revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Celso Rocha de BARROS

Sobre o "experimento desenvolvimentista" de Dilma Rousseff: Uma discussão com André Singer

 

 


O filósofo Marcos Nobre tem razão em dizer que precisamos de “novas autópsias” do primeiro mandato de Dilma Rousseff.1 Parte importante da crise atual da esquerda (a maior desde a redemocratização) se explica por falta de bons diagnósticos. Ainda não sabemos bem como as coisas se deterioraram tão rápido, como o governo do PT, que até outro dia era acusado de ter aparelhado o Estado inteiro, e de repente se mostrou tão frágil; como medidas ousadas, que deveriam ter garantido o crescimento, fizeram o país crescer menos do que antes. A falta de respostas faz o ajuste do segundo mandato de Rousseff parecer inexplicável.
Sem uma orientação clara, os militantes de esquerda correm para o que lhes é familiar, e discutem “viradas à esquerda” que têm uma conexão muito tênue com qualquer avaliação realista dos problemas atuais.
No que se segue, procuraremos contribuir para a discussão dentro da esquerda sobre os problemas do primeiro mandato Rousseff. Desde já, adiantamos que esse é um texto corretivo: enfatiza alguns aspectos que são negligenciados na maioria das análises correntes, e trata com menos vagar de outros já exaustivamente explorados. Ele deve ser lido juntamente com aqueles com os quais ele dialoga.
Nosso ponto de partida é o texto recente de André Singer sobre o “experimento desenvolvimentista”, publicado na revista Novos Estudos Cebrap, de julho de 2015.2 O texto de Singer foi escolhido por sua grande repercussão nos círculos progressistas, e porque seu autor formulou a interpretação “canônica” do Lulismo (à qual subscrevo). Argumentaremos que a análise de Singer deixa de fora aspectos importantes, cuja incorporação pode justificar interpretações muito diferentes da sua.
A premissa fundamental de nossa análise é que a crise de 2008 foi o começo do fim das condições internacionais que tornaram o compromisso social lulista viável. Era claro que a economia brasileira precisaria passar por mudanças sérias, sob pena de voltar aos baixíssimos níveis de crescimento das décadas de 1980 e 1990. Nesse sentido, o “experimento desenvolvimentista” respondeu a uma dificuldade real: não parecia muito promissor simplesmente “voltar ao normal” dos anos 1990.
É possível que houvesse mais de um ajuste possível para a economia brasileira. Pelo menos dois foram explicitamente propostos, um ortodoxo, outro heterodoxo. Entretanto, ambos implicariam sacrifícios de curto prazo para a base social lulista: os trabalhadores organizados e os pobres desorganizados. Se o ajuste fosse tentado em um momento de força da esquerda (o que não é o caso hoje), talvez fosse possível dividir a conta com a elite econômica. Mas isso, por sua vez, implicaria o rompimento do compromisso lulista.
O governo Dilma não conseguiu propor esses sacrifícios. A escolha do experimento desenvolvimentista foi uma tentativa de adiá-los, fosse até uma nova recuperação da economia mundial, fosse até a eleição de 2014. Tratou-se, portanto, de uma tentativa de preservar o consenso lulista, não de rompê-lo. As políticas sociais que garantiam o apoio dos mais pobres foram não só preservadas mas também, em muitos casos, tiveram sua implementação acelerada. Os aumentos salariais continuaram, e incentivos econômicos foram concedidos à indústria como forma de evitar demissões no setor organizado. Houve sim, conflitos, como a “batalha do spread” descrita por Singer e a tentativa fracassada de mudar as regras das concessões (que certamente atrasou investimentos que hoje nos fazem falta).  Mas grande parte dos estímulos estatais consistiu em isenções tributárias e crédito subsidiado, provavelmente a forma de intervenção estatal com menor potencial conflitivo.
Finalmente, argumentamos que rigidez ideológica e fraqueza política contribuíram para a resistência a fazer o ajuste. E sugerimos uma linha de ação para os progressistas brasileiros diante da crise que, tal como parte da análise de Singer, se baseia em uma analogia histórica com a crise do começo dos anos 1960.

