca de continuidade com o processo social que fez crescer o petismo no seu tempo de contraponto radical ao modelo dominante.
Mais do que de desacertos, que por certo foram muitos, talvez fosse mais importante falar das dificuldades daquele período, algumas delas presentes até o momento atual. O PSOL nasceu num momento de refluxo dos movimentos sociais. Sua construção, concomitante com a mutação do PT e o crescente desencanto com a política, foi uma espécie de construção “piracema”, nadando contra a corrente, numa conjuntura muito difícil para a esquerda fiel aos seus princípios. Talvez daí decorra outra expressão muito comum entre os seus construtores: a que define o PSOL como um partido “necessário”. Um partido que “mói no áspero”, labuta contra a corrente, enfrenta as intempéries do presente de olho no futuro. Um partido pequeno com vocação de grandeza.
RF: Ainda nesse contexto de fundação do PSOL, uma das críticas mais contundentes ao PT se dirigia contra a sua política de alianças, que não se importava em incluir até mesmo partidos de centro e centro-direita. Somado a isso, foram diversos os intelectuais que se filiaram ao PSOL vendo-o como plataforma para a defesa de ideias e ideais de esquerda livre do pragmatismo que dominara o PT. Essas caraterísticas mostravam que o PSOL optava por assumir a linha de um partido mais programático. No entanto, a dificuldade do PSOL lançar programas eleitorais nas eleições presidenciais de que participou, e a vida curta de sua única revista editada pela Fundação Lauro - que acabou já em 2010 contando com apenas 4 edições - mostram que essas promessas parecem não ter se realizado conforme o esperado. Como o senhor vê o preparo e o papel do PSOL e da esquerda em geral na disputa do debate travados atualmente na esfera pública?
CA: A nitidez programática é um pré-requisito essencial para qualquer política séria de alianças. No contexto de fundação do PSOL, a contundência das críticas dirigidas ao PT na questão em pauta sempre foi relacionada a este ponto. Alianças sem critérios programáticos são condenáveis em si. Mais grave ainda é quando um partido ganha eleições ancorado em um programa e, depois no governo, pratica outro. A chamada corrupção programática, mãe de todas as outras corrupções, está nas origens dos desacertos que selaram o destino do PT. Nas lutas da militância nos movimentos sociais e na ação de suas pequenas e aguerridas bancadas, o PSOL tem procurado ser fiel ao seu compromisso original. Com vocação de grandeza e voltado para o resgate da grande política, somos um partido em processo de construção. Ainda incipientes, seguimos, local e nacionalmente, com graves debilidades organizativas. A nossa elaboração programática padece por conta de tais debilidades e de outras ainda maiores, ligadas à complexidade extraordinária do atual processo político. Não há bulas ou receitas prontas para resolver de véspera as questões relacionadas com a política de alianças. Só o correr da luta pode definir, nas diferentes situações concretas, a justeza ou não de tal ou qual política de alianças.
Programático e de militância, o PSOL tem procurado sustentar os princípios que norteiam sua existência. Uma luta permanente, desenvolvida em várias frentes. Nos períodos eleitorais, por exemplo, aparecem os oportunistas de sempre, em busca de implementar seus projetos individualistas, e é preciso estar atento para barrá-los, sem confundi-los com pessoas de boa vontade e pouco grau de formação. Como tudo que é vivo padece de imperfeição, não estamos livres, liminarmente, do fisiologismo, do pragmatismo eleitoreiro corrompido, do adaptacionismo, presenças ativas no degradado sistema político brasileiro. O combate aos desvios que podem nos jogar na vala comum dos partidos invertebrados não se resolve com os vícios do polo oposto: o isolacionismo, o sectarismo e o vanguardismo, que é o principismo sem mediação com a realidade concreta.
RF: Ainda relacionado à pergunta anterior, em um artigo publicado por ocasião da sua filiação ao PSOL, o senhor propõe um princípio interessante para a dinâmica de um partido: “Saber ter flexibilidade tática e firmeza estratégica”, isso vem reforçar as máximas do “Movimento por um novo partido” que previa um partido liberto “de qualquer doutrinarismo e espírito de seita”. Em que medida o senhor acredita que o PSOL conseguiu seguir esses preceitos? Ou, de modo mais geral, a cultura política da esquerda ainda é falha em equilibrar respeito a princípios ideológicos/programáticos e a capacidade de se engajar em compromissos com partidos, grupos e correntes de posições divergentes?
