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NOTA: Dadas as suas dimensões, esse texto não era para ser publicado integralmente, mas sim em dois números sucessivos da Revista, o que não estamos fazendo, pela preocupação com um eventual envelhecimento do tema. Nessas condições, aconselharíamos o leitor a ler em duas vezes o texto (integral) que publicamos nesse número: por exemplo, primeiro as cinco primeiras seções; e num momento posterior, as duas seções finais, seis e sete |
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1. Introdução
2. O massacre e as circunstâncias
3. Charlie Hebdo e os atentados
4. Blasfêmia
5. O contexto
I. A trajetória do Islã e a hegemonia dos fundamentalismos.
II. A juventude, a banlieue e os paradoxos da integração.
6. Islã, jihadismo. religião, religiões do Livro.
7. Depois do massacre.
1. Introdução
A série de ataques terroristas que ensanguentou a França, de 7 a 9 de janeiro de 2015, não teria sido uma surpresa não fosse o número de vítimas e o fato de que, com elas, liquidou-se quase toda a equipe de redação de uma revista, incluindo cinco dos maiores caricaturistas do país. De fato, a ameaça do terrorismo jihadista estava presente. Para além da França, sua presença se fazia mesmo num crescendo, mas ninguém esperava uma operação dessa ordem, só comparável, mutatis mutandis, ao 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, quando aviões sequestrados por terroristas islâmicos foram lançados contra o World Trade Center, em Nova York, e contra o Pentágono, em Washington.
A sequência de atentados, praticados por três jovens de nacionalidade francesa, dois irmãos, de pais argelinos, e um de pais nascidos no Mali, visou três alvos diferentes: primeiro, os caricaturistas e outros membros da redação da revista satírica Charlie Hebdo, que publicara caricaturas de Maomé, - junto com outras pessoas presentes, incluindo um policial encarregado da proteção do diretor, e um outro, de origem cabila, que fora ferido, e que os dois irmãos liquidaram, na rua, antes de tomar o caminho da fuga. Depois, na manhã do dia seguinte, uma policial negra, de família católica da Martinica, assassinada pelo terceiro terrorista, e, finalmente, várias pessoas de ascendência judaica, assassinadas na tarde do dia seguinte, quando faziam compras num supermercado kascher em Vincennes, e que haviam sido tomadas como reféns quando o estabelecimento foi investido pelo mesmo personagem. Os atentados se revestiram de um triplo caráter: religioso (punir a blasfêmia ou o sacrilégio); racista e antissemita (liquidar judeus, supostamente inimigos dos árabes e dos muçulmanos); e político (liquidar policiais e, de preferência - é o caso da policial do Caribe, pelo menos -, os que, pertencendo à “diversidade”, são, por esse motivo, assimilados a traidores, a serviço do inimigo). Mas os três aspectos, finalmente, se confundem.
Os atentados tiveram uma imensa repercussão, à qual voltarei mais adiante. Basta dizer que o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma moção de repúdio a eles, e observou um minuto de silêncio em homenagem às vítimas. Por ora, observaria - parafraseando uma expressão famosa - o quanto os assassinatos de janeiro como que se revestiram do caráter de “eventos sociais globais”, no sentido de que eles se relacionam, de algum modo, com realidades bastante distantes no espaço e no tempo. De fato, quem tenta analisar as ações terroristas do primeiro mês de 2015, logo se descobre - que no final das contas isto se revele justificado ou não - ou comentando a situação política no Oriente Médio, ou tentando entender as origens do fundamentalismo islamista, que remontam, no mínimo, ao século XIV... Essa transgressão de limites que os acontecimentos induzem revela-se também nos temas e nos problemas. Em geral, começa-se, ou, então, conclui-se, por uma discussão sobre “responsabilidade” e “determinismo”, um topos filosófico clássico. Por outro lado, que se defenda esta ou aquela tese, é mais ou menos inevitável tentar dizer alguma coisa sobre o Islã e a sua situação entre os outros monoteísmos. E, a partir da situação do Islã, há um convite a refletir sobre o fenômeno religioso em geral. Os massacres de janeiro, e também a sequência de atos de terror islamista têm, em geral, traços muito originais em relação aos eventos que estávamos acostumados a assistir, e, no fundo, vão à contramão de teorias ou filosofias da história, ainda dominantes. Diante de acontecimentos novos, que, ao primeiro olhar, apresentam-se como mais ou menos enigmáticos, aparece a necessidade de ir até a raiz das coisas, ou mesmo de pensar tudo de novo: poder, religião, progresso, atrasos históricos, periferias...
2. O massacre e as circunstâncias
Com exceção dos “complotistas”, dos partidários do jihad, e de alguns terceiromundistas delirantes (os quais acham que tudo o que golpeia “o centro” é positivo, ou que “a França [sic] pediu” etc,), todo mundo condenou os atentados. Os complotistas, infelizmente numerosos, ao que parece, entre os jovens da imigração, põem em dúvida o que eles chamam de “versão oficial” dos acontecimentos. Com base neste ou naquele detalhe menos convincente das investigações, tratam de contestar o conjunto dos fatos da forma mais exorbitante, interpretando o que ocorreu ou como um não-acontecimento inteiramente fictício, ou como um complô montado, ora pelos americanos, ora pelos judeus, ora pelo serviço secreto francês. Tudo isso seria risível se não houvesse penetrado mais ou menos fundo em certos meios, e se não tivesse o caráter pré-fascista de todo conspiracionismo. O mesmo tipo de coisa se ouviu a propósito do 11 de setembro. Os islamistas - a distinguir de “islâmico” - comemoraram a morte das dezessete pessoas como uma vitória contra os imperialistas ocidentais e transformaram os três assassinos em heróis. Multidões saíram às ruas em países de maioria muçulmana para saudar os atos heroicos dos três terroristas. O que não significa que todos os muçulmanos, ou mesmo a maior parte deles, se identificasse com essas posições. Mas, no plano mundial, o apoio ao crime não foi propriamente uma exceção. Isso deve ser levado em conta para que se tenha presente a gravidade da situação.
Porém, pondo entre parênteses os pró-jihadistas, os complotistas (às vezes os mesmos) e mais uma franja ultra-exacerbada de terceiromundistas presente muito mais no Brasil do que na França, a condenação foi geral. Sem dúvida, os crimes tiveram características particularmente atrozes: houve o episódio da liquidação à queima-roupa, pelos dois irmãos, de um policial que jazia ferido na calçada defronte (talvez por ser cabila). O assassino dos judeus no supermercado kascher, depois de abater algumas pessoas - ele acabou matando quatro no supermercado -, perguntou aos presentes, seus reféns, se queriam que ele desse o tiro de misericórdia em um ferido. E assim por diante. Por outro lado, observe-se que, embora não revelando uma experiência fácil, a história de vida dos assassinos não oferece maiores motivos para atenuar a gravidade dos crimes. Os irmãos que operaram na sede de Charlie eram, sem dúvida, órfãos de pai e mãe a partir da adolescência, mas eles foram recolhidos em um estabelecimento especializado e aparentemente de bom nível, no interior da França, viajaram de férias para o exterior, e puderam ter uma formação técnica, ainda que modesta. As irmãs do assassino da policial, em 8 de janeiro, e do grupo de judeus no supermercado kascher - ele era o único homem em dez irmãos - tiveram, aparentemente, uma história de vida “normal” (estão empregadas, não têm problemas maiores de integração. etc). 2Só insisto em que as condições gerais do desenvolvimento dos três personagens não foram, de qualquer forma, terríveis. Finalmente, o choque provocado pelo crime foi potencializado por algumas circunstâncias: trata-se de um crime contra os judeus enquanto judeus e, portanto, um crime antissemita; e, no primeiro evento, foram liquidados, entre outras pessoas, cinco grandes caricaturistas franceses. Imaginemos cinco grandes poetas de um país assassinados de uma só vez, cinco grandes romancistas, ou cinco grandes pintores. Para além do crime sem circunstâncias atenuantes, o estrago em termos culturais e nacionais foi enorme.
Porém, uma vez condenados os crimes, passou-se a considerar o que se chama às vezes de “circunstâncias” ou “quadro” em que eles se inserem. Em princípio, nada mais normal e indispensável. Entretanto, como observa um filósofo midiático que particularmente detesto,3 em um texto que contém entretanto, no seu início, uma passagem interessante, a consideração das “circunstâncias” frequentemente vem implicar a introdução de certo tipo de atenuantes, que limitariam, de alguma forma, a gravidade dos crimes. Entre essas circunstâncias, pretensamente atenuantes, estaria o contexto nacional, europeu ou internacional, mas também o estilo de Charlie Hebdo. Aquele triplo contexto deve necessariamente ser levado em conta, mas há de fato o risco de que a menção dele venha a se constituir em razão atenuante. Não deveria ser assim. É preciso guardar as duas pontas: a da continuidade e a da descontinuidade. Os crimes são o que são, e os responsáveis são os responsáveis. Eles poderiam não ter feito o que fizeram. Ao mesmo tempo - mas sem perder de vista o outro lado -, é necessário estudar as circunstâncias. Elas não são causas nem mesmo “cocausas” dos atos, mas, digamos, são “caldos de cultura” que, por um lado, favoreceram a eclosão da mentalidade terrorista e, por outro, facilitaram a efetivação dos projetos a que ela deu origem. Quanto ao estilo de Charlie, a tentativa de utilizar as suas particularidades para atenuar, de algum modo, a gravidade dos crimes não representa, a meu ver, uma amfibolia “filosófica”, mas um quiproquó de ordem ética e política. Porém, antes de me ocupar do contexto nacional e internacional, e do estilo de Charlie Hebdo, seria preciso dizer alguma coisa sobre os antecedentes históricos dos atentados enquanto atentados, o que, aliás, à sua maneira, também faz parte do contexto, e exige por sua vez, em alguma medida, que se invada, desde já, a história de Charlie. - Se o leitor quiser antecipar os meus resultados e teses, aqui vai, um resumo deles: 1) Há boas razões para se solidarizar, sem reticências, com Charlie Hebdo, e homenagear os seus mortos, assim como as outras vítimas dos atentados; 2) É preciso responsabilizar sem atenuante os responsáveis pelo massacre; 3) Sem prejuízo disto, é necessário estudar os contextos; 4) A análise do contexto internacional mostra a enorme responsabilidade de ocidentais e russos, pela apodrecimento da situação no Oriente Médio; porém esta circunstância não elimina, em absoluto, as responsabilidades locais, de laicos e religiosos; 5) A situação dos jovens pobres de origem extraeuropeia na França é dramática e intolerável; ela explica e justifica as suas mobilizações, mesmo violentas (excluindo certos atos irresponsáveis que implicaram em ferimentos graves de terceiros); 6) o terrorismo islamista é regressivo; ele canaliza o descontentamento dos jovens da imigração, e os utiliza em beneficio próprio e contra os interesses de quem ele pretende representar; 7) A ironização de ícones religiosos não representa uma agressão às populações imigrantes; ela não visa essas populações, mas visa afirmar um princípio de laicidade do Estado e de liberdade na sociedade civil, que, a longo prazo, pode, pelo contrário, servir a essas populações.
O princípio geral desse texto é, assim, o da crítica em duas frentes, ou da análise em dois registros, determinismo e responsabilidade, imperialismo e opressões autóctones, luta de minorias e desmascaramento dos pseudodefensores das minorias, respeito pela liberdade de religião e liberdade de crítica da religião, etc. O artigo visa desconstruir os quiproquós funestos que se constituíram a partir do esquecimento de um membro qualquer de qualquer um desses pares de registros, ou, se se quiser, a partir da tentativa mistificante de defender um extremo de violência ou de ilusão, com base na crítica do seu oposto.
