revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Ruy FAUSTO

O ciclo do totalitarismo e os impasses da esquerda mundial1

 

 


Primeira parte

 

1. Introdução. Que o ciclo do totalitarismo é mal conhecido pelo “grande público” de esquerda. A história do totalitarismo; outros ciclos, outras histórias.

Com a plena adesão da China a um capitalismo autoritário, e com o governo autocrático “não comunista” de Putin termina, pode-se dizer, um ciclo. Um ciclo que conduziu a China e a Rússia de sociedades oligárquicas com capitalismo incipiente ou sui generis e grande base agrária, a sociedades de capitalismo selvagem e, consideravelmente, mafioso. É sobre esse processo que se trata de refletir. Eu o tomo em bloco, em continuidade, se se quiser, embora, é claro, haja no interior dele rupturas ou descontinuidades.
De imediato, algumas questões: em que sentido se poderia falar em “ciclo”? E, por outro lado, seria realmente importante discutir, hoje, a questão do totalitarismo?
Começo pelo segundo ponto. Aparentemente, o problema pertence ao passado - esta é a opinião de muita gente. De fato, hoje não restam muitos governos totalitários no mundo. A rigor, um só: a Coréia do Norte. Ela tem os seus defensores (!) mas estes são provavelmente minoritários. O que sim é problema, e grande problema, no interior da esquerda, é o autoritarismo, sob forma populista frequentemente. É o autoritarismo e não o totalitarismo que parece ser o verdadeiro problema, na atualidade. Mas, embora eu esteja de acordo que é o autoritarismo o problema imediato e presente, ou, antes, é precisamente por isso que insisto na questão do totalitarismo. Explico-me. Há autoritarismos, como em primeiro lugar o chinês, que jogam a carta ideológica do “comunismo”. E o “comunismo” foi no passado, e continua se definindo como, um totalitarismo. E mesmo lá onde não se permanece fiel, sem mais (formalmente) a uma ideologia “comunista”, reivindica-se uma conexão histórica e ideológica. Os populismos autocráticos do nosso tempo reivindicam frequentemente as experiências do que teriam sido as revoluções russa ou chinesa. Por outro lado, ou por isso mesmo, eles conservam traços herdados do stalinismo e do maoísmo. Ou, dizendo de outro modo: o totalitarismo interessa, porque, se ele desapareceu, o seu desaparecimento não foi total. Ele antes se transmutou em autoritarismo. E a forma transmutada guarda laços com a forma original, conserva traços dela. Por isso, é preciso, ainda hoje, enfrentar um e outro. Um com o outro. Mais adiante, vou precisar melhor esse argumento.
Porque falar em “ciclo”? Poderíamos dizer os seguinte. Os poderes comunistas - pelo menos o russo - começam com formas que são autoritárias, e depois evoluem (involuem) para formas totalitárias. Essas formas por sua vez envelhecem ou se rompem e dão origem a um autoritarismo (que, sem dúvida, não é igual ao que se poderia reconhecer no ponto de partida). Mas há uma espécie de ciclo. Há também um ciclo no sentido de que se parte de sociedades senão capitalistas, pelo menos com presença capitalista (as sociedades russa e chinesa de ancien régime), e se volta ao capitalismo, agora plena ou suficientemente desenvolvido.
De uma forma mais geral, seria preciso observar: A partir de outubro de 1917, constituíram-se grande poderes ditos “comunistas”, mas esses poderes de “comunistas” não tinham (e hoje têm menos ainda) muito mais do que o nome. É como se, a partir de outubro de 1917, tivesse surgido um descompasso fantástico entre as coisas (as formações históricas) e o nome das coisas. Os nomes não têm mais muito que ver com o objeto nomeado. Talvez o melhor exemplo singular desse fenômeno esteja na expressão “União das Repúblicas Socialistas Soviéticas”. Como escreveram alguns (não sei quem foi o primeiro a dizer isso, talvez Souvarine) não se tratava nem de “união”, nem de “república”, nem de “socialista”, nem de “soviética”.... O que seria fácil mostrar. Assim, como afirmou uma vez Bentham (a propósito de fenômenos históricos do seus tempo), as coisas se separam dos nomes. Com a agravante, eu diria, de que, em muitos casos, os nomes já não correspondiam às coisas. Só que os indivíduos - no caso, os que compõem grande parte da esquerda - continuam acreditando que a correspondência se conservou, crença que teve e tem as consequências mais desastrosas. Raciocina-se não na base das coisas, mas dos nomes. É o que acontece com parte da esquerda europeia, e com uma grande parte, pelo menos, da extrema-esquerda nos países emergentes.
Bem entendido, um balanço do totalitarismo (refiro-me sempre ao que chamei de “totalitarismo igualitarista”, não ao totalitarismo de direita, o nazismo1), deveria ser completado com um balanço da social-democracia. A situação da esquerda atual só é compreensível se fizermos a comparação. Eu a fiz, em alguma medida, em outros textos, indicados mais adiante. Aqui, sem fazer silêncio sobre a social-democracia, concentro-me no seu outro. Mas não posso deixar de dizer duas palavras sobre a situação global. Hoje se fala muito no “fim” ou na “decomposição” da social-democracia, principalmente depois da experiência negativa (até aqui) do governo Hollande. Há ali efetivamente um mergulho capitulacionista. E na história da social-democracia, há coisas muito sinistras. Mas: 1) esta história não se reduz a esses desastres, e a experiência do socialismo nórdico, para falar da sua realização mais bem sucedida, experiência que, aliás, durou muito tempo, não pode ser liquidada sem mais; 2) not least, os erros e crime da social-democracia (ou de uma parte dela), têm de ser comparados com o balanço de horror do “comunismo”. O comunismo conduziu a uma catástrofe histórica cujo custo para a humanidade, principalmente na pessoa de camponeses, foi de algumas dezenas de milhões de mortos. Essa história é um livro fechado para muita gente de extrema-esquerda, inclusive especialistas, particularmente nos países emergentes.
De fato, a primeira coisa a se observar é o quanto esse processo foi e é mal compreendido, pelo “grande público” de esquerda (e por um certo número de teóricos). E, aquém da compreensão, o quanto ele é desconhecido. O objeto data de quase cem anos - ele “nasce” em outubro de 1917 - , e a literatura a respeito, de valor desigual, sem dúvida, mas na qual se encontram obras de algum ou de muito valor, data mais ou menos da mesma época. Um ano após outubro, já se publicavam livros ou brochuras importantes sobre o regime revolucionário russo. Poder-se-ia dizer que essa literatura é, apesar de tudo, relativamente mal conhecida na Europa; e, com exceção dos textos que vão no sentido do que são hoje ortodoxias, como a História da revolução russa de Trótski, por exemplo, ela é essencialmente desconhecida, em países como o Brasil. A razão profunda do desconhecimento e dos mal-entendidos em relação a esse grande pedaço de história é o fato de que, mesmo se muitas vezes de modo mais ou menos inconsciente, o marxismo continua sendo hegemônico em grandes setores da intelectualidade dos países emergentes. Ora, ainda que isso possa surpreender alguns, eu diria que o marxismo está muito mal situado para entender aqueles fenômenos. E isto, não só porque eles se situam num tempo bem posterior ao da morte de Marx, mas porque o autor do Capital pouco teorizou o destino de governos pós-revoluções comunistas, e quando o fez, fez mal. Diria que, por paradoxal que isso possa parecer, outubro (novembro) de 1917 é uma data decisiva na história do envelhecimento do marxismo. É que ela assinala o ponto de partida de uma história que o marxismo estava muito mal preparado para teorizar, diria mais, uma história (futura, eventual) cuja realidade fora simplesmente denegada por Marx.2 - O ciclo do totalitarismo começa quando começam também outros ciclos. Coincide em parte com ele, o ciclo do totalitarismo de direita, e também o da social-democracia. A história do totalitarismo se imbrica, por outro lado, com uma outra história que emerge mais ou menos no mesmo momento em que ele nasce, uma história que se poderia chamar de “antropológica”, isto é, uma história que põe - e não pressupõe apenas - uma relação dos homens com a natureza, e com o conjunto da espécie humana. A primeira manifestação dessa emergência é a grande catástrofe que representou a primeira guerra mundial, guerra que é um elemento decisivo, senão o elemento decisivo, do nascimento das duas vertentes do totalitarismo.

 

           
2. Ilusões e enganos sobre o significado do ciclo.

O ciclo do totalitarismo é mal conhecido (refiro-me sempre ao conhecimento por parte do “grande público” de esquerda, não ao estado das pesquisas). Pior do que isso, há uma verdadeira mitologia em torno dele. A primeira coisa é desconstruir, num primeiro momento, essa mitologia. Resumindo, poder-se-ia dizer o seguinte. O ponto de partida do ciclo, a insurreição de outubro de 1917 na Rússia, é considerada comumente como uma revolução proletária. O segundo momento forte é a emergência e depois a vitória do comunismo chinês. Se se fala em “revolução proletária” a propósito do outubro russo, supõe-se frequentemente que na China houve uma “revolução camponesa”. Revolução proletária russa, revolução camponesa - ou proletário-camponesa, o mesmo se diz às vezes da “revolução russa” - na China. Ora, há razões para duvidar de uma coisa e de outra. O movimento de outubro foi mais um golpe do que uma revolução, ainda que um golpe que teve como fundo um proletariado radicalizado e disposto a apoiar (mas a apoiar em quê?) o partido que promoveu a insurreição.3 Na China - ver os livros de Lucien Bianco, principalmente, mas também obras mais recentes de outros historiadores -, tem-se um partido comunista que mobiliza os camponeses; e não só os instrumentaliza, é verdade, mas consegue “colá-lo” à sua pele. Porém, apesar das aparências, isso não transforma a revolução chinesa em “revolução camponesa”, como pretendem a ortodoxia e o senso comum.4 E ela também não foi, evidentemente, uma “revolução proletária”. Assim, na simples análise dos elementos nucleares do discurso dominante, surgem dificuldades que afetam a própria definição do objeto. No limite, seria preciso entender a sequência como um período de grande mobilização popular, mas em que o poder passa das mãos de uma elite, para o de outras elites. Pensar assim significaria acreditar nessa espécie de conspiração da Intelligenzia, que encontramos descrita em certos autores, como por exemplo, nas obras de Alain Besançon?5Não, porque, ao contrário do que ocorre em grande medida em Besançon, é preciso ver esse poder de elites, sobre o fundo de um amplo movimento, movimento no qual ele obtém uma aparente legitimidade. Besançon pensa frequentemente as sociedades capitalistas ou oligárquicas como “sociedades normais”, e vê no que ele chama de “ideologia” o discurso da Intelligenzia fanatizada, uma espécie de patologia política. Que haja delírio, e mesmo patologia, é pensável, mas não se pode perder de vista o ponto de partida (mesmo se este não os legitima). O bolchevismo, como em geral os projetos pré-totalitários ou totalitários de esquerda, são uma espécie de hybris dos movimentos de emancipação. Eles nascem em sociedades injustas e se enraízam nas lutas contra essa injustiça. Isso não os legitima, mas leva a entendê-los melhor, e, entre outras coisas, a não perder de vista o que eram as sociedades em que eles se desenvolveram, e o que foi, num país, o conjunto do movimento de contestação. Levando-se isso tudo em conta, evita-se uma concepção quase conspirativa da história, como a que paira sobre a leitura da história que faz Besançon. Contra certa opinião conservadora que afirma o contrário, Barrington Moore Jr escreve, numa passagem do seu livro mais conhecido,6que sociedades sãs (healthy) são aquelas em que as revoluções são possíveis, ou seja, são as que comportam um potencial revolucionário (eu diria: revolucionário em sentido bastante amplo). E seria necessário precisar: a normalidade dessas sociedades se entende em contraposição ao caráter em alguma medida patológico do poder que nelas se encastela, e que essas sociedades, enquanto sociedades, combatem. De onde se concluiria que, se os totalitarismos igualitaristas são patologias - e eles certamente o são -, trata-se de patologias que exploram, em proveito próprio, lutas legítimas contra as patologias historicamente existentes.

