revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Tiago MESQUITA

>Lygia Clark: a dor do corpo1

 


Para alguns, a herança de Lygia Clark está encrustada no corpo. Ela é comumente associada a um aspecto físico, erótico e festivo da arte brasileira. Suas ideias, como a proposta de ação terapêutica, sugerem essa relação de conciliação.
Não sei quão precisa é a afirmação, mas ela faz sentido. Sua obra lida com um novo modo de encarar a relação entre o trabalho de arte e o público, o trabalho de arte e o corpo. No entanto, acredito que ao observarmos o trabalho, ou ao o manipulamos, as relações entre público e objeto tornam-se mais fraturadas.

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A partir dos anos 1960 a obra de Lygia Clark solicita uma reação ativa do público. A partir de seus Bichos,convida-nos a manipular suas peças e deslocar chapas assimétricas em formas que se modificam de acordo com a reação do objeto aos nossos movimentos. Movemos uma chapa que se afixa a outra por uma dobradiça, o que faz com que as formas de metal se mexam em uma ordem que o nosso gesto não determinou. Não há controle do objeto, não controlamos seus desdobramentos.
Já na segunda metade dos anos 1960, o resultado do trabalho de Lygia Clark deixa de ser uma obra para se contemplar e se torna uma proposta para relações intersubjetivas que se valem ou não do uso de um objeto. As propostas se dirigem à descoberta de usos dos sentidos, das percepções e do corpo. Voltam-se pra dentro. A obra acabada só existe nesse uso. Em 1963, a artista fez Caminhando, uma fita de moebius que não é nada até ser cortada. A proposta da obra não é o objeto em si, mas o gesto de cortá-lo e tornar a fita mais longa e estreita possível. É a proposta de um caminho, de uma vivência.
Por isso afina-se com o que Hélio Oiticica chamou de “mergulho no corpo”. A arte utilizada como uma relação interpessoal e instrumento de autoconhecimento. Aliás, no mais das vezes, a relação é solipsista, de quem manipula com o que é manipulado e se esquece do mundo ao redor.2 O público não é mais convidado a contemplar um objeto, mas a participar das propostas de vivências com o outro ou consigo mesmo. Esse antes “espectador” é chamado a entrar em contato com a sua intimidade por meio da utilização de dispositivos, com os jogos propostos pela artista a serem jogados de modo interativo. Seria uma forma de buscar a percepção das coisas que reprimimos, que calamos no corpo.
A percepção não é mais apenas a percepção visual. Já no fim dos anos 1950, Lygia Clark tenta retirar de sua obra todos os sinais que faziam dela um espaço metafórico que acontecia no interior da tela e faz com que suas superfícies atuem diretamente no mundo. As pinturas estão longe de ser o melhor da produção da artista, costumam ser esquemáticas e sugerem a ilustração de um raciocínio. Elas são, no entanto, o primeiro passo na aproximação do espaço da obra com o espaço ao seu redor.
Dos Bichos em diante, quem vê também escuta, encosta, cheira, atento e de corpo inteiro. De forma ideal, podemos dizer que a artista tenta fundar um novo espectador, um processo de transformação do homem pelos sentidos. Tal projeto utópico envolve, em grande medida, uma interpretação da relação entre arte e vida proposta desde os primeiros anos do construtivismo e revela as peculiaridades da interpretação desse projeto no Brasil.
Lygia sempre foi uma artista da linha, afeita a questões de projeto. Wölfflin, ao pensar esse tipo de artista que parte da linha, chama-o de linear.3 Não por acaso, ao comparar Hélio Oiticica e Lygia Clark,, Benedito Nunes vale-se da contraposição entre cor e desenho desenvolvida pela tradição da história da arte, sobretudo na hoje execrada escola da visibilidade pura. Para ele, “Hélio é um alucinado da cor, e Lygia, como a chamou Mario Pedrosa, uma “visionária do espaço”.4
Na década de 1970, tenta sair do universo da arte e atribuir uma função terapêutica à sua obra. A atividade artística parece ter perdido a legitimidade em si mesma, necessitando de atuar de maneira útil em outras esferas da vida.
Em 2011, a professora Sônia Salzstein publicou um artigo na revista Novos estudos CEBRAP5 em que passa em revisão a ideia de construtivo na arte brasileira. A autora tenta examinar que sentido essa ideia teria em uma sociedade como o Brasil. O construtivismo, em grande medida lida com o planejamento de relações modernizadas pela indústria. Fala da possibilidade da criatividade atuar nesse tipo de sociedade.
Na passagem da década de 1950 para os anos 1960, a modernização ganha importância, torna-se uma promessa no Brasil, mas não é exatamente assim. No argumento, fica claro que o sonho da superação do atraso por meio da técnica e da clareza formal não é aqui uma possibilidade concreta. As transformações que aparentemente apontariam para o progresso muitas vezes atuam no recrudescimento do atraso. Por isso a arte desenvolve outros usos dos raciocínios não figurativos. E em alguns casos com uma desconfiança do raciocínio projetivo em favor de uma estética da experiência.
O termo construtivo se desvincularia do termo original, da inspiração da arte abstrata europeia. Se lá ele diz respeito a um planejamento frio e objetivo, aqui ele torna visíveis aspectos estruturais da obra. O construtivo passa a acontecer não em um lugar distante de nós, mas faz com que esses objetos planejados instituam algum tipo de experiência com o expectador.
Artistas como Lygia Clark, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Willys de Castro, Lygia Pape e Amilcar de Castro se afastariam da promessa de progresso da arte para apostar no que, sabiamente, Salzstein nomeia de “uma reerotização da experiência estética, para muito além do espaço normativo da cultura”.6 O esforço é fazer a experiência desmentir o projeto do desenho. Lygia Clark se empenhou em abandonar a obra como objeto de contemplação.
Esse caminho já era sublinhado por Mário Pedrosa em 1963. Ao elaborar a trajetória da artista em um artigo, a entende como um caminho contínuo, progressivo, ascendente e em vias de radicalização. Nove anos após a pintura-objeto Composição no. 5, Quebra de moldura (1954), Pedrosa afirma categoricamente:

