POLÍTICATEORIA
CULTURA
ISSN 2236-2037
Correspondência entre Fabiana Faleiros, Marília Garcia e Luísa Nóbrega em torno de textos de Hilda Hilst |
0 - HH para FF
Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim. Cansei-me de leituras, conceitos e dados. De ser austera e triste como consequência. Cansei-me de ver frivolidades levadas a sério e crueldades inimagináveis tratadas com irrelevância, admiração ou absoluto desprezo. Sou velha e rica. Chamo-me Leocádia. Resolvi beber e berimbar antes de desaparecer na terra, ou no fogo ou na imundície ou no nada. aquieta-te, deixa-me limpar o molhado da cara
Gostaria de ser coeso, calmo, frívolo. Sim porque há coesão e calmaria na frivolidade. Ou não pensam assim? Então repensem. Tinha horror ao sexo. Cheiros gosmas ginástica convulsão. Horror principalmente ao silêncio daquelas horas. Melhor, horror dos guinchos e outros sons que se pareciam aos sons das funduras, dos poços, das borbulhas. Gostava de sentar-se e ler. Principalmente Chesterton e sua Ortodoxia. Os amigos perguntavam: tu não gosta de foder, não? Não, ele respondia, tenho nojo. Nojo de quê? De corpos se juntando, dos cheiros, dos ruídos. Foi ficando sozinho com seus livros e seu nojo. Gostava de pensar mas pouco a pouco foi sentindo o cheiro das ideias, e as mais possantes, as mais genuínas, as mais veementes tinham o mesmo cheiro do sexo e daquela gosma da casuarina. Então pela disciplina e pelo jejum foi esvaziando a mente. Via cores e as cores não tinham cheiros e isso era bom. Sentou-se no chão da sala e ficou ali até perceber que tinha se tornado um ponto vivo de luz dourada. Até que o garotão o acordou e disse: qué mais uma berba, doutor?
0 - HH para LN
Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim. Quando gozo espio a amplidão. A minha amplidão aqui de dentro. A que não tive, a que perdi. Perdi tantas palavras! Minha vida tem sido um sair de todos os buracos. Sair... imaginem, estou cada vez mais fundo, ou saio de um e entro noutro, buracos pequeninos, maiores, agigantados, e outros grandes buracos cheios de excremento, e eu tentando apenas inventar palavras, eu tentando apenas dizer o impossível. Miudez, quentura, gosto. Mover-se pouco. Não dizer. As mãos na parede. No corpo. Pensar o corpo, tentar nitidez. Hillé menina tateia Ehud menino. Dedos dos pés. Se a gente mastigasse a carne um do outro, que gosto? E uma sopa de tornozelo? E uma sopa de pés? Na comida não se põe pé de porco? Por que tudo deve morrer hen Ehud? Por que matam os animais hen? Pra gente comer. É horrível comer, não? Tudo vai descendo pelo tubo, depois vira massa depois vira bosta. Fecha os olhos e tenta pensar no teu copo lá dentro. Sangue, mexeção. Pega o microscópio. Ah, eu não. Que coisa a gente, a carne, unha e cabelo, que cores aqui por dentro, violeta vermelho. Te olha. Onde você está agora? Tô olhando a barriga. É horrível Ehud. E você? Tô olhando o pulmão. Estufa e espreme. Tudo entra dentro de mim, tudo sai. Não tem nada que só entra? Não. E Deus? Deus entra e sai, Ehud? Isso não sei. O que eu podia fazer com as mulheres além de foder? Quando eram cultas, simplesmente me enojavam. Não sei se alguns de vocês já foderam com mulher culta ou coisa que o valha. Olhares misteriosos, pequenas citações a cada instante, afagos desprezíveis de mãozinhas sabidas, intempestivos discursos sobre a transitoriedade dos prazeres, mas como adoram o dinheiro as cadelonas! Ó conas e caralhos, cuidai-vos! Clódia anda pelas ruas, pelas avenidas, olhando sempre abaixo de vossas cinturas! Cuidai-vos, adolescentes, machos, fêmeas, lolitas-velhas! Colocai vossas mãos sobre as genitálias! A leoa faminta caminha vagarosa, dourada, a úmida língua nas beiçolas claras! Os dentes, agulhas de marfim, plantados nas gengivas luzentes! Cláustica Clódia atravessa ruas, avenidas e brilhosas calçadas. Ó, pelos deuses, adentrei vossas urnas de basalto porque a leoa ronda vossas salas e quartos! Quer lamber-vos a cona, quer adentrar caralhos, quer o néctar augusto da vagina e falos! Centuriões, moçoilos, guerreiros, senadores, atentai! Uma leoa persegue tudo o que é vivo mole incha e cresce! Trançai vossas pernas, trançai vossas mãos atentas sobre as partes pudentas! Não temais a vergonha de andar pelas ruas em torcidas posturas, pois Clódia está nas ruas!
