revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Silvio Ricardo CARNEIRO

A paralisia da crítica e a democracia como tabu

 


“Tudo se discute neste mundo, menos uma única coisa: não se discute a democracia. A democracia está aí como se fosse uma espécie de santa no altar, de quem já não se esperam milagres mas que está aí como uma referência, uma referência: a democracia! E não se repara que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada, porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar um governo de que não gosta e a pôr um outro de que talvez se venha a gostar. Nada mais. Mas as grandes decisões são tomadas numa outra esfera e todos sabemos qual é: as grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a Organização Mundial do Comércio, os bancos mundiais, a OCDE, tudo isso. Nenhuma dessas organizações é democrática e, portanto, como é que podemos continuar a falar de democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo, não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Os respectivos povos? Não! Donde está, então, a democracia?”

José Saramago, Sobre a democracia1

 

 

 

            Recentemente no Lexington´s notebook, blog da revista The Economist sobre a política norte-americana, encontramos o seguinte post: "Wall Street protesta: por favor, não tragam Marcuse de volta!"2 . Trata-se de um breve comentário de um "quase soixante-huitard", que retomou uma larga citação do pós-escrito de Tolerância repressiva, em que Marcuse, em apoio aos "suixante-huitards" reais, questiona uma característica curiosa da democracia (representativa, parlamentar ou "direta"): o fato de que a maioria "está fechada em si mesma, petrificada" repelindo "a priori qualquer outra mudança que altere o sistema". No discurso liberal da tolerância, grupos ou indivíduos dissidentes reorganizam a gramática em que "maioria" não significa mais "interesse comum" (o sentido de "comum" no termo "comunismo"), mas, sim, "a opinião pública como convergência de pensamentos individuais". Os comentários dos leitores desse post são tanto ou mais curiosos do que o próprio texto. Muitos deles expressam um ódio primevo por uma caricatura de Marcuse contracultural, como aquele comentário que compara o pensamento marcuseano ao "idiota primevo Rousseau". Porém, podemos seguir adiante e considerar que, quando tais pessoas reúnem as contradições de seu presente com um fantasma de seu passado, expressam marcas pulsionais do inconsciente de um certo pensamento conservador. É como uma história sem fim; ou, nos termos de Freud, o retorno do reprimido.
De outra forma, no front da esquerda, podemos encontrar Žižek, cuja relação com o pensamento de Marcuse não é propriamente de ódio, mas pode ser qualificada, no mínimo, como uma "perspectiva cética". Referimo-nos aqui às considerações do livro de Žižek, The sublime object of ideology, quando concorda com o ponto de vista de Marcuse, em que os discursos ideológicos se transformaram com o avanço do capitalismo. Contudo, tratando Marcuse como um pós-marxista,3 Žižek conclui que a crítica marcuseana ao capitalismo havia falhado por conta da tentativa contínua de identificar uma subjetividade revolucionária com grupos secundários particulares diante da totalidade social. Diante do Terror dos gulags, bem como do apoio de sindicatos americanos aos esforços de guerra em nome do American Dream, Marcuse descartaria a tese clássica da teoria marxista para a qual "a revolução global abolirá o antagonismo social básico, capacitando a formação de uma sociedade governada de modo transparente e racional";4 consequentemente, Marcuse segue a saída "pós-marxista", que intensifica as lutas das minorias contra o sistema capitalista. Em outros termos, essas lutas, que Žižek considera secundárias, se tornariam um fator importante de mudança social: lutas feministas, ambientalistas e dos direitos humanos assumem um papel central nos discursos da New Left. No entanto, conforme Žižek, esses movimentos conteriam um tipo de fundamentalismo, em que as lutas das minorias substituem uma luta contra o sistema. Por exemplo, seria impossível para o movimento feminista considerar o mundo como livre sem que se efetive relações de igualdade entre gêneros. Similarmente, seria impossível para um ativista ecológico imaginar um mundo livre sem modos sustentáveis de produção e consumo. No caso de Marcuse, haveria uma espécie de "fundamentalismo psicanalítico" em que "a chave da libertação está na mudança das estruturas libidinais repressivas".5 Žižek considera essa opção marcuseana uma estratégia crítica limitada, porque tais lutas particulares são irredutíveis ao sistema como um todo. Isto é, a civilização não-repressiva que Marcuse almeja acaba por desconsiderar a irredutibilidade das particularidades ao todo. Consequentemente, Marcuse escaparia da questão principal, a saber: seria possível uma civilização não-repressiva, quando, como a psicanálise vem nos ensinar, existe uma decalagem inerente entre as demandas e desejos dos sujeitos socializados - ou, nos termos de Žižek, um "núcleo-real impossível"6 - que sustenta as formações culturais?
Tão estranho quanto possa parecer, entre a questão de Žižek e o comentário de The Economist sobre Marcuse há algo em comum. Com isso, não queremos tornar indiferentes posições de direita ou esquerda, mas sim, em um sentido geral, que ambos se questionam pelo sentido marcuseano de democracia. Afinal de contas, como Marcuse poderia legitimar a posição de uma pequeno grupo de manifestantes como aqueles que pretendem recusar e transformar a sociedade? Que tipo de política Marcuse defende, se a democracia é apresentada por seus problemas estruturais?
Não desperdicemos nosso tempo argumentando o óbvio: sem sombra de dúvidas, Marcuse é um defensor da democracia. Com toda tranquilidade, podemos qualificar Marcuse como um democrata radical diante do quadro político da democracia estabelecida (capaz de eleger como governador péssimos atores, como Ronald Reagan), que foi "sequestrada, condicionada e amputada", como nos lembra Saramago.7 Mais do que essa defesa, podemos retomar a questão de Saramago com Marcuse: "Onde está, afinal, a democracia?" - uma questão que, como o diagnóstico marcuseano indica, exige uma método especial para ser respondida seriamente. Pois, como podemos questionar um objeto sócio-histórico tal qual a democracia, que se nos apresenta como um conjunto de princípios simultaneamente perigosos e intocáveis? Como podemos investigar sobre uma sociedade democrática efetiva sem defender sistemas sociais não-democráticos?