“(...) seu compromisso não é mais formal-artístico, mas estético-vital. Não é nem mesmo a arte, que ela reverência ou que quer, mas o comportamento diante da existência, a ação totalizadora da vida, a força catalisadora de uma atividade criativa que no universo une, reúne, funde esse lado e o outro lado, o antes e depois, o baixo e o alto, o ontem e o amanhã, naquilo que Husserl chamou de “o campo de presença eterna”.7

Por detrás do fenomenologuês, o maior crítico da obra da artista  mostra, nessa descrição, que ela abandona o campo simbólico e metafórico da arte e passa a intervir no mundo. Embora Lygia Clark lide com um prazer intelectual de organizar aquelas formas, aquele prazer também é carnal. Acontece no momento em que as sugestões dadas pela obra tornam-se sugestões físicas. É a descoberta de usos apetitosos no uso do nosso arcabouço sensorial.
Não por acaso, nos anos 1970, a artista ampliou o seu campo de ação e propunha atividades para um interlocutor, que reagiria fisicamente a elas. Lygia Clark pensou sua obra como uma descoberta de potencialidades desconhecidas da subjetividade. A arte pretendia revelar cruzamentos de sensações inexplorados, poderia refazer associações que o cérebro ignorava, tinha grande aplicação. Entre esses possíveis usos, a busca pelo prazer estava inclusa. Tal como uma reconciliação com outros sentidos do corpo.
A arte passa a ter outra fronteira. É necessária a permissão para que esse prazer erótico ou lúdico fosse vivenciado nos mais diferentes espaços, como a instituição de arte também pode ser derivada da atuação da artista. Com isso, a artista abriu caminho para a crítica a certo decoro da arte. A obra também passa a ser usada de outras formas.8
Alguns artistas declaradamente influenciados por Lygia Clark, por essa razão, dedicam-se a uma espécie de engenharia do lazer. Ernesto Neto, por exemplo, faz dessa herança a criação de um espaço romântico, apartado do resto do mundo, onde podemos desfrutar sensações negadas pela assepsia da cidade. É uma espécie de festa hedonista das sensações. Suas instalações integram aromas, o tato e o olhar. Ele faz espaços para entrarmos e desfrutarmos. Os lugares são lúdicos, macios e, por vezes, doces e coloridos. São abrigos diante da rudeza do mundo. Onde podemos nos dedicar ao prazer do ócio e da brincadeira. Livramo-nos, assim, do que a vida tem de bruto. Seguem uma apropriação hippie e psicodélica sugerida pela interpretação e a doutrina de Lygia, que só longe do convívio social nos reconciliaríamos com nossos sentidos.
Muitos falam desse sistema de interação e leituras mais apressadas reduzem o processo de Lygia Clark à ideia de interação.9 Mas independente disso, o trabalho acaba por ser associado ao prazer, à descoberta e ao corpo. Aliás, reside aí parte da fragilidade do trabalho. As experiências se tornam sugestões privadas de atuação. A reconciliação com os prazeres se dá quando não se vive mais em sociedade.
No entanto, nem sempre a sua trajetória e a experiência diante de seu trabalho é feita apenas dessa dimensão lúdica. Muito da obra de Lygia Clark parece acontecer por meio de relações violentas e trágicas. Mário Pedrosa fala de um “pensamento dilacerado”.10 Imagens violentas estão em outras descrições. Sobre os Planos em Superfície Modulada (1954), fala-se em “destruição do plano” ou “morte do plano”.11
A narrativa que Lygia Clark faz de seu caminho em direção à arte experimental sempre lida com perdas, com a solidão e com a violência. Ao descrever seu comprometimento com as questões de seu próprio trabalho, ela falava da necessidade de abandonar a vida corriqueira: “É o caminho da opção - vou ter que aceitar a separação de tudo que eu adoro e viver exclusivamente da minha arte, longe de tudo e de todos. Exatamente agora que não acredito mais na obra de arte. Mas acredito firmemente no autorretrato do artista através de sua obra”.12
Na primeira vez que pude experimentar esses trabalhos, a associação mais comum foi com a dor, a rigidez e a dificuldade. Mais do que desmentir o potencial sentido de brincadeira do seu trabalho, a tentativa de entender essa experiência nos revela outros aspectos. Já pude manusear algumas vezes os Bichos de Lygia Clark. As dobradiças das esculturas são duras. Mais que isso, a forma ou o projeto são difíceis de realizar. O movimento de uma chapa implica na resposta do resto do objeto. A peça se mostra insubordinada. Mesmo nas Obras Moles (1964), que aceitaria qualquer forma, essa tensão aparece. Elas são aderentes, pegajosas.