0 - HH para MG
Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim. Por isso quem sabe envolvi cada palavra na chama cor de laranja, pena então que os versos só consigam vigor a adequação quando enfim já para nada servem. Os do outro lado entendem quando sobrevoo colinas de duro papel e de cimento, sobrevoo a terra, pretendo afastar-me e ainda não posso, os meus fazeres mínimos talvez deem sequência a uma vida desjuntada como a minha, hoje veio à casa uma jovem senhora, carregada de modismos, de nadas, olhou as geringonças, disse puro, eu disse o quê, senhora? Estou doente por tudo isso e porque não posso pensar na morte, nem na minha nem na do Kraus nem na barata, tenho medo da pestilenta senhora e imagino-me puxando-lhe o grelo, esticando-lhe os pentelhos até ouvir sons tensos arrepiantes. Hoje gritei demente: vem, Madama, vem, e irado, numa arrancada, soltei da pestilenta grelo e pentelhos e eles esbateram-se frenéticos nos seus baixos meios. Se pudesse seduzir a morte, lamber-lhe as axilas, os pelos pretos, babar no seu umbigo, entupir-lhe as narinas de hálitos melosos, e dizer-lhe: sou eu, gança, sou eu, mariposa, sou Karl, esse que há de te chupar eternamente a borboleta se tu lhe permitires longa vida na olorosa quirica do planeta. Rimbaud tinha dezenove quando escreveu aquilo é, mas é raro, moçoilos são fracotes no UMM, e então continuando, um de vinte, vinte cinco talvez, duro e vigoroso, um que não sucumba diante do mosaico intumescido de cores vivas onde desenhas a vida, e num canto lá em cima desse grande mosaico um negrume de vísceras, um desespero só teu, esse negrume teu que busca es que busco La Cara, La Oscura Cara bobagem. Então continuando, esse muito jovem há de sorrir diante do teu discurso, te põe de imediato a mão nas tetas e diz teu Deus sou eu, Hillé, já me encontraste, e se ainda continuares com tuas pretensas justas palavras e tua cara de pedra quando falas na busca, esse muito jovem há de te mostrar já sei. Uma bela caceta isso. E delicado mas firme te faz abrir as pernas e repete sei. Teu Deus sou eu.