           
3. O “atraso histórico”. A “dobra” no tempo e no espaço.

Diz-se com frequência que a dificuldade em pensar o “ciclo do totalitarismo” provém do fato de que, na base deles, está um evento histórico que, por assim dizer, “não estava no programa”. A revolução, que deveria acontecer nos países mais avançados, veio a ocorrer em países mais ou menos atrasados. Daí toda a complicação. De certo modo, isto é verdade. Mas o argumento simplifica e tem o inconveniente de nos instalar imediatamente no interior da política de Marx, isto é, de nos fazer supor mais do que o que seria admissível sem uma rediscussão prévia. É que, ao se falar na “surpresa” que representou a chamada revolução russa - sabe-se, de resto, que, na sua juventude e, de forma diferente, na maturidade, Marx considerou a possibilidade de que a revolução irrompesse por um caminho “anormal” - supõe-se, em geral, que a complicação vem apenas, ou essencialmente, do relativo atraso (a definir o que isso significa) daqueles países. Na realidade, o atraso sobredetermina problemas que já estão na ideia de um poder de classe instalado através de uma revolução. Por outro lado, o argumento supõe implicitamente que tivemos, na Rússia e na China, revoluções operárias ou camponesas, o que, já vimos, é difícil afirmar. De fato, temos aí um longo processo que se faz “pelo caminho do atraso”. Mas o que isso significa precisamente? Que a história fez um “pli”, que ela se dobrou sobre si mesma e recomeçou do seu passado em vez de continuar a partir do seu presente? É uma imagem simplificadora, que poderia ilustrar, entretanto, ­o que aconteceu. Quanto ao conteúdo do atraso, digamos desde já, que o aspecto que mais interessa é a ausência, ou quase ausência, naqueles países de tradições democráticas.
Os bolchevistas - como também os menchevistas, cada um à sua maneira - se preocuparam muito com a questão do atraso histórico. Era o tema essencial das discussões do Partido Operário Social-Democrata Russo. Os menchevistas achavam que, por causa do atraso da Rússia, só seria possível, de imediato, uma revolução democrático-burguesa, a revolução socialista ficaria para mais tarde. Os bolchevistas puseram em dúvida esse postulado ortodoxo. Lênin e Trótski (que só adere ao bolchevismo em 1917) tinham cada um uma versão de como enfrentar o atraso histórico, sem sacrificar - pensavam eles - a revolução socialista. As duas respostas eram semelhantes, mas não idênticas. O interessante é que as duas mobilizavam o adjetivo “democrático-burguês” (às vezes sem o “burguês”), mas o “democrático“ aí não apontava para a democracia tal como se poderia entender. Lênin acreditava que antes da “ditadura do proletariado” deveria haver uma “ditadura democrática - oxímoro curioso - dos proletários e dos camponeses”. Esta realizaria as “tarefas (termo sintomático e também carregado de implicações) democrático-burguesas”. Trótski, valendo-se de uma expressão que Marx empregara a propósito da Alemanha, país atrasado, por ocasião da revolução de 1848, dizia - “nuance” em relação à posição de Lênin - que o proletariado realizaria as “tarefas” democrático-burguesas, e que num movimento contínuo - é o que representa o adjetivo, na célebre expressão “revolução permanente”, passaria destas às “tarefas” correspondentes à revolução socialista. A acrescentar que Trótski punha no fundamento da sua argumentação a ideia de que a Rússia não era rigorosamente um país atrasado. Ela combinava atraso com grandes avanços: assim, se e a indústria e o proletariado eram relativamente reduzidos, havia grande concentração e alguns outros traços modernos. Desse modo, seria resolvida a questão do atraso da Rússia. Trótski e Lênin não negavam, portanto, o atraso, mas, se o admitiam, não o faziam à maneira dos mencheviques, porque o reconhecimento, na variante deles, não implicava na obrigação de postergar a tomada (pelo menos parcial) do poder pelo proletariado.7 Havia aí, por parte dos dois, mas de cada um à sua maneira, uma formidável tentativa de acertar o relógio da história russa, cujas engrenagens de algum modo se imbricariam nos da relojoaria da história mundial. Através da revolução, a Rússia por-se-ia ao nível da contemporaneidade. E em nenhum dos dois casos (nem em Lênin, nem em Trótski) tratava-se propriamente de um “salto”. Previa-se (ou propunha-se), na realidade, uma espécie de aceleração da história, aceleração que, numa das versões era pensada como contínua, e, na outra, como escandida em duas etapas, as quais, observe-se bem, não instauravam, entretanto, verdadeiras rupturas, como no caso das etapas previstas pelo menchevismo (estas últimas separavam um momento de exclusão do poder e um momento de participação). Para além das tentativas de justificação a posteriori, essa superação do atraso - pelo menos, de um ponto de vista crítico - revelou-se ilusória. O bolchevismo pretendia adiantar o relógio da Rússia, acertando-o pela hora da contemporaneidade a mais avançada. Na realidade - de um ponto de vista crítico, pelo menos -, a Rússia nunca se libertou do atraso. Apesar desses programas ou antes, precisamente por causa deles, a Rússia antes chafurdou e continua chafurdando nele (com o que não se está negando, é claro, o progresso que teve, no plano técnico e econômico). Quando se constitui o momento “stalinista” da história pós-revolucionária, Trótski se lembrará de novo do atraso russo, e o mobilizará - junto com outras circunstâncias, principalmente a guerra civil - para explicar o chamado “Thermidor“ stalinista (o paralelo, diga-se de passagem, é muito grosseiro). Mas se a velha Rússia se exprimia, é claro, em muita coisa do terrível interregno stalinista, o impacto do atraso histórico vinha de antes. Mesmo se menos sinistro do que o stalinismo, e sob muitos aspectos diferente dele, era precisamente o bolchevismo que representava, em primeiro lugar, o anacronismo russo. Aquele partido cujo chefe admirava tanto a modernidade capitalista, inclusive em algumas das suas piores formas, e que se pretendia o arauto e demiurgo do que seria uma Rússia moderna (moderna e - ou antes, porque - revolucionária ), era a melhor expressão da velha Rússia, com suas tradições de autoritarismo, de centralismo organizatório e de ausência de (maiores) escrúpulos diante da violência (mesmo se o bolchevismo não era, em princípio, terrorista). Quando Trótski abandonou uma postura que passou a considerar como a de um intelectual radical e pôs-se a cantar hinos idílicos à guilhotina e à revolução como instância absoluta, ele supôs ter liquidado certo arcaísmo do revolucionário judeu do tipo Martov ou Axelrod, seus ex-mestres, em proveito da modernidade de uma revolução proletária de um tipo novo, novíssimo mesmo. Na realidade, sob muitos aspectos, ele deu o pulo inverso. Abandonou um projeto que herdava o melhor da tradição revolucionária ocidental em proveito da velha Rússia, com seu legado autoritário (este incluía o jacobinismo, herança ocidental, é claro, mas herança “arcaica”, porque encarnando a “outra” revolução, como o assinalava Luxemburgo, e, já, de resto, mediada por seus cultores eslavos). O bolchevismo era e é um suporte, e, se podemos dizer assim, um “motor” do “atraso” russo. E, como o bolchevismo veio a ser uma das forças hegemônicas na esquerda mundial, ele apareceu como o grande promotor, no mundo inteiro, de maneiras de pensar e de agir, que, de certo modo, mas, simplificando, poderiam ser chamadas de “arcaicas”. Aquela “dobra” da história a que me referi, aquela virada da história que finalmente faria tábula rasa de 1789, enquanto revolução dos direitos do homem, operou-se através do bolchevismo. Mais precisamente, operou-se através dele e de seus filhos, deformados sem dúvida, mas filhos que, apesar de tudo, foram o stalinismo e o maoísmo, sem falar em outros. Bem entendido, o outro lado - o capitalismo autoritário ou liberal - não foi estranho à brutalidade, e também foi veículo de horrores. Mas, como se sabe, no final do século XIX e começo do XX, esses horrores se localizavam principalmente na periferia do sistema, no mundo colonial. Foi a primeira guerra mundial que os pôs no próprio coração geográfico do sistema.8Nesse sentido, a dobra não foi apenas temporal, ela foi também espacial. A história mundial se dobrava no tempo, retornava, de um modo muito sui generis, é claro, a um aquém dos princípios de 1789, mas, ao mesmo tempo, ela fazia do ethos da sua periferia o do seu centro, efetuando uma “dobra” também no espaço.
Na gênese do totalitarismo igualitarista, mas também do totalitarismo “inigualitário”, a guerra, a primeira guerra mundial ocupa, como se sabe, um lugar especial. A “grande guerra”, catástrofe maior que se destaca na bisher Geschichte, na história até então, da guerra, é um primeiro episódio da história “antropológica” que emerge no início do século. O bolchevismo nasce antes dela, mas, sem ela, não teria chegado ao poder. Além do que, ela reforça certamente os seus traços, em alguma medida o “conforma” (apesar de que, como foi observado - ou talvez por isso mesmo - os seus dirigentes, ao contrário da liderança nazista, não tenham participado dela). Martov insiste nesse lado militar do bolchevismo. Ele é real, embora o bolchevismo tenha-se alçado ao poder valendo-se do sentimento geral de recusa da guerra. A Primeira Guerra Mundial tem um pouco o caráter do desastre produzido pela manipulação inábil de um aprendiz de feiticeiro. Qualquer que seja a responsabilidade de cada um dos governos, há ali também um sinistro efeito surpresa do poder de destruição dos novos instrumentos bélicos, o que entretanto já se anunciava na mortandade relativamente elevada de uma guerra curta como a de 1870. A “grande guerra” como que dissolveu “todos os valores”, dissolveu em todo caso certos escrúpulos, vigentes ainda, em certa medida. Na metrópole europeia, no que concerne às populações civis não beligerantes, e, em geral, aos direitos dos cidadãos e do homem.9 A partir dela, tudo veio a ser possível.
Diferentemente do bolchevismo, o nazismo nasceu depois da guerra e veio impregnado por ela, num grau que é, seguramente, maior do que o do bolchevismo. Como entender a relação entre os dois totalitarismos? Se o bolchevismo remete ao atraso russo, o nazismo tem certamente a ver, a observação não é nova, com o Sonderweg alemão. Mas o paralelismo não é preciso, e tem de ser explicitado, senão corrigido. Na Alemanha, houve uma industrialização tardia, acelerada e impulsionada pelo poder (vinda “de cima“), que veio a ser paralisada pela derrota na guerra. Essa constelação de sucesso nacional bloqueado por uma guerra mal-sucedida deve ser um elemento explicativo de por quê a dissolução dos valores que operaram os horrores da conflagração mundial gerou, na Alemanha, um totalitarismo de direita. O impulso dominante foi o da exigência de uma “revanche”. O que exige, primeiro, que tenha havido glória e sucesso no passado imediato (para que se vise uma “revanche” é preciso supor que nossa energia foi, e ainda é considerável), e, segundo, que a inversão do curso vitorioso tenha vindo de um acidente ou de uma manobra traiçoeira - o suposto golpe de punhal desferido pelas forças de dissolução, nas costas da Alemanha. A Rússia não teve industrialização tardia muito acelerada, e se, de certo modo, perdeu a guerra, não a perdeu como a Alemanha. Seu regime autoritário arcaico apodreceu e abriu o caminho para a esquerda. Aproveitando a incapacidade do governo provisório em resolver o problema da guerra, o bolchevismo hasteia a bandeira de um radicalismo que prega “o poder aos sovietes”. Sua vitória foi, entretanto, a morte de toda representação soviética livre.