Os objetos relacionais são pesados e as máscaras, vestes, são desconfortáveis. Caso prometam uma libertação das limitações racionais, essa se dá pela mesma via do cristianismo mais primitivo: o esforço físico, o sacrifício e o comprometimento com uma existência dura em nome de uma promessa. As que compartilhamos com outras pessoas, como O eu e o tu (1967) reforçam a interdependência. Em Pedra e ar (1966), o que fica nítido é uma materialidade do que é gasoso. O trabalho tem peso. A sensação desse peso é o trabalho.
Desde os primeiros experimentos, Lygia lida com certas contraposições e antinomias. Se observarmos algumas de suas primeiras pinturas concretas, notamos que as formas se dissociam da superfície negra em um gesto irruptivo. As linhas diagonais apontavam pra fora do plano. Aliás, pouco a pouco, o plano das pinturas vai se desfazendo, se decompondo. Formas escuras avançam e fazem dos brancos intervalos vazios. É como se o espaço se desfizesse. As linhas são as rachaduras, sulcos de que algo se quebrou. O movimento é da descoberta pela destruição, não por uma relação bicho-grilo, de minimizações das tensões. Tudo é tenso. Tudo implica em certa destruição e depois na descoberta. Aqui é uma relação esquemática, mas violenta.
O mesmo está presente nas operações terapêuticas. Quando a artista propõe que quem vá viver a experiência mantenha uma pedra na mão, faz isso para que o sujeito tenha o corpo em dois estados de espírito diferentes. Um em que vivencia uma torrente de sensações que suspendam certo juízo racionalista de experiência e outro que mantem nossos pés firmes na terra. O estado, portanto, é de dissociação e de perigo. Não tenho a menor condição de avaliar a terapêutica, mas o lugar não é seguro. A pedra faz com que a vivência não se converta em delírio. Ela tem muito de solipsismo, de isolamento, mas apontando mais para a solidão do que para a regeneração da consciência.
Em uma das melhores máscaras, o vidro pintado, o tempero e a concha dissolvem os nossos sentidos. Mas não entramos em contato com instâncias primitivas do ser. Ficamos sem ver, ouvindo o mesmo som e sem perceber outros cheiros, envoltos pela luz de cor laranja. As sensações se dissociam e o que cheiramos não corresponde ao que vemos, que também não corresponde ao que escutamos. A obra faz o que ela chamava de ex-espectador se pôr em uma paisagem insólita, recriando um ponto de vista.
Por fim, as interações em corpo coletivo são marcadas por movimentos que enfatizam a interdependência de cada um dos personagens. Embora exista apelo naqueles corpos coloridos, não vejo a aurora de um ser dionisíaco. A artista encena um vínculo indissolúvel entre os participantes. Um vínculo difícil, que nos lembra da moralidade, do decoro, mas agora em dimensões muito explícitas. Esses esforços são sempre de mesurar as diferentes vontades, ritmos e encontrar, tal como em um projeto, relações mais harmônicas. Mas essas relações, evidentemente, passam pela tensão e pelo atrito. Mais uma vez, ressoa na minha cabeça a figura do sacrifício.
Numa retrospectiva no Museu de Arte Moderna de São Paulo cruzei o túnel de malha disposto como uma das proposições. Era uma experiência exasperante. Entrei por um tecido apertado que parecia não ter fim. Era como se cruzasse um canal orgânico, como se ela mimetizasse um nascimento interminável. A artista era bem-sucedida em encontrar um tecido que nos fazia perceber todos os gestos. Mas o túnel era seco e eu desejei seu fim como poucas coisas na vida. Não era um lugar aconchegante. Não existia, como numa mitologia sobre o útero, a menor dimensão de ternura, conforto. Terminar sua experiência, no fim, foi um alívio. Agora, esteticamente, foi forte. Apresentou-me aspectos indesejáveis da personalidade.13
Não parece existir nesse tipo de experiência nenhum espaço para a regeneração. Não sei de psicologia, mas a experiência descrita é de fratura, de destruição de significados. Embora a narrativa final fale sobre o reencontro de certas sensações, ela é marcada por traumas, por rupturas irremediáveis. Como se nem mesmo os significados mais triviais fossem aplicáveis.
O trabalho acaba por ser sobre a consciência de se estar só, de se enfrentar só, de se descobrir só e se ver diante do mundo só. De um momento em que tudo precisa ser refeito, mas não porque os homens serão curados, é porque fomos deixados sozinhos a nossa própria sorte14 . Quem for procurar alguma regeneração, como ela própria, tende a ficar só.