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O trabalho de Singer foi o primeiro esforço sistemático de reinterpretação do primeiro governo Dilma dentro da discussão da esquerda brasileira. Evidentemente surpreso pela virada ortodoxa do segundo mandato, Singer buscou entender o que pode ter levado um governo de esquerda recém-reeleito a abandonar o que chamou de “experimento desenvolvimentista”, mais frequentemente chamado de “nova matriz econômica”, pela ortodoxia econômica. 
O artigo de Singer faz duas coisas. Em primeiro lugar, descreve o “experimento desenvolvimentista” em termos bastante favoráveis. A luta para baixar os juros (tanto a Selic quanto o spread bancário), a briga com o setor elétrico, a mudança nas regras das concessões, a oferta de crédito pelos bancos públicos, tudo isso é descrito como uma ofensiva política consciente que tenta reorganizar a economia brasileira de acordo com outro modelo, em que o Estado tem um papel muito mais ativo e industrialização e redistribuição de renda são os dois principais objetivos.
Em segundo lugar, Singer argumenta que o conjunto das “cutucadas na onça com vara curta”, os diversos conflitos com setores do empresariado (bancos, setor elétrico, interessados em participar das concessões, etc.) levou a uma mobilização da burguesia brasileira contra o experimento desenvolvimentista. A principal evidência dessa mobilização seria a elevação do tom das críticas ao governo nos meios de comunicação.
Essa resistência empresarial é o que Singer quer explicar. Em tese, o experimento desenvolvimentista teria como base de apoio uma “aliança produtivista” de sindicatos e empresários, que opor-se-ia à aliança de setores da classe média com o capital financeiro. Ora, o empresariado abandonou Dilma muito rápido, e hoje infla patos pela rua garantindo que não vai pagar pelos subsídios que recebeu. O pato da FIESP é o único “espírito animal” que o experimento desenvolvimentista conseguiu despertar. Por que os empresários não apoiaram a nova matriz até o fim?
Para Singer, a multiplicidade de frentes de luta abertas pelo governo unificou a resistência conservadora. Utilizando um raciocínio de Fernando Henrique Cardoso para explicar o apoio dos empresários brasileiros a 1964, Singer conclui que, diante da ameaça do fortalecimento da aliança de esquerda, o empresariado prefere contrariar seu interesse imediato (o desenvolvimentismo) para não se ver fraco diante dos pobres mais à frente, quando o setor estatal tiver se tornado mais forte e as classes populares já demonstrem maior poder de mobilização. 
Finalmente, Singer lamenta a falta de mobilização correspondente do outro lado, envolvendo movimentos sociais organizados e os pobres, em defesa do experimento. Isto é, para Singer, o governo não poderia ter embarcado em uma iniciativa tão ousada sem mobilizar forças populares que lhe oferecessem apoio quando a reação empresarial chegasse.
Sob forte ofensiva conservadora e sem uma contrapartida de mobilização popular, o experimento populista chegaria ao fim com a decisão do Banco Central de aumentar a taxa de juros em maio de 2013.

