revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Alex CALHEIROS

Pasolini: o poeta e a cidade

 


A presença de Pier Paolo Pasolini entre nós se deu, quase exclusivamente, através de sua obra cinematográfica. Filmes como Accattone, Mamma Roma, Il Vangelo Secondo San Matteo, Edipo Re, Medea, Salo, desde sempre presentes nas salas de cinema do país, são disso exemplo. Pode-se dizer que seu cinema gozou de um sucesso perene no Brasil, e, vale ressaltar, praticamente desde o início de sua trajetória. Um sucesso, vale ainda lembrar, não se limitou ao reconhecimento da qualidade dos filmes aqui vistos, mas uma presença que desde sempre se mostrou viva, marcante e profícua, já que efetivamente constituiu um diálogo que não cessou de provocar debates e aprofundamentos da parte de muitos, da crítica, do público e de outros artistas. O cinema, no entanto, foi apenas uma das múltiplas atividades intelectuais de Pasolini. Ele teve, embora curta, interessante atividade no teatro, escrevendo algumas peças de grande valor, como Orgia, Pilades, Calderon, Affabulazione, pecas em que o diálogo entre a tragédia antiga e a moderna, estavam em questão. E, embora algumas das pecas escritas por Pasolini tenham sido encenadas no Brasil, talvez seja o momento, pelo tom e pelos temas, de um reconhecimento de um público mais amplo. Arriscou, mesmo sofrendo severas críticas, no campo da tradução de textos antigos, tanto gregos quanto latinos. Pouco conhecida, inclusive em âmbito italiano, fez uma curiosa incursão nas artes plásticas. Mas sua força e reconhecimento maior estavam mesmo na atividade literária: a prosa, a poesia, a crítica e sobretudo os textos de intervenção política, ainda que a escolha pelo cinema tenha sido feita por conta de uma descrença radical na linguagem escrita. Escreveu, mesmo antes de enveredar pelo mundo do cinema, diversos romances que, em seu tempo e até hoje, sofreram muitas críticas e gozaram de muita estima. Controversos, marca indissociável de Pasolini, os romances escritos na metade da década de cinquenta ocupam, hoje, e nunca sem controvérsias, na história da literatura italiana, um importante lugar e Pasolini é, sem dúvida alguma, um dos maiores autores italianos do Novecentos.
Os romances de Pasolini, embora não pertençam, nem do ponto de vista temporal nem do ponto de vista estilístico, ao neo-realismo momento de renovação cultural pelo qual passou a sociedade italiana nos anos que compreenderam a resistência ao regime fascista e o pós-guerra, os anos da reconstrução e da redemocratização italiana, fazem dele eco e são, ao mesmo tempo, um momento importante de superação de seus limites estilísticos e políticos. Aparentemente próximos, n~ao é mais a descrição o que interessa a Pasolini, mas sua transfiguração A obra narrativa de Pasolini, ainda que pertencendo a um outro momento histórico, guarda, no entanto, aquela mesma preocupação, aquele mesmo clima, agora sob forte influência da obra recentemente descoberta de Antonio Gramsci, de levar às páginas da literatura italiana a vida dos humildes e ofendidos da terra, num esforço de escapar, mesmo que nem sempre conseguindo, de uma apropriação ingênua e irrefletida da realidade, a matéria-prima que plasmava suas obras. Neste sentido, marcado pelos grandes exemplos, tanto literários quanto cinematográficas do neorrealismo, Pasolini conseguiu colocar uma certa tendência realista da cultura italiana num outro patamar, ultrapassando assim o limite da observação mais imediata e objetiva da realidade, tentando empreender um conhecimento profundo da própria identidade italiana, preocupado que era por seu destino. Numa palavra, tomando a lição de Gramsci, a ordem era organizar um movimento contra-hegemônico, dando sentido as experiências de derrota que aqueles que estavam fora da história tiveram. Mas, para tanto, Robertto Longhi e Auerbach, deram a Pasolini o elemento falante pois n~ao se tratava de uma apresentação fria e objetiva da realidade, mas de dar a ela sua dimensão maior, seu sentido mais alto, tingindo de tranco míticos o conceito grasmciano de nacional popular. Os romances de Pasolini procuravam também pôr em evidência a língua, que para tantos pode ser considerado o lugar mais propício e radical para pensar a particular configuração da experiência social italiana, encontrado em seus vestígios sua presença histórica. A língua, a tragédia de sua homologação e seu inevitável desaparecimento. Pasolini reconhecia na língua não somente seu sentido abstratamente, mas sobretudo importava-se pela sua presença material. Naqueles romances,em Ragazzi di vita, em Una vita violenta, a relação entre língua e dialeto é explorada de modo profundo e inovador, perscrutando a alma italiana, não como comumente parece interessar a estudiosos, conhecendo suas estruturas linguísticas e etc, mas percebendo em seus vestígios ruínas, reminiscências, as profundas transformações que sofreu e, principalmente, naquele momento preciso, estava sofrendo a Itália. 
