POLÍTICATEORIACULTURA ISSN 2236-2037
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Alexandre CARRASCO |
A febre do rato |
Brasil, 2011, 110 min, 35mm, P&B, dolby digital
Elenco: Hugo Gila........................................... Bira
A impressão que se tem é que não são poucas as coisas a serem ditas sobre A febre do rato (2012), de Cláudio Assis. Começo pela que me parece mais óbvia. Tomando a já notável produção de Cláudio Assis, diria, de chofre, que há um salto considerável. O último filme tem outra estatura, tanto em relação a Amarelo manga (longa de 2002) quanto a Baixio de bestas (longa de 2006). Entre um e outro dessa primeira leva, e sem querer fazer arqueologia involuntária, há algo como uma irregularidade própria de pesquisa, alternando o momento mais feliz, formalmente, de Amarelo manga, talvez mais tímido nas pretensões, e daí formalmente mais conciso e resolvido, com certo excesso retórico e formal em teste, por assim dizer, de Baixio de bestas. É evidente que há de parecer falso reduzir esse percurso a problemas de economia formal, supondo que haja em A febre do rato uma excelência formal sem precedentes. Há, igualmente e sobretudo, um investimento de conteúdo do primeiro para o segundo filme, Baixio de bestas sendo mais ousado do ponto de vista da matéria tratada do que Amarelo manga. Assim, para além de um acúmulo formal por experimentação, há também um investimento mais amplo acerca da matéria de que trata o filme, daquilo que se filma, sobre o que se filma e o que pode e o que deve ser filmado, sobre o que falaremos mais na sequência. Mas o que cabe chamar a atenção é que, olhando retrospectivamente, Cláudio Assis parece ter, e eu diria que certamente tem, um projeto artístico-estético do maior interesse e, acima de tudo, um compromisso ético com tal projeto. Cláudio Assis não se dá ao luxo de baratear suas ideias fixas.
Se marcamos essa diferença entre os dois primeiros filmes também foi para poder melhor notar o que entre eles permanece e continua: um mesmo olhar da máquina-cinema, uma continuidade no modo de apropriação e de produção da imagem, importante e decisiva. Podemos tomar esse olhar de Cláudio Assis também como ponto de partida para A febre do rato. Há lá também a aproximação e a textura de documentário utilizadas com a deliberada intenção de se aproximar mais e mais de um objeto que precisa ser visto, de encontrar um certo ângulo de visão e de cobertura adequado - o tal foco -, tudo isso diante de um objeto cuja característica específica parece ser a de que nunca é filmado. Um objeto inédito. Alguém poderia perguntar: por que nunca filmado? A resposta poderia dar muitas voltas em torno de Deus e nossa época. Mas vamos resumir: porque o gênero “novela das oito” ou “série cabeça da tv aberta” não comporta os objetos de predileção de Cláudio Assis. Ele escapa dessas fronteiras específicas. Há um pressuposto no cinema de Cláudio Assis que é difícil não compartilhar; eu diria, arriscando, que é mesmo a sua profissão de fé: a imagem produzida em escala industrial, no Brasil, bloqueia a visão, impede que se veja. É uma imagem opaca, sem brilho, repetitiva. Essa imagem em escala industrial é, por natureza e destino, hegemônica. Não haveria de ser diferente, aliás. O que ela não vê é o que justamente o que Cláudio Assis quer mostrar. Assim, os momentos desses filmes em que a câmera captura o mundo tal como natureza morta - há um esforço de reconhecer a imanência de certas paisagens, de certos climas, mesmo de certos movimentos, isto é, reconhecer que, de fato, eles existem -, o momento propriamente documentado - corredor de pensão, olhar incerto por um mercado público, o ofício de cortar e destrinchar a carne no açougue, (tomo como exemplo recortes de Amarelo manga); e, igualmente, o cortejo fúnebre ao fundo, e o passeio da câmera pelas vielas estreitas da favela, em A febre do rato - prepara o momento propriamente dramático, levando a crer em uma espécie de pedagogia do olhar construída pela passagem de um polo a outro: amor, carne, gênero, sexo, corpo, tudo isso, no ápice do confronto dramático, irá produzir outra dramaturgia, outra sintaxe gestual, outra posição do corpo e do desejo. Em suma, tudo não apenas pode ser visto, mas, principalmente, deve ser filmado e, além disso, reconhecido como tal. Claro que essa descrição feita em abstrato muito pouco coisa explicaria do impacto imagético dos filmes de Cláudio Assis. Restaria acompanhar a ação propriamente dita. Mas essa forma de tomar e dar corpo à imagem, tomando o termo em sentido estrito, é de onde parte a câmera stylo de Cláudio Assis. Se esse parece ser o fim a que se destina o olhar de Cláudio Assis, não escapamos da consequência: e aí cabe todo outro trabalho do imaginário. O que se imagina quando se vê outra paisagem? Pois em cinema não se trata apenas do que filmar, mas do que se pode imaginar a partir do que foi filmado. Essa máxima Cláudio Assis sabe, bem sabida. Daí uma implicação que não é gratuita: paradoxalmente, o esforço de Cláudio Assis em documentar um certo objeto, uma certa textura e clima está diretamente ligado à potência de imaginar inscrita no dito objeto. Ou por outra (e isso é elevado a muitas potências em A febre do rato): esse substrato documentado é o que dá potencia ficcional aos filmes de Cláudio Assis. Logo, o cuidado em filmar, diria, meticulosamente (mas essa não parece ser a boa palavra), em recuperar a densidade aveludada do nosso prosaísmo, já massacrado e envernizado pela