1 - FF para LN
Chego em casa Chego em casa Depois do show . . Chego em casa e leio e leio e leio e leio . Chego em casa . Me depilo em casa . Eu já te conheço, já te peguei nesse lugar? Eu disse não, nunca vim aqui antes. Daí ele disse então eu já te levei em outro lugar. Você não é daqui, né? Por que eu já conversei contigo, você ficou conversando bastante comigo, sei pela tua voz manhosa, essa voz de quem parece que está morrendo. . Depois do show . Escuto um homem gritando na rua
1 - LN para MG
tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei como se eu estivesse numa cela. numa selva. . toda vez que a lua entra em quarto minguante tem água demais, não dá para atravessar a calçada . de vez em quando abro buracos com uma furadeira. às vezes não é uma furadeira mas uma daquelas com elas eu faço um corte preciso nas costas. . as costas são páginas duplas o tampo da tua garganta faz um click . certa vez abri um buraco redondo exatamente no meio do tronco eu quase nunca uso a palavra corpo eu quase nunca uso a palavra deus . um cara recebeu esses dias escreva num papel a frase que precisa escorrer pelo ralo. recorte as sílabas com uma tesoura de escola deposite a sílaba escolhida em uma frigideira engula afoito o líquido branco. . ah como o topo da minha cabeça arrepia todo . deixo as canções girando no estômago quando ajoelho diante da britadeira
1 - MG para FF
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2 - LN para FF
faz uns dias tinha um pastor enquanto ele falava "talvez seja nossa missão registrar isso que se passa aqui", alguém disse o pastor continua vociferando ontem acordei com um hieroglifo estou dormindo do lado de um cara hoje ele me mostrou as esculturas dele tem outra que parece um anus tem um livro na mesa que eu não sei de quem é o ouvido na viga de madeira me lembra aquela expressão eu gosto disso das partes do corpo parecerem próteses às vezes eu tenho que escrever sobre uns livros idiotas eu gosto/não gosto das flores artificiais se um cachorro arrancar meu braço ::: HH: Uma vez eu trabalhei numa fábrica de bolsas de plástico, foi depois daquela dos relógios, aquela que funcionou bem e que por isso não fecharam, então quando eu trabalhava nessa fábrica das bolsas, eu comecei a pensar assim: 2 - MG para LN
1. 2. você recorta as palavras 3. 4. ::: HH: Tínhamos discussões intermináveis. Eu lhe mostrava meus textos e ele dizia: tu não tens fôlego, meu chapa, tudo acaba muito depressa, tu não desenvolve o personagem, o personagem fica por aí vagando, não tem espessura, não é real. Mas é só isso que eu quero dizer, não quero contornos, não quero espessura, quero o cara leve, conciso, apressado em si mesmo, livre de dados pessoais, o cara flutua, sim, mas é vivo, mais vivo do que se ficasse preso por palavras, por atos, ele flutua livre, entende? Não? E ajeitava os óculos, não e não. Achei conveniente não lhe mostrar mais os textos. Ele me encontrava e insistia: hof hof hof, fôlego, meu chapa, fôlego, espanta as nuvenzinhas flutuantes, dá corpo às tuas carcaças, afunda os pés no chão. Eu implorava: para com isso, para, um dia quem sabe tu entendes. Não entendeu. Na frente de amigos, de minha mulher, de meus filhos ele começava: hof hof hof, fôlego meu chapa, eu aperfeiçoava a minha butterfly, e meu ritmo era rápido, harmonioso, cheio de vigor. Gritei-lhe antes de vê-lo desaparecer, fôlego é isso, negão. Estou em paz. E dedico-lhe este meu breve texto, leve, conciso, apressado de si mesmo, livre de dados pessoais, muito mais vivo do que ele morto.
2 - FF vai para MG
Hoje em dia se escreve com os dedos principalmente Agora faço tudo com o dedo que indica: Ou seja, é Coisas acontecem logo depois que escrevo: ::: HH: Agora, sujo de ódio, atiro o dedo pela janela. A noite está fria e há estrelas. São atos como esse, vejam bem, que fazem desta vida o que ela é: sórdida e imutável.
3 - FF
Hoje cheguei em casa elas falam todas as frases como se fossem frases não falam de doenças . o pai de uma das pessoas que vivem no país era ele fazendo que tinha morrido para que não o matassem até mesmo com o pai vivo até hoje depois que o pai voltou da morte anunciada durante todos esses anos . chikungunya significa "aqueles que se dobram" as articulações que antes davam o movimento um mosquito (uma espécie de vampiro) picou a mãe Agora que está curada . sonhei que tinha uma teta na altura do antebraço
3 - LN
a falta de fôlego é imperdoável agora espatifou-se respirar é difícil enquanto a gente não morre a gente ainda pode se espantar com as estátuas às vezes a gente atira uma palavra na parede há algo mais que você quer saber? tento lembrar de uma palavra agora: talvez seja o estrondo difícil distinguir falta de sono de entusiasmo anímico
3 - MG
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fevereiro #
8
Débola BOLSONI, da série Melina's Book