3. Charlie Hebdo e os atentados
Como os atentados de janeiro tiveram pelo menos o duplo caráter de repressão a “atos blasfematórios” e de ações antissemitas, eles se inserem em duas sequências de episódios, que tiveram lugar na França e na Europa, em geral. Porém, mesmo se a gravidade de uma das séries não é menor do que a da outra, para simplificar, vou deixar de lado a narrativa sobre atentados antissemitas (a começar com aquele contra a sinagoga da rua Copérnico em Paris, em 1980), pondo entre parêntesis também os grandes atentados “anônimos”, como os de Madrid e Londres, para me concentrar, ainda que brevemente, sobre a outra série, entendida como a que visa punir especifica e individualmente atos considerados blasfematórios. Ela é a que oferece mais problemas de interpretação e de julgamento.
Digamos que essa história começa com a ofensiva contra Salman Rushdie, escritor indiano de língua inglesa, condenado à morte pelas autoridades xiitas, mais precisamente, por uma fatwa do Aiatolá Khomeyni, de fevereiro de 1989, visando o seu livro Versos satânicos.4Neste,aparece um profeta, com um nome próximo ao de Maomé, que utiliza material “diabólico” em suas pregações. O escritor foi acusado de blasfêmia e de apostasia, e apelou aos muçulmanos para que o assassinassem, assim como o seu editor. Rushdie passa a viver oculto, e a ser objeto de proteção. Vários atentados e crimes são cometidos nesse contexto: o tradutor japonês de Rushdie é morto a punhaladas (seu editor italiano fora apunhalado poucos dias antes); livrarias em Berkeley são incendiadas; um hotel na Turquia é incendiado - o alvo era o tradutor turco de Rushdie -, matando dezenas de pessoas etc.
O segundo caso é o do assassinato, em 2004, do realizador Theo Van Gogh, sobrinho bisneto do pintor. (Antes disso, em 2002, o sociólogo universitário e político de direita sui generis, Pym Fortuyn, que fazia campanha contra a imigração muçulmana, fora assassinado. Mas o criminoso, um desequilibrado, que declarou querer proteger os muçulmanos contra as campanhas de Fortuyn, era um ecologista radical de nacionalidade holandesa, e não muçulmano). Theo Van Gogh fez humor com o Cristo, e, mais tarde, principalmente, com o Islã, mas também com a Shoah. Junto com uma ativista de origem somaliana, produzira um filme bastante violento sobre a situação da mulher, sob o Islã. Theo Van Gogh foi assassinado por um holandês, muçulmano, de origem marroquina, que o baleou e o decapitou, ao mesmo tempo em que proferia ameaças de novas mortes.
Em 2005, dá-se o caso das caricaturas. Um escritor, Kare Bluitigen, homem de esquerda, escrevera um livro infantil sobre Maomé, e teve dificuldade para encontrar quem o ilustrasse, depois do crime na Holanda. O fato dá origem a um debate. O editor cultural do jornal, de centro direita, Jyllands-Posten (Correio da Dinamarca) convida 40 caricaturistas a enviar desenhos sobre o profeta para serem publicados no jornal. Doze deles aceitam. Seguem-se ameaças contra o Jyllands-Posten e manifestações em vários países com grande população muçulmana. Embaixadores dos países árabes tentam, em vão, encontrar o primeiro ministro da Dinamarca. As caricaturas são republicadas, em totalidade ou em parte, em vários jornais de diversos países, Suécia, Bélgica, Holanda, Alemanha, Itália, e até no Egito - uma das duas primeiras republicações mundiais -, além da Bósnia. O France Soir publica as caricaturas no início de fevereiro. Le Monde edita duas caricaturas, no dia 2, e um “caligrama” de Plantu, “je ne sais pas dessiner Mahomet”, que forma a cara do profeta. No dia 8, Charlie Hebdo publica as caricaturas, com mais outras, da própria revista, e traz na capa a figura de Maomé, com a manchete “Como é penoso ser amado por idiotas” (C‘est dur d‘être aimé par des cons).5 A União das Organizações Islâmicas de França, a Grande Mesquita de Paris e a Liga Islâmica Mundial processam Charlie Hebdo por “injúrias públicas contra um grupo de pessoas devido às suas crenças religiosas”.A revista é absolvida. Em novembro de 2011, Charlie publica um número com um segundo título, Charia Hebdo, trazendo na capa um desenho de Maomé que diz “100 chicotadas para quem não morrer de rir” (na última página, lê-se: “Sim, o Islã é compatível com o humor”). Um coquetel Molotov é lançado na redação da revista, no 20º Arrondissement de Paris. Charlie se instala na redação de Libération. Há, em seguida, novos processos, sem condenação. A revista replica, pondo na capa um jihadista beijando na boca um cartunista; a manchete diz: “O amor é mais forte do que o ódio”. Quatro anos depois, deu-se o massacre de janeiro.
4. Blasfêmia
Entre as pretensas circunstâncias atenuantes do crime estariam não só supostas posições políticas “incorretas” de Charlie, mas principalmente o fato de que os jornalistas teriam “provocado”. Li coisas incríveis nesses registros, na imprensa brasileira. 6 E parece que houve muito mais. Deveríamos reconhecer algo assim como uma exigência de respeito em relação a objetos, instituições e figuras históricas sacralizadas por tal ou qual religião? Não vou discutir se as pessoas que transgridem essa suposta exigência devem ser condenadas à morte, porque isso já seria ultrapassar os limites da justiça mais elementar. Discutamos se elas mereceriam algum outro tipo de punição ou censura, ou, menos do que isso, se haveria algo suficientemente reprovável em sua conduta, a partir do que poder-se-ia atenuar a condenação eventual dos atos de violência de que foram vítimas. Por outras palavras, existiria uma exigência - moral ou outra - de respeito pelo “sagrado”, isto é, por aquilo que é sacralizado por esta ou aquela religião? A resposta mais rigorosa que encontrei está num artigo do filósofo Henri Peña-Ruiz, publicado pelo jornal parisiense Libération, artigo que Fevereiro inclui nesse dossiê. 7 Nele, o articulista insiste na diferença entre o respeito pelos indivíduos ou grupos de indivíduos enquanto seres humanos, e a reverência em relação ao sagrado, trate-se de objetos, de instituições ou mesmo de indivíduos (enquanto sagrados, isto é, em sua condição de entes sacralizados por tal ou tal tradição). Feita essa distinção, que é essencial, valerá o princípio de que só é legítima a exigência de respeito pelos seres humanos enquanto pessoas humanas (ou aos grupos humanos enquanto grupos de pessoas humanas). Só aí, trata-se propriamente de respeito. O direito à existência, e também ao exercício dos direitos humanos fundamentais, é um absoluto, contra o qual não se pode atentar, nem sob a forma da ironia. Assim, a ironia em relação a massacres e genocídios é evidentemente ilegítima. Já aquilo que esta ou aquela tradição sacralizou é objeto sagrado para esta tradição e para ninguém mais. Não existe nenhuma obrigação de respeito pelo que as tradições sacralizaram, por parte daqueles que são estranhos a essas tradições; existe sim exigência de respeito pelos indivíduos e grupo de indivíduos que as suportam, isto é, pelos que põem em prática os rituais e assumem as crenças de que essas tradições se alimentam. Respeito por esses indivíduos e grupos de indivíduos significa, aqui, pleno reconhecimento do seu direito de crer e mesmo de promover a sua crença, assim como o de praticar livremente os rituais da tradição a que pertencem ou da religião que escolheram. - Assim, não existe crime, mesmo “moral” de blasfêmia. A blasfêmia só é blasfêmia para quem sacraliza o objeto supostamente profanado (ele só é “profanado”, para quem o adora). A exigência legítima é a do respeito pelo humano enquanto pessoa humana, não do humano (ou, a fortiori, do objeto) sacralizado. A distinção é fundamental, e nos dá uma regra segura para distinguir o que merece e o que não merece ser condenado. 8 É a ignorância ou o obscurecimento dela que leva à confusão, frequente, no que se lê sobre os assassinatos de janeiro, inclusive em textos assinados por gente de esquerda ou de extrema-esquerda. Assim, é absurdo afirmar, como se afirmou e se afirma em meios de confissão islâmica (principalmente da juventude), que seriam usados dois pesos e duas medidas, quando a justiça condena um humorista que ridiculariza os mortos nos campos de concentração nazista e, ao mesmo tempo, não reconhece como crime o fato de se representar, até ironicamente, uma figura sagrada de uma religião. Os dois casos são diferentes. Caricaturas ridicularizando a matança de palestinos por forças de ocupação, por exemplo, têm de ser condenadas, e também juridicamente. Mas caricaturas de Moisés, de Jeová, do Cristo ou da mãe de Cristo, que se as considere de bom ou de menos bom gosto, não são nem podem ser suscetíveis de pena (mesmo de pena “moral”; “bom gosto” ou “mau gosto” são de um outro registro, aproximadamente estético, ainda que com um verniz “ético-politico”).
Entretanto, poder-se-ia perguntar: o conjunto das caricaturas publicadas por Charlie Hebdo resiste bem àqueles critérios de julgamento? Eu responderia: se passarmos em revista todas as caricaturas, a resposta é, a rigor, “não”; mesmo se a imensa maioria resiste. Há caricaturas que mexem com mortes ou violências, individuais ou coletivas, por exemplo, uma sobre as vítimas dos terroristas do Boro Haram, outra sobre a matança dos Irmãos Muçulmanos no Egito, outra sobre os imigrantes que naufragam no Mediterrâneo, uma até sobre a Shoah... Elas representam, sem dúvida, “derrapagens”. Entretanto, por razões que tentarei explicar, elas não são suficientes, a meu ver, para introduzir uma circunstância negativamente atenuante, no apoio dado a Charlie (isto é, a presença delas não é suficiente para introduzir cláusulas do tipo, “é, eles abusaram...” ou “também, as caricaturas deles...”). E isto pelas razões seguintes. 1) Primeiro: apesar de tudo, há, em todas essas caricaturas, alguma ambiguidade. Por exemplo, a caricatura sobre a Shoah - a qual mostra, aliás, que os caricaturistas de Charlie não visam preferentemente os muçulmanos, e, aqui, até pelo contrário - bem examinada, revela que o seu objeto é menos a Shoah do que o uso demagógico da Shoah que faz o governo israelense, no quadro de sua política de ocupação colonialista do território palestino. Outras caricaturas são menos defensáveis. Mas, sem forçar a nota, nelas está quase sempre presente, embora talvez não só, uma dimensão de “humor negro”. De fato, o que se observa é que eles fazem humor tanto com os amigos, como com os inimigos (pelos textos que a revista publica, que não são ambíguos, sabemos quem são os amigos e os inimigos da revista; e, também, pela consideração simultânea do conjunto das caricaturas). A universalidade da ironia neutraliza boa parte do sentido negativo que uma parte delas poderia ter. 2) Segundo, e principalmente: mesmo admitindo que haja caricaturas de Charlie, que, a rigor, não passam na prova dos princípios enunciados acima, há que considerar a circunstância essencial de que os jornalistas de Charlie não foram condenados por causa daquelas caricaturas; eles foram condenados (à morte !) por terem retratado o Profeta Maomé (o que é considerado um escândalo, não para os muçulmanos em geral, mas para a faixa fundamentalista do Islã). Ora, toda condenação por motivos dessa ordem (e mesmo que não se tratasse de condenação à morte...) é absolutamente intolerável, pois vai contra um princípio fundamental e inviolável, o da liberdade de crítica, mesmo “blasfematória”. Nesse sentido, Charlie merece um apoio sem reticências, ainda que, em matéria de caricaturas, possamos preferir - é o meu caso - charges mais moderadas, digamos, como as de alguém como Plantu, o caricaturista de Le Monde. - Que a maioria dos imigrantes extraeuropeus e seus descendentes não apreciem que se faça humor com o profeta é, de fato, uma coisa triste. Mas, no fundo, o affaire das caricaturas não tem nada a ver com a imigração. Tem a ver sim com o problema do fundamentalismo muçulmano (os imigrantes são muçulmanos, mas, em sua maioria esmagadora, não são fundamentalistas). E eu acrescentaria: se, de fato, em termos imediatos, o cartunismo em torno do profeta desagrada à população imigrante, eu ousaria dizer que, a médio e longo prazo, ele joga a favor dela. Pela razão seguinte: é só quando os ícones do Islã tiverem o mesmo regime de fato dos ícones cristãos e judeus, isto é, só quando se banalizar a “blasfêmia” a propósito deles, como se banalizou a propósito do Cristo ou de Moisés (ou da Torah), é que a população muçulmana poderá se sentir inteiramente integrada (falo de condição necessária, não, suficiente, pois, é claro, há, para além disso, muitos outros problemas; e de situação de fato mais do que de direito: com ou sem a banalização da blasfêmia, o preconceito é evidentemente intolerável). E quanto ao argumento, sutil, sem dúvida, de que, se se tem o direito de blasfemar, não se tem o dever de blasfemar, o que é verdade, há que responder, lembrando que a querela não começou com Charlie. O ponto de partida foi a ameaça a Rushdie, cuja vida foi quase destroçada, pelo autocrata Khomeyni - este tinha, aliás, razões de oportunismo político quando tomou aquela iniciativa - seguindo-se uma sucessão, intercalada, de ameaças e de desafios a essas ameaças. Houve um crescendo, que explica, de resto, em parte, a virulência de certas charges. Os jornalistas de Charlie como que entraram na briga. E, se não tinham o dever de entrar, tinham, a meu ver, boas razões para fazê-lo. Com isso, mais do que os caricaturistas “moderados”, eles acabaram defendendo e representando - infelizmente, por um preço muito alto - uma causa que é de todos nós.