Para compreender a relação entre historia, língua e política para encontrar inconfundível marca que forja a identidade de Pasolini, antes mesmo de sua experiência literária como romancista, é preciso dizer que Pasolini afirmou-se antes de qualquer coisa como poeta, experiência que cultivou desde muito cedo, quando, em seus diversos deslocamentos geográficos motivados por necessidade do trabalho paterno, um militar de baixa patente, viveu numa remota cidade de província nas terras do Friuli, em Casarsa, extremo norte da Itália, onde sua mãe teve origem e de onde teve de fugir para Roma, após acusação de um padre, de ter abusado de menores, fatos que depois se tornarão também material literário, aliás, uma dominante na obra pasoliniana na qual vida privada e vida pública estão de modo radical implicadas, constituindo um estilo inconfundível e de rara competência.
A experiência literária friulana, toda escrita naquela língua que jamais havia sido codificada, restando até aquele momento, a despeito da modernidade e do progresso, mantendo-se porque uma língua viva, ao contrário de uma preocupação erudita ou preservacionista, já que uma das questões era o risco real de seu desaparecimento, com a extinção das raízes arcaicas, camponesas e cristãs daquela parte da nação italiana, estava centrada justamente na percepção já fina do jovem poeta em oposição a operação torpe e perversa que a modernidade em sua face capitalista parecia apresentar. Tratava-se, ainda que in nuce, na opinião de Pasolini que se tornara mais clara e mais contundente ao longo de sua trajetoria, de uma operação característica do modo de vida fascista, avesso a toda diferença e amparado num delírio modernizante que rejeita, no entanto, um sentido mais consequente de progresso. O facismo, justamente por isso, opera através da criação de uma categoria social nova, a massa. Ou seja, desde sempre a preocupação de Pasolini esteve no apego, que muitos julgam fetichistas, pela realidade. Apego irracional pelo mundo, elaborando uma visão de mundo muito particular em que o projeto político, meticuloso, racional, une-se ao sentimento mais transbordante por tudo o que é humano. Um projeto em que ele mesmo explicita os termos em seu famoso conjunto de ensaios intitulado “Paixão e Ideologia”. Depois disso, e de muitos modos, Pasolini persistiu em sua atividade poética, atividade que se traduz efetivamente na elaboração de poemas e que serão regularmente publicados ao longo dos anos, mas sobretudo numa atitude que poderia de modo muito rápido ser entendido numa posição clara e que permeia todas as suas outras atividades de modo indistinto. A poesia, para Pasolini, era muito mais que um ofício mecânico em que se busca competentemente encontrar uma forma para uma intuição qualquer, mas constituía-se como um trabalho intelectual a partir da imaginação, um instrumento a serviço da luta contra o galopante rumo tecnicista que as sociedades contemporâneas estavam tomando. De modo que, sendo muitas coisas, Pasolini foi essencialmente um poeta.