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O maior problema da narrativa de Singer é que os resultados do experimento não aparecem na história conforme vão ocorrendo. De fato, o experimento desenvolvimentista começa a ser desmontado de forma algo caótica em 2013, mas não é difícil lembrar por quê: o crescimento de 2012, ano em que, segundo Singer, o experimento atingia seu auge, foi de ridículos 1%, muito abaixo do período paloccista. E mais: esse crescimento ridículo foi acompanhado de inflação crescente.
É possível, portanto, explicar o aumento dos juros de 2013 apenas nos termos do mandato legal  do Banco Central de combater a inflação. Mas podemos especular que, se o crescimento tivesse sido maior, o governo talvez tivesse deixado o combate à inflação em segundo plano por um período mais ou menos longo. Foi o que aconteceu na Turquia de Edorgan3 no pós-2008, por exemplo. Isso provavelmente teria forçado Dilma a substituir o presidente do Banco Central, mas isso poderia ter sido feito. Certamente haveria quem defendesse essa ideia.
Mas, com crescimento de 1%, como o governo poderia vender para a sociedade a ideia de que o experimento justificaria preços maiores por um período longo? Não é impossível convencer a população de que um pouco mais de inflação valeria a pena se fosse condição para dobrar a taxa de crescimento. Mas, para cortá-la pela metade, como aconteceu em 2012? Não seria fácil.
Seria possível imaginar os movimentos sociais, dez vezes mais poderosos do que então, indo às ruas defender que os trabalhadores tivessem perdas salariais com a inflação em troca de um crescimento menor do que o até então obtido com inflação baixa? O MST conseguiria vender isso a seus assentados? A CUT conseguiria vender isso a seus filiados? Não parece provável.
Isto é, a nova matriz econômica começou a ser desmontada em 2013 porque em 2012 ela deu errado. Novas autópsias ainda são necessárias para saber por que deu tão errado. Houve erros de implementação? O excesso de intervencionismo diminuiu a confiança para investir? Não fazia sentido incentivar a demanda em uma situação de pleno emprego? Os aumentos salariais foram excessivos? Os erros do experimento agravaram problemas estruturais de longo prazo da economia brasileira? Qual foi o peso da crise mundial? Ainda precisamos de mais estudos rigorosos sobre todas essas questões.
O que é indiscutível é que o experimento fracassou.
E vale notar que o desmonte da estratégia foi muito lento, uma vez que a sequência Protestos de 2013/Eleições de 2014 dificultavam a adoção de medidas impopulares. Na verdade, diversas medidas da matriz se aceleraram em 2014 (como as isenções fiscais), e parecem muito mais uma tentativa desesperada de adiar o ajuste do que uma transição a um novo modelo de desenvolvimento. E as isenções foram caríssimas: custaram cerca de 25 bilhões por ano.4
Foi esse fracasso que justificou a virada ortodoxa: o experimento desenvolvimentista esgotou completamente o Estado brasileiro, financeiramente e em sua legitimidade como indutor do desenvolvimento. Isso é claro nos dias de hoje: qualquer coisa que Nelson Barbosa faça que não seja cortar gastos é vista como imediato retorno aos desequilíbrios da nova matriz.  Uma boa ideia que os progressistas podem começar a implementar para evitar esse tipo de ofensiva ideológica é não lhe dar razão, e isso a esquerda brasileira fez com entusiasmo durante os anos do experimento desenvolvimentista.

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Como bem lembra Singer, o governo Dilma começou ortodoxo (Palocci, lembremos, era o chefe da Casa Civil nos primeiros meses do governo). Foi a crise do Euro (e, podemos especular, a demissão de Palocci) que deu origem aos primeiros movimentos do “experimento desenvolvimentista”.

Nesse ponto Singer argumenta que:

“a exemplo do que havia feito em 2008, o governo brasileiro procura sustentar o ritmo de crescimento local. Foi aí que se abriu a oportunidade de colocar em prática a nova matriz, que vinha sendo preparada desde a substituição de Henrique Meirelles por Alexandre Tombini” (p. 47).

De fato, há certo consenso de que a crise do Euro dá ensejo ao nascimento do experimento desenvolvimentista.5 Mas aqui ficam misturadas duas coisas que, de fato, se misturaram na prática, mas são muito diferentes.
Uma coisa é fazer política anticíclica, ou anticrise (mais sobre essa distinção abaixo): o governo joga dinheiro na economia, abaixa-se os juros, e espera-se que a economia volte a funcionar; quando isso acontecer, retiram-se os estímulos, e deixa-se que a economia ande com suas próprias pernas, enquanto o Estado reorganiza suas contas. 
Outra coisa é implantar um outro modelo de desenvolvimento, reorganizar a maneira como a economia funciona no médio e longo prazo. Isso implica criar padrões institucionais que, ao menos em princípio, devem durar décadas. A transição para outro modelo pode começar durante uma crise, mas não depende dela, e supõe-se que o modelo vai continuar funcionando quando a crise passar. Aqui as questões são o papel do Estado, o  financiamento de longo prazo da economia, níveis de poupança, tamanho do esforço educacional, o perfil do gasto social, etc. A referência para reflexões desse tipo costuma ser a experiência dos países asiáticos que conseguiram se tornar desenvolvidos, como a Coreia do Sul.
A maior parte das análises do primeiro governo Dilma, tanto a de Singer quanto as que identificam no experimento a causa principal dos problemas que o Brasil enfrenta hoje, enfatizam o esforço consciente do governo para transformar nosso modelo de crescimento. O primeiro plano dessas análises é ocupado pelas ideias e pelas visões de longo prazo. Não subestimamos a importância dessa dimensão. Há certamente algo de predisposição ideológica na tentativa de regular mais as concessões, ou nas tentativas de mudar a regulação do setor elétrico, ou nos diversos esforços de “microgerenciamento”. Certamente houve uma tentativa de apresentar a mudança nos juros como uma “mudança de paradigma” (ou de “matriz”).
Entretanto, enfatizaremos aqui o outro aspecto, que acreditamos ser ao menos tão importante quanto o primeiro: o quanto as medidas do primeiro governo Dilma foram uma tentativa de conter a desaceleração pós-2008 sem fazer os ajustes necessários na economia brasileira.