5. O contexto
Como observei acima, o exame do que se poderia chamar de “contexto dos atos terroristas de janeiro” nos leva muito longe no espaço, mas também no tempo. Ele nos remete ao que ocorre em duas regiões. Nos dois casos, os problemas regionais têm raízes e efeitos mundiais; e um mergulho no tempo, embora maior num dos casos, é inevitável. Em uma das regiões, está o lado ativo, o dos atores, individuais ou coletivos, que recrutam adeptos e combatentes; na outra, estão os atores passivos, os que se dispõe a aderir, ideológica ou militarmente. É difícil, também, deixar de introduzir, nesse exame, algumas considerações de ordem antropológica ou histórico-antropológica.
I. Começo pelo que ocorreu e ocorre no “mundo muçulmano”. O elemento essencial é o peso que foram tomando, a partir das últimas décadas do século passado, os movimentos políticos de fundo religioso, em prejuízo dos movimentos laicos. Em outros termos, o fenômeno do fim, relativamente a uma época, da hegemonia dos movimentos nacionalistas laicos no Oriente Médio. 9 Na realidade, a história das lutas políticas e religiosas no Oriente Médio e na África do Norte, é de uma considerável complexidade, e revela um jogo de forças muito diferente do que costumamos encontrar no Ocidente. Com as lutas entre movimentos de espírito mais ou menos laico e os de fundo religioso, cruza-se a luta secular entre xiitas e sunitas, que remonta às origens do Islã (século VII), mais a oposição entre “progressistas” e conservadores, e as tensões de ordem regional ou nacional (ou entre nacionalismo... “nacional”, e nacionalismo pan-árabe). Tudo isso, tendo como fundo histórico remoto o desenvolvimento de duas grandes civilizações ou impérios, de hegemonia sucessiva, ambos de religião muçulmana, a civilização árabe (que representou, sem dúvida, uma “grande” civilização), e o império turco. 10 Ao contrário da civilização chinesa e indiana, eles representaram uma ameaça para o ocidente cristianizado. Os árabes, depois de conquistar o norte da África, ocuparam durante séculos a península Ibérica, além de setores do Mediterrâneo. Os turcos avançam pelos Balcãs, e chegam até Viena, que, como se sabe, resiste a cercos célebres no século XVI e na segunda metade do XVII. A partir daí, os turcos entraram progressivamente em decadência. O império Otomano, sob cujo domínio passaram a viver os árabes, sendo ambos muçulmanos, vai decaindo, até se tornar, no século XIX, o “doente da Europa”, conforme a palavra célebre de um dos Tzares daquele século. O movimento nacionalista árabe se desenvolve em luta contra os turcos e contra os ocidentais, embora ele tenha se aliado a esses últimos, em determinadas circunstâncias. Os turcos têm a sua crise “final”, ao se aliar às potências centrais, derrotadas na Primeira Guerra Mundial. Depois dela, ou já antes, surge um movimento nacionalista, que vai florescer, depois da guerra, com Atatürk, talvez a principal figura laica da história do reerguimento político do mundo muçulmano (de resto, figura de autocrata civilizador, apreciada diversamente, pelos historiadores 11). No mundo árabe, para me limitar ao século XX, surgirão, bem depois de Atatürk, as figuras de Nasser, no Egito, e de Burguiba, na Tunísia, sem falar das forças nacionalistas não religiosas que se desenvolvem no Irã, país também muçulmano, mas, como a Turquia, não árabe. Porém, paralelamente aos movimentos laicos 12 vão se organizando partidos e grupos de caráter marcadamente político-religioso, um dos quais é o movimento dos Irmãos Muçulmanos, que nasce no Egito, nos anos 1920. O quadro se complica com o desenvolvimento do movimento sionista, que culmina com a fundação do Estado de Israel, em 1948. Do ponto de vista econômico, toda essa história será marcada, desde a primeira metade do século XX, pela luta pelo petróleo de que a região é a grande produtora mundial.
Tem-se, assim, um universo político e econômico complexo, em que se pode destacar, para os objetivos da presente análise, a oposição entre os movimentos de fundo laico e os movimentos religiosos, com a hegemonia dos primeiros, durante muitos anos, seguida por uma crise profunda. Essa crise se deve a quê? Um elemento importante foi a atitude desastrosa dos “ocidentais”, russos inclusive. A história das relações dos países liberais-capitalistas com o mundo muçulmano é propriamente catastrófica. Nos anos 1950, um governante iraniano, progressista e de tendência geral democrática, é derrubado por um complô fomentado pelos ingleses e pela CIA. Mossadegh nacionalizara os bens da Anglo Iranian, grande companhia petrolífera, o que desagradou as potências ocidentais. Nesse caso, ao contrário da grande maioria deles, não se tinha apenas um nacionalismo laico, mas um nacionalismo laico não autocrático. Com a intervenção, desfez-se um caminho possível para a democracia, ou para uma certa democracia, no Oriente Médio. Os erros se sucederam. Em 1956, a França, a Inglaterra e Israel preparam uma ação contra Nasser, visando neutralizar a nacionalização do Canal de Suez que este decretara. Nesta ocasião, os norte-americanos se opuseram, e a operação acabou sendo suspensa. Os russos não ficaram atrás em matéria de iniciativas desastrosas. A intervenção russa no Afeganistão, para apoiar a facção pró-Moscou do comunismo afegão, deu origem a um ampla resistência que acabou obrigando os russos a se retirarem do país. Foi a sua grande derrota, em matéria de intervenções internacionais. Os norte-americanos, por sua vez, cometeram o erro de se lançar a fundo no apoio a essa resistência, da qual participavam tendências fundamentalistas. A CIA ajudou assim a criar as condições para o desenvolvimento de Al Qaeda. Porém, o seu maior erro em matéria de política externa, já no quadro de uma nova política externa, de marca “neoconservadora”, foi a intervenção que destituiu Saddam Hussein. Este, um ditador impiedoso, não tinha nada a ver, entretanto, com o atentado de 11 de setembro (foi, em parte, enquanto reação a esse atentado que a invasão foi justificada; o outro motivo, também falso, era o de que Saddam estava acumulando armas de destruição de massa). Atacar Saddam, para vingar o 11 de setembro foi uma tolice sem limite, mesmo de ponto de vista dos interesses das forças políticas mais reacionárias, na frente das quais estavam os neoconservadores, campeões da campanha pró-intervenção. O resultado da invasão do Iraque - fruto de uma espécie de estratégia leninista delirante às avessas: tratava-se, segundo os neoconservadores, de introduzir “de fora” a democracia! - foi uma sucessão de desastres: que Saddam fosse ou não um monstro (ele era!), o país foi humilhado, deixou-se que os seus museus fossem saqueados por multidões, pior ainda decidiu-se a dispersão do exército de Saddam... Pois esses soldados sem emprego vieram a constituir o núcleo do futuro Estado Islâmico (ou Califado), que disputa hoje a liderança do terrorismo com Al Qaeda. No mesmo sentido, os norte-americanos puseram no poder um governo xiita corrupto e dogmático, que, marginalizando os sunitas, lançou as tribos sunitas do norte, e outras forças sunitas mais, nos braços do mesmo Califado... A instauração do Estado de Israel em 1948, com o apoio dos ocidentais e dos russos, não foi em si mesma um erro. A situação dos judeus no após guerra (e após a Shoah) era muito incerta, 13 e, além disso, havia uma população judaica considerável na Palestina (mas ela era mínima, quando nasce o sionismo). Naquela conjuntura, a partilha era, em princípio, uma solução correta. Só que, além do fato de o traçado da partição ser discutível (por exemplo, Haifa, cidade de maioria árabes ficou na zona israelense 14), ela só poderia se fazer em boas condições, se houvesse um contingente da ONU, ou legitimado por esta, que assegurasse o cumprimento correto das decisões. Na falta disso, o que se teve foi a expulsão de parte da população palestina que ocupava os territórios cedidos a Israel, expulsão que não se fez sem massacres. Do lado judeu, havia também o risco de que os países árabes, que, ao contrário do seu adversário, não aceitaram a partilha e invadiram a Palestina, viessem a massacrar as populações judias. Os árabes poderiam ter ganho a guerra, embora os judeus dispusessem de um armamento superior. Mas, de qualquer modo, houve sim muitas violências contra os judeus, a violência foi das duas partes. A política ocidental subsequente em relação ao problema palestino, principalmente por parte dos EUA, foi prejudicial aos interesses árabes. Mas estes erraram ao não reconhecer em algum momento a partilha - Arafat o admitiu, mas só depois de muito tempo -, sem falar no radicalismo anti-semita do Hamas que continua visando expulsar os judeus de todo o território. 15 O governo israelense, vitorioso em várias guerras, recusou-se, durante anos, a reconhecer um poder palestino, e se lançou progressivamente num movimento de colonização, no duplo sentido da palavra, que, pouco a pouco, vai roendo o território do futuro Estado. - Assim, a política dos “ocidentais” (russos inclusive) não serviu aos interesses de um nacionalismo árabe laico no Oriente Médio. E, menos ainda, aos interesses de um nacionalismo democrático. Este, de fato, apenas despontou. É verdade que os russos em geral apoiaram os movimentos laicos, mas a sua política foi sempre estreita, porque comandada pelos interesses imediatos da URSS durante a guerra fria, sem falar na desastrosa intervenção no Afeganistão. O fim da URSS foi, de qualquer forma, um fator que acelerou a crise dos movimentos laicos, 16 não só porque eles perderam com isso a possibilidade de fazer certas alianças, como também porque o chamado “fim do comunismo” enfraqueceu em geral, no Oriente Médio e, para além dele, as ideologias laicas. Mesmo se em forma confusa ou muito ambígua - em não poucos casos, eles se fascinaram com os nazifascistas, mas, nesse terreno, os grupos religiosos, como veremos, foram ainda mais longe - os partidos laicos reivindicaram algum tipo de “socialismo”. Os movimentos laicos se revelaram incapazes de levar avante seus projetos de unificação nacional - houve, entre outras, uma efêmera unificação do Egito com a Síria nos 1950/1960 - e foram minados pela corrupção e pelo autocratismo.