No dia do enterro de Pier Paolo Pasolini, brutalmente assassinado por motivos que cada vez se afirmam políticos, Alberto Moravia, escritor, amigo de muitos anos e colega no ofício intelectual, gritou num lamento, mas principalmente em tom de denúncia, que qualquer sociedade teria orgulho em ter tido entre os seus alguém como Pasolini e que ainda naquele século a Itália se daria conta de que havia perdido um de seus melhores poetas. Poetas, prosseguia ele, como todo mundo sabe, nascem poucos. Mas vivemos a despeito de sua sobrevivência, numa sociedade em que a figura do poeta, esse homem que não nos deixa esquecer da importância da imaginação como instrumento de organização da vida, está em constante risco de se perder. Desperdiçamos essas figuras às quais deveríamos atribuir, não por idolatria alienante, uma condição sagrada. Sagrada porque a vida, em seu irrefutável materialismo, é sagrada, como vaticinava o Centauro ao menino Jasão em Medéia, querendo ensinar-lhe o que ele jamais aprenderia.
O discurso fúnebre de Moravia, proferido com indignação diante de um país que, entorpecido, assistia crescer dia após dia o velho fantasma que já havia assombrado Maquiavel, aquele da dissolução da vida política, reivindicava à figura do poeta um lugar há muito tempo já perdido e uma importância, para o nosso tempo, absurda. Afinal, para que servem os poetas? Enfim, qual a importância que poderia ter um poeta para uma sociedade cada vez mais tecnocrata, racionalista e incapaz de deixar-se inebriar pelas razões materiais da imaginação? o que pode um poeta dizer para um mundo decadente. Mas um poeta é essencialmente um homem.
A denuncia de Moravia, naquele momento e até agora, ressoa a partir de um lugar reconhecido e de um momento bastante marcante na cultura italiana do pós-guerra, aquele em que o grito surdo de Antônio Gramsci, calado pelos dogmatismos de direita e de esquerda, foi ouvido. Os Cadernos do Cárcere, escrita nos longos anos de detenção do filósofo sardo, além de sua importância literária e filosófica, foi responsável pelo debate mais importante na Itália do pós-guerra, cujo legado tem, em Pasolini, um de seus maiores herdeiros. Tratava-se, no debate em torno da subjetividade revolucionária, que significava não somente descobrir, mas sobretudo compreender, quem era esse sujeito novo, que o pós-guerra debaterá longamente e que Pasolini de algum modo vai reinventar, desmascarando a ideia de que o intelectual é aquele indivíduo obediente e servil ao partido, ao contrário, como certamente também pensou Gramsci, o intelectual aqui assume aquele lugar fora da regra, contra o poder estabelecido e contra o conformismo, inclusive aquele da esquerda, uma esquerda que perdeu-se, não porque chegou ao poder, mas aliou-se ao poder. As linhas escritas a duras penas nos subterrâneos do dogmatismo político ecoaram e ainda funcionavam em um horizonte que apontava para a falsa harmonia estabelecida pelas recentes conquistas das sociedades neocapitalistas que fundavam suas estratégias de dominação no consumo desenfreado, transformando toda legítima diferença, todo intrínseco conflito, em ilusório acordo, em mortífera paz, dos quais somente hoje podemos perceber o efeito devastador. Nem profeta, nem marginal, Pasolini quis e foi esse homem novo e vivo que Gramsci foi e sonhou, e, por isso, o assassinato do primeiro e deste ainda, foram um crime contra a humanidade.