 

A democracia como tabu

            Talvez a maneira mais avançada para circunscrever esse problema esteja em considerar a democracia como uma de nossas aspirações tabu. Afinal de contas, todos se acreditam democratas, independentemente de suas orientações políticas. Membros da "bancada da bala", "ruralistas", "evangélicos", "pastorais", "cientistas", bem como movimentos sociais e partidos dos mais progressistas da esquerda, declaram a si próprios como defensores dos princípios democráticos, cada qual enxergando suas lutas sob esse prisma, o que quer que isto signifique. Para além de quaisquer diferenças, valores democráticos são sustentados como uma referência para condenar ou legitimar ações e ideologias políticas, sem se questionar por seus fundamentos. Entretanto, se questionarmos o que significa "democracia" para cada uma dessas frentes sociais, provavelmente encontraremos uma pluralidade de significados contraditórios ou mesmo divergentes. É possível, então, que a democracia seja algo que todos dizem conhecer, mas têm vergonha de perguntar, ou seja: um tabu em nossa sociedade.
Assim, um democrata radical como Marcuse pretende enfrentar diretamente os tabus e seus limites inconscientes. O que isto quer dizer? Bem, enfrentar tabus é frequentemente um fracasso anunciado, uma vez que tabus estabelecem relações ambivalentes e indeterminadas e, com efeito, são fenômenos extremamente flexíveis e de fácil deslocamento. De acordo com Freud, tabus são "temores sagrados";8 ou seja, esse termo polinésio indica um duplo sentido: de um lado, o "santo e o consagrado" e, de outro, o "inquietante, perigoso, proibido, impuro".9 Com efeito, o tabu expressa o "proibido enquanto sagrado", algo que é vetado àqueles que não são iniciados no estreito círculo social dos segredos velados. Em outras palavras, algo adquire o significado de tabu tanto por ter sido sacramentado quanto por ter sido afastado das pessoas comuns. Contudo, a distância entre o mundano e o sagrado não deixa de ser superável. Isso porque todas as formas-tabus existem sobre a Terra, em um modo sensível. Do ponto de vista estritamente físico, nada do mundo natural impede a realização do parricídio ou do incesto. Porém, esses atos aparecem como proibições hediondas que regulamentam a economia libidinal das pessoas. Ninguém questiona pelos motivos de tais leis, mas elas estão por aí, inscritas em carne e osso, determinando de uma vez por todas quem pode viver na sociedade e quem deve dela ser banido. Portanto, considerar a democracia como um tabu de nossos tempos é compreender um objeto ambivalente que estrutura nossas leis como um "temor sagrado", algo presente nas relações sociais que encanta tanto quanto aterroriza.
Dessa forma, questionar a democracia estabelecida requer apreender algo que opera como um tabu, algo que organiza as vidas ordinárias sem estar fundamentada sobre bases de pactos sociais conscientemente aceitos. Nesse sentido, a democracia poderia ser considerada a aspiração-tabu da humanidade, ou, conforme Eros e civilização de Marcuse, "a demanda por um estado em que liberdade e necessidade coincidem".10 Conforme o autor conclui, se "existe no reino da consciência desenvolvida e no mundo que esta criou, a liberdade não passa de algo que é derivado e, de antemão, acordado, conquistada às custas da plena satisfação de necessidades".11 Portanto, a liberdade estabelecida - tanto quanto a democracia estabelecida - existe em oposição à felicidade, "a plena satisfação das necessidades". Algo que resulta, como a psicanálise demonstrou, em contradições sócio-históricas entre a liberdade conquistada e a felicidade reprimida e aparecem como um sofrimento, como um "mal-estar na cultura". Algo que faz da liberdade e da felicidade, que a democracia carrega consigo, elementos tabus: ao mesmo tempo sacramentados, mas tratados como inatingíveis e - por que não? - impossíveis como uma utopia.
Quais são as estratégias críticas possíveis nesse caso? Duas respostas. Primeiramente uma "superficial", embora comum entre as críticas da esquerda sobre a ideologia, ao menos desde os tempos de Marx. Nesse caso, a democracia seria considerada um desvio ideológico e resolvida por estratégicas racionalistas e ilustradas, rompendo o tabu trazendo à tona seus significados ocultos e verdadeiros sob a luz do progresso e da razão das vanguardas. Entretanto, essa crítica se esquece de que as estruturas subjacentes do tabu não estão localizadas apenas no domínio consciente. Enquanto "temor sagrado", a democracia-tabu permeia tanto os ideais quanto as práticas da sociedade. Como lembra Žižek, essa não é meramente uma questão de conscientização, mas também uma questão de - e, aqui, a ilusão resiste de modo muito forte às criticas ilustradas como uma hidra: a cada cabeça cortada, outra surge em seu lugar. Essa crítica torna-se infinita porque estruturas-tabu operam como comportamentos rituais: não sugerem causas racionais para seus efeitos, mas organizam a vida e a morte dos que por ela são influenciados mediante um poderoso sistema de crenças. Diante dessa estrutura, a busca por um núcleo fundamental e verdadeiro em tabus - tal como opera o Iluminismo - apresenta-se como uma crítica inócua. No fim das contas, o dito de Churchill torna-se representativo dos limites desse tipo de crítica, quando proclama ironicamente: "A democracia é a pior forma de governo, exceto todas aquelas que têm sido experimentada de tempos em tempos".12 Quer dizer, todos reconhecem que a democracia liberal tem problemas, mas todos agem dentro de seu limite, porque viver sob qualquer outra forma de governo é, certamente, ainda pior - como conclui Churchill.
Contudo, há uma resposta melhor a nosso enigma inicial. A força dessa crítica surge com os novos conjuntos ideológicos do século XX. Desde a irrupção dos governos totalitários nesse período, é possível notar as dificuldades que a crítica iluminista enfrenta diante da visão de mundo nazista sustentada, contraditoriamente, tanto pelo registro mítico da Natureza e do herói ariano e seus sacrifícios, quanto pelas forças tecnológicas em progresso.13 Aqui, não existem fundamentos racionais ocultos que poderiam ser trazidos à tona pelo exercício da crítica ilustrada. Pelo contrário, seguir essa estratégia crítica pode significar uma paralisia, como Marcuse dirá alguns anos mais tarde, referindo-se às novas formas da sociedade industrial avançada, em O homem unidimensional.14 Outra estratégia se fez, pois, necessária. Algo percebido pelos frankfurtianos, ao tratar Freud como uma "necessidade".15 Isso não significa que os frankfurtianos considerem o fascismo como uma doença psicológica, em que um delírio coletivo leve as massas a seguir um líder psicótico. Longe de uma "psicologização" da sociedade, a necessidade por Freud significa a necessidade de compreender o modo pelo qual as pessoas organizam suas vidas e como identificam a si próprios com sistemas de barbárie. Em outros termos: que modo de economia libidinal regula esse tipo de "servidão voluntária"? Ou melhor: que espécie de tabu regula as vidas nas totalidades sociais (fascistas, socialistas mas também, capitalista)? Uma questão que demanda uma outra paralela: como evitar o fascista que existe em nós?.16 Entre essas duas questões, podemos encontrar uma estratégia crítica mais forte, que escapa dos dilemas da crítica esclarecida, sem aceitar uma perspectiva autoritária como desvio da razão.

