revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Henri Pena-Ruiz
tradução e notas por Roberta Soromenho Nicolete

O papa, a mãe do papa e as caricaturas1

 

 


TRIBUNA Citemos o papa Francisco I, em 19 de Janeiro: “Se um grande amigo fala mal de minha mãe, ele pode esperar por um soco e isso é normal. Não se pode provocar, não se pode insultar a fé dos outros, não se pode ridicularizá-la”. Pretendendo instruir sobre os limites da liberdade de expressão, o papa Francisco se rende a expressões caricaturais que jogam com a amálgama e a confusão.
Por um lado, ele coloca em um mesmo plano um insulto pessoal (falar mal de Regina María Sivori, a mãe dele) e um desenho caricatural que tem por alvo uma religião. Por outro lado, ele estabelece uma equivalência entre esse desenho, representação ficcional, e uma violência física real: dar um soco em alguém. Certamente, há uma distância entre um soco e uma rajada de kalachnikov. Porém, aqui, o registro da violência parece validado como resposta legítima a uma ridicularização mediada por signos (“Isso é normal”, o Papa ousa dizer). A gente se pergunta, então, qual alcance poderiam ter as condenações verbais à violência expressas na parte inicial de seu pronunciamento.
O Papa, nesse ponto, apaga a cronologia da história real. Pois não foi a caricatura que antecedeu o assassinato, mas o inverso. É preciso lembrar que as caricaturas do Charlie [Habdo] retomavam a tônica daquelas dos caricaturistas dinamarqueses, após o assassinato, em 2 de novembro de 2004, do cineasta Theo van Gogh, autor de Submission, filme que trata da dominação das mulheres em um contexto islâmico. Com o desenho satírico, as caricaturas não tinham por alvo os muçulmanos em geral, mas um profeta que justificaria o assassinato. Que não se amalgame, com efeito, as pessoas muçulmanas e o fanatismo religioso.
Assim, é perturbadora uma comparação que ousa encontrar circunstâncias atenuantes para o assassinato, ainda que sem legitimá-lo nele mesmo. Dois erros simultâneos. De um lado, a inacreditável confusão entre acusar uma religião e insultar uma pessoa como tal. De outra parte, uma concepção estranha da justiça, pois o Papa de uma religião dita “do amor” considera legítimo que, em caso de insulto pessoal, a justiça seja feita pelas próprias mãos e por uma violência física. Estamos longe da parábola que ensina a oferecer a outra face.
Mas há algo ainda mais grave, a vontade implícita de penalizar a blasfêmia com uma espécie de chantagem: “Para evitar violências criminais, respeitem a religião!”. Daí colocarmos a seguinte questão: o que é respeitável? Originado de uma palavra latina que designa o olhar carregado de consideração (respectus), o respeito se aplica a pessoas e não se refere a coisas ou a crenças. É o sentimento de que um ser humano, como tal, merece consideração. Em suma, é a pessoa humana, bem como a sua liberdade, que é respeitável, e não a sua convicção particular. Assim, por exemplo, a declaração de Philippe Tesson,2 insultando os muçulmanos como tais “Os muçulmanos trazem merda à França atualmente” [“Les musulmans amènent la merde en France aujourd’hui”] remete à injúria racista, porque acusa não uma concepção religiosa, mas um grupo de pessoas em razão da sua religião. De modo similar, toda ridicularização da Shoah insulta a memória dolorosa de judeus como tais, e corresponde a um delito. Não há aí, com efeito, dois pesos e duas medidas para uma coisa idêntica, mas duas coisas rigorosamente distintas do ponto de vista do direito. Quanto aos desenhos satíricos do Charlie Hebdo, eles jamais visaram pessoas ou grupos de pessoas como tais.