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Muitas das políticas do experimento desenvolvimentista fazem mais sentido como políticas anticrise do que como implementação de um novo modelo de desenvolvimento. A queda de juros, que ocupa um lugar central na argumentação de Singer, por exemplo, foi iniciada como resposta à crise do Euro; a política de conter a valorização do real certamente foi influenciada pela política do Federal Reserve americano que causou uma desvalorização global do dólar (atualmente em fase de reversão). As isenções fiscais muitas vezes foram feitas para evitar demissões na indústria, mais do que para redirecioná-las de que forma fosse. Muitas da isenções e subsídios parecem ter sido mais respostas à desaceleração do crescimento do que um plano de longo prazo.
Mas qual era o sentido de fazer política anticíclica durante esse tempo todo? Em entrevista recente ao jornalista Fernando Dantas,6 o economista Kenneth Rogoff fez um diagnóstico que talvez ilumine o problema: segundo ele, o Brasil tratou a queda dos preços das commodities após a crise de 2008 como cíclica, mas ela era permanente.
Os anos 2000 foram, sob muitos aspectos, uma era de ouro, da mesma forma que os trinta gloriosos europeus, mas para muito mais gente, e gente muito mais pobre. O crescimento da China puxou a economia mundial para cima e foi especialmente salutar para os países mais pobres.
A inserção do Brasil nesse equilíbrio internacional foi como vendedor de matérias-primas para os chineses. Não foi só isso que aconteceu na economia brasileira nesses anos todos, bem entendido. Houve boas políticas dos governos petistas, e efeitos de boas políticas dos governos tucanos anteriores. Mas é difícil negar que muito da prosperidade que chegou ao Brasil (embora não necessariamente a distribuição de seus frutos para os brasileiros mais pobres) deveu-se ao crescimento chinês e seus efeitos sobre a economia mundial.
O modelo chinês foi um sintoma da globalização: era totalmente voltado para o exterior, absorvia enorme volume de investimento estrangeiro, e se tornou o chão de fábrica das empresas multinacionais com sede no primeiro mundo. Com a crise global de 2008, os chineses fizeram sua própria nova matriz econômica, tentando redirecionar a economia para o mercado interno. Isso era dificílimo, e, no momento em que a desaceleração chinesa é evidente, não está claro que tenha sido um sucesso.7 É possível que a China escape de um desastre ou da “armadilha da renda média” em que o Brasil se encontra. Mas está claro que ela deve passar a ter índices de crescimento “normais”, muito diferentes dos extraordinários índices de dois dígitos que teve por vários anos.
Isto é, não parece que o que aconteceu no mundo nos anos 2000 tenha sido um “ciclo”, ao menos no sentido relevante para a política econômica.8 Não é impossível que outra força qualquer acelere a economia global, mas não há porque supor que a China, por exemplo, voltará a fazê-lo com a mesma intensidade. É verdade que os Estados Unidos têm dado sinais de recuperação econômica bastante razoável, mas o debate americano é justamente sobre o quanto o país pode continuar se recuperando se o resto do mundo (Europa e emergentes) continuar desacelerando. E ninguém acredita que os Estados Unidos passarão a crescer como a China crescia.
Isto é, talvez seja melhor, ao descrever os desenvolvimentos recentes, usar “choques” e “transições”, como propõe Martin Wolf,9 ao invés de ciclos. A ascensão chinesa foi uma transição, a crise de 2008 foi um choque (e a bem-sucedida política brasileira de 2008-10 poderia ser descrita então como antichoque).         
Se isso for verdade, fica claro que a manutenção das políticas anti-crise até o fim do primeiro mandato de Dilma foi um problema. As isenções fiscais e os estímulos ao crédito foram feitos esperando que recuperação? A partir de certo ponto, elas claramente começaram a rodar no vazio. É sempre fácil falar com a vantagem do retrospecto, mas hoje está claro que essas políticas deveriam ter sido desmontadas progressivamente após seu sucesso inicial (inegável) em 2008-2010.
Além disso, o país deveria ter revisto suas expectativas e rediscutido o problema do crescimento brasileiro, que é baixo desde antes ainda da redemocratização (descontado o período de prosperidade global dos anos Lula). Mas é provável que fazê-lo implicasse sacrifícios que o PT, por sua natureza e por sua inserção no sistema político brasileiro, não estivesse capacitado a fazer.