Os movimentos religiosos, existentes há muito tempo, puderam aproveitar a decomposição ou a desmoralização do laicismo árabe no Oriente Médio e no norte da África. Mesmo se eles não são vitoriosos por toda parte, globalmente, é como se a sua vez tivesse chegado. Os momentos principais dessa virada são o já mencionado conflito do Afeganistão, quando se gestou a expansão do fundamentalismo religioso sunita e, por outro lado, a revolução iraniana, que começa pouco tempo antes da intervenção soviética no Afeganistão, com a queda do Xá Pahlevi, no início de 1979. Este contava com o apoio dos norte-americanos, e perdeu o poder para uma revolução da qual resultou a entronização de um governo religioso xiita. O fundamentalismo religioso se construiu doutrinariamente, do lado sunita, sobre o fundo do “salafismo” - movimento cujas raízes são do século XIV, e que reivindica a volta aos ensinamentos ancestrais, e à “pureza” do Islã - e, mais precisamente, sobre a doutrina de al-Wahhab, predicador fanático do século XVIII, que defende um Islã expansionista e de um extremo rigorismo. 17 O wahhabismo impõe-se muito cedo na Arábia Saudita - ele é combatido pelas forças, que vêm do Egito, do futuro dissidente Méhémet-Ali -, e chega ao século XX, como tendência dominante na península arábica. O paradoxo é que a dinastia saudita que sustenta o Wahhabismo é aliada dos norte-americanos. Estes preservam cuidadosamente a aliança com os sauditas por causa dos interesses petrolíferos. Assim, o wahhabismo, doutrina do fundamentalismo mais agressivamente antiocidental e antimoderno, desenvolve-se no bojo de um país dominado por um poder ultrarretrógado - ver a situação da mulher e dos trabalhadores imigrantes - mas pró-americano. Sem dúvida, uma ruptura acaba ocorrendo. Ela começa depois da primeira guerra do Golfo, quando os fundamentalistas consideraram intolerável que tropas norte-americanas - e em particular, mulheres-soldados... - pisassem a terra santa, o que provocou fricções com o poder saudita. É aí que nasce Bin Laden e o movimento Al Qaeda. Os fundamentalistas foram até a prática do terror em terras sauditas. Hoje, a ruptura parece consumada, mas subsiste a obscuridade sobre a origem dos fundos dessa organização. O poder saudita não esgota o conjunto dos simpatizantes do wahhabismo na península.
Assim, estamos diante de um cenário com muitas linhas de força, em que a guerra entre laicos e religiosos atravessa as rupturas internas do Islã, além de outros jogos de interesse econômico ou regional. 18 A hegemonia dos grupos religiosos fundamentalistas levou a um recrudescimento da propaganda religiosa, e principalmente depois do surgimento do Estado Islâmico, a uma arregimentação crescente de jovens de origem árabe, ou de confissão muçulmana, em proveito das forças sunitas-fundamentalistas no Oriente Médio. Bem entendido, há a acrescentar a esse cenário histórico, o grande evento recente que foram as revoluções árabes do início dessa segunda década do século XXI. Elas despertaram uma enorme esperança. Mas esta, em grande parte, se desvaneceu. Naquelas revoluções, despontara, aparentemente, uma laicidade diferente da do ciclo laico clássico. Segundo alguns, lutava-se ali pela democracia, segundo outros, pela “dignidade“ 19. De qualquer forma, tratava-se de uma realidade nova, muito impulsionada pela juventude. Os grupos islamistas que, em geral, não tiveram papel no desencadear das revoluções, subiram rapidamente no estribo, e modificaram, mais ou menos profundamente, o caráter do movimento revolucionário. Mas alguma coisa sobrou dessa grande onda, na origem, reconhecidamente libertária.
Vê-se por aí como a história do Oriente Médio e do norte da África é dramática e parece conduzir a impasses. Nela, a democracia é um fenômeno raro e efêmero, que desponta aqui ou ali, para ser esmagada pelas botas laico-autoritárias ou fundamentalistas. Se não for pela dos imperialismos estrangeiros. A responsabilidade, de ocidentais e dos russos, pelo recrudescimento do fundamentalismo islâmico ou pelo florescimento de um autoritarismo, nacionalista ou não, é, como vimos, muito grande. Sem falar em todo o passado colonial de exploração econômica e opressão política, que não foi pouca coisa. As grandes potências liquidaram os germes possíveis de um desenvolvimento democrático (Mossadegh), apoiaram ativamente os combates de islamistas, ou “pré-islamistas” (os americanos no Afeganistão), promoveram intervenções desastrosas (russos e americanos), apoiaram de maneira acrítica ditaduras nacionalistas ou foram, e são, aliadas de autocracias ultrarreacionárias (idem). Mas a responsabilidade pesada de ocidentais e russos no Oriente Médio não absolve os governos laicos autoritários e às vezes genocidas (Saddam, Assad), pelo recrudescimento dos movimentos islamistas. Porém, nada disso justifica atentados terroristas, sejam eles antissacrílegos, antissemitas ou racistas em geral. E, a fortiori, quando o seu alvo são as populações civis. Não esqueçamos de que o 11 de setembro foi um grande massacre desse tipo.
II.O outro lado é o da situação na Europa. Ela também tem a ver com o contexto mundial, mas, nesse caso, principalmente com o contexto econômico. Se, a partir da história dos grupos fundamentalistas entendemos como eles chegaram a uma certa hegemonia, e entendemos também, a partir da sua ideologia, por que eles tentam arregimentar os jovens de todo mundo, resta saber, por que estes últimos são tão receptivos - ou, pelo menos, relativamente receptivos - às sereias islamistas.
Talvez se devesse começar com dados antropológicos gerais, por superficiais que eles possam parecer. Aristóteles escrevia sobre a juventude, no livro II da Retórica: “Os jovens são, pelo seu caráter, submetidos ao desejo, e são do gênero [das pessoas] que realizam o que desejam (...) não suportam serem tido como insignificantes, mas se indignam quando creem serem vítimas de injustiça (...) deixam-se facilmente enganar pela razão indicada: têm a esperança fácil. São também mais corajosos, pois são ardentes e cheios de esperança, a primeira qualidade os impedindo de ter medo, e a segunda lhes dando a audácia (...) são também sensíveis à vergonha (...) E em todas as coisas, vão longe demais, e com força demais, transgredindo assim o preceito de Quilon [“Nada em excesso”, RF], pois fazem tudo com excesso, amando com excesso, e detestando com excesso, e assim em todos os domínios. Eles acreditam saber tudo, e se afirmam com força, e esta é a causa do seu comportamento excessivo em tudo (...) As injustiças que eles cometem vão no sentido da desmesura e não da maldade (...)”. 20 Se esse diagnóstico corresponde bastante bem, e de forma até surpreendente, ao que sabemos, em geral, dos jovens do ocidente, ele corresponde mal, bem examinadas as coisas, ao jovem fundamentalista. A descrição se ajusta mal ao fundamentalismo e aos seus jovens seguidores, porque ela aponta para um indivíduo que visa, em geral, para ele, ou para mais do que ele, algum tipo de vida (nesse sentido, apesar do lado individualista que também transparece, a atitude aí retratada poderia ser chamada de “utopista”). Ora, uma característica sem dúvida fundamental do jovem fundamentalista islâmico contemporâneo é, pelo contrário, a atração pela morte: “Foi Alá que decretou nossa morte antes mesmo do nosso nascimento”. 21 “O inimigo de Alá não teme nada mais do que o nosso amor pela morte”. 22 Valem, para efeito de comparação, outras características indicadas no texto, como a tendência ao excesso. Mas, com isso, avançamos pouco.
Como existem, e em quantidade não desprezível, jovens que não vêm da imigração (e que, frequentemente, vivem, além disso, em condições, econômicas favoráveis), os quais, apesar disso, aderem ao fundamentalismo e ao jihad, é preciso começar buscando raízes muito universais do fenômeno, para além do racismo e, em muitos casos, também da crise econômica. O depoimento de pessoas empenhadas em neutralizar o recrutamento jihadista nos remete a situações em que, aparentemente, não estamos longe do fenômeno da adesão dos jovens a seitas (algumas muito opressivas e exploradoras), a que se assistiu e se assiste no mundo ocidental. Se é assim, há, em primeiro lugar fatores que em parte não remetem à política ou ao político, embora, de algum modo, a presença desses últimos acabe também se revelando. Patologias sociais da família, crise da escola, fenômenos de dessocialização dos grupos jovens etc, mas também, algo como um enfraquecimento da coesão social e nacional. Há o fenômeno da desmotivação em relação ao trabalho, de resto paradoxal, porque ocorrendo numa situação em que o trabalho é um bem raro. 23 Se, já passando ao plano propriamente político, for considerado que não só o ethos social do “ocidente” se enfraqueceu, mas, também, e ainda mais, o das ideologias radicais de esquerda, que tiveram grande peso durante grande parte do século passado, tem-se o contexto de uma atmosfera vazia de referências, onde habita um jovem dessocializado em relação à sociedade global e à família, 24 e alérgico tanto aos ideais de vocação dominantes, como aos projetos laicos de revolução social. Esses “átomos livres” buscam apoio em modos fanáticos de agir e de pensar. O fundamentalismo islâmico é um deles, e, hoje, é, de certo modo, o hegemônico. Os mesmos fatores existem, mas agravados, e sobredeterminados, em se tratando do caso específico dos jovens da imigração extra-europeia.
Mas entre a situação dos jovens europeus em geral, e a dos de origem extra-europeia, situa-se o caso intermediário, o dos jovens de condição modesta - qualquer que seja a sua origem, incluindo, mas não só, os da "imigração" - que vivem em situação difícil nas periferias. Começo discutindo mais esse caso geral, para depois me ocupar em detalhe, do específico. Não será possivel, porém, evitar alguns entorses a esse modo de exposição.
O mal-estar das banlieues na França é um fenômeno antigo, que data, pelo menos, dos anos 1970. 25 Pouco a pouco, os governantes viram-se obrigados a intervir diante de uma realidade que é a da pobreza e da precariedade de uma população, principalmente jovem, e em face do desassossego dela, exprimido em choques com a polícia e violências diversas. O fenômeno culmina com o quase-levante de outubro/novembro de 2005, que começa na região parisiense (aglomeração de Clichy-sur-bois e Montferneil) e se estende pelo conjunto do território francês, durante três semanas. 26 O ponto de partida dessa revolta foi a morte de dois jovens que, em companhia de um terceiro (este sobreviveu), ao fugir da polícia - embora fossem (os três) perfeitamente inocentes - entraram numa central elétrica, e morreram eletrocutados. Começam então as manifestações e a violência, e esta se agrava - já é preciso introduzir um dado específico - quando, dois dias depois, a polícia lança uma bomba lacrimogênea na porta de uma sala de orações, atingindo pessoas de várias idades que participavam de uma reza muçulmana do Ramadan. Depois de 2005, não houve motim desse porte.
As razões das insurgências dos jovens da periferia não são misteriosas, embora haja uma longa discussão entre os sociólogos, principalmente sobre a importância relativa de um ou de outro fator. Não é economismo dizer que a crise econômica, que começa em meados dos 1970, com suas consequências, desemprego, pauperização, degradação do habitat e dos equipamentos urbanos, junto com a concentração e ghetoização das populações pauperizadas, está na base do desassossego. Assim, antes de discutir outros pontos, se se quiser evitar o risco de psicologização ou de diluição das raízes do problema, é preciso insistir em seus fundamentos mais gerais, sobretudo econômicos. De fato, ele aparece no final dos “trinta anos gloriosos” com o surgimento de uma massa de jovens mais ou menos fadados à marginalização, e que, por causa da pauperização das famílias, vivem em condições cada vez mais precárias. Digamos que esses têm duas saídas possíveis: de um lado, a revolta, crônica ou aguda (além da politização); de outro, a droga e a delinquência. Muito cedo, os governos de direita e de esquerda tentam pôr em prática diferentes formas de intervenção, inicialmente assistenciais e institucionais. Entretanto, o aumento do desemprego coincide com o fim do welfare state, e, a partir de certo momento, as mesmas causas que provocam a pauperização e a degradação do habitat determinam também o recuo progressivo da intervenção do Estado, mesmo se esta não desaparece e é até relançada dentro de certos limites, depois da grande revolta de 2005. (A acrescentar: as duas coisas coincidem também com a erosão dos partidos, ideologias e sindicatos que, legitimamente ou não, apresentavam-se como representantes das massas exploradas. Para o melhor ou para o pior - no curto prazo, em geral, para o melhor - os pobres tinham um enquadramento, que depois perderam). 27 É impossível dizer que os governos, mesmo os de esquerda, tenham sido suficientemente sensíveis ao que sentiam os jovens da periferia. Os governos de direita, porém, e em particular um ministro do interior, Sarkozy, chegou ao limite de uma declaração de guerra aos jovens “revoltados”. 28 Quanto as intervenções da polícia, elas não só foram ineficazes, mas frequentemente agravaram a situação. 29 Pode-se dizer sem exagero que a intervenção da polícia, por causa da sua forma, foi um elemento de importância considerável na origem dos distúrbios. Com o que não se pretende subestimar o fenômeno do tráfico de droga e da delinquência em geral.