 

O tripé da teoria crítica marcuseana: crítica, ideologia e utopia.

            Essas questões estão interrelacionadas. Desde Filosofia e teoria crítica (1937), Marcuse reconhece que a força crítica dos pensadores de Frankfurt reside em ver não apenas como a ideologia tem mudado junto às estruturas sociais no decorrer do século XX, mas também como "a teoria crítica é também a crítica de si mesma e das próprias bases sociais que a suportam [gesellschäftliche Träger]"17 . Esse não é um sinal de fraqueza teórica ou prática, uma vez que flexibilidade teórica não significa necessariamente uma ausência de fundamentos. Pelo contrário, mediante pressupostos dialéticos, a crítica deve protestar contra suas próprias bases, frequentemente revendo suas posições sociais. Nesse sentido, Marcuse insiste em manter uma tensão entre as características sociais ideológicas e utópicas. Em que sentido?
Em primeiro lugar, podemos considerar essa tensão entre ideologia e utopia como a tensão entre a sociedade que "é" e aquela que "deve ser", enquanto extremos. Esse é um paralelo constante que orienta a crítica marcuseana desde seus primeiros ensaios no Instituto. A despeito das inúmeras perspectivas de Marcuse sobre a sociedade,18 prefiro apresentar essa tensão a partir do ponto de vista de um Marcuse mais atual, que considera os limites da crítica paralisada diante do novo conjunto social de ideologias no interior do capitalismo tardio. Essa paralisia se torna evidente quando Marcuse se questiona sobre que tipos de discurso e de prática sustentam a sociedade estabelecida, e, assim, se depara com uma armadilha.
Como Marcuse insiste desde Eros e civilização, a armadilha da sociedade atual é a denominada "oposição integrada". Essa não é apenas uma estratégia superestrutural para mascarar as lutas de classe no interior da estrutura econômica; pelo contrário: no capitalismo tardio, a ideologia se torna protagonista das estruturas, desempenhando um papel econômico fundamental dentro da ilusão de consumo que satisfaz algumas demandas sociais, na medida em que o núcleo repressivo é o que sustenta verdadeiramente o edifício da sociedade afluente. Em outros termos, no capitalismo tardio, a economia almeja [???] seus consumidores, satisfazendo-os com sua forma ideológica principal: a "forma mercadoria". Para tanto, é importante para uma ideologia que seja produzida, identificando a cidadania com os meios de compra e produção mercantis. Aqui, os opostos estão integrados em um primeiro nível: o libidinal, atingindo o triunfo da introjeção dos valores estabelecidos: "o estágio em que as pessoas não podem rejeitar o sistema de dominação sem rejeitar a si mesmas, seus próprios valores e necessidades pulsionais repressivos".19 Nesse sentido, um poder central coercitivo para restringir mudanças sociais não é mais necessário. Nesa ordem unidimensional, as pessoas são incitadas a se automobilizarem [??], mas somente dentro do permitido (protestar pode, desde que...); modo de reconhecer as mudanças, mas mantendo os privilégios estabelecidos - "mudar para permanecer tudo igual". Nesse sentido, percebemos com Marcuse a ausência do referencial revolucionário inclusive nas classes trabalhadoras.20 De fato, uma grande parte dos proletários das sociedades industriais avançadas se reconhecem como sujeitos satisfeitos inseridos no sistema de mercado, com salários consideráveis e direitos sociais reconhecidos, embalados profundamente no Sonho Americano.
Como despertar de um sonho tão enraizado na realidade? Aqui, encontramos a necessidade marcuseana pela utopia. Parece contraditório: afinal de contas, como alguém poderia ser despertado por uma fantasia utópica? Seria necessário mais fantasia para romper essa fantasia envolvente? Contudo, utopia não é mera fantasia. É um não-lugar, ou melhor, uma fantasia de deslocamento, uma força negativa que não foi tocada pela realidade estabelecida e, portanto, algo que não ocupa qualquer extremo da oposição integrada (isto é, os dois extremos da Guerra Fria, nos tempos de Marcuse). De outro modo, a utopia escapa de ambos. Nesse sentido, Marcuse apreende as reflexões benjaminianas mais radicais sobre o tema, ao considerar a utopia como uma ruptura na série do continuum histórico. Esse sentido surge quando Marcuse relembra que
o que é denunciado como "utópico" não é mais aquilo que "não tinha lugar" e não pode ter lugar algum no universo histórico, mas antes, aquilo que foi bloqueado do porvir pelas forças das sociedades estabelecidas.21