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Uma interpretação alternativa à de Singer é que o experimento desenvolvimentista, longe de ser uma ruptura, foi uma tentativa de preservar o compromisso lulista a qualquer preço em um contexto muito mais hostil.
O ajuste poderia ser de vários tipos. É difícil que não passassem por contenção do gasto público, mas diferentes reformadores teriam prioridades diferentes. Neste texto seremos agnósticos sobre as alternativas, e deixaremos o debate para os economistas. Isso não importa para o argumento, pois, no que nos interessa, ortodoxos e um grupo importante de heterodoxos estão de acordo.
Reformadores liberais procurariam retomar a agenda do período que Samuel Pessoa descreveu como “Era Malocci” (Malan + Palocci).10 Se um presidente liberal tivesse vencido em 2010 e se empenhado na reorganização da economia brasileira, veríamos maior abertura comercial, mudanças na legislação trabalhista, desburocratização, revisão de vinculações orçamentárias.11 É possível imaginar que essa agenda aumentasse a produtividade brasileira e facilitasse a retomada de níveis de crescimento razoáveis.
Mas é provável que o custo social desse programa fosse significativo: mesmo admitindo que a renda dos mais pobres subisse, também seria mais fácil demiti-los, e os pobres brasileiros não receberam uma educação que lhes permita sempre sonhar com novos empregos melhores. Há uma chance razoável de que a perda de um emprego estável seja seguida de um emprego mais precário. É certamente possível aumentar a eficiência do gasto social, mas é difícil que houvesse dinheiro para uma grande expansão das políticas de combate à desigualdade. Talvez, após vários anos, tudo isso valesse a pena: mas o custo inicial seria alto.
Por sua vez, se um governo desenvolvimentista não petista vencesse em 2010 (esse é um cenário bem mais plausível; José Serra se aproxima desse perfil), faria várias coisas que Dilma fez, e talvez fizesse mais em áreas como o câmbio. Mas lhe seria muito mais fácil desmontar as políticas anticrise, porque os pobres e trabalhadores organizados não seriam a base de seu eleitorado.
Nesse caso, talvez algumas coisas tivessem funcionado melhor. O economista heterodoxo José Luis Oreiro,12 por exemplo, critica o governo Dilma pelos sucessivos aumentos de salário acima da produtividade. Se os salários não tivessem subido, talvez fosse mais barato investir, e pelo menos alguns estímulos governamentais poderiam ter dado certo. Oreiro também defende uma desvalorização cambial substancial e maior contenção dos gastos públicos, inteiramente consciente dos sacrifícios que isso traria para a população.13

Isto é, fosse por salários mais baixos, fosse por moeda mais fraca, fosse pela redução de gastos, a conta do ajuste chegaria nos mais pobres. Novamente: talvez isso tudo começasse a valer a pena depois de alguns anos. Mas, no curto prazo, teríamos anos difíceis.