4. Ainda sobre o bolchevismo. As teorias sobre o caráter do poder revolucionário, e o posicionamento da esquerda. Expansão do bolchevismo. Histórias paralelas: URSS e China.

a. Não vou desenvolver muito, aqui, a questão das diferenças entre marxismo e leninismo, a qual tratei em outros lugares. Poder-se-ia dizer, em geral, que o marxismo não corresponde muito rigorosamente nem ao reformismo nem ao leninismo, as duas correntes que se reclamaram dele. A política de Rosa Luxemburgo, que continuou a ser muito minoritária depois da morte dela, é provavelmente a que representa de maneira mais fiel o que poderia ser uma herança do marxismo. No leninismo, temos uma cristalização da ideia de “ditadura do proletariado”, que, em Marx e Engels, era um momento (quase equivalente, como assinalou Draper, da “ditatura” em sentido romano), um vanguardismo que é estranho à concepção “massista” de revolução, que encontramos em geral em Marx, e um à vontade nos métodos que ultrapassa de longe o “distanciamento” em relação à moral (que não vai, apesar de tudo, sem certas exigências e escrúpulos, implícitos ou explícitos) no pensamento de Marx e de Engels.
O bolchevismo se constituíra a partir de dois livros: o Que Fazer? (1902) e Um passo à frente, dois atrás (1904), opúsculos que definem a essência dos “majoritários“ (sic): a teoria que exprime a “ideia” do proletariado nasce fora dele (havia aí uma verdadeira confissão do segredo do bolchevismo: em última análise, lógica e histórica, sua política não seria a do proletariado, mas a de uma elite que viria de fora), e a organização do partido terá como símile a organização hierárquica de uma fábrica. Bem entendido, não pretendo dizer com isso: 1) nem que não havia discussão, e razoável democracia interna no partido bolchevique (o fim da democracia interna viria depois, como que uma resultante da recusa da democracia externa); 2) nem que não houvesse dentro do partido forças mais democratizantes, e menos vanguardistas; elas existiam, vejam-se as divergências que apareceram em várias ocasiões, principalmente logo após a tomada do poder, quando uma parcela importante da direção se recusou a aceitar um governo de partido único, e se demitiu do Comitê Central (um outro grupo, que coincide em parte com o primeiro se retirou do governo; na grande maioria dos casos, uns e outros acabam retomando os seus postos);103) nem que Lenin, subjetivamente, planejasse, a longo prazo, uma dominação de elites sobre o proletariado. Subjetivamente, - mesmo alguém como Castoriadis o admitia - é seguro que Lênin, ao contrário de Stálin, desejava a vitória do proletariado e do comunismo (veja-se como ele se debate nos seus anos finais - esforço derrisório ­- para tentar evitar a burocratização do partido, sem entretanto abrir mão da “ditadura do proletariado”). A NEP (Nova Política Econômica), adotada em 1921, é um momento sintomático, quando se quer mostrar a diferença entre leninismo e stalinismo. O poder leninista praticara até então muita violência contra os camponeses (sem falar no terror, nas cidades, nos primeiros anos11), mas, diante da resistência camponesa, ele opta por uma política econômica de compromisso. Mesmo se as condições eram diferentes, não se pode perder de vista que, diante da resistência camponesa, Stálin preferiu a coletivização forçada e o genocídio.
A descrição que fiz do bolchevismo é a da sua matriz, matriz que, sem dúvida, só veio a ser obedecida depois da tomada do poder. Até então, e principalmente em 1917, o partido bolchevista era alguma coisa consideravelmente diferente do tipo de organização que sugeriam as duas obras fundadoras. Mas elas definiram o destino do bolchevismo e, nesse sentido, pode-se e deve-se considerá-las como os grandes textos, que nos indicam o que foi, e o que ainda é, o modelo político bolchevique, e sua ideia de revolução.

b. Depois de outubro, e muito cedo, colocou-se o problema de definir o caráter do novo poder. Bem entendido, para uma certa ortodoxia, que no momento ainda era muito poderosa, tratar-se-ia de um poder revolucionário que preparava a instauração de uma sociedade socialista (ou mais exatamente, comunista). Porém, depois da experiência de alguns meses, com o fechamento dos jornais, a repressão policial, a liquidação progressiva dos sovietes e, not least, o fechamento brutal, no início de janeiro, da Assembleia Constituinte, livremente eleita (velha aspiração democrática, afinal realizada, e que os bolcheviques haviam apoiado desde sempre) - tudo isso antes que se desencadeasse a guerra civil - começaram a surgir vozes discordantes. Os críticos do bolchevismo começaram a se pronunciar. Além da crítica clássica de Luxemburgo, à qual não irei voltar, aparece em 1918 o livro de Kautski, que vê no poder bolchevique não uma ditadura do proletariado, mas uma ditadura sobre o proletariado. Mais tarde, e principalmente com a emergência do stalinismo, abre-se na esquerda não stalinista um verdadeiro debate sobre o caráter do poder “soviético”. E com a vitória de Mao, a questão se duplica. Trata-se de saber também o que significa o poder maoísta, vitorioso em 1949. Interessa-nos aqui tanto a natureza dos diagnósticos sobre a essência desses poderes, como o provável destino futuro que se lhes imputava. Deixando de lado os devotos que se extasiavam diante dos sucessos da “ditadura do proletariado”, havia, na esquerda, pode-se dizer, duas posições fundamentais. De um lado, a teoria trotskista (“teoria” é um termo pesado demais para o que era uma espécie de doxa otimista, embora não totalmente arbitrária) que via na URSS um governo “operário” (sic), com o que, queriam dizer, um governo que “potencialmente” (difícil ser mais preciso) iria na direção da construção do socialismo, mas que levaria consigo - precisão essencial - “deformações burocráticas”. (Anos depois, para caracterizar o regime dos países satélites, à “deformação” se preferia a “degenerescência”, e, assim, falava-se em “governos operários degenerados” (sic, sic)). Na esquerda e extrema-esquerda não trotskistas, não se acreditava no potencial “operário” (isto é, socialista) da URSS; o poder “soviético” era considerado ou como um “capitalismo de Estado”, ou como um poder “burocrático autoritário” ou, denominação que acabou tendo grande aceitação, como um governo “totalitário”. (As forças de direita denunciavam a “ditadura comunista” ou a “tirania”, ou também o poder “totalitário”). Essas denominações acabaram sendo mais ou menos aplicadas também ao comunismo chinês. Seria, entretanto, importante salientar que, se a maior parte da esquerda havia aceito o governo russo pós-outubro como um verdadeiro governo revolucionário, esse entusiasmo se renovou com relação ao segundo poder revolucionário, o do PC chinês, desde 1949. O entusiasmo de grande parte da esquerda ocidental, e de parte da sua intelectualidade, pela “revolução chinesa”, no momento mesmo em que o PC chinês cometia os seus maiores crimes e barbaridades, é um fenômeno a ressaltar e a ser sempre estudado e reestudado.
No que se refere às perspectivas do poder revolucionário - pensemos principalmente no caso russo, que é o primeiro e o fundante ­-, e à sua “temporalidade”, os trotskistas achavam que ele não duraria “muito tempo” (pode-se supor que acreditavam numa duração de algumas décadas). Entre os não-trotskistas, alguns lhe davam um futuro muito mais amplo, o que, evidentemente, dada a apreciação que faziam do poder comunista, implicava uma visão bastante pessimista da história. Outros, apesar de cristalizá-lo numa forma específica, davam-lhe um tempo de vida relativamente curto. Quanto à natureza do regime que viria depois do fim da “burocracia”, os trotskistas acreditavam numa “volta ao leninismo” o que, para eles, seria o equivalente de uma “volta ao marxismo”, como também um retorno a um projeto socialista não deformado (Foi sempre uma característica da posição trotskista, a de estabelecer uma separação marcada entre leninismo e stalinismo; na realidade, uma separação existe, mas não exclui uma continuidade “objetiva”12). Ou então, na alternativa pessimista, a burocracia voltaria ao capitalismo. Os outros críticos acreditavam em geral que, em algum momento, e por uma iniciativa vinda “de baixo”, o poder burocrático seria minado e retornar-se-ia pelo menos a uma situação favorável a um combate em prol de um socialismo refundado. Antes de discutir quanto e o quê os acontecimentos parecem ter confirmado dessas teorias e previsões, e quanto e o quê elas parecem desmentir, reflitamos um pouco sobre a situação das esquerdas - penso também e particularmente nas esquerdas do “terceiro mundo” - durante aquele interregno. A tomada de posição não era difícil para os ortodoxos, e, até certo ponto, também não era para os trotskistas: seria preciso lutar contra o “imperialismo americano” e defender o Estado soviético (no caso dos trotskistas, a nuance, não tão insignificante, era a de que essa defesa não excluía uma crítica bastante aguda do stalinismo). A dificuldade existia para os outros, para a esquerda não ortodoxa nem trotskista. Ela se apresentava assim: como criticar o hegemonismo americano sem cair na idealização de um governo que, sob muitos aspectos, representava uma forma de exploração e opressão pior do que a que representava o capitalismo liberal-democrático do ocidente? A observar que, para a esquerda do terceiro mundo, o poder americano era o mais “próximo”, aquele cujo impacto o terceiro mundo recebia imediatamente, já que se encontrava (penso na América Latina, principalmente) no interior do campo de dominação dos EUA. Como escrevi muitas vezes, colocava-se aí uma questão, em última análise lógica - mas, claro, eminentemente política - a da recusa do princípio do terceiro excluído. Talvez se tenha aí, nessa recusa, o axioma fundamental de toda política lúcida de esquerda para o nosso tempo. Esse ponto, continua sendo essencial, hoje, na segunda década do século XXI. Os grupos de esquerda - na realidade muito minoritários -, que tinham uma atitude realmente crítica em relação à URSS, resolveram como puderam o problema. Claro que havia uma respostas para ele, a rigor poder-se-ia mesmo dizer que não havia problema - as formas de opressão e exploração são múltiplas; a dificuldade vinha do peso das esquerdas dominantes, trotskistas inclusive, que se recusavam a pensar a possibilidade de uma terceira posição e a elaborar um discurso correspondente.
Se se puder admitir que chegamos a um quase-final - muito relativo, claro - de um caminho, isto é, se se supuser, como estou supondo, que, da situação histórica em que nos encontramos, é possível fazer um balanço suficientemente rigoroso e esclarecedor, deveríamos fazer as seguintes considerações. Em primeiro lugar sobre a essência daquele poder revolucionário, ou daqueles poderes revolucionários. À luz de tudo o que hoje se sabe sobre a história dos regimes chinês e russo - o grande salto para a frente,13 a revolução cultural,14 a fome camponesa dos anos 1930,15 o grande Terror,16mais todo o “pequeno” horror que se situa entre esses momentos apoteóticos, além daquilo que revela a análise dos modos de exploração e de opressão inerentes a esses regimes - é difícil não dar razão à esquerda e à extrema-esquerda não-trotskistas, que viam no regime russo e no regime chinês um tipo de poder opressivo e explorador (além de genocida e terrorista). Um poder que merecia, sem dúvida, uma denominação especial, e que, em todo caso, de forma alguma deveria ser considerado como sendo “de transição para o socialismo” (nem como o de um “estado operário deformado”!). Qual dessas denominações conviria melhor não vou discutir aqui, mas o termo “totalitarismo” vale, certamente, como também o de “poder burocrático”.
Quanto ao destino desses poderes, que a realidade atual parece revelar, pode-se dizer que ela não confirma, em geral, as perspectivas de uns e de outros. Mas havia elementos de verdade em algumas daquelas previsões. Vejamos isso mais de perto. Os acontecimentos desmentem a perspectiva ortodoxa: a história da China pós-revolucionária e a da Rússia pós-outubro não levou à construção de nenhum tipo de sociedade socialista (os devotos poderão sempre dizer que houve forças contrárias que inibiram o processo etc...). Quanto às perspectivas trotskistas, que eram, na alternativa otimista, a “volta ao leninismo”, e na alternativa pessimista, a “volta ao capitalismo”, a primeira não se realizou, e, quanto à segunda, se ela se efetivou de algum modo, foi, como veremos mais de perto, de maneira muito sui generis, e em forma bem mais complexa do que eles haviam suposto (de resto, na medida em que esta era a alternativa pessimista, eles, otimistas, que eram, como todos os bons marxistas, nunca apostaram muito seriamente nessa eventualidade). Entretanto - como observei já há bastante tempo ­-, a ideia de que o regime não duraria muito tempo se confirma. É talvez o único ponto em que a perspectiva trotskista acerta. Mas isso é pouco, se pensarmos em tudo o que os acontecimentos desmentem da sua construção em torno dos “Estados operários deformados ou degenerados”.17 As oposições não-trotskistas pensavam, em geral, numa sobrevivência mais longa, porém não é claro que todos fizessem disso uma tese bem precisa. Eles acertaram mais no diagnóstico da essência desses regimes do que no do seu destino. Como os trotskistas, eles acreditavam, em geral, que a ruptura viria de um movimento “de baixo”. E não foi o que aconteceu. Foi a partir de cima, como se o totalitarismo se revelasse inviável, que foi se operando a transformação. Enfim, o resultado, no seu conteúdo como no seu encaminhamento, foi inesperado e original. Mas seria preciso explicar melhor até onde se chegou, e como se chegou até aí.