CA: O PSOL que queremos consolidar não começa nem termina nele próprio. No contexto marcado por grandes dificuldades, a combinação da flexibilidade tática com a firmeza estratégica é o caminho para afirmar um partido de novo tipo. Pelo tamanho e pelas diferenças regionais do Brasil, a liderança da movimentação popular organizada em direção a uma nova sociedade será necessariamente plural e partilhada, em ampla frente de organizações - sociais e partidárias - de diversos níveis e naturezas, os já constituídos e os ainda por se constituir. Nesse sentido, o papel fundamental do partido deve estar voltado para a interlocução permanente com os vários movimentos autônomos, que aspiram, com legitimidade, a condição de copartícipes do fato político. O partido, qualquer partido, por mais revolucionário que pretenda ser, não monopoliza mais a representação política, ainda que continue tendo a função insubstituível de universalizar as lutas e oferecer-lhes um duto para interferir nas esferas do Poder. O fortalecimento do campo popular, ecológico e socialista exige a afirmação de uma nova prática política, radicalmente democrática e plural, que abra espaços para a retomada das lutas para mudar a realidade. O PSOL tem ainda pouco peso estrutural e orgânico, mas aglutina uma militância muito jovem e aguerrida. A influência crescente do partido em diferentes setores da sociedade deixa claro que podemos cumprir um papel positivo no atual momento político brasileiro.
Bloco II. Crise atual
RF: Ainda às vésperas das eleições de 2014, alguns políticos da base aliada do governo fizeram declarações públicas afirmando que um novo mandato de Dilma poderia levar o país a uma grave crise política. Diante da negativa do PT em mudar seu candidato, uns resolveram sair do partido, como no caso da Senadora Marta Suplicy, e outros buscaram construir uma candidatura própria de oposição, como o ex-governador Eduardo Campos. Retrospectivamente, e sem entrar no mérito de quanto o oportunismo pesou na decisão dos políticos citados, parece que estavam certos. Como o PSOL, àquela época, enquanto oposição de esquerda ao governo do PT, enxergava o cenário que estamos vivendo hoje no país? Para vocês, a crise atual já era previsível? Chegaram a prever um cenário de acirramento tão extremo como este que estamos vivendo?
CA: A alteração de rota que deslocou o processo rumo ao acirramento da crise, com a gravidade com que ela se apresenta no momento atual, foi vislumbrada no debate interno do PSOL bem antes das vésperas da eleição de 2014. Se há uma data para marcar esse deslocamento, ela deve estar relacionada aos acontecimentos que abalaram o mundo da política em junho de 2013. A sociedade brasileira vivenciou um surto inusitado de grandes manifestações cujo sentido político mais profundo ainda carece, anos depois, de decifração. Não foi um raio em céu azul. Havia, entre os “de cima”, arremedos de grossa desavença. A antecipação da disputa presidencial de 2014 e os desacertos da governabilidade da conciliação conservadora, prova do cansaço dos materiais, eram prenúncios de esgotamento do pacto de exclusão que nos governa. Entre os “de baixo”, muita luta localizada, descontentamento difuso: greves no serviço público sucateado, explosões de ira entre os operários brutalizados nos canteiros do PAC, ativismo crescente, nas redes virtuais e nas ruas, de uma miríade de movimentos específicos, contra a criminalização da pobreza, contra a homofobia, contra a brutalidade das polícias, em defesa da ética na política. Em suma, ficava claro, naquele momento, que a desavença entre os de cima e um acúmulo de lutas parciais entre os “de baixo” determinava a abertura de uma conjuntura de qualidade política nova. Até então, os governos em sua maioria (Dilma, governadores, prefeitos, tucanos, peemedebistas, petistas) ostentavam alta popularidade. Depois de 2013, a popularidade de todos despencou. Os partidos da ordem, da base de sustentação do governo ou da oposição favorável ao modelo dominante, que se preparavam para uma disputa presidencial que imaginavam ser resolvida em torno de qual será o melhor oficiante do mesmo rito conservador, tiveram que mudar o discurso. A polarização esquerda/direita que marcou a retórica da disputa no segundo turno de 2014, seguida do estelionato eleitoral praticado pela vencedora da eleição, só fez acelerar um processo de acirramento da crise que já estava inscrita no bojo da irrupção contestatória que desencadeou o fim de ciclo que caracteriza a profundidade da crise atual.