televisão, é um problema não exatamente de realidade, mas de ficção. A essa dificuldade formal, filmar o que não aparece, em situação normal de temperatura e pressão, seguir-se-ia facilmente a caricatura de péssimo gosto, afeita ao pseudo-humor tão em voga no Brasil, a maneira mais eficaz e consagrada de contornar o problema. Aqui, naturalmente, não cabe essa solução. Aqui, a aproximação se dá pela via de uma “câmera artesanal”, para não dizer “câmera artesanato”, e tem, também, um propósito asséptico: limpar o olhar desses mil anos de ditadura, da intensiva colonização televisiva do imaginário. Talvez mais do que em qualquer outro lugar, a televisão, no Brasil, tem o seríssimo compromisso de colonizar o imaginário. Não seria demais dizer que Cláudio Assis arma um guerrilha contra essa sintaxe, decoro, figurino, interpretação e gestual da novela das oito, o nosso senso comum imagético. Fico tentado a abrir um parênteses largo (nas consequências): se no Brasil a última ditadura militar ganhou - reconheçamos, nós que perdemos - ao constituir, senão uma maioria social, pelo menos algo próximo disso - basta ter o desagradável prazer de ler as páginas de opinião dos jornais de grande circulação para se fazer essa constatação óbvia -, o efeito disso, no imaginário, passa pela hegemonia formal da tal “novelas das oito” (hoje parece que é às nove). O tal “padrão bolo de qualidade” é cooptação e sujeição do imaginário. Sem mais nem menos. Raríssimo é o cinema local que não é refém formal dessa narrativa. Mas aqui tudo tem de ser diferente. Ocorre que essa disposição não é voluntarista no mal sentido do termo. É, sim, voluntarismo de artista, pesquisado, que enfrenta dilemas formais e parece, de fato, não se resignar. Recapitulando: sendo verdade a fórmula, aquilo que se vê não se filma (ao menos facilmente); um dos problemas formais que enfrenta Cláudio Assis é justamente filmar aquilo que ele vê. E, para esclarecer, dando mais uma volta no fuso, não se trata de filmar essa “miséria tão brasileira”, essa “absurda injustiça” e toda série de lugares comuns (muitos, naturalmente, verdadeiros, mas nem por isso críticos) da boa consciência de classe média brasileira (ultimamente, um pouco em falta): porque isso também já foi reduzido a clichê e esvaziado de seu conteúdo pela produção em massa de nossos lugares comuns, inclusive. Há favelas cenográficas (cenográficas e reais) para todos os gostos, de filme de “bandido e mocinho” até “romeu e julieta do morro”. Não se trata disso. O projeto de Cláudio Assis passa por outra via, mais difícil. Diria, abusando bastante de uma língua estranha, que esse “popular porta bandeira e estandarte de ouro” não está posto no cinema de Cláudio Assis, isto é, não é tomado à superfície, nem como slogan nem como propaganda para captação de recursos públicos. Ele, o popular, permanece pressuposto: é o invisível daquilo que ele põe visível na tela. Há uma evidente pesquisa pelo popular em seu cinema, muito presente também em A febre do rato. Mas esse popular é menos uma figuração e um figurino e mais uma espécie de energia fora da ordem, vigorosa e paradoxalmente estéril. Socorro-me do texto canônico de Antônio Candido: essa pulsão na desordem e seu arremate, a tal “dialética da malandragem”, mediação e inteligência popular por excelência, de quem está terrível e violentamente abandonado à própria sorte (sem ordem social que o integre, cabe dizer), e, além do mais, deve se submeter ao imperativo de viver e viver, normalmente, sob sujeições de toda ordem; esse esforço para “separar o certo do errado” em condições muitíssimo adversas parece ser a pulsão original de A febre do rato. De minha parte, que se diga, sem nenhum elogio (não se trata, e disso nunca se tratou) a esse charme dialético tão nosso: estamos falando de esgoto a céu aberto, parede de madeirite e a impressionante produção de uma gigantesca mancha urbana insalubre, violenta, superpovoada e, sob muitos aspectos, regressiva, em todas nossas regiões metropolitanas, tudo isso, bem claro, engatado também a reproduzir o nosso padrão de ordem para os boas vidas dos trópicos. Digamos que este é o nosso ponto de partida, que este é o ponto de partida de A febre do rato. Salto um tanto do miolo do filme para tratar imediatamente de seu final (o terço final). para as coisas que não se realizam por excesso; para as coisas que não são por não terem cabimento. Escrevi meu nome em um sacrário que se encontra ao lado da geladeira e próximo aos pequenos frascos de remédio, junto a isso tem uma estante e sob essa estrutura um espelho que reflete o rosto do homem com quem cotidianamente tu compartilhas o dia e faz coisas diferentes (...) *** E vi todas as mortes
Há que se fazer uma última pausa. Não sei se seria o caso de elogios a Cláudio Assis, à equipe de A febre do rato, à atuação pungente de Irandhir Santos, ao próprio filme. Penso que A febre do rato dispensa essas gentilezas. O que espero, enfim, é que sobreviva nas latas, cheias de rolos de película de trinta e cinco milímetro de acetado e gelatina de prata, sob a etiqueta A febre do rato, uma esperança máxima, verdade das verdades, o nosso sumo direito de errar, que entre todos, é o cúmulo do elogio que se pode fazer à imaginação - só a imaginação erra, mas sem ela não há pensamento: direito de errar, para dias melhores que, quem sabe, virão.
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fevereiro #
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ilustração:Rafael Moralez