            c. Alçando-se ao poder, o bolchevismo não só liquidou muito cedo toda oposição interna, como começou a se expandir internacionalmente. Ele começa tendo um impacto que é mais da ordem da imitação, antes de se impor através dos seus emissários. Foi o que aconteceu no caso da Alemanha, com a revolta espartaquista de janeiro de 1919, esmagada no sangue, com a revolução húngara dirigida por Bela Kuhn, no mesmo ano, que dura 133 dias, e com a república soviética da Baviera, que dura um mês, e tem o mesmo destino.18 A partir daí, o impacto do bolchevismo e da Terceira Internacional será direto e instrumental. Há qualquer coisa de insólito e de extraordinário nessa expansão. Não se trata de uma conquista militar, mas também não se tem um análogo da difusão vitoriosa de uma religião. Há por um lado um poder de Estado, peça essencial nesse contexto, por outro, o peso de uma ideologia que se beneficia do prestígio de uma vitória que se supõe seja a da classe, destinada a romper um dia os seus grilhões. Eis a promessa cumprida, a utopia - ou o primeiro passo, na direção dela ­- realizada.
Uma vez efetuada a cisão, que carrega consigo, em alguns casos, a maioria do antigo partido,19 os partidos comunistas irão sendo “formados” pelo partido “soviético”. O caso chinês é característico. Os enviados da Terceira Internacional20vão amoldando aquela massa ainda informe de ex-anarquistas e antigos participantes do 4 de maio de 1919.21A adesão foi, aliás, em parte pelo menos, essencialmente “organizatória”. A adesão ideológica veio depois. Houve, é verdade, fatores internos, mutações na sociedade chinesa, que teriam facilitado a conversão mas o peso externo, que é na realidade, duplo, o do sucesso da revolução (porém a violência do processo também provocou reticências), e, sobretudo, a influência direta, através do trabalho do representante e enviado, é inegável. No que se refere à fundação do PC Chinês, em 1921, escreve Arif Dirlik, em seu importante The Origins of Chinese Communism (mesmo se, cada vez que ele tenta um diagnóstico global, o autor hesita na formulação dessa tese): “Eu creio que as evidências (evidence) de que dispomos indicam a justeza das suposições da Guerra Fria, de que o partido comunista da China foi um produto da intervenção direta da Internacional Comunista”.22 “A organização comunista assumiu amplamente essa rápida coerência (...)por causa dos esforços dos conselheiros do Komintern. O Komintern não “catalisou” apenas a organização do comunismo na China. Evidências circunstanciais (circunstancial evidence) indicam que Voitinsky e seus assistentes participaram diretamente em todas as fases e aspectos da organização do Partido”.23 Assim, o bolchevismo se propaga de cima para baixo. Aquele partido que nascera de uma obscura divergência a respeito de certos problemas de organização, que ainda era muito minoritário no início de 1917, mas que ganha força aproveitando bem as circunstâncias e se alça ao poder por um movimento habilmente preparado, (depois, ele se impõe, na guerra civil), aquele partido, ainda obscuro em fevereiro de 1917, tornar-se-á rapidamente hegemônico, numa parcela considerável da esquerda mundial. É nesse sentido, também e principalmente, que há aí uma “dobra” da história mundial, um verdadeiro Sonderweg do Mundo: o bolchevismo, versão russa do marxismo, doutrina que é consideravelmente diferente da sua matriz, e que traz marcas profundas do passado russo, vai ser o modelo de um número importante de partidos, organizações (mais tarde, governos), e sua ideologia se encarnará nos movimentos que influenciou, dirigiu ou fez surgir. “O bolchevismo mundial” é o nome de um pequeno livro de Martov. Assim, a partir dos anos 1920 e 1930, uma ideologia que traz os estigmas da história russa se tornará uma das correntes políticas dominantes do mundo contemporâneo, incluindo também o terceiro mundo. E até hoje, principalmente no mundo dito “emergente”, quando alguém - penso nos intelectuais militantes (para os outros já não é bem assim) - se declara “marxista”, ele é na maioria dos casos menos “marxista” do que leninista (às vezes lenino-maoísta, mais frequentemente lenino-castrista).

             d. Impossível fazer aqui, mesmo resumidamente, a história paralela dos dois comunismos, o russo e o chinês. Talvez seja possível tentar esquematizar os marcos dessa história. Há um descompasso cronológico entre elas. Em termos de poder, uma começa em outubro de 1917, a outra, se considerarmos uma dominação mais ou menos global, em janeiro ou em outubro de 1949. Se se tratar dos partidos, um deles poderia ter como data inicial 1902, ano do primeiro “entrevero” bolchevique/menchevique; o outro é fundado em julho de 1921. O início da crise dos dois poderes (crise que foi, em grande parte, um evento auspicioso para a luta de emancipação) se dá com a morte do déspota, respectivamente, em 1953 e em 1976. Stalin estivera no poder durante mais ou menos 30 anos, e como “guia”, mais ou menos 25. O longo período em que domina é marcado pela industrialização, que, mesmo se brutal, tem êxito, e pela guerra mundial. Nesta, Stalin começa cometendo erros que poderiam levar à vitória nazista, depois, ao inverso de Hitler, teve a boa ideia (os famosos quatro anos de lucidez de Stalin) de dar certa autonomia aos seus generais. A URSS enfrenta a máquina de guerra hitlerista, e a derrota, mesmo se optando por um estilo de campanha que comportou um enorme sacrifício humano. Costuma-se comparar o curso das duas revoluções, ou antes, dos dois poderes, destacando certos momentos de “radicalização”, que já mencionei: a grande fome camponesa na URSS, de 1931 a 1933, é comparada aos horrores do “grande salto para a frente”, na China (1958-1962); o grande Terror stalinista (1937-38) à Revolução Cultural chinesa (1966-1976). Comparam-se, na realidade, as respectivas “apoteoses” no horror. (O primeiro par - as duas “fomes” - representa um grande massacre cujo lugar foi o campo; o segundo, um massacre que não foi centrado no campo). Somando os mortos dessas quatro catástrofes, não se fica muito longe dos 50 milhões. Mas esse paralelo não é mais do que um ponto de partida. Desde logo, é visível a diferença entre o “estilo” da revolução cultural, e o Terror. A comparação entre as duas “fomes” também revela diferenças: embora alguns historiadores o contestem,24 na stalinista parece ter havido uma verdadeira intenção de punir os camponeses, o que não ocorreu no caso chinês (isto não é suficiente para apagar ou mesmo atenuar responsabilidades). É de se observar, desde já, o quanto os camponeses foram as grandes vítimas dessas revoluções. Sob muitos aspectos, o que tivemos foram grandes massacres de camponeses. O proletariado sofreu relativamente menos. Kautski já dizia, no seu livro sobre a ditadura do proletariado, de 1918, que depois da burocracia, a classe que tinha mais vantagens com o poder era o proletariado. Disso não se conclui, de forma alguma, nem Kautski o concluía, é claro, que se tratasse de ditadura do proletariado. Para ele, apesar de o proletariado ter uma situação relativamente melhor que a dos camponeses e dos intelectuais, o que se tinha era sim um ditadura sobre várias classes, inclusive o proletariado. Para efeito da comparação entre os dois governos, lembremos que, desde muito cedo, houve e há, também na China (pelo menos houve, até o final da primeira década do século XXI) os famosos “campos de trabalho”. (Ver a respeito o capítulo que lhe consagra Frank Dikötter no seu livro sobre o primeiro período revolucionário chinês, indicado em seguida). A convergência entre os dois regimes é, de qualquer modo, bastante grande, apesar das diferenças. Talvez se pudesse esquematizar as diferenças, dizendo que, se nos dois casos, temos um “déspota” e uma burocracia, na URSS o déspota é mais autônomo em relação à burocracia do que na China. Mesmo se também na China, o déspota não era, propriamente, instrumento da burocracia, a autonomia de que gozava Stalin era maior. (Há um fator que pode ter tido influência nisso. A longa guerra civil chinesa. Mao é um ex-companheiro de armas de um grande número de dirigentes do partido. A guerra civil russa foi muito mais curta. Stalin forma um grupo a partir dela, mas de consequências limitadas. Claro, há outros elementos que não examino aqui). Por outro lado, o regime chinês foi mais populista do que o regime russo. Haja vista, por exemplo, a diferença já assinalada entre o Terror e a Revolução Cultural. Nesta, o déspota age através de massas interpostas. Nunca houve coisa semelhante sob Stalin, mesmo se ele fez apelos a apoiar a denúncia dos “sabotadores” a serviço da Alemanha ou do Japão, no caso do grande Terror, e, em outras ocasiões também conclamasse o povo a apoiá-lo. Porém, não devemos limitar a análise desses regimes à consideração dos seus “pontos máximos”. Importantes, nesse contexto, são os estudos recentes sobre a revolução chinesa antes do grande salto para a frente. O livro de Frank Dikötter, The Tragedy of Liberation, a history of chinese revolution, 1945-195725 mostra de maneira convincente tudo o que havia de mítico na ideia de um primeiro período de paz e de relativa moderação. Há na realidade uma sucessão de violências (com características stalinistas, do tipo: quotas de “contrarrevolucionários” a executar etc), de tal modo que se tem a impressão de que já estavam dados, na época, os elementos que viriam a se desencadear mais tarde, no Grande Salto e na Revolução Cultural26 . Um outro resultado - este, visível no outro livro importante de Dikötter, Mao’s Great Famine, the history of Chine’s most devastating catastrophe 1958-1962, op. cit., é a confusão entre a fome e a repressão política, ou, antes, o fato de que, mesmo no caso do Grande Salto para a Frente, a repressão foi em parte diretamente política (porque, indiretamente, a fome também o foi). Enfim, os trabalhos recentes mostram uma certa homogeneidade sinistra na política repressiva do poder chinês. Revelam também o grau da violência, e o número enorme de vítimas (talvez mais de 40 milhões, só para o Grande Salto), o que relativiza, se ouso dizer, os casos limites internacionais do totalitarismo igualitarista, que foram o regime de Pol-Pot, e atualmente, o da Coreia do Norte. Tudo o que se tem lá, já estava presente, em escala (intensiva e extensiva) relativamente menor - mas não muito menor, nem menor em termos absolutos - nos “melhores” anos do maoísmo e do stalinismo.