RF: O senhor é atualmente o nome do PSOL entre os 65 deputados que compõem a Comissão de Impeachment recém-instalada na Câmara dos Deputados. Qual vai ser a posição do partido nessa comissão? Quais são os cenários que o senhor desenha como resultados possíveis dessa comissão?
CA: O PSOL sempre foi um partido de oposição ao governo Dilma, assim como fomos oposição ao governo Lula, inclusive quando tais governos ostentavam índices altíssimos de popularidade. Uma oposição responsável, programática e pela esquerda. Pelas mesmas razões, somos contra o atual processo de impeachment. Não se pode praticar o ato mais drástico de nossa ordem constitucional pelas frágeis razões de “decretos orçamentários indevidos”. Ou de “pedaladas fiscais”, condenadas, até aqui, por um órgão auxiliar do Congresso, e por este sequer examinadas. Se impopularidade fosse razão de impeachment, sobrariam poucos governantes no Brasil. Ademais, não podemos fechar os olhos para a natureza das forças que se articulam em torno da proposta. O grande patronato, a mídia hegemônica, o agronegócio e o “mercado” operam com sofreguidão em busca de seus próprios interesses privados. Basta ver os gastos milionário da FIESP e o quartel general montado em sua pirâmide da Avenida Paulista. É certo que esses setores poderosos navegam na grande insatisfação popular, nutrida sobretudo pela crise econômica. Aspiram, em eventual governo Michel Temer, a um novo pacto de elites, com anunciado ataque aos movimentos sociais, via “ajuste duro” e repressão ampliada. E o controle e minimização da importante Operação Lava Jato. Vários dos lá investigados são entusiásticos do impeachment. A comissão do impeachment foi montada à feição da oposição parlamentar conservadora, liderada pelo deputado-réu Eduardo Cunha. É o intestino grosso da pequena política, do toma-lá-dá-cá que o PSDB abençoa: PMDB, DEM e um conluio com o que há de pior na vida partidária nacional - fisiologismo que, aliás, o PT também cortejou. E ainda corteja, com a tentativa de recomposição de sua base pelo oferecimento dos cargos deixados vagos pelo PMDB. São tempos de cinismo explícito. Um jogo pesado do qual não se sabe ainda no que resultará. A atual crise vem desnudando um sistema político degradado e exaurido. Como se sabe, crise pode ser, também, uma oportunidade para se abrir novos caminhos. No ponto a que chegamos, nenhuma saída que não seja protagonizada pelo povo trará as mudanças e a ética na política, tão desejadas. É preciso devolver à soberania popular seu poder decisório. Uma reforma política profunda, que inclua propostas como a do referendo revogatório e de limites austeros aos gastos das campanhas eleitorais, que precisam se livrar da tutela do poder econômico e do financiamento empresarial, a mola mestra da corrupção sistêmica.
RF: É de conhecimento público que o senhor é um dos principais críticos do atual presidente da Câmara, o Deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), eleito, como o senhor, pelo estado do Rio de Janeiro. O senhor poderia explicar um pouco como se pavimentou a ascensão política do deputado Eduardo Cunha? Quais são os principais interesses que o sustentam? Como ele construiu o apoio da bancada e qual seu protagonismo no atual processo de impeachment?