Enquanto um conceito espacial, a utopia "vem de todas as partes". Porém, mais do que um conceito espacial, a utopia também remete ao campo temporal; um tempo bloqueado enquanto permanece expulso do continuum; um tempo cujo lugar histórico está nas revoluções e revoltas contra o status quo. Por conseguinte, a utopia tem seus próprios sujeitos históricos: "aqueles sem esperança" em proveito daqueles cuja "esperança nos é dada", como conclui em O homem unidimensional, inspirado em Walter Benjamin.
Nesse sentido, a utopia, definitivamente, não vem de uma visão otimista. Para Marcuse, a utopia não é apenas um ideal que poderíamos algum dia atingir; pelo contrário, a utopia impele a teoria crítica a ultrapassar os limites do establishment, onde as contradições reais do sistema podem ser encontradas. É preciso lembrar que, a despeito das melhorias técnicas para os sistemas de produção e consumo, ainda existem pessoas que não têm condição alguma para satisfazer as mínimas necessidades vitais. Além da esfera desse Brave New World em que vivemos, ainda existem campos de batalhas em terras distantes ou guerras civis nos guetos, onde jovens perdem suas vidas em situações absurdas. Ou ainda, aquém do establishment, existem aqueles excluídos [outsiders] que vivem fora do sonho, que têm seguido contra os limites-tabu estabelecidos durante um longo tempo, não porque são necessariamente revolucionários de modo consciente, mas sobretudo porque nunca foram agraciados pelas leis de carne e osso do tabu. Eles despertaram do American Dream por uma necessidade "vital". Cedo ou tarde, eles aparecem, recusando todas as instituições ideológicas da tolerância repressiva presente na ordem das oposições integradas.
De fato, essa fantasmagoria dos outsiders não significa necessariamente "revolução"; de maneira oposta à visão žižekiana sobre "pós-marxistas", Marcuse - enquanto um marxista "clássico" - frequentemente insiste que tal situação de mudança poderia vir apenas das classes operárias, do grupo social que ocupa uma posição central na sociedade capitalista (como, também, no socialismo real). Contudo, enquanto os trabalhadores estão embalados em seus sonhos capitalistas ou soviéticos, a Grande Recusa dos outsiders, baseada em uma revolta sensível vital, ressoa como um alarme de emergência. Consequentemente, e contrário ao que afirma Žižek, esses não são "pessoas secundárias" no processo de mudança social. Pelo contrário, nessa sociedade letárgica, eles operam como uma "catálise", transformando a química social estabelecida. Portanto, de fato, os outsiders não são propriamente revolucionários: seus atos não visam remodelar instituições diretamente, mas eles mobilizam as práticas e os discursos em caminhos diversos, que parecem estranhos mesmo às sociedades estabelecidas mais democráticas. Esse é um primeiro passo para a revolução, ou, em outros termos, um primeiro passo contra tabus nas democracias: o poder do efeito de estranhamento que mobiliza a sociedade para além de suas formas reificadas, para uma "política do possível" - palavras que podem, talvez, definir democracia para Marcuse.

 

Demanda por democracia: o "núcleo impossível do real" ou as "possibilidades reais"?