 

5. Histórias paralelas (China e Rússia): a crise final e o seu resultado.

Afinal a que resultado se chegou? O sentido geral dele, já conhecemos, é o de que a Rússia e a China, os poderes revolucionários chineses e russos, evoluíram ou involuíram para o capitalismo, e um capitalismo em geral selvagem e mafioso. Talvez mais mafioso do que selvagem na Rússia, mais selvagem do que mafioso na China, mas isso não é certo. Diferenças há, e, primeiro, em termos de sucesso no plano puramente econômico e também no do puro poder: a China dá um salto, a Rússia retrocede. Na China, houve grande, enorme, crescimento econômico, o contrário ocorreu na Rússia. A China acabou se fortalecendo no plano político, a Rússia se enfraqueceu. Porém o sucesso ou insucesso econômico e “político” (técnico-político), não significa que uma ou outra tenham sido “bem (ou mal) sucedidas” do ponto de vista de uma apreciação crítica, isto é, de um julgamento que tem como fundamento os interesses da luta emancipatória. As duas coisas podem não andar juntas. Digo isso principalmente com vistas aos entusiastas do regime chinês.
Digamos que, no centro da diferença, aparece o fato de que o partido comunista chinês não explodiu e se manteve no poder, enquanto o partido comunista da União Soviética perde o poder, explode, e, durante um período, é inclusive posto na ilegalidade.27 Essa diferença explica muitas coisas (por exemplo, o ritmo das mudanças e o grau de controle que se exerce sobre elas), mas ela, por sua vez, deve ser explicada. (Do ponto de vista da luta emancipatória - é preciso ter sempre presente essa perspectiva, frequentemente mistificada - deve-se dizer, em princípio e mais do que em princípio, que a ruptura do partido único é um evento mais favorável do que a conservação do partido único; porém, é claro que se o pluralismo emergente em seguida à ruptura for ilusório, a vantagem para a luta de emancipação também será mais ou menos ilusória, pelo menos imediatamente.) Archie Brown, no seu The Rise and Fall of Communism28 observa que, no PC chinês cogitou-se uma mudança de nome do partido, a qual só não foi adotada, parece, por medo de que houvesse oposição e divisão, e, com isso, pluralização de partidos. Isso mostra que o essencial não foi o caráter “comunista” do partido, mas a sua unicidade. De qualquer modo, no resultado político final, subsiste uma diferença, embora tênue: na China, há um partido único (e esse partido é o comunista), na Rússia há mais de um partido (e o partido formalmente no poder não é o comunista), porém, a pluralidade sob Putin, como, em geral, o peso dos partidos, é cada vez mais formal.
Os dois processos de transição, enquanto tais, divergem mais do que o seu resultado. No plano econômico, um elemento decisivo é que houve, na Rússia a aplicação de uma “terapia de choque” imposta pelo FMI (as duas coisas interessam: que houve “choque”, e que se obedeceu a uma quase-imposição externa) enquanto na China nada disso ocorreu, embora ela também tenha recorrido a empréstimos. Porque o relativo gradualismo chinês; e porque a Rússia aceitou as condições do FMI e a China, não? A sobrevivência ou não do partido único explica isso, em parte, mas, como já disse, ela mesma tem de ser explicada. Como muitos já disseram, na China houve praticamente um só líder, Mao, que foi ao mesmo tempo o fundador do sistema e aquele que conduziu o seu desenvolvimento. Na Rússia, houve um fundador, Lênin, e o “herdeiro” do fundador, Stalin (aliás, deslegitimado pelo famoso “Testamento”, mas Lênin nomeara ou aceitara a nomeação do herdeiro como secretário-geral, um ano antes, em 1922). Isso poderia ter facilitado um resultado contrário ao que ocorreu. Parece mais simples conservar o regime, se se pode resguardar a figura do fundador e sacrificar a do seu sucessor; o que, na China, não era possível. Mas, na realidade, a ausência do “foguete de dois módulos” não teve esse efeito. É como se a unicidade do líder implicasse numa ruptura tão grande que ela veio a resguardar a mística do partido. Mao finalmente foi menos criticado do que Stalin (embora nos dois casos tenha aparecido o recurso às curiosas porcentagens, do “andou bem a tantos por cento”, “andou mal a tantos por cento”). O caráter mais populista do regime maoísta em comparação com o stalinista também deve ter contribuído para que o partido único fosse mais protegido. De fato, o envolvimento, mesmo se induzido das bases na revolução cultural - um trauma que, como vimos, às vezes se compara com o grande Terror stalinista - tornou possível, quando se inverteu o vapor, encontrar um bode expiatório fora do partido. No caso do Terror stalinista, o envolvimento popular foi limitado e inteiramente orquestrado, o que obrigava a reconhecer mais claramente a responsabilidade do chefe. Essa imputação poderia, sem dúvida, preservar o partido, como em parte preservou, mas dado o envolvimento de muitos quadros no processo repressivo, de qualquer modo protegia menos o partido do que uma experiência como a da Revolução Cultural chinesa, em que a “base” e não a direção aparecia (ilusoriamente) como “culpada”. Mas é preciso acrescentar, contraditoriamente, que o lado “populista” do regime chinês facilitou, sob um outro aspecto, a luta democrática (embora esse populismo fosse imediatamente o contrário absoluto da democracia). De fato, sabe-se que uma fração - que deve ser pequena, entretanto - dos guardas vermelhos evoluiu para a democracia, e se reencontrou em Tianan’men, fenômeno chinês, que não tem equivalente russo.
Sem pretender explicar isso tudo, pode-se, aparentemente, apontar certas razões que influenciaram a diversificação dos dois processos. Eu daria bastante peso à questão nacional, e isso sob dois aspectos, que têm certa conexão interna. Se havia múltiplas nacionalidades na China,29 lá não se tinha uma situação como a da Rússia, onde a nação dominante representava apenas a metade da população do país.30 A existência de uma dualidade que se tornou polar entre a Rússia e a União foi certamente um elemento importante na ruptura; a ausência dessa dualidade na China contribuiu, inversamente, para que o processo seguisse um curso diferente, menos explosivo. Para além desse fator, o da maior unidade - em parte independentemente dele, em parte, talvez, efeito dele -, aparece o fato de que revolução chinesa de Mao representava - ou pretendia representar - muito mais do que a revolução russa de Lênin, uma revolução nacional. Na realidade, a chamada “revolução chinesa”, inclusive na sua fase pós-Mao, pode aparecer como revolução nacional, enquanto a chamada “revolução russa”, mas principalmente em sua fase final, apareceu, pelo contrário, como a dissolução de um império colonial. Bem examinadas as coisas, o segundo aspecto existe também para a China - potência que oprime o Tibet e a minoria muçulmana, entre outras -, e o primeiro aspecto ilumina também, em certa medida, a URSS, pelo menos no seu movimento ascendente. Mas subsiste uma diferença. A revolução chinesa se inscrevia - ou pretendia se inscrever - na luta secular contra os imperialismos, cuja grande figura havia sido Sun Yat-Sen.31 Isso deve ter contribuído muito para que o processo fosse menos centrífugo. E também para certas particularidades do seu encaminhamento.
A Rússia aceita a política do FMI (uma humilhação com a qual a China dificilmente concordaria). Esta teve como resultado uma verdadeira liquidação econômica da classe média, um golpe de ordem econômica na “democracia”, em proveito do grande capital. A condição para que a classe média não fosse liquidada economicamente era a de que as privatizações precedessem a liberação dos preços e não o contrário.32 É interessante analisar, nesse contexto, o sentido da intervenção americana, porque não foi apenas o FMI que impôs a sua política, o governo americano a apoiou. Os EUA, democracia capitalista, revela preferir o capitalismo à “democracia” (primeiro, em sentido econômico, isto é, dispõe-se a sacrificar as classes médias; mais adiante, a democracia também em sentido diretamente político), ou, mais precisamente, opta pelo grande capitalismo, contra o pequeno, ou pela economia de mercado sem limites, contra a economia de mercado, obedecendo a certas regras de jogo. Na realidade, como assinalam Reddaway e Glinski, a questão não se colocava em termos de capitalismo ou socialismo, mas de grande capital versus economia de mercado relativamente aberta ou igualitária.33 Deve-se dizer que o FMI e o governo americano - Clinton inclusive - jogaram não só contra a democracia (econômica, e depois também política), mas também contra eles mesmos. No final, Yeltsin entroniza Putin, cuja política foi se revelando claramente antiamericana e antieuropeia. A liquidação da democracia se completará, no plano propriamente político, com o fechamento do Congresso por Yeltsin, fechamento que os americanos também aplaudem.34
Na China, inicialmente não se liquidam economicamente as forças econômicas mais frágeis. No início, a reforma econômica, ajuda os camponeses35e os pequenos comerciantes. Mas não se pode idealizar essa reforma, ou o curso que ela toma. Por vários razões, herança burocrática do passado, diferença crônica de nível econômico entre o campo e a cidade, nascimento de novas desigualdades, o movimento não evita o êxodo rural e começa a não produzir mais efeito por volta de 1984.36 De qualquer forma, é na esteira dessa reforma (e radicalizado também pelas dificuldades do país), que o movimento estudantil se insurge contra o regime. Mas o movimento é esmagado. Segue-se um segundo momento da reforma, que beneficia claramente o grande capital e que deixa os trabalhadores sem proteção. O que ocorreu? Como escrevi anteriormente, o poder totalitário chinês dava certas garantias aos trabalhadores urbanos e rurais, em termos de emprego, de saúde, de moradia etc. No que se refere aos trabalhadores urbanos (no campo, as comunas eram os veículos de “proteção”), essas garantias valiam só para os trabalhadores empregados, e só para os trabalhadores das empresas do Estado. Ora, quando a lei de garantia foi promulgada (1951) “quase 98,6 % da população empregada trabalhava nas SOE (Empresas de propriedade Estatal)”,37e através de meios “artificiais”, o desemprego era exceção. A situação se altera com o curso que tomam as reformas, a partir dos anos 1980. A grande maioria das firmas deixa de pertencer ao Estado, de tal sorte que “82% da população trabalhadora da China” fica fora daquela “seguridade social, e da rede da previdência”,38 sem falar no crescimento da massa de desempregados. Assim, por caminhos diferentes, chegamos, mutatis mutandis, a resultados semelhantes. Mas mesmo os caminhos não foram tão diferentes. Nos dois casos, houve “repressão econômica“, e repressão política. Repressão econômica: reforma russa modelo FMI, segunda vaga da reforma chinesa. Repressão política: liquidação física do movimento de Tiananmen, fechamento do parlamento por Yeltsin (e depois, regime policialesco de Putin).
Assim, os dois regimes tomam o caminho do capitalismo, mas não exatamente o da democracia. Entretanto, eles pareciam se aproximar dela. E de fato, houve mudanças políticas importantes. Por exemplo, hoje, chineses e russos podem sair dos seus respectivos países (isto é, se tiverem recursos, e se não estiverem implicados demais nos movimentos de resistência). Só que, se houve passagem, não foi a esperada passagem do totalitarismo à democracia a que ocorreu, mas sim a do totalitarismo ao autoritarismo.39 E é nesse sentido que a questão do totalitarismo continua sendo atual. Repito: se hoje o totalitarismo em sua forma pura só subsiste praticamente num caso, o da Coreia do Norte, ele continua a interessar porque a sua morte não foi um desaparecimento puro e simples, mas uma transmutação (em termos filosóficos, seria algo que fica entre um desaparecimento + gênese, e uma simples alteração).O totalitarismo se transmutou em autoritarismo, um autoritarismo de um novo tipo: autoritarismo capitalista, e com ideologia “comunista” no caso da China; autoritarismo capitalista, com ideologia rouge-brune, comunista-fascista, no caso da Rússia. Esse autoritarismo guarda as marcas do totalitarismo de que se origina, e embora não se confunda com ele, o estudo do primeiro não pode prescindir da análise do último. O resultado, aqui e ali, é, assim, um capitalismo autoritário. Mas qual o destino desse capitalismo autoritário? Faço aqui uma pausa para repensar ainda uma vez o que significa todo esse processo, e em que sentido ele obriga a modificar alguns dos pressupostos clássicos da esquerda, ou pelo menos da sua teoria hegemônica. Volto mais adiante àquele resultado, o novo capitalismo autoritário.