CA: A força de Eduardo Cunha não está nele mesmo. Sua força resulta da confluência de uma série de fatores. Ele é uma espécie de vetor resultante de um enorme conjunto de anomalias. Em primeiro lugar, vale lembrar o que o nosso saudoso Carlos Nelson Coutinho definia como “americanalhização” da política brasileira, uma cópia acanalhada do jogo pesado do interesse puro que marca a política do império do norte. Seguindo o que diz a letra de um samba famoso - “só mando no meu distrito, porque o rei de lá morreu” -, o reinado de Cunha no parlamento é uma decorrência direta do apequenamento geral do processo político. O mesmo Carlos Nelson nos ensinou que, se a grande política - a disputa em torno de projetos, ideias, valores - sai de cena, a pequena política - a mera administração do interesse puro - se torna a dona do pedaço, vira, como simulacro, “grande” política. O PT e o PSDB, partidos que polarizaram o debate político no pós-ditadura, tanto nas eleições gerais como na constituição de blocos no parlamento, “saíram de si mesmo” ou se degradaram naquilo que tem sido chamado de “peemedebedização” geral do nosso sistema político. Se a disputa se restringe ao espaço do pequeno, o Cunha é campeão. E o resultado é o que se vê: a apoteose da pequena política. Para o observador atento, os interesses que sustentam o atual presidente da Câmara dos Deputados são visíveis a olho nu. Houve quem dissesse, um articulista cujo nome agora me escapa, que 2015 foi o ano do “cafuné no Cunha”. De maneira alternada e ao longo de todo ano, um dia era o PT e o governo que lhe rendiam loas; no dia seguinte eram os tucanos e aliados da oposição de direita. Tudo em função da prerrogativa institucional daquele que poderia ou não desencadear o processo de impeachment. Ademais, ele usou os poderes da presidência da Câmara para articular e catalisar o que existe de mais regressivo e reacionário. Como quem diz “tudo posso naquilo que me fortalece”, ele foi o nexo que forneceu polo de condensação aos diferentes segmentos do conservadorismo brasileiro. As bancadas da bala, da bola, da bíblia, o sexismo, o machismo, a homofobia, o agronegócio que quer avançar sobre terras indígenas e quilombolas, a precarização dos direitos, tudo isso e muito mais se soma no agregado que faz a força do Cunha. Quanto àqueles deputados que de maneira ostensiva lhe prestam fidelidade canina, a explicação deve ser buscada no que, até agora, já vazou do Lava Jato. Tudo indica, pelo revelado até agora, que Eduardo Cunha funcionou como uma espécie de banco de segunda linha, um duto de distribuição de recursos entre o poder econômico que tutela a política e o intestino grosso da pequena política. Apesar da sua tenacidade e apego ao poder, Cunha será figura fugaz na vida republicana. Um brilho de aluguel, que nada iluminou, apenas confundiu. Sobrevive dos efeitos reflexos do poder que o constituiu, pois os prazos do sistema político paquidérmico, avesso à participação popular, não são os da ansiedade de nossa gente, farta da corrupção e da hipocrisia dos políticos. Cercado, atira a esmo, mesmo sabendo que, a esta altura, suas balas são de festim, pois lhes falta o chumbo da credibilidade. Talvez o seu papel de protagonista no atual processo de impeachment seja o seu canto de cisne.
RF: Com tantos envolvidos do PMDB e dos partidos que devem compor a nova coalizão, qual futuro o senhor prevê para a própria Lava Jato em um eventual governo Temer?
CA: A operação Lava Jato caiu na simpatia popular porque pela primeira vez o conluio histórico entre grandes empresas corruptoras e partidos e políticos corruptos foi desnudado. Pela primeira vez os “colarinhos brancos”, tidos como intocáveis, foram para a cadeia. A famosa lista da Odebrecht, que o juiz Moro se apressou em colocar sob sigilo, atingiu praticamente o sistema partidário como um todo. Até por conta da sua extraordinária importância política, ela corre muitos riscos e pode ser atraída para múltiplas armadilhas. Uma delas, sem dúvida, é a que está na pergunta em pauta. Um eventual governo resultante do impeachment coloca na fila uma linha sucessória que vai da má aos piores. Temer, Cunha e Renan estão todos na mira do Lava Jato. Existe sim o risco de desidratação da Lava Jato, para que ela não chegue a vários grandes parceiros dos conluios, denunciados por Delcídio, o réu confesso, e visíveis na “Lista da Odebrecht” (que Moro colocou sob sigilo): o próprio Temer, Aécio e centenas de agentes públicos e financiadores, em relação orgânica com todos os grandes partidos. É bom lembrar, no entanto, que o mesmo risco de desidratação pode continuar existindo, dependendo da maneira que o governo atual prevaleça sobre a tentativa de afastá-lo. Mas o risco maior vem do interior da própria operação. A Lava Jato, nossa Mãos Limpas, pode ficar maneta se não forem contidas as arbitrariedades de alguns de seus protagonistas, que parecem acreditar no papel salvífico de “heróis justiceiros e vingadores”. O perigo mora no “estrelismo salvacionista” e autoritário de alguns promotores e do juiz Moro, incensados pela mídia espetaculosa. Como destacou o Ministro Teori Zavascki, do STF, “é filme já visto isso de ações ilegais, mesmo bem intencionadas, provocarem anulação de investigações importantes”. Ele citou as Operações Castelo de Areia e Satiagraha como exemplos. Para cumprir seu papel no desmantelamento do atual ciclo vicioso da corrupção sistêmica, ela não pode ser seletiva, nem manipulada, nem saciar o punitivismo com bodes expiatórios.