            Decerto, ao defender a "política do possível", Marcuse não está se declarando um democrata - "Realpolitik". De outro modo, podemos lembrar suas primeiras críticas contra os partidos socialistas na Realpolitik da República de Weimar, em que o possível se restringe às tentativas de aperfeiçoamento do status quo.22 Anos mais tarde, Marcuse passa a criticar a oposição integrada do Estado de Bem-Estar Social, como vimos, ou, ainda, a tolerância repressiva das políticas neoliberais que contrapõem as possibilidades reais à afirmação da parceria Thatcher e Reagan que declaravam "não haver alternativas". Em um modo diverso, o possível marcuseano é apresentado como a utopia, isto é, enquanto limite das contradições existentes e das aspirações que enfrentam as formas sociais-tabu. Algo presente quando Marcuse aposta em uma "civilização não-repressiva", modo utópico que se tornaria possível no interior das novas contradições da sociedade tecnológica.
A partir de uma perspectiva psicanalítica, uma possibilidade não-repressiva é inaceitável, dada a tese freudiana de que não há organização social sem a repressão das pulsões primárias; isso porque, ao viver imerso na dimensão dos cálculos de prazer e dor, o indivíduo não seria capaz de reorganizar sua economia libidinal pelo princípio de realidade - isto é, viveria sem a constituição de um eu racional capaz de distinguir o que é real ou fantasia, o que seriam necessidades falsas ou verdadeiras. Vivendo no princípio de prazer, o indivíduo segue sem qualquer nível de repressão. Nesse sentido, Žižek critica o ponto de vista marcuseano como um "fundamentalismo psicanalítico" que prega a revolução de nossa civilização mediante uma organização libidinal não-repressiva, que se oculta nas profundezas das relações sociais estabelecidas. Enfim, a utopia marcuseana ofereceria apenas um discurso teológico para uma nova humanidade e uma nova sensibilidade.
De acordo com Žižek, mais do que uma possível nova sociedade, os processos políticos de esquerda devem reconhecer um domínio do "impossível" enquanto constituinte das relações sociais. Segue aqui as teses políticas de Laclau e Mouffe do "núcleo impossível nos processos radicais de democracia". Para eles, "a sociedade não existe" (em um sentido diverso das prerrogativas neoliberais): "o Social é sempre um campo inconsistente estruturado em torno da impossibilidade constitutiva, atravessado por um 'antagonismo' central".23 Ao que segue Žižek: "esta tese implica que todo processo de identificação que nos confere uma identificação sócio-simbólica fixa está condenada ao fracasso"24 - um ponto de vista crítico que contraria imediatamente, conforme Žižek, fundamentalismos de esquerda como a utopia não-repressiva de Marcuse, em sua busca por uma identificação sócio-simbólica fixa - uma estratégia incapaz de compreender os antagonismos próprios aos movimentos políticos por uma democracia radical, baseada em uma impossibilidade constitutiva.
À primeira vista, podemos considerar as críticas žižekianas como uma questão de ênfase. Afinal de contas, Marcuse e Žižek observam as impossibilidades produzidas na dialética da civilização estabelecida. Além disso, ambos os autores reconhecem que um sistema social mais livre não será imune a antagonismos. Algo que também é próprio às democracias: um espaço onde diferentes posições podem se apresentar, excetuando, naturalmente, as declarações contra os próprios princípios democráticos - algo que Marcuse qualifica como a "agressividade na unidimensionalidade". De modo que, antes de mais nada, Marcuse e Žižek se movem ao redor do mesmo problema: como a democracia se tornaria um modo radical para uma sociedade mais emancipatória? Como a democracia se tornaria um espaço verdadeiramente dialético para as identificações das diferenças? No entanto, os autores enfatizam diferentes propostas: enquanto Žižek aposta na impossibilidade constitutiva como a forma mais concreta de relação para uma nova democracia, Marcuse busca as possibilidades reais no interior das contradições sociais, tais como as representadas pelos outsiders da sociedade industrial avançada, os damnés de la Terre dos países subdesenvolvidos e as formas estéticas da arte moderna - eis algumas das revoltas manifestas para um novo sistema democrático.
Todavia, por que Marcuse não insistiria em um discurso das impossibilidades constitutivas das estruturas sociais? Esta não é uma questão de diferença geracional entre Marcuse e Žižek. Se Marcuse enfatiza as possibilidades reais e reconhece o antagonismo constitutivo da sociedade, seria importante questionar: por que o autor evita o discurso psicanalítico da impossibilidade constitutiva da civilização, apresentada - conforme orienta Žižek - desde os primeiros trabalhos antropológicos de Freud? Seria simplório considerar Marcuse como uma pessoa mais otimista do que Freud, a despeito das questões teóricas por trás das críticas marcuseanas à economia libidinal psicanalítica. Para além dessa perspectiva psicológica e questionável sobre a personalidade de Marcuse, com a civilização não-repressiva não se desenha um mundo democrático mais colorido. Mais do que isso, ao afirmar a utopia não-repressiva como uma possibilidade real diante das contradições estabelecidas, Marcuse procura remover tendências a-históricas da psicanálise, conferindo à civilização uma abertura de possibilidades para além de seu destino repressivo.
Um exemplo crucial para essa crítica se apresenta quando Eros e civilização afirma as tendências históricas na teoria psicanalítica. Marcuse lembra que Freud considera a natureza das pulsões como "adquiridas historicamente".25 Aqui, Freud afirmaria que as pulsões humanas - a base de toda a organização cultural - estão sujeitas a mudanças históricas. Consequentemente, a repressão pode sofrer mudanças sociais também. Nesse sentido, é possível que modos de repressão outrora correntes venham a se tornar obsoletos, e o investimento libidinal pode encontrar outros objetos de desejo em outros campos diversos da dominação e da exploração. Essa possibilidade real da civilização não-repressiva é apresentada pela crítica marcuseana à "mais-repressão": "as restrições necessárias para a dominação social",26 sustentadas por um sistema de escassez - como as repressões (não apenas militares, como também culturais) nas periferias acabam comprovando. Desse modo, a negação freudiana da possibilidade da libertação essencial assume a repressão como um efeito social, independentemente de seu lugar histórico. No fim das contas, "não é decisivo se as inibições são impostas pela escassez ou pela distribuição hierárquica da escassez, pela luta por existência ou pelo interesse por dominação".27 Ora, a possibilidade real de mudanças é identificada entre a repressão básica (aquela que nos faz obter um princípio de realidade necessário para a constituição da subjetividade) e a mais-repressão (a repressão necessária para a manutenção do status quo), em vistas da eliminação de uma estrutura social obsoleta e sua correspondente sensibilidade. Assim, mais do que pensar a partir de um "núcleo impossível" da sociedade, os esforços marcuseanos avançam sobre aquilo que congela, que limita as possibilidades, sobre os tabus, desmistificando os limites do impossível diante das possibilidades reais oferecidas pelas contradições sociais.