Passando agora a uma análise mais centrada no caso particular dos jovens da imigração, há, aí, dois fatores decisivos. Um é sobredeterminado. O outro lhe é particular. O primeiro é a crise econômica e o desemprego, aos quais já me referi. O segundo, específico, são os fenômenos de marginalização “étnica” (racismo, estigmatização dos imigrantes extraeuropeus). Sem uma taxa de desemprego atingindo mais de 10 % da população ativa, e bem mais do que isso, no caso particular dos jovens, é seguro que haveria um campo muito menos propício ao desenvolvimento do fundamentalismo e do terrorismo político. Quanto ao preconceito e à estigmatização, existem também evidências empíricas bem fundadas, mas o significado pleno desse segundo elemento, e também a sua conexão com a crise e o desemprego, está longe de ser simples. 30 Houve e há, evidentemente, na França, e em outros países europeus, uma estigmatização dos descendentes de imigrantes não europeus, como houve, em outra época também, dos originários da imigração europeia. As pesquisas mostram como esse estigma vem de longe e começa com a geração anterior, a que fez a viagem, o que reforça, dentro da família, o sentimento de exclusão. 31 Um elemento muito vezes lembrado, e que me parece, efetivamente, essencial, são as condições em que se deu a descolonização, em particular a guerra da Argélia. Em princípio, ele concerniria só à imigração argelina. Mas deve ter havido um fenômeno de propagação, que, dos argelinos, passa aos magrebinos em geral, e vai além destes. O desfecho da guerra provocou a transferência para a França de um contingente populacional considerável de “pieds-noirs”, em geral com sentimentos marcadamente “antiárabes” ou “antimuçulmanos”. Observemos que a guerra da Argélia implicou na conscrição, com tudo o que ela significou, e o seu desfecho provocou uma crise nacional, de que resultou nada menos do que uma mudança de regime. Tudo isso deve ter deixado marcas profundas. As consequências se manifestaram dos dois lados: os pesquisadores observam o quanto os antigos combatentes da revolução argelina, mas em parte também os seus descendentes, resistiam à ideia de adotar a nacionalidade da antiga potência colonial que eles haviam combatido. Na origem, havia dois elementos: hostilidade aos franceses e orgulho “revolucionário” ligado ao culto dos dirigentes e da causa nacional argelina. De lá para cá, esse segundo elemento caiu. Se continua a haver hostilidade para com os “franceses”, junto com ela há, agora, também hostilidade para com os atuais dirigentes do país e erosão dos grandes sentimentos de orgulho pela nação de onde vieram os pais. 32 É como se ficasse o lado negativo, mas não o positivo, que, precisamente, veio a ser substituído por outro: a verdadeira nação dos “beurs”, pode-se ler em vários depoimentos, é, na realidade, o Islã.
Mas voltando à relação ex-colonizador/colonizado, o preconceito dos “franceses” se alimentou e alimenta, é claro, das diferenças culturais, reais ou supostas, entre “franceses de souche” (“pieds-noirs” ou não) e a população de raízes extra-europeias, e aí, evidentemente, a diferença de religião, que não existia, no caso da imigração europeia, teve e tem o seu papel. Mas sem a taxa atual de desemprego é difícil que o preconceito vingasse, pelo menos nos níveis em que existe hoje. Porém, há outros dados que mostram a complexidade da situação. Se as pesquisas sobre racismo e sentimentos contra os imigrantes revelam que a situação se agrava mais ou menos a partir de 2010, após um movimento crescente (embora irregular) de tolerância nos vinte anos anteriores 33 - constata-se, ao mesmo tempo, pelo menos sob certos aspectos, um processo indiscutível de integração das populações de origem extra-europeia. Entre outros exemplos (este é do campo da política) tem-se, pela primeira vez, o fenômeno - impressionante, para quem vive há muito tempo na França - de ministérios “régios” ocupados por gente da imigração, e isso tanto em governos de direita como de esquerda. Dir-se-á que se trata de uma incorporação por cima e que beneficia um número limitado de pessoas. Seja como for, é uma pequena revolução. Mas começa a haver uma mutação também por baixo (aqui estamos diante de um fenômeno que permite medir as atitudes de um lado e de outro): pela primeira vez na França tem-se uma pletora de candidatos ao legislativo nacional, de origem extra-europeia, sem falar na presença de eleitos no plano municipal, departamental e regional. É verdade que o número de eleitos é limitado. 34 Porém, mesmo esse resultado a minima é expressivo. É evidente que, nesse plano, o país começa a mudar. Como organizar esses dados? Há aparentemente uma recrudescência do racismo com base: 1) na ideia de que, nas condições atuais, os imigrantes agravam a situação de emprego dos nacionais; e 2) na suposição de que é “a imigração“ a responsável pela delinquência e pelo terrorismo. Mas ao mesmo tempo, e principalmente à medida que vai se desenvolvendo uma classe média originária da imigração, essa classe, pelo menos, vai sendo integrada, e não só no plano político. Parece difícil supor que esse fenômeno não tenha algum efeito sobre o conjunto da população de origem extra-europeia.
Entretanto, poder-se-ia perguntar: mesmo supondo que o balanço desses prós e contras do chamado processo de “integração” (que não é o mesmo que “assimilação”) fosse antes negativo, mesmo levando em conta a situação econômica e os preconceitos, como explicar esse fenômeno específico que é o fato de que a religiosidade que impregna a imigração é, pelo menos em certas áreas, cada vez mais de ordem rigorista senão fundamentalista e, mais do que isso, que uma franja jovem, dos dois sexos, dessa população, descambe para um projeto jihadista e terrorista? 35 Em parte, isto sempre foi assim: é o rigorismo fundamentalista (de seitas, de religiões e de partidos) que tem grande força de atração nessas situações. Mas em parte, não há, para essa pergunta, uma resposta endógena, isto é, que remeta ao registro local. As populações fragilizadas pelas razões indicadas sofrem o impacto de um proselitismo, que vem de fora, e que está ligado às peripécias da história do Islã no Oriente Médio e no norte da África, descritas anteriormente. O proselitismo, diz a especialista em neutralizar os recrutamentos, se exerce - como no caso das seitas - por meio de um assédio muitas vezes brutal, e através de manobras de sedução de toda ordem. Mas, para além do impacto da realidade atual do Oriente Médio 36 - e, penso aqui, mais do que no fundamentalismo, em geral, na atração pelo terrorismo -, entram também outros fatores, em parte exógenos, em parte endógenos. Um deles, já referido, porque geral, é o aumento da delinquência e do banditismo, frequentemente em conexão com o comércio das drogas. 37 Mas é preciso retomá-lo no contexto dos problemas da imigração. As “drogas” se relacionam, pelo lado do consumidor, com o vazio e a dessocialização, e, pelo lado do “vendedor”, com a crise e o desemprego (sem que, com isso, tudo esteja dito). As drogas “pesadas” são, antes das religiões, senão o ópio do povo, pelo menos o ópio dos jovens... “(fontes de) ilusão em um mundo sem ilusões”. E, por sua vez, o comércio da droga encontra evidentemente uma base favorável de recrutamento em uma situação econômica que condena os jovens a vagar sem rumo pelas “cités”. As redes de venda são às vezes extensas e muito absorvedoras de “mão-de-obra”. O banditismo é uma saída possível. E a religiosidade, nisso tudo? A religiosidade é, em princípio, um obstáculo às drogas e ao banditismo. (Como também às insurgências: as autoridades religiosas fizeram apelos aos jovens muçulmanos, para que não participassem das mobilizações.) Mas quando a religiosidade se torna não só fundamentalista, mas jihadista e, portanto, terrorista, a situação se modifica. Parte dos jovens que aderem ao jihad - é o caso do assassino do hipermercado kasher de Vincennes - foram bandidos, antes de serem militantes fundamentalistas. E, pelo que informam as fontes acima mencionadas, os recrutadores e recrutadoras de soldados para o jihad, na França, também são ou foram ligados ao banditismo. Se os jovens pauperizados têm, agora, entre as saídas possíveis para a sua situação (além das mobilizações), o banditismo e a religiosidade, o jihadismo terrorista tem a característica de juntar os dois elementos. O jovem descobre um tipo de religiosidade que carrega com ela o “banditismo”, isto é, a violência (mesmo se não as drogas). Entende-se assim alguma coisa da atração que ele pode exercer sobre a juventude imigrante marginalizada. Além do fator banditismo, o rumo atual dos conteúdos da mídia também abre o caminho para as práticas violentas. É evidente que se compararmos o que ela oferecia há, digamos, vinte ou trinta anos, com o que propõe hoje, em termos de filmes, jogos etc, constatamos uma proliferação de conteúdos não só violentos, mas de uma extrema violência (ver a utilização de materiais precisos da mídia pelos recrutadores tal como nos informa o livro, acima citado, de Dounia Bouzar). Assim, o desenvolvimento extremo da mídia, refletindo provavelmente o ethos global do capitalismo mais moderno, converge com as práticas do fundamentalismo, o que, aparentemente, haveria de mais arcaico. Mas mídia e terrorismo convergem também em um outro plano. Num período anterior, os jovens se radicalizavam indo às mesquitas ou salas de orações. Mais recentemente, os DVD especializados tornaram desnecessário esse deslocamento. Hoje - os pesquisadores insistem sobre esse ponto - as mensagens mais fanáticas e violentas circulam livremente na internet. Não só deixou de ser necessária a visita aos locais de prece, mas não se necessita, mesmo, de nenhum tipo de material ou instrumento, salvo o que permite o acesso a ela. A propaganda jihadista ocupa amplamente o espaço da mídia eletrônica, e é acessível, sem esforço, a quem tiver interesse em chegar a ela (o que não deve fazer perder de vista o papel do contato in vivo, principalmente nas prisões). Quanto ao fenômeno aparente e paradoxal da coincidência do recrudescimento do terrorismo com os progressos da integração, sem querer jogar com paradoxos, pergunto-me se não há alguma coisa comum na base dos dois fatos: com efeito, muitos terroristas (os de janeiro, por exemplo) estão de algum modo “integrados”. Inimigos ou não dos “franceses”, eles penetram sem dificuldade na cultura local, e nela se movem com êxito, à sua maneira. Basta dizer que o terrorista do hipermercado kasher participou da coprodução de um documentário clandestino na prisão, que aliás deu origem a um livro, e que ele fez parte de um grupo de estagiários, recebidos pelo presidente da República.... Com o que, não estou querendo dizer que a integração, em sentido próprio, da população de origem extra-europeia não esteja em processo. Entretanto, se não se corrigir a política econômica, essa integração significaria, de fato, em muitos casos, desintegração... O jovem “imigrante” seria integrado à população “francesa”, ela mesma sob risco de marginalização...