RF: Como o senhor avalia o documento lançado pelo PMDB intitulado “Uma ponte para o Futuro”?
CA: É um papel desses que propiciam contos do vigário. Uma aposta esperta de quem se oferece aos de cima para comandar o retrocesso político. Quem observar o desenrolar dos acontecimentos ao longo do ano passado, na certa irá se deparar com diferentes tentativas da mesma natureza: o rearranjo no interior das elites dominantes para organizar uma saída de crise no interesse destas mesmas elites. A primeira estocada foi patrocinada, no começo do ano, pela própria presidente recém-eleita. Joaquim Levi e Kátia Abreu no ministério e a política do ajuste fiscal era uma tentativa de acertar o passo com uma agenda conservadora defendida, quase todos os dias, nos editoriais dos grandes jornais associados ao modelo dominante. Não funcionou, deu no que está dando. Depois foi a vez de Renan Calheiros, que vociferou sobre a necessidade de independência do Banco Central e articulou com Romero Jucá a chamada “Agenda Brasil”. Também não durou uma semana. O “ponte para o futuro” é o último produto dessa linha de montagem. Teve o seu ensaio geral no final do ano passado, quando parecia aos seus autores que o presidente da Câmara dos Deputados patrocinaria o desfecho rápido do impeachment. Como o rito armado no parlamento foi travado pelo Supremo, a proposta volta agora com força total. O conteúdo da proposta guarda semelhanças essenciais com as anteriores, mas traz a marca do grupo de moral homogênea que dirige o PMDB. É uma pinguela para o passado: privatização de tudo, precarização máxima da legislação trabalhista, com priorização do acordado sobre o legislado, desvinculação das receitas para Educação e Saúde. É uma agenda de socialização dos prejuízos e de ajuste forte. A FIESP financia e o povo paga o pato. Ancorada no protocolo tradicional do conservadorismo, ela se oferece aos donos do poder econômico para produzir mais do mesmo. Moreira Franco, anunciado como um dos formuladores do programa, já declarou que, caso venha haver eleições, eles estão preparando um Plano Temer 2, voltado para a questão social. Segundo ele, o PMDB é de esquerda na questão social, de direita na economia e de centro na política. Não fosse trágico, seria cômico o tratamento de uma crise tão profunda com semelhantes patacoadas.
Bloco III. Perspectivas da esquerda
RF: As pautas, a organização e o tamanho de junho de 2013 significaram para muitos que um novo tempo se abria para a democracia brasileira. Ao que tudo indica, por também partilhar esse diagnóstico, o senhor publica ainda no mesmo ano o livro A rua, a nação e o sonho: uma reflexão para as novas gerações. Sobre aquelas manifestações e as que se seguiram em 2014, o senhor escreveu: “É imprescindível entender, porém, que os partidos não são mais a única forma de representação da sociedade. Perderam esse monopólio e andam cada vez mais dissociados do querer dos segmentos sociais que dizem representar, seja por seu controle, caciquismo (prática dos da direita), seja por suas autofagias e baluartismos (costumeiros nos de esquerda)”. Como o senhor avalia a atuação do PSOL e da esquerda em geral em relação a junho de 2013?