fim da primeira parte (a segunda parte será publicada no próximo número de Fevereiro).

 









fevereiro #

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ilustração:Rafael Moralez



1 Agradeço a Cicero Araujo pelas observações críticas muito importantes que fez à primeira versão deste texto. Incorporei praticamente todas. Sem responsabilidade.

2 Neste texto, trato essencialmente do totalitarismo que chamei em outro lugar de “totalitarismo igualitarista” (igualitarista e não igualitário), o chamado “totalitarismo de esquerda”, que se distingue do “totalitarismo ‘inigualitário’”, o da direita, que é o nazismo. Para simplificar, escrevo muitas vezes apenas “totalitarismo” em lugar de “totalitarismo igualitarista”. Assinalarei ao leitor, quando me referir ao totalitarismo em geral, ou ao outro totalitarismo.

3 Nada mais característico a respeito do que o texto em que Marx critica Bakunin, a propósito da preocupação deste com o destino de um Estado pós-revolucionário. Marx não vê problema: num governo revolucionário, os indivíduos que assumissem funções administrativas seriam sempre controlados pelos trabalhadores, sua posição seria semelhante a “de um manager numa fábrica [organizada em] cooperativa de trabalhadores” (Marx, Werke, v. 18, p. 635, ver o meu A esquerda difícil, Perspectiva, 2007 p. 237). Não mais do que isso. Marx afirma - o que é uma maneira de liquidar a discussão - que estaríamos diante de uma situação em que “(...) o proletariado (...) obteve força e organização suficiente para utilizar meios de coerção universais contra [as classes privilegiadas] (...)” (Marx, id, 634)). Bakunin precisa que só uma minoria poderia exercer o poder e não “o conjunto do proletariado”. Porém, essa minoria, continua Bakunin, assumindo um momento o que poderia ser um argumento do adversário (na realidade, Marx quer evitar toda ideia de vontade ou de representação popular, refugiando-se no modelo problemático da “vontade efetiva da Cooperativa” (Kooperativ)), seria “constituída de operários”. Argumento que Bakunin comenta, excelentemente: “Sim, com licença, [seria constituída] por ex-trabalhadores(grifo de RF), os quais entretanto, no momento em que se tornaram apenas representantes ou governantes do povo, deixaram de ser trabalhadores (grifo de Bakunin)“ (ver Marx, ib., p. 635). Sem idealizar a figura de Bakunin, cuja teoria política tem aspectos desastrosos, é indiscutível que ele é muito mais realista do que Marx no que se refere à reflexão sobre o destino incerto dos governos pós-revolucionários. Marx se refugia em uma espécie de “robinsonada” otimista e ilusória.

4Como assinalei em outro lugar (ver “Em torno da insurreição de 1917 e dos seis primeiros anos do poder bolchevista”, revista Fevereiro, números 2 e 3, dezembro 2010, junho 2011), com base no trabalho da história crítica do movimento de outubro (ver, a respeito, principalmente Orlando Figes, A People’s Tragedy, the russian revolution 1891-1924, Londres, Pimlico, 1996, trad. portuguesa de Valéria Rodrigues, A tragédia de um povo, a revolução russa 1891-1924, Rio de Janeiro - São Paulo, Editora Record, 1999); e os livros e artigos de Nicolas Werth), - a ideia de que o movimento de outubro (novembro) de 1917 na Rússia foi uma “revolução proletária”, é problemática. Há primeiro um problema com o número dos participantes efetivos dessa “revolução proletária”. Dir-se-á que o argumento é frágil, que o número não importa, e que é necessário definir “revolução”. Entretanto, sem me limitar a esse argumento, creio que ele interessa, se partirmos não da discussão da simples tese de que outubro foi uma revolução, mas da discussão da tese mais precisa, e ultra consagrada, a de que foi uma revolução proletária. É que aí já aparece o fenômeno do “substituísmo” do proletariado. Uma minoria, uma pequena minoria de gente ligada a um partido, opera uma espécie de golpe de Estado, rebatizado “revolução proletária”. Na realidade, só uma parcela minúscula do proletariado russo de Petrogrado (uns 15 ou 20 mil, talvez, em perto de 400 mil; para esse último dado, ver Robert B. Mackean, St Petesburg Between The Revolutions, workers and revolutionaries, june 1907-february 1917, New Haven e Londres, Yale Un. Press, 1990 p. 327, 328).) interveio nele, e a participação total que nele tiveram as “massas” de Petrogrado, em geral, é também pequena (uns 25 cinco ou 30 mil ao todo, segundo Trotski, para uma população global de soldados e operários de ordem de 500 ou 600 mil, ver Figes, op. cit., p. 493) (Se considerarmos a porcentagem dos operários de todos o país, que participaram da insurreição em todas as cidades em que ocorreu algum movimento, teremos um resultado ainda mais esmagador). Para que se tenha um elemento de comparação, em fevereiro, 200 mil operários saíram às ruas de Petrogrado. Sem dúvida, é verdade que, a partir de junho/julho de 1917, os bolcheviques começam a ter grande prestígio entre os proletários, e que, em setembro, eles se tornarão majoritários no soviete de Petrogrado. Porém esses fatos não significam apoio, por parte do proletariado, a um movimento que não se limitou a substituir o governo provisório, ultra desmoralizado, por um governo “do soviet” (o qual representava a vontade popular dominante), mas que leva ao poder um partido único - embora os socialistas revolucionários de esquerda venham a participar dele por um breve período -, e que muito cedo liquida, pelo contrário, toda autonomia dos soviets (Werth fala em “quiproquo” de outubro). De resto, o apoio do proletariado ao bolchevismo não dura mais do que uns poucos meses, as eleições para os soviets locais o comprovam. Por isso mesmo, o poder bolchevista intervém pela força, por toda parte, impondo os seus representantes e impedindo a posse dos eleitos, ou pondo em prática medidas similares ou ainda mais brutais. (Ver a esse respeito, principalmente o livro de Vladimir N. Brovkin, The Mensheviks after october, socialist opposition and the rise of the bolshevik dictatorship, Ithaca e Londres, Cornell University Press, 1991 (1987)).

5 “(...) são os comunistas, na origem uma elite exterior ao campesinato, que conceberam, fomentaram e conduziram essa revolução. Que eles a tenham feito triunfar com a ajuda do campesinato não faz da revolução chinesa uma revolução camponesa. Os camponeses participaram de uma revolução empreendida e dirigida por outros, o que pouco a pouco modificou suas concepções e seu comportamento (...)” (Lucien Bianco [com a colaboração de Hua Chang-Ming], Jacqueries et Révolution dans la Chine du XXe Siècle, Paris, Éditions de la Martinière, 2005, p.454, grifo de RF).Ver também, do mesmo autor, La Révolution Fourvoyée, parcours dans la Chine du XXe siècle, préface de Marie-Claire Bergère, présentation de Michel Bonnin, Paris, Éditions de l‘Aube, 2010. No prefácio da sinóloga Marie-Claire Bergère, pode-se ler: “A revolução chinesa é realmente uma revolução camponesa, os camponeses foram os seus principais atores e os grandes beneficiários como repetiu frequentemente a história oficial? Essas questões preocuparam Lucien Bianco desde o início das suas pesquisas e a resposta - negativa - que ele lhe dá se encontra na sua obra Jacqueries et révolution (....)” (M-C. Bergère, in Bianco, La Révolution Fourvoyée, op. cit., p. 14, grifo de RF). Trato mais extensamente desse problema num texto, ainda inédito, “O movimento que levou os comunistas chineses ao poder foi uma revolução camponesa?” (2008).

6 Ver Alain Besançon, Les Origines intellectuelles du léninisme, Paris, Gallimard, 1996 (1977).

7 Ver Barrington Moore Jr, Social Origins of Dictatorship and Democracy, Boston, Beacon Press, 1966, p. 457-458, n. 3.Les Origines sociales de la Dictature et de la démocratie, trad. francesa de Pierre Clinquart, Paris, La Découverte/ Maspero, 1983, p. 365, n. 3.

8 Claro que, nisso tudo, o significado propriamente político era essencial: “proletariado” remetia ao partido, considerado como seu representante.

9 “Mesmo hoje, é quase impossível descrever o que efetivamente aconteceu na Europa em 4 de agosto de 1914. Os dias que precedem a primeira Guerra Mundial, e os que a sucedem, estão separados não como o fim de uma antiga época (period) e o começo de uma nova, mas como o dia que precedeu e o dia que sucedeu à explosão (...) (...) Antes que a política totalitária atacasse de forma consciente, e em parte destruísse a própria estrutura da civilização europeia, a explosão de 1914 e suas graves consequências [em termos de] instabilidade abalaram suficientemente a fachada do sistema político da Europa, pondo a nu a sua estrutura (frame) secreta”, Hannah Arendt, The Origins of Totalitarism, San Diego, New York, Londres, 1967 (1951), p. 267, grifos de RF. Interessa-nos aqui, principalmente, os efeitos que teve a guerra sobre a ideia de “direitos do homem”, e a leitura que Arendt faz desse fenômeno. No mesmo contexto, referindo-se aos refugiados, Arendt escreve “que, uma vez privados dos seus direitos humanos (human rights)”, eles eram “sem direitos (rightless)”, e o título do capítulo em que se insere toda essa passagem é “o declínio do Estado-Nação e o fim (end) dos direitos do homem”, tema de que ela trata ex-professo, no tópico “as perplexidades (perplexities) dos direitos dos homens”. Certos autores que professam algo assim como uma filosofia anti-humanista tentaram levar água para o seu moinho a partir dessas considerações de Arendt sobre os direitos do homem. Tal recuperação é, no melhor dos casos, um mal-entendido. Arendt trata da fragilidade desses direitos na situação do após-guerra. Mas falar da fragilidade de um direito não é contestá-lo e pode significar até o contrário. (Do mesmo modo, utiliza-se às vezes a fragilidade da democracia na república de Weimar, para contestar todo projeto democrático, quando o antidemocratismo da direita, mas também, mesmo se de outro modo, o da esquerda, estão precisamente entre as causas importantes da derrocada daquela república). Que não há no texto de Arendt uma crítica dos direitos do homem, em todo caso, certamente, que, não há nesses textos nenhuma crítica anti-humanista, dos direitos do homem, fica claro pela leitura de certas passagens, como a seguinte: “(...) esse tipo de propaganda factual [Arendt se refere à política inicial de expulsão dos judeus que visava alimentar o preconceito antisemita nos países vizinhos. RF] funcionava melhor do que a retórica de Goebbels, não só porque instaurava os judeus como a borra da terra, mas também porque a inacreditável má condição (plight) de um grupo crescente de inocentes, era como que a demonstração prática [da validade] das afirmações cínicas dos movimentos totalitários de que algo como direitos humanos inalienáveis não existe, e de que as afirmações em contrário das democracias eram simples preconceitos, hipocrisia e covardia diante da cruel majestade do mundo novo” (Hannah Arendt, The Origins of Totalitarism, op. cit., p. 269, grifos de RF). A frase com que se encerra essa passagem vai na mesma direção: trata-se de um juízo sobre aquilo a que de fato foram reduzidos os direitos do homem, não um juízo sobre a sua legitimidade.