Fosse como fosse, o ajuste bateria forte na base social do lulismo, tanto nos excluídos quanto nos trabalhadores organizados. É verdade que, se o ajuste tivesse sido feito quando o governo de Dilma era extremanente popular (chegou a ter mais de 60% de aprovação), teria sido muito mais fácil dar-lhe uma cara de esquerda, resolvendo parte do problema com impostos mais progressivos. Mas isso, por sua vez, romperia o compromisso lulista na outra ponta, acirrando os ânimos dentro da elite.
Portanto, a ideia (que parece implícita na construção da “aliança produtivista” de Singer) de que teria sido possível formar um grande projeto social que só trouxesse prejuízo ao setor financeiro era quase que certamente errada. No contexto pós-crise de 2008, era provavelmente impossível fazer qualquer ajuste que não trouxesse sacrifícios inclusive aos setores populares que formam o núcleo duro do projeto político da esquerda. Um novo período de expansão eventualmente viria, e talvez desse início a um ciclo bastante positivo, mas exigiria uma transição (fosse a ortodoxa, fosse a heterodoxa) que seria difícil.

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Argumentamos acima que a resistência do governo Dilma a reestruturar o pacto lulista se explica pela dificuldade de impor sacrifícios à base popular do lulismo. Mas porque isso era tão difícil? O próprio Lula havia feito uma ajuste muito grande nos primeiros anos de seu governo.
A primeira dificuldade  era a gestão de expectativas. A recuperação do Brasil na crise de 2008 foi realmente impressionante. E antes da crise houve o auge do Lulismo. A visão geral era que o Brasil estava na ascendente. Essas expectativas, que hoje sabemos terem sido irreais, provavelmente estão por trás dos protestos de 2013. Hoje parece incrível, mas faz só dois anos e meio que discutimos a sério aumentar as vinculações orçamentárias e oferecer ônibus de graça.

A segunda dificuldade era justamente a instrumentalização política do discurso da “nova matriz econômica”. Ao embrulhar as medidas anticrise como um programa de longo prazo, o governo dificultou muito abandonar o que estava dando errado. O framing das diversas políticas como expressão de um programa político consistente fez com que qualquer recuo parecesse uma derrota ou, como se vê em algumas análises atuais dentro da esquerda, uma traição.

Além disso, como é absolutamente evidente no debate atual, a esquerda brasileira não parece dispor dos instrumentos intelectuais para lidar com a necessidade de reorganização periódica das contas públicas. A associação, profundamente equivocada, do equilíbrio fiscal com a agenda liberal facilitou a passagem a políticas de gastos excessivos quando o liberalismo entrou em crise depois de 2008.

E, finalmente, o ajuste teria dado início a uma debandada dos aliados, uma versão amenizada da corrida desesperada que vimos em 2015. A imensa maioria dos aliados do PT no sistema político brasileiro têm pouca ou nenhuma identificação com as ideias do partido. A aliança se justifica pelo acesso ao Estado (seja lá como for). O ajuste diminuiria muito a chance do PT vencer em 2014, o que teria efeito corrosivo sobre a lealdade de seus aliados. E, é claro, um ajuste fiscal geraria menos rendas a serem apropriadas pela base aliada.

Desta forma, a combinação de rigidez ideológica com fraqueza política provavelmente atrasou o ajuste. E hoje vemos que o adiamento do ajuste agravou imensamente ambos os problemas. A base política se desintegrou e a esquerda se isola cada vez mais em argumentos que só fazem sentido para quem já concorda com ela desde sempre.
Nada disso justifica não termos feito o ajuste quando a esquerda se encontrava em uma posição de força. Mas é preciso reconhecer que nunca teria sido fácil. E, sobretudo, é preciso reconhecer que devemos fazer o ajuste agora.