   

         Enfim, entre as perspectivas marcuseana e žižekiana, encontramos dois modos de pensar a democracia em tempos contemporâneos. Ambos compreendem a democracia como processos onde antagonismos são fundamentais. Contudo, existem diferenças em suas ênfases. De um lado, Žižek evita qualquer movimento teológico que fundamente a democracia. Nesse sentido, podemos interpretar suas advertências quanto aos perigos da identificação sócio-simbólica nos processos e lutas democráticos. De outro lado, Marcuse aposta nas possibilidades reais, apresentadas pelas lutas nos fronts da sociedade estabelecida enquanto sintomas de uma democracia sequestrada, condicionada e amputada, evitando toda e qualquer forma a-histórica nas bases de uma reflexão da sociedade e seus processos políticos. Dois métodos diversos capazes de complementar um ao outro? Talvez: se é verdade que Žižek nos faz ter cuidado com identidades absolutas nos processos democráticos, é também verdade que Marcuse evita abstrações como as pretensões da eterna escassez ou da eterna impossibilidade do real que esvaziam a concretude das possibilidades reais manifestas em seus inúmeros agentes, ainda que obsoletos. Seja um ou outro método crítico, vale dizer que a democracia deve sair do altar que a colocamos, não para abandonar esse projeto, mas para questionar, com a coragem de quem enfrenta tabus, "afinal, onde está a democracia?".









fevereiro #

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ilustração:Rafael Moralez


1 In http://dotsub.com/view/05e049d1-c4c5-40da-9247-c92488e09737 (sítio visitado em 01/10/2013)

2 “The Wall Street protests: Please, don´t bring back Marcuse!”Lexisngton´s Notebook, in http://www.economist.com/blogs/lexington/2011/10/wall-steet-protests-0?fsrc=scn/tw/te/bl/pleasedontbringbackherbertmarcuse (sítio visitado em 01/10/2013)

3 Aliás, uma categoria genérica demais para quem se pretende crítico. A despeito das nuances próprias a cada movimento, ou mesmo entre cada movimento, "pós-marxistas" seriam, para Žižek, os que dispensam a forma partido como central em suas manifestações. Nesta linha, Stálin e Lênin (embora posteriores a Marx) ainda seriam marxistas "de carteirinha", ao passo que movimentos sociais surgidos com a New Left operam em outro registro: na luta por reconhecimento de suas particularidades. "Pós-marxista", assim, não é uma categoria simplesmente cronológica para Žižek, mas um momento que carrega consigo um diagnóstico diverso das lutas sociais, bem como os limites e os sintomas desta opção. Entretanto, esta categoria, tal qual pensada pela autor, deixa de lado as nuances e estratégias próprias a cada um destes movimentos. Por exemplo: a estratégia adotada pelos movimentos negros (diga-se de passagem, os EUA apresentam inúmeros deles: desde aqueles que se voltam para a sua "africanidade" da Afro-american association até a busca por autodefesa e auto-organização entre os Black Panthers) é bem diversa daquela adotada pelos ecologistas, pelas feministas ou homossexuais. Sobre o desdobramento do movimento negro estadunidense em uma versão mais recente, ver BLOOM, Joshua & MARTIN JR., Waldo E., Black against the Empire: the history and politics of Black Panther Party, Los Angeles: University of California, 2013. Sobre os movimentos multiculturais, ver BENHABIB, Seyla, The Claims of culture: equality and diversity in the global era, New Jersey: Princeton Universtity Press, 2002.

4 Slavoj Žižek, The sublime object of ideology, (London, NewYork: Verso, 2009), p. XXVI.

5 Slavoj Žižek, The sublime object of ideology, p. XXVII.

6 Voltaremos mais adiante a essa consideração. Por enquanto, basta compreender que, no jogo proposto por Žižek, haveria uma dicotomia entre os modos de compreensão dos processos democráticos. Enquanto para Marcuse, seria necessária a fórmula identitária de seu fundamentalismo, para Žižek, a democracia se movimenta no interior do campo negativo que é o "real", o lugar das "desidentificações", para além de todo e qualquer fundamentalismo. Ao invés do fundamento possível utópico, essa "política do real" (não confundamos com a "Realpolitik"!) opera junto ao núcleo da impossibilidade, conforme Žižek descreve em seu Bem-vindo ao deserto do real.