 

 

10 O socialismo “reformista” que, em parte, se compromete com a guerra teve de enfrentar uma contradição. Ele que propunha exclusivamente meios políticos pacíficos de luta, de repente viu-se apoiando uma guerra de uma violência inédita. O Trotski pré-bolchevique, adversário do reformismo, aponta com agudez e certa ironia a contradição. Bernstein apoia a guerra no primeiro momento, mas depois, impressionado com os seus horrores, muda de posição.

11 Ver a respeito, onde se encontram também indicações bibliográficas, o meu texto “Em torno da insurreição de 1917 e dos seis primeiros meses do poder bolchevista“, art. cit. E além do livro de Figes, já referido, ver principalmente o clássico The origin of The Communist Autocracy, political opposition in the soviet state, first phase 1917-1933 de Leonard Schapiro, Londres, The London School of Economics and Political Science (Un. of London), G. Bell and Sons, Ltd, 1955. Sobre o partido bolchevique e suas mutações, ver Robert Service, Bolshevik Party in Revolution, a study in organisational change, 1917-1923, Londres e Basingstoke, 1979.

12 Sobre o terror nesse período, ver Jacques Baynac, em colaboração com Alexandre Skirda e Charles Urjewicz, La Terreur sous Lénine, Paris, Le Sagittaire, 1975; e Serguei Melgounov, La Terreur Rouge en Russie, 1918-1924, traduzido do russo por Wilfrid Lerat, revisto e corrigido por Antoinette Roubichon-Stretz, prefácio de Georges Sokoloff,Paris, Éditions des Syrtes, 2004 (1927).

13 Insisto que “objetiva”. De forma alguma dever-se-ia concluir do presente texto, que, para mim, Lênin e Stalin, e, menos ainda, Trotski e Stalin, tenham sido, como indivíduos, “vinhos da mesma pipa”. Eles foram quase opostos. A esse respeito, convém reler as páginas que o historiador trotskista Pierre Broué, consagra, no seu Trotsky (Paris, Fayard, 1988), à luta dramática de Trótski contra o stalinismo internacional mais a extrema-direita, nos anos 1930. E entretanto, não se pode deixar de concluir não só que o antidemocratismo radical que professava o leninismo preparou o campo para o stalinismo, como, mais do que isso, que o leninismo foi o primeiro a pôr em prática alguns dos piores métodos da era stalinista.

14 Sobre o “Grande Salto para frente”, ver o livro de Frank Dikötter Mao’s Great Famine, the history of China’s most devastating catastrophe, 1958-1962, New York, Walker, 2010. E Yang, Ji Sheng, Stèles, La grande Famine en Chine, 1958-1961, trad. francesa de Louis Vincenolles e Sylvie Gentil, Paris, Seuil, 2012 (2008) (há também uma versão inglesa), livro clássico, cujo autor, um jornalista que rompeu com o sistema, é considerado às vezes o Soljenitsine chinês. Na versão original, o livro tinha mais de mil páginas: a profusão de “histórias” (terríveis) é tal que, com relação a certos capítulos, o leitor é tentado a reduzir um pouco, mesmo a versão condensada. Mas a obra é certamente muito importante e F. Dikötter se engana ao subestimar o significado dela, como assinalou um crítico.

15 Sobre a revolução Cultural, ver principalmente Roderick Macfarquhar e Michael Schoenhals, Mao’s Last Revolution, Cambridge (Massachussets) e Londres, 2006.

16 Sobre a grande fome camponesa ver o livro, já antigo, de Robert Conquest, Sanglantes Moissons, la collectivisation des terres en URSS, trad. francesa de Claude Seban, 1995 (1986) in Robert Conquest, La Grande Terreur, les purges staliniennes des années 30, précédé de Sanglantes Moissons, la collectivisation des terres en URSS, Paris, Robert Laffont, 1995; também, Nicolas Werth, “Un État contre son peuple” in Stéphane Courtois, Nicolas Werth, Jean-Louis Panné, Andrej Paczkowski, Karel Bartosek, Jean-Louis Margollin, Le Livre noir du Communisme, crimes, terreur, répression, Paris, Robert Laffont, 1997. A introdução de Courtois provocou uma discussão entre os autores do livro. Ver também os trabalhos do historiador italiano A. Graziosi, como The Great Soviet Peasant War, Ukrainian research Institue, Harvard University, 1996 (indicado por Werth, em “Un État contra son Peuple“, in op. cit., p. 158, n.1).

17 Sobre o Grande Terror, ver Robert Conquest, La Grande Terreur, les purges staliniennes des annése 30, edição revista e aumentada, trad. francesa de Marie-Alyx Revellat e Claude Seban, 1995 (1968), in Robert Conquest La Grande Terreur, les purges staliniennes des années 30 (précédé de Sanglantes Moissons....), op. cit., 1995; Nicolas Werth, L’Ivrogne et lal marchande de fleurs, autopsie d’un meurtre de masse 1937-1938, Paris, Tallandier, 2009; e, do mesmo autor, La Terreur et le Désarroi. Staline et son système, Paris, Perrin, 2007; do mesmo autor, 1936-1938, Les Procès de Moscou, Paris, Éditions Complexes, nova edição revista e aumentada, 2006 (1987).

18 Mesmo se Trotski falava também em “ditadura totalitária”. Ver a respeito, o Trotksy de Pierre Broué, op. cit., p. 896. Cf. Id, p. 932-933 e 940.

19 Ver a respeito, Archie Brown, The Rise and Fall of Communism, Londres, The Bodley Head, 2009, p. 79 e 80. Pelo menos no que se refere à revolução húngara, a oposição entre uma primeira fase, em que a influência é mais de ordem imitativa do que coercitiva, e de uma segunda em que se trata do contrário, é relativa. Os bolcheviques se interessam de perto pela revolução húngara. Basta dizer que, entre 21 de março e 1º de Agosto de 1919, datas extremas da “república soviética”, “nada menos do que 318 mensagens são trocadas entre os comunistas húngaros - quase invariavemente na pessoa de Bela Kun - e os russos, muitas vezes Lênin e Tchitcherin” (Miklós Molnar, From Béla Kun to János Kádár, seventy years of hungaian communism, trad. de Arnold J. Pomerans, N.York/ Oxford/ Munich, Berg, 1990, p. 234, n. 22).

20 Em geral, as 21 condições da Terceira Internacional foram aceitas só por minorias dos partidos sociais democratas. Em alguns casos, como o da Noruega ( os socialistas noruegueses voltariam atrás alguns poucos anos depois), e principalmente o da França (a ruptura se deu no Congresso de Tours, em 1920), o grupo cisionista pró-terceira internacional, foi majoritário (ver a respeito Donald Sassoon, On Hundred Years of Socialism, the west european left in te twentieth century, New York, The New Press, 1996, p. 33 e s.). Na Alemanha, já se havia constituído um partido comunista (no final de 1918, a partir da Liga Espartaquista de Luxemburgo e Liebknecht) antes do congresso de fundação da terceira Internacional (março de 1919). Por outro lado, a política chauvinista do partido social democrata produzira uma cisão ainda durante a guerra, com a fundação do Partido Social Democrata Independente, de que participam tanto o centro kautskista como a extrema-esquerda. Em outubro-dezembro de 1920, Zinoviev, enviado especialmente ao congresso dos sociais democratas independentes - Martov representava a posição oposta, mas, doente, enviou sua intervenção, que foi lida por um outro -, graças a uma verdadeira maratona oratória, conseguiu convencer a maioria do partido independente a aderir à terceira internacional. Fora um pequeno grupo, a minoria voltou ao antigo partido social-democrata (dito “majoritário”, em oposição ao “independente”). Tratei desses processos de ruptura no meu texto “Para um balanço crítico das revoluções (e de alguns movimentos de reforma) do século XX [“A esquerda onde está?””“, in A esquerda difícil, em torno do paradigma e do destino das revoluções do século XX, e alguns outros temas, São Paulo, 2007 (ver principalmente, em torno da página 226).

21 Sucessivamente, Voitinsky, Maring (o holandês Sneevliet, futuro dissidente trotskista que viria a ser fuzilado pelos nazistas) e Borodin.

22 Grande movimento político que começa com manifestações de protesto contra a decisão da conferência de Versailles de entregar ao Japão antigas concessões alemãs na China.

23 Arif Dirlik, The Origins of Chinese Communism, New York e Londres, 1989, p. X.

24 Id, p. 153. “Voitinsky (...) foi responsável não só por dar início à organização comunista na China, mas ele a acompanhou (saw) na sua infância, mantendo os comunistas no caminho reto e estreito do bolchevismo. Mais ainda, a organização comunista, desde mesmo os seus começos ficou sob a direção do Komintern, que fixou o seu curso através dos anos 20. E, finalmente, foi sob a direção direta do Komintern que o marxismo se enraizou na China; os marxistas começaram a se distinguir eles próprios dos outros socialistas com os quais haviam cooperado de perto antes da chegada de Voitinsky” (id., p. 193).

25 Ver Orlando Figes, The Whisperers, private life in Stalin’s Russia, Londres, Allen Lane, impresso por Penguin Books, 2007, p. 98.