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Singer termina seu texto remetendo o leitor ao debate ocorrido na esquerda sobre o golpe de 1964. Na mesma linha, proponho outra analogia: a esquerda precisa de um novo Plano Trienal, como o proposto por Celso Furtado durante o governo Jango.
O plano Furtado combinava medidas ortodoxas de contenção fiscal e medidas que visavam a redistribuição de renda. Tentava, enfim, articular um compromisso que garantisse que a democracia brasileira ganhasse estabilidade para atravessar a crise do período populista. A implementação do plano foi travada pela polarização política da época, inclusive pela esquerda.14

Dessa vez, precisamos fazer melhor. A saúde fiscal do Estado Brasileiro precisa ser recuperada, não só com a reversão das políticas do experimento desenvolvimentista (que, repetimos, não gerou crescimento nenhum), mas também com o desarme de mecanismos que vêm fazendo com que os gastos sociais cresçam sempre mais que o país. Sim, quem notou esse problema primeiro foram os liberais. Isso não quer dizer que seus números estejam errados.

E, ao mesmo tempo, devemos redirecionar a esquerda brasileira para um programa de fato redistributivista. Não estou pedindo que ninguém abandone sua concepção sobre como deve ser o desenvolvimento brasileiro. Mas a esquerda deve ser muito mais agnóstica sobre o fato de que políticas públicas levarão ao crescimento. Em nenhuma hipótese é admissível que a tomada de partido nas brigas de departamento de economia seja considerada indispensável para o pertencimento entre os progressistas.
E, finalmente, o foco deve passar de baixar os juros para aumentar a progressividade do Estado brasileiro, tanto na taxação quanto no gasto. Vivemos em um dos países mais desiguais do mundo. Mesmo se a esquerda abandonar algumas de suas premissas sobre política econômica, a chance de que fique sem nada de útil para fazer é zero.

    
    

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ



1 “Por Novas Autópsias de Dilma I”, publicado no jornal Valor Econômico, de 25 de janeiro de 2016.

2 “Cutucando onças com varas curtas: O ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014)”, in Novos Estudos Cebrap, nº 102, julho de 2015.

3 “Turkey Misses Inflation Target for Third Year Running” in <www.bloomberg.com/news/articles/2014-01-03/inflation-at-7-4-sees-turkey-miss-target-for-third-year-running>.

4 “Brincadeira da desoneração se mostrou extremamente Cara, diz Levy” in <g1.globo.com/economia/noticia/2015/02/brincadeira-da-desoneracao-se-mostrou-extremamente-cara-diz-levy.html>.

5 Em 6 de abril de 2014, por exemplo, Joe Leahy escreveu no Financial Times: “Most economists believe Ms Rousseff’s government began to stumble in 2012 after the start of the eurozone crisis. With the global economy still weak and the US Federal Reserve still pumping liquidity via its quantitative easing programme, the government began a campaign to reduce interest rates to what were for Brazil unprecedented lows”. (In: <www.ft.com;).

6 Cf. <economia.estadao.com.br/blogs/fernando-dantas/rogoff-problema-e-dos-emergentes>.

7 Cf. <www.theguardian.com/business/economics-blog/2015/oct/19/chinese-economic-slowdown-or-slow-  rebalancing>.

8 É possível que a transição atual seja um momento de algum ciclo longo da história capitalista, mas ninguém até agora inventou uma política anticíclica para ciclos de Kondatieff ou coisas do gênero.

9 Martin Wolf. As transições e os choques: o que aprendemos - e o que ainda temos que aprender - com a crise financeira. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.

10 Cf. o artigo de Samuel Pessoa em <www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2014/05/1456135-determinantes-do-crescimento.shtml>.

11 Ver por exemplo, o influente manifesto liberal “O ajuste inevitável”, de Mansueto Almeida, Marcos Lisboa e Samuel Pessoa, disponível em <mansueto.files.wordpress.com/2015/07/o-ajuste-inevitc3a1vel-vf_2.pdf>.

12 Cf. entrevista ao jornalista Fernando Dantas em <economia.estadao.com.br/blogs/fernando-dantas/heterodoxo-contra-heterodoxo>.

13  Cf. entrevista ao jornalista Fernando Dantas em <economia.estadao.com.br/blogs/fernando-dantas/novo-round-no-debate-economico/>.

14 Cf. Figueiredo, Argelina Cheibub. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política 1961-1964 . São Paulo, Paz e Terra, 1993, Capítulo 3.