fevereiro #

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1 Outra versão deste texto foi feita pela ocasião da retrospectiva de Lygia Clark no Instituto Cultural Itaú. Fundi a ele alguns dos comentários feitos em um debate sobre a artista com os curadores da mostra Felipe Scovino e Paulo Sérgio Duarte, e o crítico Sérgio Bruno Martins. Sou grato tanto pelo convite de Scovino e Paulo Sérgio, como pelo debate.

2 Essa ideia, como muitas outras ao longo do texto, eu devo ao texto de Nuno Ramos sobre Hélio Oiticica. RAMOS, Nuno: “À espera de um sol interno” em Ensaio Geral: projetos, roteiros, ensaios, memórias. São Paulo, Editora Globo, 2007.

3 WOLFFLIN, Heinrich: Conceitos Fundamentais da História da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

4 NUNES, Benedito: “Lygia Clark e Hélio Oiticica” no catálogo Lygia Clark e Hélio Oiticica; Sala Especial do 9º. Salão Nacional de Artes Plásticas. Funarte, Rio de Janeiro, 1986/1987. (Acho que foi organizado pelo Luciano Figueiredo)

5 SALZSTEIN, Sônia: “Construção, Desconstrução: O legado do neoconcretismo” em Novos Estudos CEBRAP no. 90 de Julho de 2011.

6 Idem, p. 105.

7 PEDROSA, Mário: “A obra de Lygia Clark” em ARANTES, Otília (org.): Acadêmicos e Modernos: textos escolhidos III. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. (p. 347 - 354). P. 348 - 50.

8 Lygia Clark mal sabia que essa permissão para a brincadeira em museus se tornaria uma obrigação. A função lúdica da arte cresceu como praga e hoje muitos artistas não tratam essa experiência como uma questão, mas como uma demanda. É uma demanda infernal. Ela tem sua contribuição nisso.

9 Aqui penso, sobretudo, no artigo de Simone Osthoff, que embora traga questões de Lygia Clark para a discussão da arte contemporânea, a reduza a dimensão interativa. Em OSTHOFF, Simone. “Lygia Clark and Hélio Oiticica: a legacy of interactivity and participation for a telematic future”. Leonardo. San Francisco, v.30, n. 4, 1997, p. 279-289.

10 PEDROSA, Mário: “A obra de Lygia Clark” em ARANTES, Otília (org.): Acadêmicos e Modernos: textos escolhidos III. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. (p. 347 - 354). P. 351.

11 Idem, p.348.

12 CLARK, Lygia: “28 de outubro de 1963” em Lygia Clark. Fundació Antoni Tapiés. Rio de Janeiro: Paço Imperial do Rio de Janeiro, 1998. (p.166)

13 Acredito que seja possível verificar a influência de sua obra no trabalho de artistas que vieram depois. Esse lado grotesco, violento ou indesejável, este lado sombrio da experiência física, por exemplo, foi amplamente discutida por artistas como Cildo Meireles e Tunga. Acredito que algum tipo de diálogo existe. Eles atuavam em uma dimensão mais pública e não apontavam saídas. Na verdade, sugeriam uma experiência profundamente negativa.

14 Talvez caiba aqui uma relação com o momento cultural e político do Brasil, quando o país se via sem alternativas palpáveis diante da ditadura militar. Hélio Oiticica, os diretores do cinema marginal e Ligia Pape falam em criar condições para a cultura.