26 Londres, New York....., Bloomsbury, 2013.

27 De resto, a violência não começa com a tomada do poder. Ler em The Tragedy of Liberation... ( op. cit., principalmente o cap. 9, p. 174 e s.)a história dos simpatizantes, frequentemente intelectuais, da revolução maoísta, que fazem a viagem até Yan’nan, para viver em “região liberada”. Eles iriam encontrar um regime opressivo, sangrento, que impunha a educação dos intelectuais - da qual fazia parte assistir ou mesmo praticar atos violentos contra os “inimigos de classe” - e a aceitação de uma ideologia primária, com sacrifício do indivíduo e da sua obra, se fosse o caso.
Excurso teórico sobre o “contrato totalitário”
O que faltaria - se falta alguma coisa - ao livro muito impressionante de Dikötter? O “lado positivo” da política de Mao? Ce serait trop dire. “Lado positivo” é uma expressão pesada demais e insinua a existência de pelo menos um relativo equilíbrio entre dois “lados”. Entretanto, teria sido necessário por também em evidência (o que não ocorre efetivamente no livro de Dikötter, mesmo se esse aspecto não está inteiramente ausente), o lado “welfare State” do regime de Mao (Ver a esse respeito, incluindo o tema da célebre “tijela de arroz de aço” - as garantias em termos de emprego - o livro de Joe C.B. Leung e Richard C. Nann, Authority and Benevolence, social welfare in China, Hong-Kong, The Chinese University Press, 1995. Um título melhor para o livro, seguindo aliás o que nele se encontra, seria, sem dúvida, Authoritarianism and Benevolence...).Por surpreendente que isso possa parecer, à luz do que se sabe através de livros como o do universitário holandês (Dikötter) junto com outras obras, estas sobre os traços “welfare” do regime maoísta, uma prática hiper-autoritária e, depois, genocida, coincidia com uma política que promovia, dentro de certos limites, certa proteção social. Mas é precisamente essa coexistência insólita que caracteriza os Estados totalitários, na sua forma pura. Existe algo assim como um “contrato social totalitário”, que consiste no seguinte: o Estado oferece um mínimo necessário em termos do comer e do beber (mais um mínimo de assistência médica e de alojamento), mas em troca disto - mutatis mutandis, como acontece em algumas das formas não capitalistas ­- renuncia-se a todos as liberdades sociais e políticas. A acrescentar, embora isso não valha para todos os governos “comunistas” que o século XX conheceu: aceita-se a possibilidade de se tornar vítima anônima da fúria genocida do Estado. Isso tudo, evidentemente, vale só como definição “pura” do totalitarismo. No plano da efetividade, só se tem uma aproximação. Observe-se o quanto esse modelo, se comparado com a forma “anterior”, isto é, à forma capitalista, instaura uma história pendular. Ganhar-se-iam garantias que no capitalismo não existem. Mas perdem-se aquelas que ele outorgava. A partir daqui, há duas coisas a desenvolver: 1) mostrar como e por que esse troca, mesmo se fosse realizada em forma pura é ilegítima; 2) mostrar a evolução desse modelo, que, mesmo se em forma muito imperfeita e parcial, ocorreu, em alguma medida, na China (e, de um outro modo, também em parte, na Rússia). Isto é, mostrar aonde foram parar os dois atos “recíprocos” do contrato totalitário. Algo desse desenvolvimento aparecerá mais adiante, ainda nessa primeira parte. Eu o retomarei, de forma mais ampla, na segunda parte, a ser publicada no próximo número de Fevereiro.

28 Foi Cicero Araujo quem insistiu sobre esse aspecto, depois da leitura da primeira versão deste artigo. Nela, a diferença entre os destinos dos dois partidos aparecia, mas não com o necessário destaque.

29 Archie Brown, The Rise and Fall of Communism, op. cit., p. 606.

30 Segundo Archie Brown, a China reconhece 55 “grupos étnicos” (ver Archie Brown, The Rise and Fall of Communism, op. cit. p. 317.

31 Ver Archie Brown, The Rise and Fall of Communism, op. cit., p. 457.

32 Sobre o conjunto dos atores da revolução chinesa, considerando todo o processo - Sun Yat-Sen, Chang Kai-Shek e Mao, pesa um forte ressentimento, uma espécie de cicatriz histórica, que é a das humilhações sofridas pela China, humilhações impostas pelas potências ocidentais. Na Alemanha pré-nazista e nazista, eu observei, o impulso de revanche é dominante. Deseja uma revanche,e confia nela, só quem tem a memória de vitórias relativamente recentes; no caso chinês, essas vitórias existiram, mas estavam muito distantes no tempo. O que não impedirá que, mais tarde, o poder vá explorar a carta da China, país mais avançado do mundo, que só perdeu a primazia num período curto em torno do século XIX.

 

33 Ver a respeito, Peter Reddaway & e Dmitri Glinski, The Tragedy of Russia’s Reforms, market bolschevismo against democracy, Washington, D.C., United States Institute of Peace Press, 2001, p. 270, 271, grifos de RF: “(...) o procedimento de Gaidar [Yegor Gaidar, primeiro ministro e depois ministro da economia, o pai da “terapia de choque” liberal; o procedimento dele ia a contrapelo de um plano anterior, dito dos 500, RF] destruía as economias da classe média do dia para a noite, deixando-a sem meios para adquirir o que seria privatizado mais tarde”. A liberalização dos preços é do início de janeiro de 1992; um plano de privatização é aprovado em junho do mesmo ano. A distribuição (derrisória, em grande medida) dos “cheques de privatização” começa em outubro (ver Rémi Peres, Chronologie de la Russie au XXe siècle, Paris, Vuibert, 2000, p. 190 e s.) “Não é dificil enxergar por que o grupo de Volsky [“o lider do grupo industrial conservador”, RF] tinha um vivo interesse pela sequência e a lógica das reformas, que Gaidar escolheu: primeiro a liberação dos preços, privatização depois. (...). De mesmo espírito que esse “contrato social entre [os membros] da elite, era o programa de privatização de Chubais [ministro da economia sob Yeltsin, RF] que, em termos práticos, era tão conservador que ele praticamente excluiu toda substituição dos “top managers” no decorrer da privatização” (id., p. 289, grifos de RF). - O livro de Reddaway e Glnski foi objeto de várias resenhas, na imprensa internacional, algumas delas bastante críticas. Frequentemente, pergunta-se sobre a possibilidade objetiva de que a reforma tivesse seguido outro caminho. Ver por exemplo, Robert Cottrell, “Russia: was there a better way?”, New York Review of Books,vol. 48, n. 15, 4 de outubro de 2001.Às vezes, caricatura-se o livro (é o caso de um crítico que, creio ser Walter Laqueur, embora não tenha conseguido localizar a referência), como se a leitura que ele oferece da reforma russa opusesse o ideal da circulação simples de mercadorias ao da produção capitalista, o que evidentemente não é o que está no texto.Já uma obra, que é anterior ao livro, mas cita um artigo mais antigo de Reddaway sobre o mesmo tema, defende teses convergentes: Collision and Collusion, the strange case of western aid to eastern Europe 1989-1998, (N. York, St. Martin’s Press, 1998), de Janine R. Wedel (ver principalmente o capítulo 4); obra que o resenhador da NYRB conhece. Quaisquer que sejam as dificuldades para chegar a um juízo rigoroso a respeito, deve-se dizer que a argumentação de Reddaway e Glinski é pensável no plano econômico; e, no plano político - contando com a visão retrospectiva de mais de uma década -, ela se revela mais objetiva do que a dos seus críticos, inclusive na perspectiva que parece sugerir sobre o que deveria ser a continuação do processo. Putin, o herdeiro consagrado de Yeltsin, apenas desponta no livro dos dois autores (livro que é de 2001), mas fica bem claro que eles pelo menos não têm nenhuma ilusão em relação ao atual homem forte da Rússia, o que nem sempre se pode dizer dos seus críticos.

34 “(...) acreditamos que considerar o colapso econômico soviético em termos de luta entre o capitalismo e o socialismo impede uma compreensão genuína da tragédia [que constituem] esses acontecimentos. (....)
(...) De fato, a luta real não se travou entre a questão abstrata do capitalismo vs socialismo, mas em torno da questão de quais forças sociais viriam a ser os protagonistas do desenvolvimento capitalista e que regras de jogo aplicariam.” ( Reddaway e Glinski, op. cit., p. 268).

35 Eis como Reddaway e Glinski definem as forças em presença. (Creio que é necessário fazer, aqui, uma longa citação): “A coalisão democrática que constituía a maioria dos deputados no parlamento russo e nos sovietes regionais fazia campanha, de modo mais ou menos consistente, em favor da participação da classe média na transição econômica e especialmente na desnacionalização da indústria. O programa democrático que sublinhava a necessidade de um campo de forças honesto (a level playing field), no processo de privatização, teria proposto uma intervenção governamental forte e ativa, de modo a reduzir as desigualdades existentes entre, por um lado, os cidadãos soviéticos comuns, e, por outro, a nomenklatura dirigente, a máfia comercial, as companhias do Komsomol que tinham privilégios (privileged), e os managers das firmas industriais. (...) Esta [última] coalisão era constituída por gente que tinha conseguido acumular fortunas imensas através de meios ilegais, operando ou nos altos escalões da elite dirigente ou entre os burocratas de nível baixo e os praticantes do mercado negro. Era para eles que a genuína revolução democrática, que pressupunha a redistribuição da propriedade, era a ameaça mais imediata. Portanto, não é surpreendente que a ideologia dos “Chicago boys” e os seus aliados na sociedade soviética (os quais procuravam um cenário oligárquico para a transição para o mercado) se tornou a ideologia radical da retirada do governo em relação à economia, enquanto a sua estratégia política veio a ser a do enfraquecimento e descrédito dos soviets e parlamentos democraticamente eleitos” (Reddaway e Glinski, op. cit., id., grifos de RF.).

36 Observe-se que têm um papel importante na implementação dessa reforma - de cujo projeto haviam participado, de resto, certos intelectuais que se reuniam em “salões” autônomos - duas figuras com posições “críticas” também em matéria política, Hu Yaobang e Zhao Ziyang. O movimento de Tiananmen começa pelas manifestações em homenagem a Hu que, já afastado da direção, falecera naquela ocasião. Zhao será punido, por sua vez, pela sua atitude conciliatória em relação aos estudantes, e passará o resto da vida em prisão domicilar. Ver a respeito, e em geral, sobre os movimentos de resistência, o livro de Jean-Philippe Béja, À la Recherche d‘une Ombre Chinoise, le mouvement pour la démocratie en Chine (1919-2004), Paris, Seuil, 2004 (p. 90, sobre o papel de um grupo de intelectuais na preparação do plano de reformas).

37 Ver os dados sobre o aumento de produtividade no campo até 1984, mas não depois, em Marc Blecher, “Collectivism, contractualism and crisis in the Chinese Countryside”, in Robert Benewick e Paul Wingrove (eds.), China in the 1990s, Londres, Macmillan, p. 113. A perspectiva de Blecher, visível também no seu livro China Against the tide, restructuring trough Revolution, Radicalism and Reform, New York, Continuum, 3a ed., 2010, é, a meu ver, entretanto, excessivamente otimista em relação à experiência maoista, para não dizer mais.

38 Joe C.B. Leung e Richard C. Nann, Authority and Benevolence, social welfare in China, Hong-Kong, The Chinese University Press of Hong-Kong, 1995,p. 57.

39 Leung e Nann, Authority and Benevolence, social welfare in China, op. cit., p. 62. Na realidade, e graças também a leis posteriores, os empregados das firmas particulares não ficaram inteiramente desprotegidos. Mas a proteção é insuficiente, e não tem nada a ver com a que se oferece às firmas estatais (ver id., p. 65). Para dados mais recentes, ver o capítulo 10, “Social Policy”, de Tony Saich, Governance and Politics of China, New York, Palgrave-Macmillan, 2a edição, 2004, e a bibliografia especializada referente ao capítulo (p. 351-352).

40 Mesmo no caso da China, regime de partido único, acho, em princípio, que é mais rigoroso falar hoje de autoritarismo do que de totalitarismo. Entretanto, fatos como a recente confissão pela TV do ex-bloguista dissidente Charles Xu, na presença de dois agentes do Estado, que, no melhor estilo da época de ouro do stalinismo, depois de um “tratamento” na prisão, reconheceu todos os seus erros, nos faz às vezes considerar se o termo “autoritarismo” não é fraco demais para caracterizar um tal regime. Na falta de algo melhor, talvez “pós-totalitário” seja menos mal. Quanto ao caso Xu, recomendo-o à meditação dos entusiastas da nova China, os de direita como os de esquerda.