6) Islã, jihadismo. religião, religiões do livro
Isso posto, é preciso mergulhar mais nas raízes do fundamentalismo islâmico. Já que para analisar os acontecimentos sangrentos de janeiro, na França, nos dispusemos a tratar dos integrismos islamistas, é necessário tentar uma elucidação mais profunda do seu significado. Entretanto, é impossível falar dos fundamentalismos islâmico, sem, antes, dizer alguma coisa sobre o próprio Islã. Na realidade, o que designamos até aqui por esse termo foi não só - ou não, exatamente - a religião muçulmana, mas a realidade, presente ou passada, de certos países e regiões em que ela predomina. 38 Supondo que esse objeto tenha alguma unidade - a unidade é religiosa, e, em alguma medida, histórica, mas só parcialmente linguística, Turquia e Irã, já observei, não são terras em que se fala árabe - que representa esse “território”? Digamos que ele representa uma “periferia” do sistema global de Estados, sistema que tem um centro, ou centros. Digo “periferia”, porque se trata de países, ou de menor desenvolvimento econômico, ou de economia, digamos, sui generis (duas determinações que indicam situações, bem diversas, e quase opostas, já que por sui-generis estou visando principalmente as economias de alguns dos grandes produtores de petróleo, como as monarquias do Golfo, e lá o PIB per capita é comparável, senão superior, ao das principais nações da Europa... 39). Mas, apesar disso, há uma unidade nesse conjunto. 40 E esses países, mesmo os mais ricos, o que aliás confirma a sua situação de “periferia”, pelas próprias peculiaridades das suas economias - várias deles têm a particularidade de explorar a “renda” territorial - não têm o peso da Europa ou dos EUA, e, mais recentemente, da China, na política global do planeta, ainda que eles possam influenciá-la através do impacto do petróleo sobre a economia mundial. 41 Comparemos essa “periferia muçulmana” com outras áreas e países que foram colônias ou semicolônias. Tentemos, por outro lado, pôr em paralelo a situação do “mundo muçulmano” com a dos países mais desenvolvidos. E há pelo menos mais uma outra chave comparativa, muito interessante, que, a rigor, não entra em nenhuma dessas duas categorias.
Comparada com as outras periferias ou ex-periferias - China, Índia, África Negra, América Latina... - o “mundo muçulmano” parece ter em comum com a China e com a Índia o fato de ter sido uma “grande” civilização. Grande em termos de poder, de extensão territorial, mas também em termos culturais. Isso, como veremos, tem uma importância considerável, para pensar a história e o destino do Islã. Se confrontarmos esse “mundo muçulmano” com as nações mais avançadas da Europa e os Estados Unidos, o traço que se destaca é a relação diferente que existe, em um e outro caso, entre o Estado e a sociedade civil, de um lado, e a religião, de outro. Ou entre o poder laico, de um lado, e o religioso, de outro. No Ocidente, operou-se uma nítida separação entre as duas esferas (embora relativa, pense-se, entre outras coisas, no reconhecimento pelo Estado das festas religiosas cristãs). Após a luta entre o papa e os imperadores, e a constituição dos Estados nacionais, o papa conservou um poder cosmopolita, mas apenas “espiritual”. No mundo muçulmano, pelo contrário, apesar da força dos movimentos “laicos”, o impacto das autoridades religiosas e da religião continuou sendo decisivo. 42 O braço religioso existe pelo menos enquanto poderosa força de oposição, se não no governo, impondo normas estritas de comportamento à população civil. Poder-se-ia encarar esse fenômeno como uma decorrência da “essência” do Islã e das nações cuja população é majoritariamente muçulmana. O que significaria que o Islã é mais ou menos incompatível com um governo moderno e, a fortiori, comum governo democrático. Mas também se poderia supor, pelo contrário, que a tendência nesses países é, em última análise, a de seguir os passos dos países avançados, e operar, a médio prazo, senão a separação, pelo menos uma separação, entre religião e Estado; o que significa que o Islã, como religião, seria compatível com uma sociedade republicana e democrática. Apesar de todas as críticas que hoje se faz, e justificadamente, à noção de progresso, esta segunda leitura, que, aliás, não implica nenhuma ideia simplista de progresso, é, a meu ver, a melhor. Se ela introduz a ideia de progresso, não o faz, veremos, num esquema linear. Bom, digamos que o que chamo de “fundamentalismo” ou de “integrismo”, ou de “islamismo”, tem a ver com esse impacto do religioso sobre o poder político e a sociedade, que, sob essa forma e com essa intensidade, não está mais presente no Ocidente. Eu diria que fundamentalistas são as tendências que, dentro do Islã, impõem ou alimentam esse domínio. O que significa subsumir sob o termo, certamente o governo da Arábia Saudita e das demais monarquias do Golfo e do Irã; movimentos, como o salafismo (ainda que a variante quietista não pretenda intervir na política, mas começam a surgir dúvidas sobre o apoliticismo e mesmo a não-violência dos quietistas), os irmãos muçulmanos (é verdade que o seu radicalismo varia, de situação a situação) e, sem dúvida, o jihadismo (que é em parte salafista), sob a espécie do movimento Al Qaida, ou na figura do Califado (ou Estado Islâmico, Daech), também vários partidos etc. O jihadismo vai representar, precisamente, a forma extrema, radical (em termos de violência) do fundamentalismo islâmico. 43 Vê-se por aí que há dois erros a evitar. Um, o de supor que o fundamentalismo e o jihadismo não têm nada a ver com o Islã (o que se ouve às vezes, da boca de gente bem intencionada). Fundamentalismo e jihadismo tem a ver com o Islã, evidentemente, porque nascem nele, e, de certo modo, dele. O outro é o erro contrário: o de supor que o fundamentalismo e o jihadismo são o Islã (o que se ouve, da boca de gente mal intencionada ou mal informada). Erro, também. Fundamentalismo e jihadismo representam, de fato - através do tempo, e do espaço - um Islã e, na realidade, como afirmam os muçulmanos críticos, um Islã doente ou uma doença do Islã.
Mas a que remete o conteúdo mais preciso desse fundamentalismo 44 e qual a sua significação na história, em particular, na história mundial contemporânea?
Os fundamentalismos, e o jihadismo, em especial, representam movimentos essencialmente anti-luzes. Dito de forma geral, isso é certamente uma banalidade. Mas deixa de ser, talvez, se tentarmos explorar essa caracterização e comparar essa vocação antiluzes dos fundamentalismos islâmicos com outras formas e projetos políticos da modernidade contemporânea.
Os fundamentalismos árabes são os movimentos antiluzes, por excelência (embora eles tenham também, e ao mesmo tempo, um lado moderno importante, de que me ocuparei mais abaixo). Às vezes fala-se do nazismo como o grande inimigo do Aufklârung (iluminismo). Na realidade, o nazismo é inimigo de um traço do iluminismo, ou de uma vertente dele, que se impôs, no plano jurídico, a igualdade. Mas ele não é caracteristicamente anti-luzes, porque é ateu (o Aufklärung não foi sempre ateu, nem em geral ateu, mas o ateísmo era, de certa forma, a sua “vocação”). Quanto ao capitalismo liberal-democrático, ele é herdeiro das luzes. Porém, representa, de forma bastante nítida, uma “dialética das luzes”. A saber, nele as luzes se realizam, mas ao mesmo tempo se pervertem e se negam. Há no capitalismo liberal-democrático uma dialética da igualdade e da desigualdade sobre o fundo da liberdade (uma liberdade que por causa daquela dialética também está afetada pela não liberdade). Quanto ao “comunismo” - refiro-me ao chamado “socialismo real”, daí as aspas -, ele tem também as suas raízes nas luzes. E sob outra forma, também ilustra e tragicamente - talvez seja o que ilustra melhor - a “dialética das luzes”. Aqui é a liberdade que se transforma no seu contrário - mas nesse caso a negação não é uma Aufhebung (negação-conservação hegeliana), mas uma negação vulgar - sob a aparência de uma efetivação da igualdade (esta igualdade está afetada de não igualdade, por causa da negação da liberdade). O lado caricaturalmente aufklärer do “comunismo” fica patente no seu cientificismo primário e no seu prometeísmo destruidor.
Quanto à relação entre o fundamentalismo islâmico e esses outros modelos ou projetos, poder-se-ia dizer o seguinte. No que se refere ao “comunismo”, já vimos, foi a tendência laica, e não a religiosa que, por razões compreensíveis, esteve muitas vezes ligado a ele, em forma instável e tortuosa. Qualquer que seja a opinião que possamos ter sobre este evento, a queda do “comunismo” certamente levou água para o moinho antilaico. Os fundamentalismos islâmicos rejeitam o capitalismo liberal-democrata, nas suas duas vertentes, o próprio capitalismo (mas a rejeição do capitalismo enquanto tal é ideológica, na prática, eles como que se “enroscam” no capitalismo), e a liberal-democracia, ou a democracia em geral (aqui a rejeição é efetiva 45). O ataque à democracia, doutrina dos “descrentes” que defende a ideia nefasta de que o poder vem, ou pode vir, do povo, quando, evidentemente, ele vem de Deus, é um leitmotiv dos grupos islâmicos. Quanto à sua relação com o capitalismo, à qual ainda voltarei, o paradoxo sintomático, já assinalado, é o de que o campeão tradicional do fundamentalismo, o poder saudita, templo histórico do salafismo, de que o jihadismo é uma das emanações, é um velho aliado da grande potência capitalista, os Estados Unidos. (Os comentadores destacam a performance de equilibrista dos norte-americanos no Oriente Médio: sustentáculos de Israel, eles são, ao mesmo tempo, grandes amigos da Arábia Saudita...). No que se refere ao nazifascismo, o Islã político-radical, mas também as tendências laicas, manifestaram muita vezes uma atração por ele, pelo menos por alguns dos seus aspectos. Por força do combate contra ingleses e franceses, alguns dos campeões do nacionalismo árabe, como ocorreu também alhures, no terceiro mundo, tiveram namoros com as ideias ou as práticas do fascismo. Mas foram os religiosos que caminharam mais longe nessa direção: o grão-mufti de Jerusalém, Al Amin al-Husseini, foi recebido por Hitler, em novembro de 1941. A partir daí, veio a se constituir uma divisão SS (a 13a divisão, chamada Handschar, cimitarra) formada majoritariamente de soldados muçulmanos da Bósnia (o episódio termina com um levante da tropa, que fazia o seu treinamento na França). Provavelmente, o espírito anti-igualitário, e, mais ainda, o ódio aos judeus, que já tinham assentamentos importantes na Palestina, asseguraram a convergência entre os dois movimentos. O jihadismo pode, aliás, ser considerado como uma doutrina e um movimento totalitário. Assim, os jihadistas têm uma afinidade maior com o “comunismo” e com o nazismo, do que com o capitalismo liberal-democrático, ou, pelo menos, com a democracia.
Com isso, já entramos em alguma coisa do conteúdo, e do “estilo” dos ideais islamistas. Poder-se-ia observar, no plano da atitude geral, ou do estilo, que o discurso islamista, como muitos observadores têm indicado, revela um fundo de forte ressentimento. Isto se deve, sem dúvida, ao fato de que ele tem, por trás de si, a sombra da grande civilização, que perdeu o seu papel de vanguarda. A propósito do ressentimento, deve-se ressaltar, como já dissemos, o trabalho nefasto dos americanos, ou, mais particularmente, de Bush filho e dos neoconservadores, que, por ocasião da desastrosa guerra contra Saddam - mesmo se este era, de fato, um monstro -, fizeram questão de humilhá-lo e, o que é pior, de humilhar também o país. Foi o pior dos cálculos: condenável do ponto de vista ético e politicamente desastroso. No contexto dessas considerações sobre o ressentimento, poderíamos introduzir também a questão de Israel. O problema palestino é evidentemente central no discurso islamista. E é muito por aí, embora não só, que o ressentimento está presente. Há um certo paralelismo entre as histórias dos muçulmanos e a história dos judeus, pelo menos até um certo momento. Ao projeto de fazer ressurgir a grande civilização, e o grande império muçulmano, corresponde, mutatis mutandis - as diferenças são grandes, apesar de tudo - o projeto sionista de construir um Estado para os judeus. Estes tinham uma civilização, à sua maneira, brilhante, embora territorialmente limitada. Perderam o seu Estado, no curso das invasões em torno do início da nossa era, e, muito depois, foram vítimas de um genocídio monstruoso. Os radicais islâmicos insistem que os judeus obtiveram o que queriam - e obtêm sempre o que querem, dizem eles - enquanto aos árabes não se dá nada. É curioso, aliás, observar o quanto, no discurso da extrema-direita, o árabe substituiu o judeu, como objeto de preconceito, o que, evidentemente, não justifica o neoantissemitismo dos radicais islâmicos. O ressentimento - que existia e, em parte, existe ainda, pelas mesmas razões, também na China - tem, uma dupla base, amplamente explorada pelo proselitismo islamista: ao macrorressentimento histórico provocado pela perda de hegemonia por parte do Islã se soma o microrressentimento das populações de confissão muçulmana, marginalizadas, empobrecidas e discriminadas pelo racismo. Um ressentimento sobredetermina o outro.