7 "E a violência revolucionária?" poderiam objetar. Infelizmente, não trataremos o assunto com uma análise mais fina e necessária das defesas que Marcuse promove, na "onda das revoltas" dos anos 1950 e 1960 sobre Cuba, Vietnã, China e outros regimes que lutavam contra o imperialismo norte-americano (mas também, que procuravam formas diversas ao "marxismo soviético" - sobre isso, diga-se de passagem, entre os frankfurtianos, Marcuse seria o único a dedicar uma análise sistemática sobre a URSS em tempos de guerra fria, em seu Soviet Marxism: a critical analysis). De fato, Marcuse nunca deixou de lado a sublevação como instrumento de transformação. Mas, como bom leitor do idealismo alemão, notava com certa distância exercícios de rebeldia. Tal receio pode ser observado no "prefácio político" de 1966 a Eros e civilização, quando afirma: "O alastramento das guerras de guerrilha em tempos do século tecnológico é um evento simbólico: a energia do corpo humano se revolta contra a repressão intolerável e se lança contra os engenhos da repressão. Talvez os rebeldes nada saibam sobre os modos de organizar uma sociedade, de construir uma sociedade socialista; talvez, eles sejam aterrorizados por seus próprios líderes, que conhecem algo sobre isso, mas a existência combativa dos rebeldes é uma necessidade total de libertação, e sua liberdade é a contradição das sociedades avançadas" (MARCUSE, Eros and civilization, p. XIX).
Outro episódio bastante comentado sobre a visão de Marcuse sobre a violência está na troca de correspondências com Adorno em 1969. Na ocasião, Marcuse havia sido convidado para uma palestra pelo Instituto de Frankfurt, mas fora orientado por Adorno a não estender sua visita em uma outra conferência com os estudantes, dado os riscos nos recentes movimentos estudantis. Adorno argumenta que a situação estava tensa, pois os estudantes procuraram ocupar o Instituto e, por isso, se viu obrigado a chamar a polícia e impedir o movimento; com esse clima, a conversa de Marcuse com os estudantes apenas esquentaria os ânimos, podendo insuflar a violência. Decerto, acreditamos que esse momento seria interpretado, de maneira equívoca, como uma espécie de divisor de águas entre os dois colegas: Marcuse "defensor dos oprimidos" X Adorno "conservador da elite intelectual germânica". No fim das contas, perde-se o interessante: um grande debate interno a Frankfurt sobre a instituição policial pós-Auschwitz. Afinal de contas, insistimos que Marcuse aqui não é um defensor da violência pela violência. Lembremos, primeiramente o que diz na carta de 05 de abril de 1969: "Dito brutalmente: se a alternativa for polícia ou estudantes de esquerda, estou com os estudantes - com uma exceção crucial, a saber, se a minha vida for ameaçada ou for usada violência contra mim e os meus amigos e se a ameaça for séria. Ocupação de salas (exceto a minha casa) sem esse tipo de ameaça violenta não é razão suficiente para chamar a polícia. Continuo acreditando que a nossa causa (que não é só nossa) é antes defendida pelos estudantes em revolta que pela polícia (...) Conheces-me bastante bem para saber que condeno tão enfaticamente quanto tu uma conversão imediata da teoria em prática. Mas acredito que há situações em que a teoria é impulsionada pela prática - situações e momentos nos quais a teoria que se mantém afastada da prática torna-se ela mesma falsa" (MARCUSE, "Correspondência Marcuse-Adorno: as últimas cartas, 05 de abril de 1969" in Praga - estudos marxistas, n° 3, setembro-1997, p. 7). Ao invés de interpretarmos essas palavras como uma defesa cega da violência contra o conservadorismo adorniano, e percebendo sobretudo suas nuances, é importante notar como Marcuse impõe limites a essa violência: em geral, nada pode ir além da defesa da vida - mote que permanece nas obras de Marcuse (um critério possivelmente questionável e que merece uma análise mais aprofundada, mas ainda assim um critério que implica em limites sobre o fenômeno da violência). Mais interessante ainda é notar, a partir desse episódio, a "democracia radical" que Marcuse procura estabelecer. Não se trata de uma defesa cega do movimento estudantil que, reconhece, é capaz de praticar atos condenáveis. Mas, ao invés do fechamento brutal de diálogo proposto por Adorno, ao invés de taxá-los simples e descuidadamente como "fascistas de esquerda", Marcuse nota como mais do que necessário um diálogo franco entre as gerações de Frankfurt, conforme explicita em 21 de julho de 1969: "Em público, combati bastante a palavra de ordem de destruição da Universidade como ação suicida. Acredito que nossa tarefa, precisamente nesta situação, é ajudar o movimento tanto teoricamente quanto na sua defesa contra a repressão e as acusações" (MARCUSE, "Correspondência Marcuse-Adorno: as últimas cartas, 05 de abril de 1969"In: Praga - estudos marxistas, n° 3, setembro-1997, p. 15). Uma mensagem que procurou levar no debate, enfim realizado, com os estudantes alemães, publicado em Das Ende der Utopia (O fim da utopia). Acredito que esse é outro exemplo do que denominamos aqui uma postura "democrático-radical" de Marcuse: defensor do diálogo aberto com as novas formas de mudança social, ainda que violentas, ainda que contrárias aos seus próprios preceitos - alargando e afinando assim as possibilidades de resistência e mudança.

8 Freud, "Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos" in Obras completas, vol. 11, p. 42.

9 Freud, "Totem e tabu...", p. 42.

10 Herbert Marcuse, Eros and Civilization: a Philosophical Inquiry into Freud (Boston: Beacon Press, 1969), 18.

11 Herbert Marcuse, Eros and Civilization, p. 18

12 Discurso pronunciado em 11 de novembro de 1947. Cf. Eric Hobsbawn, The Age of Extrems: the short Twentieth Century (1914-1991) (London: Abacus, 1996). Ver também Slavoj Žižek, The Sublime object of ideology, 166.

13 Sobre isso, ver MARCUSE, "O combate ao liberalismo na visão totalitária do Estado", ensaio publicado originalmente na Revista de pesquisa social do Instituto (1934) e traduzido em Cultura e sociedade, vol. 1, 1997. Ver também nosso artigo "Sobre a concepção totalitária da vida" in Cadernos de ética e filosofia política, 18, 1/2011, pp. 179-196 (disponível em http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp18/carneiro.pdf)

14 Não que, com isso, Marcuse aceitasse a noção simples do campo de concentração como paradigma do capitalismo tardio. No entanto, o que a lição de Auschwitz ensina é a necessidade de um outro esforço para além da crítica esclarecida, que Marcuse encontra em Freud: a análise de outra camada que não aquela tratada pelo Iluminismo. Ao lado de Marx, a psicanálise auxilia a compreender, pelos "extratos profundos do comportamento humano" a resposta para a pergunta "por que se fracassou em 1919-1920? Por que o potencial revolucionário, historicamente então fora do comum, não apenas deixou de ser utilizado como se deixou perder por décadas?" (MARCUSE in HABERMAS, Jürgen et alli, Conversaciones con H. Marcuse, Barcelona: Gedisa, 1980, p. 17). Alcançar tais camadas dos sintomas de uma sociedade exige mais do que uma terapêutica esclarecida: é necessária a escuta das promessas que se perderam no tempo - algo que perdura tanto no regime totalitário, quanto nas liberdades conquistadas mediante o capitalismo tardio. A força que conecta os tempos do totalitarismo e do capitalismo tardio não reside no terror dos campos, necessariamente; mas, sobretudo, na descoberta recente do poder das tecnologias de governo (e aqui podemos aproximar tranquilamente Marcuse e Foucault) sobre a economia libidinal da população.