CA: O livro citado foi escrito no calor dos acontecimentos, que foram acompanhados por nós como quem observa lições da história. Todos, sem exceção, foram tomados de surpresa pelo volume daquelas manifestações, inclusive os que as convocaram. A presença súbita de multidões nas ruas, sem lideranças visíveis ou aparatos organizativos, é um fenômeno social absolutamente incomum. Tirante um ou outro desavisado, todos perceberam, em tempo real e nos diferentes segmentos do mundo da política, que estávamos diante de acontecimentos extraordinários. A atuação do PSOL no interior das manifestações e a reflexão posterior, em nosso debate interno sobre o seu significado mais profundo (debate que continua em voga), trazem a marca da pluralidade de forças que compõe o nosso partido. O PSOL teve presença ativa nas manifestações. Os nossos militantes nos movimentos sociais estavam lá, com a naturalidade de quem não chegou só agora. Já estava nos movimentos. Apesar da crítica forte aos políticos em geral, nossos parlamentares, bem recebidos, circularam com naturalidade entre os manifestantes. Não cometemos o erro de carregar bandeirões imensos, insinuar liderança ou hegemonia de um movimento constitutivamente refratário a tal tipo de atitude. A nossa interpretação sobre o sentido mais geral das chamadas “jornadas de junho” está no livro citado na pergunta. Para sumarizar, podemos alinhavar alguns pontos: foi uma “irrupção contestatória”, reveladora de insatisfação profunda, difusa e confusa. Não hegemonizada por ninguém - logo, pelas mesmas razões, ninguém se sentiu imediatamente contestado. Ao expressar de maneira fragmentária o “mal-estar geral”, a miríade não hierarquizada de postulações aparece como uma fratura exposta. Mostra os conflitos todos, mas são movimentos destituídos de positividade programática. Não altera a correlação de forças na conjuntura imediata, mas desencadeia ondas que se destinam a produzir, no longo prazo, abalos da cultura política. Os acontecimentos de junho de 2013 continuam na pauta de debates. Muitas de suas implicações conservam a condição de enigmas não decifrados, não apenas para o PSOL e a esquerda, mas para a política em geral.
RF: Olhando a partir das manifestações do dia 13 de março de 2016, a tendência é avaliar que os setores da direita, ao menos por ora, apropriaram-se de boa parte das energias sociais que irromperam em junho de 2013 e 2014. A direita se reorganizou, criando fortes coletivos virtuais, passando a ocupar diversos espaços da mídia impressa, radiofônica e televisiva quadro da mídia também está presente na proliferação de institutos e think-tank de orientação auto-proclamada “liberal”. O senhor concorda que a direita hoje hegemoniza a esfera pública brasileira?
CA: Concordo em parte, mas considero necessário precisar os termos em que essa concordância se dá. Em primeiro lugar, a direita sempre foi muito forte na realidade política brasileira. Ou então não seríamos o que somos: um país marcado pela profunda desigualdade, injustiça e violência social. O formato de dominação da direita é que alterna formas. Em boa parte do tempo, ela prefere dominar por interpostas figuras, não botar a cara a tapa, nos arranjos conciliatórios, na cooptação de líderes que se projetam até pela crítica radical contra a direita. Em outros tempos, pode lançar mão da força bruta, da repressão aberta das ditaduras. Ou até cultivar a ilusão de que pode hegemonizar o processo político, aproveitando conjunturas que lhe são favoráveis e lançando mão de recursos materiais que sempre estiveram à sua disposição, como está alinhavado na pergunta. Analisar a crise brasileira com alguma profundidade, na perspectiva de um futuro transformador, exige, dada a complexidade dos desafios em pauta, ir além da simplificação maniqueísta. Tomando como exemplo o momento atual, o intenso debate sobre o impeachment, no qual a paixão tem superado a racionalidade, não abre espaço para uma questão fundamental: há mesmo dois projetos antagônicos de organização da sociedade brasileira em disputa? A prática dos governos de Lula/Dilma diferenciou-se decisivamente da era FHC? Sem dúvida, os programas sociais e as iniciativas para ampliar o consumo interno nos anos do lulopetismo foram mais significativos, mas há uma complementaridade entre as gestões. FHC consolidou o controle da inflação e avançou nas privatizações. Lula (e Dilma, em menor escala) cuidou um pouco mais do andar de baixo ” , costurando políticas para setores marginalizados sem afetar o andar de cima ” . É a tese da conciliação de classes, típica dos partidos trabalhistas de todo o mundo. Desde o fim do século passado, o capital financeiro consolidou sua hegemonia, culminando no recorde de lucros dos grandes bancos. Não houve qualquer reforma tributária que gravasse operações financeiras, patrimônio e herança dos mais ricos. O modelo que favorece os extraordinários ganhos rentistas ficou