No conteúdo do islamismo radical, e mesmo, mas com intensidade menor, nos fundamentalismos mais moderados, aparece, como se sabe, um violento impulso antifeminista, que visa o enquadramento e a subordinação da mulher. No caso limite do chamado Califado (Daech, ou Estado Islâmico), as mulheres muçulmanas são impedidas de sair de casa sem um tutor masculino que as comande, e, quanto às mulheres estrangeiras, elas são frequentemente violentadas e até vendidas como escravas. A dominação das mulheres, a discriminação e as medidas coercitivas que lhes são impostas, além de eventuais causas históricas mais específicas que desconheço, devem se relacionar, via o caráter antiluzes do islamismo, com o teor arcaico do “religioso”, em geral, ou de certo “religioso”, pelo menos. A afirmação pode parecer uma tautologia, mas, desenvolvido o argumento, talvez não seja tanto assim. O que poderíamos chamar de “revolução feminista” é a mais recente de todas as revoluções (considerando só as verdadeiras). Os islamistas, adversários dos princípios da Revolução Francesa, revolução que ficou aquém da luta pela libertação da mulher, devem ser a fortiori adversários dessa segunda campanha de emancipação, que sucede ao que se passou em 1789. Mas o argumento é insuficiente. Se tomarmos como referência as religiões do Livro - que me perdoem os especialistas se invado territórios desconhecidos ou sou imprudente nas formulações - a religião parece ter dois vetores. Por um lado, a imortalidade da alma, ou, quando não se insiste muito nessa ideia (que é, entretanto, assumida), pelo menos uma preocupação constante com a finitude e a morte. 46 O segundo vetor é a busca de pureza e o horror da impureza, no interior de cujo universo se destacam as matérias fecais e as dejecções, em geral. 47 As duas coisas devem ir no mesmo sentido, o da busca de transcendência. Mas a obsessão da pureza parece implicar num visada particular da mulher, o que se constata, aliás, já no texto citado. Mas aqui aparecem duas possibilidades. Ou há de fato uma extensão do tema da pureza ao caso da mulher, porque nela ele encontraria um campo privilegiado de investimento, e isso por diferentes razões: digamos, porque, sendo o corpo da mulher o receptáculo da concepção (a concepção, em si mesma, não é, entretanto, considerada como impura), ela encarnaria o corpo melhor do que o homem, e o corpo seria um lugar privilegiado da impureza; ou por causa do sangue menstrual 48 ou, ainda, por causa do parto 49 etc. Ou então, segunda possibilidade, a fixação na mulher (inclusive como lugar privilegiado do puro e do impuro) talvez se explique, independentemente disso, pelo fato de ela remeter à sexualidade, potência a ser controlada e regulada socialmente. 50 Nessa hipótese, pureza e impureza físicas (claro que “físico-sociais”), seriam, para o caso específico da mulher, um fator derivado ou sobrederminante. Porém, o tema da pureza e da impureza físicas subsistiria, de qualquer modo, creio eu, como tema independente e fundamental. Teríamos, então, nessa hipótese, não dois, mas três vetores da religião (nos limites das religiões do Livro). 51 Porém, qualquer que seja a tese teórica, na variante fanática que examinamos, tem-se a patologia disso tudo: o amor da morte, 52 a obsessão da pureza 53 e o controle (a dominação e, nos casos extremos, a escravização, pura e simples) da mulher. Motivos maiores do fundamentalismo.
Poder-se-ia perguntar (retomando em forma um pouco diferente uma questão discutida acima) em que medida a inseparabilidade do religioso e do político, a recusa da cidade laica, que virá a ser a cidade democrática, não é produto de uma religião particular, o Islã. Por outras palavras - pergunta clássica e recorrente, que ouso formular, sem insistir nos limites evidentes das minhas considerações - o atraso daquela periferia vem de particularidades do Islã, ou se deve a outras razões? Acho que aqui - o que nem sempre se faz - seria preciso distinguir duas perguntas: a que indaga se o caráter particular do Islã teve algum papel sobre o aparente bloqueio e, em certo sentido, regressão que se revela em sua história; e a pergunta sobre a necessidade disso, ou seja, se é inevitável que o bloqueio e a regressão aconteçam. Minha impressão, a partir do que pude ler nos especialistas, é a de que a resposta à primeira questão é “sim”, e à segunda é “não”. O caráter bastante “político” da religião muçulmana deve ter dificultado a separação. Ao mesmo tempo, é improvável que isso deva ser sempre assim. Por quê? Por que há muitas tradições laicas dentro da história cultural dos países muçulmanos: literatura, filosofia, também forças políticas laicas (melhores ou piores), e tudo isso existe, também, hoje. Há até forças democráticas, que se manifestaram há pouco tempo, embora no momento presente, estejam, em geral, na defensiva. Por outro lado, o lado fanático da religião se encontra também alhures, pelo menos nas outras religiões do Livro. É evidente que há fanatismo e intolerância na Bíblia. Certamente, no chamado “Velho Testamento”. Mas não seria difícil dar exemplos disso também nos Evangelhos (e, entre esses exemplos, aduzir alguns que contradizem literalmente a outra vertente, a da tolerância, também presente). 54 Na realidade, creio que poderíamos lembrar aqui da teoria do filósofo Ludwig Feuerbach sobre a religião (ele escreve principalmente sobre o cristianismo, mas não só). O discurso de Feuerbach sobre a religião, que, talvez, contra as aparências, seja mais fecundo do que o de Marx, insiste precisamente sobre os dois lados contraditórios das religiões. Primeiro, o do amor e da concórdia. É o que deveria facilitar - o comentário deve ser meu - o estabelecimento de um Estado de direito e, eventualmente, a democracia. O outro, o da fé, é a vertente do fanatismo. Os dois aspectos coexistem mas são contraditório. 55 Essa circunstância deve explicar por que razão obtém-se frequentemente respostas contraditórias, quando se pergunta sobre a “essência” de uma religião, em particular a do Islã. De fato, a indagação recorrente em nossos dias, por motivos óbvios, a de se o Corão prega a paz e a tolerância, ou se é, pelo contrário, uma religião de violência, merece respostas muitas vezes contraditórias, que ora vão na direção de um, ora na direção de outro dos ramos da alternativa. Parece que há pelo menos algumas palavras de paz bastante incisivas no Corão (em primeiro lugar as que banem a coerção em matéria de religião 56). Mas há também fanatismo, e não pouco. Que peso tem uma ou outra vertente, não posso dizer, mas, pelas citações dos especialistas, estão presentes os dois extremos. Isso vai na direção da teoria de Feuerbach e se aplica também ao cristianismo, que é, de resto, o objeto principal de Feuerbach.
Antes de passar ao último tópico desse parágrafo, queria fazer duas observações, uma ainda sobre o seu conteúdo e outra sobre o fenômeno da “volta” do religioso. No que se refere ao conteúdo, importa precisar que o fundamentalismo islâmico não é, evidentemente, puro arcaísmo, simples retomada do passado. Ele tem um lado moderno. É arcaísmo que incorpora um “extrato” moderno. E o que é moderno no fundamentalismo islâmico? Dois elementos. Seus compromissos com o capitalismo mundial e sua implicação com a técnica. Invertendo o caminho clássico, as petromonarquias do globo investem capitais nos países capitalistas avançados. Hoje elas dispõe de uma porcentagem não desprezível nas ações das grandes firmas internacionais. 57 Quanto à imbricação com a técnica moderna, ela aparece principalmente sob duas formas, a do armamento moderno, e a da comunicação moderna, a mídia. Enquanto investidores capitalistas, e como utilizadores privilegiados do armamento moderno e dos recursos técnicos da mídia, os fundamentalistas islâmicos são modernos. Mas nem um nem outro fator eliminam o seu fundo arcaico. O fundamentalismo é arcaico-moderno. Porém se pode dizer, a despeito de tudo - esta é pelo menos a minha tese -, que a primeira determinação é a dominante e a que define a sua essência.
A outra observação diz respeito às condições de emergência contemporânea do religioso. É curioso como este foi subestimado. Israel jogou com os movimentos fundamentalistas árabes, contra Arafat; e o próprio Arafat parece tê-los subestimado (como também os laicos judeus em relação aos seus fundamentalistas, como observou Daniel Golovaty Cursino 58). Os norte-americanos se lançaram a fundo no armamento da guerrilha jihadista no Afaganistão, visando tirar proveito disso para a Guerra Fria, sem pensar em suas consequências. Provavelmente, em todos esses casos, dominava a ideia de que um bando de fanáticos religiosos não poderia ter um papel de relevo (para o pior) no mundo moderno. No que todos se enganaram; e por trás do engano deve estar uma ideia linear do progresso. Eles não viram esse salto para trás, espécie de “revolução permanente” às avessas, que é o jihadismo. Aliás, o fenômeno também é dificilmente pensável a partir de Marx. Claro que ele conhecia o poder religioso, e as civilizações pré-modernas, assim com os seus remanescentes na modernidade. Mas o peso atual desse arcaísmo se acomoda mal com a teoria ou o esquema marxiano da história.
Essas considerações sobre a religião reforçam, sem dúvida, a dupla exigência das luzes: a da liberdade religiosa, por um lado, e a da não obrigatoriedade em reconhecer o sagrado como sagrado, por outro, isto é, a não obrigatoriedade em respeitá-lo como sagrado no plano simbólico (a saber, no plano da representação). Na história do pensamento e da ação das esquerdas e, em particular do marxismo, essa dupla exigência não foi obedecida, longe daí. Vou contrapor dois exemplos que representam bem, a meu ver, respectivamente, uma atitude errada - ela não é a única atitude errada, pois não considero aqui o seu oposto imediato, também falso - e uma atitude, em linhas gerais, correta, que se pode ter em relação à religião. Os dois exemplos são de tipo muito diferente, porque vou pôr em paralelo uma certa política, de um lado, e um texto, de outro. Eu poderia representar aquela política por um texto, o que aliás farei logo mais adiante. Mas, de qualquer forma, subsiste uma diferença, porque a primeira posição foi posta em prática amplamente - tanto para o melhor quanto para o pior, digamos sem rodeios: para o pior - o que não foi o caso da outra, a não ser indiretamente. A atitude errada está na política bolchevique dos anos 1920. Política antirreligiosa brutal, pregada e efetivada por Lênin, no estilo do pior fanatismo pseudoiluminista. Consulte-se, a respeito, as histórias do poder bolchevista nos seus primeiros anos, ou algumas delas. 59 Esse tipo de política, que implicou em violências de toda ordem não só contra os objetos religiosos, mas também contra pessoas, teve, para além dos crimes, o resultado mais desastroso e mais oposto àqueles com que contavam os seus promotores. A religião não só não morreu, mas acabou se fortalecendo e, em geral, em conexão com forças políticas conservadores e reacionárias. A essa atitude, poderíamos opor a atitude de Engels, ou antes, mais modestamente, o que diz Engels em um texto, numa passagem da Crítica do programa de Erfurt. Depois de reafirmar a necessidade da “plena separação da Igreja para com o Estado” e a exigência de que as comunidades religiosas percam toda subvenção pública e toda “influência sobre as escolas públicas”, Engels precisa: “Entretanto (ou, “de fato”, doch) não se lhes pode proibir fundar suas escolas com seus fundos [próprios] e lá ensinar as suas besteiras (Blödsinn)”... 60. Embora breve, a referência me parece digna de registro. Engels faz questão de deixar claro que, se rejeita toda inversão de dinheiro público em escolas confessionais e se quer subtrair a escola pública a toda “influência” das comunidades religiosas, ele se inscreve explicitamente contra toda repressão antirreligiosa - as comunidades podem fundar, às suas custas, suas escolas -, sem deixar de observar, en passant, e ironicamente, o que pensa sobre o conteúdo do ensino religioso: “besteira” (Blödsinn)... Engels afirma assim, em forma simples, ou simplista, e ingenuamente irônica talvez, mas eficaz, o duplo princípio do Aufklärung, de que somos herdeiros: liberdade para todas as religiões e recusa em reconhecer o sagrado como sagrado (recusa que inclui o direito de critica irônica do discurso e das representações religiosas). Ah, se Lênin tivesse a metade do bom-senso crítico e político do velho Engels! Ter-se-ia poupado do mundo e da tradição socialista, de algumas catástrofes e de alguns horrores. Apesar de ter uns 125 anos, o texto de Engels, em sua simplicidade, serve bem, hoje, pelo menos para definir uma posição, nem fanática nem falsamente respeitosa em relação às religiões.
