revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Bento Prado Jr.1

A Biblioteca e os bares na década de 50

 


Não há lugar-comum mais repisado do que o que fala sobre a rapidez do crescimento da cidade “que não pode parar”. Menos trivial, talvez, será a alusão aos efeitos desse tempo acelerado no estilo da sociabilidade e da vida cultural. Efeitos que é possível identificar e descrever, sem recurso à artilharia pesada das ciências sociais, bastando dar livre curso à espontânea ruminação da matéria imediata e bruta da vida quotidiana, com apoio no contraponto da memória. Puro exercício de rememoração, a que está habilitado qualquer um que já fez cinquenta anos. Trinta e poucos anos é o que basta, em nosso caso, para um trabalho de natureza quase arqueológica.
Não é raro, hoje em dia, quando visito São Paulo, ir à noite ou de madrugada ao bar, sempre aberto, do hotel Eldorado, na Avenida São Luis. De lá, é possível vislumbrar, com a desejada falta de nitidez, a Praça Dom José Gaspar e o trecho importante da avenida. Bem escolhida a mesa, talvez nosso olhar possa abranger, de um só golpe, a Biblioteca Municipal e os locais ocupados, no passado, por quatro bares: Paribar, Mirim, Barbazul e Arpège. Trata-se, é claro, de uma excursão sentimental e saudosista: sem desmentir Paul Nizan, é preciso reconhecer o privilégio da adolescência nas “idades da vida”. Ou, pelo menos, nas idades da vida, tal como foram definidas, segundo Philippe Ariès, pelo modelo escolar e familiar que a burguesia imprimiu ao processo de socialização.
Foi em 1954 que comecei a frequentar a Biblioteca Municipal. Estudante secundário, ia lá buscar livros de filosofia, literatura e teoria política. O que, na época, correspondia a Filosofia Grega, Sartre e Camus, Drummond e Rilke, Herman Hesse, T. Mann, Trotsky, etc. Mas, o que encontrei foi sobretudo uma população que partilhava minhas leituras, ignorâncias e manias, a que fui rapidamente incorporado. A sala de leitura não era o único espaço usitado; no saguão, em torno da estátua de Minerva, os adoradores da deusa (como esses frequentadores foram ferinamente denominados por jovens professores da Faculdade da Rua Maria Antonia, ciosos da tecnicidade de seu saber universitário) teciam um discurso interminável onde arte, literatura, filosofia e política andavam em osmose permanente.
A imaginação ideológica funcionava em regime de ebulição e todas as vanguardas - do pensamento, da arte, e da política - eram alegremente mimetizadas. Tudo isso, é claro, sem o ascetismo das Escolas e sem economia de grandiloquência ou sem muito senso de medida. Uma indubitável falta de realismo, que era, todavia, compensada de alguma maneira por muita vivacidade e uma atenção sempre alerta para a experiência cultural contemporânea. Uma espécie de reação imediata ao presente: assim, por exemplo, mal era publicado Noigandres e, com meu amigo Celso Luis Paulini, batíamos à porta de Augusto de Campos, para uma longa conversa, noite adentro, sobre poesia. Mas sobretudo era notável, pensando retrospectivamente, uma relação, por assim dizer, global com a cultura, assegurada, talvez,  por uma espécie de “esquerdismo” difuso, rebelde diante de qualquer forma de compartimentação, institucionalização ou doutrinarismo. Esquerdismo que oscilava entre os polos do anarquismo e do trotskismo, só recusando a vertente intolerável do stalinismo. Algo que poderia ser expresso no seguinte lema: socialismo, sim, mas com Proust e Kafka.
Nem faltou um começo e organização propriamente política, numa tentativa de institucionalização de uma Juventude Socialista (da qual Paul Singer era a figura mais proeminente). Mas a organização não era o forte desse grupo de adolescentes. Digamos que a marca registrada era a do mais puro espontaneísmo, desejado teoricamente e vivido praticamente. O que, aliás, torna mais surpreendente a persistência do grupo (ou dos grupos) que, paradoxalmente, acabou por institucionalizar-se, há pouco tempo, na forma da Associação dos Amigos da Biblioteca Mário de Andrade.
Livre do peso das instituições escolares e dos partidos políticos, essa população particularmente flexível ignorava a tensão que opões normalmente estilos intelectuais, como o “político” e o “artístico”. Os “políticos”(quando não eram igualmente “artistas”, como o Barão de Fiori - outros “políticos” da época eram Leôncio Martins Rodrigues, Maurício Tragtemberg e Carlos Henrique Escobar) eram aliás menos numerosos do que os “artistas”, em cujas fileiras predominava a gente do teatro. É o que se pode ver, lembrando os nomes (por ordem de entrada em cena) de Manoel Carlos, Cyro del Nero, Flávio Rangel, Antunes Filho, Fernando Torres, Fernanda Montenegro e Augusto Boal, entre outros - como dramaturgo que é, Roberto Schwarz pode entrar nesta lista.