intocado. No plano da política, não se fez nenhuma reforma profunda desde a promulgação da Constituição Cidadã. A chamada “Nova República”, apesar dos princípios de democracia participativa, derivados do ascenso dos movimentos populares nos anos 1980, não conseguiu fugir do padrão clientelista, patrimonialista e corrompido de fazer política. Tanto o PSDB, que nasceu de um questionamento ao fisiologismo genético do PMDB, quanto o PT, que cresceu com forte base social, não mudaram o sistema: adaptaram-se a ele, inclusive à sua corrupção estrutural, endêmica. No oceano do Estado Oligárquico de Direito as marés de lama são sucessivas. A destituição de Dilma, liderada pelo bloco social e político conservador que até há pouco a apoiava, é mera disputa de poder, para controlar a máquina do Estado sem fazer qualquer alteração estrutural. Não nos iludamos: o Brasil tem sido o país das transições intransitivas, do mudar para manter tudo como está. A atual investida da direita, que é real, imagina poder descartar um período marcado pela lógica da conciliação e inaugurar um outro, onde “mais do mesmo” virá embalado em suas feições próprias. É o que está na pauta. Por enquanto, não se sabe no que vai dar. A profundidade da crise pode tragar essas e outras pretensões.
RF: Em outubro teremos eleições municipais em todo o país, e com certeza o destino da esquerda no país para os próximos anos vai ser medido pelos seus resultados. Na capital do Estado pelo qual o senhor foi eleito tudo indica que o PSOL vai lançar a candidatura do deputado estadual Marcelo Freixo que, na eleição de 2012, conseguiu um resultado expressivo nas urnas e contou com forte apoio de diversos movimentos sociais e partidos de esquerda. Como o senhor avalia as chances dessa candidatura no pleito atual? Quais seriam os seus maiores desafios a serem enfrentados pelo próximo prefeito da cidade?
CA: Nas últimas eleições municipais, o candidato do PSOL polarizou a disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro desde a pré-campanha. O deputado estadual Marcelo Freixo teve um belíssimo desempenho e alcançou um terço dos votos válidos. Só não houve segundo turno porque os votos ficaram concentrados nele e no candidato do esquemão dominante. Cada eleição é diferente da outra, mas a possibilidade de se reproduzir no pleito que se aproxima o mesmo confronto básico da disputa anterior é muito grande. O Rio de Janeiro tem sido, na opinião de estudiosos das mais variadas procedências, um laboratório de experiência política do totalitarismo financeiro globalizado. Os megaeventos, tendo as olimpíadas como próxima expressão, se configuram como uma vitrine esplendorosa da cidade de negócios, cidade mercadoria, cidade dos prodígios, onde a apropriação brutal e escancarada dos recursos públicos pelos magnatas do poder privado é apresentada como um espetáculo a ser aplaudido. Por outro lado, esses mesmos estudiosos têm sido obrigados a constatar que o Rio tem sido, também, uma oficina da resistência. São notáveis, principalmente na juventude, o vigor e a persistência de um número cada vez maior de polos de resistência. Se o cerne da disputa for, como na eleição anterior, o confronto entre essas duas concepções de política e de cidade, o acumulado na disputa anterior favorece e amplia as chances do candidato do PSOL. Segundo o prof. Carlos Wainer, um estudioso altamente qualificado do fenômeno urbano contemporâneo, o modelo aqui adotado, em todos os aspectos, foi o de Barcelona. Os arquitetos, as consultorias, o assessoramento direto, os dutos de ligação com a alta finança, tudo veio via Barcelona. Sendo assim, segundo ele, falta seguir Barcelona no passo seguinte, onde a candidata dos vitimados pelas remoções, com o Podemos em frente ampliada, ganhou a eleição. Por esta tirada de humor premonitório, vamos ganhar a eleição no Rio de Janeiro. As dificuldades, no entanto, são enormes e inúmeras. A primeira delas é a “lei da mordaça”. A contrarreforma política foi patrocinada pelo réu que preside a Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e relatada por seu parceiro, o deputado Rodrigo Maia. Os dois são do Rio e, não por acaso, a mordaça armada por alterações infraconstitucionais tinha endereço certo. Se essa lei não for derrubada, Marcelo Freixo, que cresceu muito na última disputa municipal por conta de seu excelente desempenho nos debates na televisão, não poderá mais participar dos debates na TV (porque o PSOL não tem 10 deputados federais), mesmo que esteja em primeiro lugar nas pesquisas. Um absurdo total, entre outros do mesmo calibre presentes naquela contrarreforma. Além, claro, de dificuldades próprias do momento político, onde se coloca o desafio de agregar ao núcleo vivo do movimento “se a cidade fosse nossa”, de onde parte a crítica mais vigorosa à concepção da cidade dos negócios, outras culturas críticas ao modelo dominante, somando forças que possam nos levar a vitória.