15 MARCUSE in HABERMAS, Jürgen et alli, Conversaciones con H. Marcuse, 1980, p. 17

16 Como adverte Foucault em seu prefácio à tradução inglesa de Anti-Édipo de Deleuze e Guattari: "Como fazer para não se tornar fascista, mesmo quando (sobretudo quando) se crê ser um militante revolucionário? Como desembaraçar nosso discurso e atos, nossos corações e prazeres do fascismo? Como desalojar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento?" (FOUCAULT, "Prefácio (Anti-Édipo)" in Ditos e Escritos VI (Repensar a política), p. 105).

17 MARCUSE, "Philosophie und kritische Theorie" in Herbert Marcuse Schriften, Band 3,p. 247. Algo que reaparece alguns anos depois em Um Ensaio sobre a libertação (1969), quando o autor pretende confrontar a teoria crítica "com a tarefa de reexaminar os prospectos para a emergência de uma sociedade socialista qualitativamente diversa das sociedades existentes, a tarefa de redefinir o socialismo e suas precondições" (MARCUSE, An essay on liberation, p. VIII).

18 Dada a diversidade de épocas em que Marcuse viveu, algumas diferenças entre os ensaios da década de 1960 e os anteriores são notáveis. Por exemplo, podemos presumir que o terror havia sido a força da lei do período nazista, algo bem presente em seus ensaios para a Revista de pesquisa social do Instituto; ao passo que na Guerra Fria entre o capitalismo tardio e o socialismo real, Marcuse passa a considerar outro princípio regulamentador: a "dessublimação repressiva" em uma sociedade que não carece mais de uma liderança forte para sustentar sua ordem repressiva. No caso da ideologia do capitalismo tardio, uma ordem de liberdades se realiza, sob o preço da mediação da mercadoria; no caso soviético, por sua vez, seria o partido operário a ser afirmado constantemente, sob os auspícios da pesada burocracia. Em ambos os casos, Marcuse reconhece o potencial libertário de regimes sociais capazes de transformar efetivamente os rumos até então conquistados. No entanto, essa mesma realização - que retira a liberdade e a emancipação do reino das ideias sociais - acaba por habitar no subterrâneo da sociedade industrial avançada, seja ela sob a forma da burocracia, seja sob a forma mercadoria. Assim, a ideologia deixa de se valer do artifício dos ideais e passa a ser realizada efetivamente na mesma medida em que impede uma efetiva transformação social. No caso, Marcuse chegaria a afirmar: "A interdependência fatal de apenas dois sistemas sociais "soberanos" no mundo contemporâneo [da Guerra Fria] é expressão do fato de que o conflito entre progresso e política, entre o homem e seus mestres se tornou total. Quando o capitalismo encontra o desafio do comunismo, ele se depara com suas próprias capacidades: o desenvolvimento espetacular de todas as forças produtivas diante da subordinação dos interesses privados à lucratividade que impede tal desenvolvimento. Quando o comunismo se encontra também com o desafio do capitalismo, ele também se depara com suas próprias capacidades: os espetaculares conforto, liberdade e alívio das preocupações da vida. Ambos os sistemas têm estas capacidades distorcidas para além do reconhecimento e, em ambos os casos, a razão é, em última análise, a mesma - a luta contra uma forma de vida que dissolverá as bases da dominação" (MARCUSE, One-dimensional man: studies in the ideology of advanced industrial society, p. 58, colchetes nossos).

19 MARCUSE, Eros and civilization, p. 17.

20 Sobretudo norte-americana e soviética, as duas potências da Guerra Fria, em que o fim das suas sociedades representa o fim de suas existências, tamanho o grau de oposição integrada. Há diferenças nas sociedades europeias conforme destaca O homem unidimensional: "Nos países capitalistas menos avançados, em que segmentos fortes do movimento operário militante são ainda vivos (França e Itália), suas forças são testadas contra aquelas da racionalização política e tecnológica nas formas autoritária" (MARCUSE, One-dimensional man, nota 30, p. 42). Bem como reconhece possibilidades em aberto nos países do terceiro mundo, ainda insuficientemente industrializados e, por conseguinte, sem os prejuízos da realidade tecnológica.

21 MARCUSE, An Essay on liberation, p. 4.

22 Cf. KELLNER, Herbert Marcuse and the crisis of Marxism e KÄTZ, Herbert Marcuse and the art of liberation, livros que oferecem uma boa introdução sobre a presença de Marcuse em tempos de Weimar.

23 ŽIŽEK, The Sublime Object of Ideology, 142

24 ŽIŽEK, The Sublime Object of Ideology, 142.

25 Marcuse afirma essa sua interpretação a partir da leitura da obra de Freud, Para além do princípio de prazer (referência...).

26 MARCUSE, Eros and civilization, p. 35.

27 MARCUSE, Eros and civilization, p. 134.