Aliás, é preciso romper com as palavras que são verdadeiras armadilhas, as que confundem a crítica a uma religião com o insulto aos crentes. O termo “islamofobia” (islamophobie) é uma dessas ciladas, pois busca confundir o ato de rejeitar uma religião com o de repulsar os fiéis. O único delito incontestável é o racismo que tem por alvo os muçulmanos, isto é, a acusação a uma pessoa ou a um grupo de pessoas em decorrência de sua religião. No mesmo espírito, o antissemitismo é evidentemente um delito, mas a “judaismofobia” (judaïsmophobie), se por isso se compreende a rejeição da religião de certos judeus, não poderia ser confundida com o racismo antissemita. Imaginemos, enfim, que os ateus, cansados de serem considerados os vetores do imoralismo, inventem o termo “ateofobia” (athéophobie) e proclamem que toda caricatura do ateísmo seja considerada um delito. Inúmeros religiosos não se privam de tais violências polêmicas e eles possuem tal direito, desde que tenham por alvo apenas uma convicção.
Uma pessoa religiosa é livre para acreditar em Deus; um ateu é livre para afirmar um humanismo sem Deus. O crente e o descrente são ambos igualmente respeitáveis como seres humanos livres. Eles podem coexistir, mas à condição de que a opção de um não se imponha a outro. O ateu pode, então, criticar a religião, como o religioso, o ateísmo. A psicologia do fanatismo recusa essa distinção, pois ela rejeita toda a distância entre a pessoa e a sua convicção. Com efeito, ela exige o respeito às crenças e não apenas aos crentes enquanto pessoas. Como se a crença, inseparável do ser, colasse à pele. Disso decorre o delito da blasfêmia que pretende penalizar toda crítica a uma religião alegando que ela insulta pessoas religiosas como tais.
Em face disso, a educação deve promover a distância de si (distance à soi), antídoto ao fanatismo. Montaigne, contemporâneo das guerras de religião, lembrava que “É preciso não confundir a pele com a camisa”.3 Chega de dizer que, com o cultivo de uma tal distância interior, a esquizofrenia é disseminada entre as pessoas! A apologia à espontaneidade excessiva confundida com a autenticidade é perigosa. Cada pessoa pode assumir livremente sua fé religiosa ou seu ateísmo, mas sem se esquecer de que ela é também depositária de uma humanidade universal. A incitação laica à moderação e à distância interior é fonte de paz: ela inspira o respeito ao outro sem exigir por isso o respeito à opinião alheia.        
A lei comum, fundada sobre o direito, não depende de nenhuma crença particular, pois ela deve valer para todos. De acordo com Bayle: “Há blasfêmia apenas para aquele que venera a realidade blasfemada”.4 Nota-se bem que a laicidade não é de nenhum modo antirreligiosa. Simplesmente, ela consiste em lembrar que a religião deve engajar apenas os seus adeptos, e apenas estes.
O fanatismo religioso, como se viu, está pronto para banhar no sangue o direito à vida e à liberdade de expressão. Não lhe concedamos nenhuma desculpa. E não misturemos tudo com declarações de que, sendo o Islã a religião de muitos oprimidos, o islamismo político mereceria consideração especial.
Dupla confusão, reiteramos. Atacar o islamismo não é ofender os muçulmanos que são sempre as primeiras vítimas. Não misturemos as coisas. Além disso, não se resolve uma injustiça social calando a exigência laica. Os grandes registros de emancipação caminham par a par, como ressaltou Karl Marx, fazendo o elogio da obra, ao mesmo tempo laica e social, realizada pelos Communards de Paris, em 1871. Em suma, chega de imputar à laicidade as exclusões que remetem a problemas econômicos e sociais ou a mentalidades ainda marcadas pela ideologia racista. E, com isso, tratemos as duas grandes questões de integração republicana, sem erro de diagnóstico. 










fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ



1 Texto publicado no jornal Libération, em 28 de Janeiro de 2015.

2[N.T.] Trata-se do jornalista cujas declarações, em 13 de Janeiro de 2015, após o ataque ao Charlie Habdo, levaram à abertura de um processo por serem consideradas “incitação ao ódio”.

3 [N.T.] O autor faz referência aos Essais (TIII, c.10) de Michel de Montaigne.

4 [N.T.] O excerto referido é atribuído a Pierre Bayle e pode ser conferido em Oeuvres diverses, TII, c.VII.