7. Depois do massacre
O morticínio na sede do Charlie Hebdo, mais os assassinatos que tiveram lugar nos dias seguintes - não nos esqueçamos da morte da policial do Caribe e do grande show sangrento antissemita que deu o terceiro terrorista, no hipermercado kasher de Vincennes -, tiveram, como disse no início, uma imensa repercussão. Uma grande manifestação foi marcada para o domingo seguinte, reunindo, em Paris, um milhão e meio de pessoas (no conjunto das manifestações em toda a França, nos dias 10 e 11, foram para a rua em torno de três milhões e meio de pessoas). A ela estiveram presentes vários chefes de Estado ou de governo, inclusive governantes que não primam pelo respeito pelas minorias ou pela salvaguarda dos direitos fundamentais (o húngaro Viktor Orban, dirigente de um partido de extrema-direita, que já liquidou boa parte da democracia em seu país; o soberano da Arábia Saudita, onde os trabalhadores imigrantes são tratados como escravos e as mulheres não podem guiar automóveis; e muitas outras figuras “controversas”). Natanayou, campeão das colonizações de terras palestinas por Israel, fez questão de fazer a viagem, o que levou François Hollande a convidar também o chefe do governo palestino, Mahmoud Abbas, para tentar restabelecer o equilíbrio. Recuperação do movimento? Sem dúvida, mas ela era mais ou menos inevitável, e, de qualquer modo, não neutralizou, de modo substancial, a força da manifestação. Poder-se-ia mesmo dizer, com algum otimismo, sem dúvida, que, de algum modo, nós, os manifestantes, manipulamos de nossa parte aqueles personagens, ou que as circunstâncias os obrigaram a essa espécie de concessão (de fato, quem poderia imaginar que Benyamin Natanyahou, Viktor Orban, Serge Lavrov [Russia], o representante dos Emiratos, Ali Bongo [Gabon], o primeiro ministro turco Ahmet Davutogiu etc, se manifestariam [também] em favor de Charlie Hebdo?). Uma certa extrema-esquerda não gostou da jornada. Um filósofo desse entorno, figurão famoso, mas consideravelmente vazio, sentiu-se incomodado com as bandeiras francesas que muitos manifestantes empunhavam na grande marcha. O articulista queria a bandeira vermelha e não a bandeira tricolor. Um outro, da mesma família, a quem aliás me referi no início, concluiu, da manifestação - ou talvez do conjunto do episódio, não me lembro bem -, que ela indicava o fracasso do liberalismo. Se esse termo fosse especificado em “neoliberalismo” a afirmativa poderia, talvez, ser de alguma utilidade. Mas, como no caso do seu compadre, parece ter havido aí uma espécie de incômodo com o fato de que se tratava de uma grande mobilização democrática. Um historiador, Michel Winock, disse mesmo que era a primeira “jornada do internacionalismo democrático” da história. 61 Na realidade, foi esse o caráter da grande manifestação do domingo, 11 de janeiro. E, a despeito do mau humor dos inimigos da democracia, tanto melhor que tenha sido assim. Como ocorreu no começo da chamada “primavera árabe”, o gauchismo alérgico à democracia ficou irrequieto, não sabendo bem o que dizer. Pois a democracia mobiliza multidões, na França e fora dela, e isso é indispensável, embora, claro, não seja suficiente. Porém, é importante que haja demonstrações democráticas, porque elas valem não só contra o islamismo, mas também contra todos os totalitarismos. É se é nesse sentido que elas são importantes, é por isso mesmo que alguns não podem tolerá-las. A manifestação de 11 de janeiro teve, por outro lado, o grande papel de desmentir a ideia de que, na França, ninguém se interessa por nada, fora os seus problemas pessoais imediatos, isto é, de que haveria uma espécie de torpor na opinião pública, principalmente a de esquerda. O 11 de janeiro mostrou que não é bem assim. O “povo” pôs para fora as convicções que devem representar o substrato primeiro - histórico e, também, “lógico” - das lutas sociais do nosso tempo. É, em todo caso auspicioso, e nada negativo, que o “povo” - a propósito, contra o que afirma certa literatura fantasmagórica, pesquisas recentes confirmam que a maioria dos manifestantes era de esquerda ou do centro - empunhe a bandeira tricolor, privatizada, nos últimos tempos, pela direita. Ele exprime, com isto, uma vontade de universalização. Que esta universalização seja “apenas” democrática, não é grave.
Vou omitir aqui, concluindo, as considerações mais longas que pensava tecer, sobre o que - penso eu - seria possível fazer, no plano nacional francês, em termos de um projeto de luta contra o jihadismo; algo que assegurasse, ao mesmo tempo, os direitos e o bem-estar da populações de origem muçulmana. Insistirei apenas sobre um grupo de fenômenos que mostram os perigos da situação atual. Até aqui, em eleições presidenciais francesas, o eleitorado muçulmano votou esmagadoramente na esquerda; mas, apesar disso, vai ficando claro que há um risco de convergência entre, de um lado, os fundamentalismos e o dogmatismo religioso (em meio islâmico) em geral, e, por outro, a política da direita e também da extrema-direita. A esse respeito, há mais de um fenômeno a assinalar. Primeiramente: a direita clássica tenta arregimentar a população de confissão muçulmana, 62 pelo sacrifício da laicidade do Estado. Assim, um deputado da UMP (principal partido da direita francesa), eleito por uma circunscrição da região parisiense, apresentou, em 2006, um projeto de lei punindo a blasfêmia, projeto que, felizmente, não foi aprovado. Em segundo lugar, certos movimentos radicais de direita tentam atrair os até aqui tão detestados “invasores”, para um cerrar fileiras em nome da luta pela defesa da religião e da moralidade. Assim, o movimento contra a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e contra o ensino, na escola, de uma pretensa “teoria do gênero” (?), movimento que levou à rua centenas de milhares de ativistas, conseguiu mobilizar, para a sua causa, várias famílias de confissão muçulmana. Mais grave do que isso, embora mais limitado em termos quantitativos: esboça-se uma aliança entre certos personagens dos meios salafistas, 63 e a extrema-direita neofascista e antissemita do humorista Dieudonné e do ideólogo Alain Soral. 64
No plano internacional, abreviando, também, algumas pistas. Uma diminuição do interesse norte-americano pelo petróleo da península arábica - o ideal seria, se como fruto do desenvolvimento de energias renováveis 65 - poderia desfazer ou pelo menos afrouxar o nó funesto que une os EUA às reacionaríssimas monarquias da Península Arábica, nó que tem muito a ver com o imbrógliodo Oriente Médio. Uma outra pista, maior, é evidentemente, Israel. Uma solução suficientemente satisfatória do problema palestino, a qual dependeria, é claro, de uma mudança na atual política do governo israelense - mas esta tende a se esgotar, a médio prazo - alteraria consideravelmente a situação. Edgar Morin insiste, por sua vez, que será preciso refazer o mapa do Oriente Médio, porque as antigas fronteiras já não significam grande coisa. De fato, o Iraque está dividido; desejável e inevitável, é, provavelmente, a independência dos curdos; e assim por diante. Finalmente, não se pode esquecer do movimento democrático. Quando houve a chamada “primavera árabe”, no meio da euforia que provocaram os acontecimentos, exagerou-se a importância e as possibilidades dele. Em seguida, quando os islamistas levantaram a cabeça ou equipes mais ou menos ligadas às antigas ditaduras se reinstalaram no poder (as duas coisas aconteceram), o pêndulo se moveu em sentido contrário: tendeu-se a esquecer as forças democráticas, ou a supor que elas havia sido totalmente liquidadas. Mas, embora na defensiva, é evidente que o movimento democrático não morreu. E, pelo menos em um país, a Tunísia, ele se apresenta como uma força efetiva. 66
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Os jornalistas de Charlie Hebdo, que não incorreram em nenhum crime de blasfêmia - uma invenção supersticiosa - tornaram-se, na realidade, verdadeiros heróis das luzes. É preciso saudá-los e homenagear a sua memória. Como vimos, não faltaram nem faltam os detratores. Em compensação, eles foram entendidos, e muito bem acolhidos por espíritos antidogmáticos e democráticos dentro da mouvance muçulmana. É que, desenhando o Profeta, eles não só praticaram uma ironia legítima, mas, pelo menos nas principais, das famosas caricaturas - não em todas, mas creio que em todas as de capa - ofereceram do personagem um retrato “liberal” (no sentido das luzes), e um retrato que aparece como favorável ao retratado, pelo menos aos olhos de um leitor não preconceituoso. É, por exemplo, o caso da charge em que Maomé é representado proferindo a frase, “como é penoso ser amado por idiotas (cons)”, ou aquela em que ele declara que “perdoa a todos”. Na primeira, particularmente expressiva, o Profeta condena os dogmáticos e os denuncia. Pois um intelectual “muçulmano”, de espírito livre, Abderwahab Meddeb, formado pelas duas tradições e professor de literatura comparada escreveu, num livro de 2008, um texto que, curiosamente, até onde sei, ninguém se lembrou de citar. O autor, que morreu em 2014, e, portanto, se foi antes do grande massacre, posiciona-se, premonitoriamente, se ouso dizer, em favor da Revista, e, em particular, em favor daquela charge; o que ele faz - e isso é notável - não só com espírito de tolerância, mas num gesto que trai, para além desta, uma real empatia com a caricatura e com seu autor. O texto merece ser citado extensamente; e se nele se exprime uma certa alegria, é também com alegria que eu o insiro na conclusão deste longo artigo: “E eu me enchi de alegria (j‘ai jubilé) - escreve Meddeb - lendo o número de Charlie Hebdo, 67 que diz à sua maneira e pela força do desenho o que eu tento pensar em conceito. Aquela edição foi composta para denunciar as superstições e os fanatismos de todas as crenças e não ter de cair em cima só do Islã, não renunciando à conquista ocidental da liberdade de dizer e de julgar: aqui não existe zona tabu e nós não temos de proibir a crítica da religião e a derrisão para com os fanatismos e as superstições. A capa da revista satírica correspondia exatamente ao meu pensamento, o qual eu já havia exprimido publicamente: um desenho com traços grossos mostrava o Profeta, com uma “balão” 68 com estas palavras: “Que infelicidade ser amado por idiotas” (Que c‘est malhereux d‘être aimé par des cons). Essas multidões em fúria que protestam com fogo e sangue contra sub-produtos da caricatura 69, são, com efeito, assimiláveis a gente de bestice crassa; e eu adiro a esse desenho pois desejo ver o islã se separar daqueles que fazem dele uma entidade boba (bête) e detestável, para que ele seja o que também pode ser: uma configuração inteligente e amável”. 70
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