revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Monica STIVAL

Não há "Estado democrático de direito", mas "democracia"

 


Nota sobre a ideia de que estamos entre o direito e a força, entre a representação e a soberania direta: falso dilema do século XXI. A obviedade de que deve haver luta política por direitos se confunde com a ideia de luta por meio do direito.

 

1978, França. Klaus Croissant é advogado do grupo de guerrilha urbana “Baader-Meinhof” ou “RAF”. Klaus Croissant é preso em território francês, acusado de cumplicidade com o “grupo de malfeitores” que representa legalmente. Face ao pedido de extradição feito pela Alemanha (ainda dividida), há para ele duas chances de conseguir asilo político: pela Corte e pelo governo francês. A decisão jurídica da Corte precede cronologicamente a decisão política do governo. Conforme declaração do Ministro Alain Peyrefitte, o governo decidira desde início “respeitar a decisão da Corte”. Ora, o simples fato de haver uma decisão política prevista deixa evidente que se trata de tipos diferentes de juízo. Por isso, contrariamente à justificativa de Peyrefitte, creio que vale ressaltar que não está em questão, nesse caso, acatar ou respeitar a decisão jurídica, mas decidir politicamente por um posicionamento idêntico àquele do poder judiciário. E caso a decisão política não fosse idêntica àquela da Corte, não se poderia falar em “desrespeito” do governo em relação à mais alta representação da instituição jurídica daquele país. Identificar de partida o “justo” com aquilo que o direito positivo prescreve faria com que a democracia prescindisse da decisão política.
2010, Brasil. O Presidente Luis Inácio Lula da Silva posterga até o último dia de mandato a decisão - política - sobre a extradição ou não de Cesare Battisti, anteriormente aceita pela Corte. Battisti é acusado de assassinato na Itália, durante os anos 1970, quando fazia parte do PAC - Proletários armados pelo comunismo. De que a Itália não vivia um Estado de direito nos anos 1970, Antonio Negri dá seu testemunho:

     
 

quando os italianos dizem que nos anos 70 foi mantido o Estado de direito, eles mentem. E isso eu digo com absoluta precisão, com base no meu próprio exemplo: fiquei quatro anos e meio em uma prisão de alta segurança, prisão especial, fui massacrado e torturado. Pude deixar a prisão apenas porque fui eleito deputado - do contrário, eu poderia ter ficado na prisão por 12 anos, sem processo1 .

 
     

 