Pasolini sofreu um assassinato político porque se tornou para esta sociedade monstruosa um cidadão perigoso. Perigoso porque em seu projeto artístico e intelectual desferia sem peias sua crítica à operação que, desde o pós-guerra, justificado num projeto de desenvolvimento bizarro que separava, como aliás em seu tempo já havia denunciado Maquiavel, política e cultura, engenho e imaginação. Enfim, um projeto que desumanizava, Pasolini, ao contrário, queria uma política pela vida . Pasolini denunciava os sintomas de uma doença silenciosa e traiçoeira para a vida comum. Essa doença, a grande tragédia contemporânea, e a qual Pasolini dizia ter transformado de modo radical a experiência humana, pelo menos tal qual a conhecíamos até os anos imediatamente posteriores ao pós-guerra, provocando uma degeneração antropológica, um genocídio cultural. O tema, isto é as consequências do ingresso brutal no sistema capitalista fundado no consumo, na profanação da vida, já que modificava completamente suas relações, pervertendo-as, transformando-as em mercadoria, foram uma verdadeira obsessão do poeta nos últimos anos de vida. Muitas vezes, ou sempre, recusou o lugar do conformismo leviano conquistados pelos artistas em nosso tempo, e se levantou contra as estratégias desse processo já instalado e em processo avançado, e talvez já perdido. Pôs-se, talvez para garantir sua liberdade, como um herói trágico, contra o poder e seus tentáculos. Moravia lamentava a morte de um homem verdadeiro, não um monstro, e falava em tom acusatório não porque conhecia os nomes, as circunstância e a causa material daquele assassinato, mas porque sabia, como pode saber um poeta, quem, como e por que, haviam-no matado; ele conhecia a monstruosidade sem rosto de seus assassinos. A denúncia de Moravia não se resumia à indignação de um amigo diante da brutalidade de um acontecimento que cotidianamente ilustra as capas dos jornais especializados nesse tipo de violência quase de submundo, em que a vida privada é, por pura veleidade, devassada, tornando-se matéria para julgamento de uma sociedade carola e moralista.

O artista, reconhecendo-se na figura moderna do intelectual, sabendo-se homem, e ocupando-se de coisas humanas, buscou, com paixão, empenhar-se em dissolver o ranço elitista dos intelectuais italianos, Para valer-se ainda aqui da acusação feita por Gramsci, cosmopolitas, homens sem pátria e sem irmãos, explicitando seu doentio seu desenraizamento. Para fazê-lo, Pasolini teve que se reencontrar com essa ideia perdida e tão desvalorizada de poesia, a poesia que não se contenta em ficar às margens da vida, submetida a uma ideia preconcebida de verdade, mas coloca-se no centro dela, investigando com seus próprios meios, a verdade sobre a vida. Não é por acaso, certamente, o obsessivo interesse de Pasolini pelos antigos, um interesse que via na poesia mais que uma técnica aprendida e bem executada, o medo que mobilizou Platao, já que a poesia havia pedido tal honrosa tarefa, mas um ofício que ultrapassava os interesses e os privilégios pessoais, uma arma persuasiva. Foi, em ultima analise, na poesia assim compreendida que Pasolini encontrou a conformação entre sua vida íntima e sua vida pública, resolvendo como poucos tentaram e como poucos conseguiram, essa secular dicotomia entre intimidade e vida publica, entre poesia e política. Pasolini foi um dos poucos poetas cívicos do nosso tempo, e, por isso, seu assassinato foi um crime político. Poucos, certamente, escolheram a poesia como o meio para realizar a tarefa humana que, dentro de uma determinada tradição, é a tarefa mais nobre, a política. Não um motivo para autojustificação e evasão da realidade, portanto, mas o de comprometer-se com a verdade e promover o que é comum a todos os homens. Por amor, odiou o seu mundo. O ódio que no entanto espera o bem comum.

Basta uma visada sobre a vasta obra de Pier Pasolini, da qual este dossiê traz uma pequena amostragem, para perceber que os interesses de Pasolini ultrapassavam a ideia romântica do poeta em seu oficio alienado do mundo. Pasolini se valia da condição de poeta para desesperadamente expor sua verdadeira paixão, para ficar aqui em sua famosa expressão, uma paixão desmesurada pela realidade. 









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