O saguão da Biblioteca não era, no entanto, uma ilha. Principalmente à noite, seus frequentadores se espraiavam pelas imediações.  A começar pelos bancos do jardim, sobretudo ao lado do busto de Mário de Andrade, que alguns chegaram a tentar furtar.  Houve mesmo quem tivesse a cabeça ferida nessa tentativa meio surrealista de homenagear o poeta, cujo pesado busto parecia esquivar o preito que lhe era assim rendido. A praça revelava-se excelente local para o desdobramento das tertúlias lítero-político-metafísicas; e tanto mais agradável , quanto éramos seus únicos usuários naquelas noites tranquilas. Local de escolha, de que nos considerávamos vagamente proprietários e ao qual nos sentíamos relegados a contragosto, mesmo quando a falta de dinheiro fechava qualquer outra possibilidade.
Bastava, no entanto, que alguém dispusesse de mais recursos, para que o seminário permanente migrasse para o outro lado da rua, em direção aos espaço privilegiado dos bares. E os bares não faltavam, na própria praça e na adjacente Avenida São Luis, com o seu estilo sedutor dos Cafés Parisienses. As mesinhas de calçada do Paribar (onde amiúde pontificava Sérgio Milliet), na própria Praça Dom José Gaspar, dispunham-se como em continuidade com os bancos do jardim. Passar de um lado para outro não implicava em salto ou descontinuidade. No máximo, talvez, uma sutil promoção, algo como um ganho de dignidade, que compensava a perda de exclusividade ou hegemonia.
Estávamos longe de ser, é claro, hegemônicos nesses bares, onde predominava a jeunesse dorée paulistana. Uma gente que se distinguia da nossa já pelas roupas e pelo consumo de bebidas importadas - nossos bolsos chegavam à cerveja com alguma dificuldade. Seria possível pensar, hoje, um grupo de alunos da Filosofia da USP, entusiasta da IV Internacional, frequentando pacificamente o Pandoro? Hoje, mal comparando, esse estilo de boemia intelectual me aparece como uma espécie de “comunismo primitivo”, anterior ao penoso trabalho de divisão social do lazer. Sem que houvesse muita comunicação, certamente não havia muita hostilidade entre os que vinham da Biblioteca e os “Inocentes do Mirim”, como apelidamos os outros, pensando em um poema de Drummond.
Nossos bares eram sincréticos e ignoravam qualquer tipo de especialização, como a que se esboçaria em meados da década de 60 (para minha surpresa, quando voltei ao Brasil, depois de dois anos no exterior), com bares do estilo do Ferro’s ou do Redondo,  que possuíam já uma natureza francamente corporativa.
Façamos o contraponto com o Arpège. Ao contrário dos demais já abolidos, não era um bar de estilo parisiense. Era apenas uma lanchonete, mas levava ao extremo a vocação comum de osmose social a que nos referimos. Com a turma da Biblioteca, convergiam no Arpège artistas plásticos, jornalistas, universitários e todas as formas de dissidência política, cultural ou simplesmente sexual.
Quanto aos universitários, não era raro ver reunidas, em torno de um chope, a direita e a esquerda da Faculdade de Filosofia, ponderando amigavelmente suas diferenças, numa cena inimaginável depois de 64 e, principalmente, da Grande Repressão de 69.
Era como se a sociedade global pudesse se espelhar inteira no espaço estreito do bar, numa forma antes comunitária que societária.
Numa palavra, todo mundo se conhecia e São Paulo aparecia ainda como uma cidade docemente provinciana. Ninguém imaginava, creio, nesses anos 50, como o crescimento demográfico em surdina iria repercutir, logo a seguir, nesse pequeno mundo, transformando tão rápida e radicalmente a Universidade e o estilo da boêmia intelectual. Em menos de uma década, nossa Escola tornou-se uma Universidade de massa e nossos bares foram varridos do centro da cidade. Em meados da década de 60 já havíamos perdido nossa pátria paulistana.
A cidade, portanto, desprovincianizou-se, para bem de sua vida cultural, cada vez mais “profissional”. Mas é impossível, para quem foi adolescente nos anos 50, não ter saudades daquela cidade que descobria então, ao mesmo tempo que se descobria a si mesmo.
Na verdade, tenho a impressão de que, mesmo depois da maturidade, continuamos a trazer conosco, como uma espécie de prótese mental inalienável, a paisagem urbana de nossa adolescência.  Principalmente quando, como a nossa, essa matriz é a de uma cidade perfeitamente habitável e confortável, onde ainda se passeava, de dia como de noite. Cidade que nos vestia como roupa feita sob medida, sobretudo enquanto nosso olhar não alcançava muito além dos limites da Praça Dom José Gaspar e da Avenida São Luís, qualquer que fosse o ideário político.    










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ilustração: Rafael MORALEZ



1Publicado na Revista da Biblioteca Mário de Andrade, n. 50, 1992.