Ainda que o próprio sistema judiciário brasileiro tivesse base jurídica para recusar o pedido da Itália,2 feito 30 anos depois dos eventos, a Corte brasileira autorizou, em 2009, a extradição.3 Um grande alvoroço tomou conta dos meios de comunicação, que na sua grande maioria procurava pressionar o governo a confirmar, na dimensão política, a decisão tomada pelo Supremo. A decisão de governo foi no sentido contrário, recusando o pedido de extradição, e marcou assim a distinção e autonomia da questão política em relação à compreensão jurídica.
É preciso discutir o que supõe a distinção política e institucional entre governo e direito positivo, assim como as consequências dessa distinção. Além da distinção estrutural entre a decisão jurídica e a decisão política em um processo de extradição, os dois exemplos mencionados têm em comum uma palavra-chave, responsável pelo apoio da chamada “opinião pública” à extradição: “terrorismo”, que tem papel político muito similar à “corrupção”. Não interessa aqui o sentido concreto que se poderia dar a esse termo na avaliação das ações do grupo alemão e do guerrilheiro italiano. Interessa mencionar o papel decisivo que a caracterização de ambos como “terroristas” cumpre na avaliação pública do pedido de extradição. Essa caracterização é vinculada pela imprensa, responsável também, em um vaivém que constitui valor moral, pela expressão da “opinião pública”. No caso Croissant, Foucault ressalta a construção de uma imagem negativa por Peyrefitte, por meio da afirmação do “terrorismo”: “em vez de pedir [a extradição] às claras, você tentou torná-la aceitável, buscando estender à França um clima que nós precisamos, em qualquer caso, recusar”4 . No Brasil, a imprensa alardeia o mesmo medo, por meio de asserções condenatórias que independem do juízo da justiça ou do governo: “Lula vai soltar o terrorista Cesare Battisti”.5
Fica constituído assim o pano de fundo moral que serve de orientação e pressão para as decisões jurídica e política. Note-se: ele não foi constituído por meio do livre debate de ideias e posições em que a imprensa seria meio - ela é agente, espécie de agente duplo. Esse pano de fundo sustenta a decisão jurídica, previamente tomada pela própria caracterização dos réus, e ambas as Cortes decidem pela extradição. Essa decisão fortalece a pressão por uma decisão política similar, que se limitasse a referendar o juízo do âmbito jurídico. Afinal, tanto o senso comum quanto aqueles que ocupam cadeiras no mais alto escalão do poder judiciário parecem concordar com a tese de que cabe à pura e santa instituição jurídica a última palavra sobre a verdade dos homens, particularmente dos homens políticos ou criminosos. Pecado grave, portanto, do ponto de vista da “democracia jurídica”, a decisão de Lula, que contraria a posição da Corte.6
O caso Battisti ressalta a independência democrática que a política tem e deve ter em relação ao direito. Isso não significa, seguramente, ignorá-lo. Significa apenas que a política e as posições morais não podem ser reduzidas sempre a objeto exclusivamente jurídico. Quer dizer, significa que a política, por ser mais ampla que o direito, não pode e não deve ser inteiramente submetida a seus critérios técnicos ou subjetivos. O direito sedimenta decisões políticas, mas não pode enrijecê-las a ponto de inverter a função legitimadora da política em estrutura legalizadora do direito. Assim, é preciso explicitar o caráter político da instituição jurídica, a fim de evitar a teologização da Corte do Estado e a sacralização das posições ali sentenciadas. Portanto, é preciso haver controle democrático do direito, e não controle da democracia pelo direito.
Trata-se aqui, portanto, de uma tese bastante simples, aparentemente trivial. Porém, ela não parece concordar com várias das formulações teóricas para análise política que encontramos hoje no Brasil. Creio que, por um lado, não se pode agir como se o direito pudesse dar a medida da política, a medida moral da política. Ou, pior ainda, que deva deslegitimar a política (como afirma Sérgio Moro em artigo de 2004). Há inúmeros casos em que a imprensa reforça essa concepção, essa representação jurídica das relações de poder; por exemplo, quando há condenação apesar da ausência de provas ou quando há “condução coercitiva” arbitrária. Vale notar que a constituição de provas é uma das particularidades da decisão jurídica, distinta especialmente por isso da decisão política, que delibera conforme análise estrita de argumentos e valores. Por outro lado, dizer que os problemas estruturais antidemocráticos, que permanecem no Brasil de hoje, são suficientes para anular a diferença entre a condição política atual e aquela vivida nos anos de chumbo é fazer-se a noção mas idealista possível da democracia. Pensar o presente, no Brasil, pela categoria de “exceção” é reservar o termo “democracia” para a plenitude das relações igualitárias. É como negar ao corpo gripado a noção de saúde, caracterizando-o como um estado de morte. Um julgamento de exceção, por exemplo, não é signo de um estado de exceção.
É a sutil diferença entre uma democracia plena e uma democracia com injustiças aberrantes que constitui a principal dificuldade das análises de esquerda. As injustiças legitimadas pelo suposto “Estado de direito” exigem uma crítica política; não se pode participar, com a direita, da deslegitimação da política, a única capaz de controlar democraticamente o direito. Como apontar os vícios morais de uma sociedade democrática sem negar a efetividade desse regime político? Ora, não é outra coisa a tarefa crítica. E o primeiro passo talvez seja despir-se do preconceito de que acusar o caráter legitimamente político, ainda que por vezes nefasto, do sistema de justiça seja antidemocrático. Isso porque fazer a crítica, discutir o sentido político das decisões jurídicas, não impede que se cumpra decisões legais. O caso Genoíno - sua prisão marcada pelo braço firme, levantado em sinal de continuidade da luta - é exemplo de crítica à democracia e comprometimento com o regime democrático vigente; por mais que o sentido político do judiciário brasileiro atual seja reacionário. O mesmo vale para o espetáculo em torno de certo depoimento de hoje, dia 04 de março de 2016.
Ora, a bizarra etiqueta “Estado democrático de direito” confunde os campos e dá margem à confusão que vemos estampada em diversas discussões, em textos jornalísticos, em manifestações nas redes sociais: a de que o direito é o lugar último da democracia, a de que o direito deve ter a última palavra - uma palavra inquestionável - para que se reconheça a vigência de um regime democrático. Nada mais equivocado.

O direito é essencialmente político. Isso não significa minorar seu papel e efeitos, mas explicitar o jogo de forças que ele engendra - postas por meio de argumentos, mas também de constrangimento físico ou moral. A questão crítica é explicitar a disputa moral e política (que toma sistematicamente a forma da violência física contra manifestações em contrário) que sustenta a positivação e vigência de normas. O direito é uma instituição política, assim como as normas não são jamais sem moral.
Abril 2016

 

    
    

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ

 


1 Entrevista de Antonio Negri, por telefone, ao “UOL notícias”, publicada em 15/02/2009: <noticias.uol.com.br/politica/2009/02/15/ult5773u622.jhtm>.

2 “O princípio da dupla incriminação proíbe a extradição de alguém cuja conduta, no país requerido, teve sua punibilidade (rectius, sua criminalidade) extinta pela anistia. Os delitos atribuídos a Cesare Battisti são anteriores à Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979. Todos os indivíduos, brasileiros ou estrangeiros, que os praticaram até aquela data (...) foram anistiados” (www.culturaebarbarie.org/blog/2009/02/rapina-e-terror-o-caso-battist.html).

3 O Supremo Tribunal Federal confirmaria mais tarde, em 2011, a decisão do então presidente Luis Inácio Lula da Silva, de não extraditar Cesare Battisti.

4 DE II, Alain Peyrefitte s’explique... ... et Michel Foucault lui répond, 226, p. 506.

6 Um equívoco grave, porém comum, é agregar ao papel da noção geral e indefinida de terrorismo a ideia de que a não extradição significa imediatamente um juízo sobre o Estado que demanda a extradição, precisamente o juízo de que não há democracia em tal Estado. Ora, não há perseguição política apenas em Estados totalitários, e reconhecer isso é fundamental para que se possa avaliar adequadamente as ações de um cidadão em relação ao Estado, sem reportar essa avaliação a uma estrutura maniqueísta segundo a qual não há perseguição política em um Estado democrático. Reconhecer que há em um país certo “Estado de direito” - péssima expressão - não pode implicar a subsunção da política ao direito positivo.