RF: E nas demais capitais do país? Quais são as perspectivas do PSOL e da esquerda?
CA: O PSOL, como é do seu feitio, deve se apresentar na disputa municipal, com candidaturas próprias ou de aliados combativos, nas capitais e nas cidades mais importantes. Somos um partido pequeno, mas temos a felicidade de contar, entre os candidatos da próxima eleição, com nomes muito expressivos que, certamente, farão campanhas de grande impacto em suas cidades. Além de Marcelo Freixo no Rio, teremos Luciana Genro em Porto Alegre. Ela foi, com desempenho brilhante, nossa candidata à presidência da República e tem fortes raízes na capital gaúcha. Outra novidade é que teremos também candidatos que já foram prefeitos de suas cidades. É o caso de Edmilson Rodrigues, em Belém, e Luiza Erundina, em São Paulo. São quadros políticos de larga experiência e de altíssimo nível, portadores de experiências administrativas inovadoras e de duradouro sucesso político. Muito do que se discute hoje, na fronteira do mais avançado debate sobre as questões urbanas, já estava presente na prática bem-sucedida de tais administrações. Serão, sem dúvida, campanhas de perfil forte e com grande capacidade interferir no cenário da disputa.
RF: Desde 2015, vários membros de partidos políticos e esquerda e militantes de movimentos sociais vêm alertando que só a construção de uma frente ampla poderia conferir as forças de esquerda alguma chance nas eleições de 2018. Essa é uma possibilidade discutida no interior do PSOL? Como o senhor particularmente avalia essa proposta?
CA: Qualquer frente política com substância, que não seja mero arranjo eleitoral, tem que estar fundada em um programa mínimo. É uma construção trabalhosa, delicada. A esquerda é plural: esquerdas, na verdade. E alguns partidos e grupos que assim se proclamam talvez nem mais o sejam: socialistas de fantasia, progressistas do atraso... É preciso reiterar a importância decisiva, numa perspectiva de futuro mais igualitário, justo e democrático para o país, de uma reforma tributária progressiva, de uma reforma política democratizante de fato e da construção de um novo modelo econômico que nos livre da situação liberal-periférica em que nos encontramos. Tudo isso precisa ser construído em fóruns abertos à presença popular, sem “espírito condominial” e “trincheiras de dogmas” (velho vício das esquerdas), reunindo as forças progressistas e as organizações cidadãs com novas pautas, dispostas a virar essa página final de um processo exaurido. Trata-se, ao fim e ao cabo, de ressignificar o próprio ideário socialista, que hoje precisa incorporar, com centralidade, o cuidado ambiental e a democratização radical de todas as relações na sociedade, para o que os espaços virtuais tanto contribuem. Urge a construção de um novo modo de se relacionar com a natureza, vale dizer, de produzir, consumir e reaproveitar. De imediato, é preciso repetir que as saídas da crise não podem prescindir do protagonismo popular. Este é o único antídoto eficaz contra mais um arranjo das elites, que visa mais uma transição intransitiva em nossa história. Vladimir Safatle indica essa imprescindível esperança que se constrói: “em situações de crise, o poder instituinte deve ser convocado como única condição possível para reabrir as possibilidades políticas. Seria a melhor maneira de começar uma instauração democrática no país” (FSP, 25/3/2016). As forças que reagem ao impeachment de Dilma, em defesa não de seu péssimo governo, mas da democracia, precisam se manter articuladas, como ensaiam a Frente Povo Sem Medo e a Frente Brasil Popular. Mudar de governo, por si só, não muda a realidade. A luta é longa: comecemos já!
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