revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

Ruy FAUSTO

Sobre as manifestações populares no Brasil em junho de 2013

 


As grandes manifestações populares que começaram em São Paulo com o protesto contra o aumento das tarifas dos transportes coletivos pegaram de surpresa políticos, jornalistas, intelectuais, e o país em geral.  Como aconteceu com outros movimentos, pouca gente imaginava que houvesse condições para uma explosão como essa. Para não prolongar essa intervenção, não vou discutir as causas imediatas das manifestações, mas pensar um pouco o que o movimento significa ou parece significar. E esboçar algumas ideias, sobre o rumo que, a meu ver, seria desejável que ele tomasse.

Não é fácil opinar sobre essas mobilizações. Há muita coisa nova, e muita complexidade na situação. Pode-se dizer, em geral, que os discursos clássicos são bem inoperantes para dar conta do que está acontecendo. Por outro lado, nem sempre é fácil indicar as novas significações, e principalmente as alternativas práticas que elas sugerem. Este texto foi reescrito muitas vezes, aproveitando as inúmeras observações críticas que fizeram os amigos, muitos dos quais participaram das manifestações. Fui dispondo progressivamente de uma informação mais ou menos detalhada do que aconteceu e acontece, e assim, foi preciso ajustar, sucessivamente, o texto a esses novos dados. Daí a composição irregular do conjunto.

Em primeiro lugar, nos perguntamos: o que representa o movimento, ou, se se preferir, o que representaram as mobilizações? As pesquisas indicam que a massa mobilizada é constituída principalmente por jovens de classe média. Perguntados pelos seus valores e pelos objetivos da sua luta, foram dominantes as respostas em favor da democracia e contra a corrupção. Quanto aos objetivos mais imediatos, os entrevistados (como os cartazes exibidos, e as palavras pronunciadas) falam principalmente em melhorar o transporte público - para além da vitória que foi a anulação do aumento das tarifas - como também a situação da saúde e da educação no país, com a precisão de que se deveriam encaminhar mais recursos para esses setores do que para as despesas com os eventos esportivos anunciados.

Esses dados permitem refletir sobre o sentido do movimento (se se pode empregar o singular). E, a partir daí, surgem várias interrogações, na realidade essenciais.

O fato de que representantes de certos grupos sem dúvida hegemônicos entre os que participaram das manifestações se apresentassem como apartidários gerou muita discussão, tanto no plano da análise quanto no das perspectivas: qual atitude seria desejável que o movimento tivesse em relação aos partidos?

A essa questão somam-se duas outras.  Dado o fato de que, embora marginal ou paralelamente às manifestações, registraram-se atos de violência, qual a atitude que as possíveis direções do movimento (ou o que existe em termos de direção) deveria ter em relação a esses atos?

Um último problema é o de como evitar que o movimento venha a servir à direita (uso essa fórmula geral para não prejulgar o que aconteceu: infiltração? caráter efetivamente direitista de parte dos manifestantes?) como ocorreu em alguns casos, e setorialmente, sem dúvida, alguns dias depois das primeiras mobilizações.

***

Estamos diante de um movimento que se assemelha a outras mobilizações da juventude, ocorridas nos últimos tempos, em outros países (primavera árabe, Turquia, indignados na Europa...). Se nesse sentido o fenômeno, em sua existência singular, não é novo, o conjunto desses movimentos (e apesar de 1968) representa sim um fenômeno especificamente novo, sobre o qual é preciso refletir. Eu diria, para buscar uma fórmula, que estamos diante de fenômenos de revolta social de caráter pós-comunista, ou de uma idade que é pós-comunista. Em que sentido? Trata-se de uma mobilização que envolveu, no início, uma categoria de idade e não uma classe social (no início, porque em seguida parece que gente de toda idade se mobilizou). Depois, em termos de classes sociais, seus participantes não vêm das camadas mais pobres (o que em si mesmo não é uma novidade), mas, ao mesmo tempo (o que já é mais novo), manifestam um radicalismo efetivo, uma vontade muito determinada de mudar o país. Por essas e outras razões que irei desenvolver, deve-se dizer, embora isso não seja imediatamente evidente, que o movimento vai a contrapelo das ideias dominantes, seja nas organizações progressistas (partidos, sindicatos), seja mesmo em parte da intelectualidade que se considera de esquerda. E, entretanto, afirmaria, o movimento é sim, no essencial, ou majoritariamente, um movimento de esquerda. 1 Aí aparece o desafio. Trata-se de um movimento, essencial, ou majoritariamente, de esquerda: ele quer mudar o país radicalmente, exigindo melhorias no transporte, na educação, e na saúde, quer também mais democracia e mais liberdade, inclusive no plano dos direitos das minorias, além de se lançar no combate à corrupção. Movimento de esquerda sim, mas a esquerda que ele encarna não é a tradicional, isto é, a dos partidos - PT e partidos de extrema-esquerda (omito as diferentes siglas, que são conhecidas), e ainda as organizações que giram mais ou menos em torno deles.  E em que sentido a esquerda que o movimento encarna é diferente? O movimento estaria mais à esquerda do que os partidos e organizações similares, como se costuma dizer? Sim e não. Ele está mais à esquerda, pode-se dizer, no sentido de que é mais radical nas atitudes (os jovens foram para a rua), e quer coisas que os partidos no fundo não querem. Mas não está mais à esquerda, no sentido de que o seu radicalismo é outro, é de outra natureza.

O MPL, organização de certo modo hegemônica, se pretende apartidário. (Um de seus representantes disse, muito bem, apartidário e não antipartidário). Mas, por razões que desenvolverei em seguida, acho que é mais ou menos inevitável que ele venha a debater com organizações e partidos propriamente políticos, ou que seja levado a se definir mais precisamente em relação a eles. Ora, aí eu diria: em seu estado atual (do PT e da extrema-esquerda), os partidos de esquerda estão longe de corresponder ao que o movimento poderia esperar deles. E não por serem partidos. Nem por serem de esquerda. Mas por encarnarem programas, atitudes, perspectivas que - pelo menos na prática, mas não só - ficam a quilômetros do que desejam os manifestantes. E, sob esse aspecto, são os manifestantes que estão na ponta do movimento histórico, não os atuais partidos de esquerda. A juventude sai à rua por mais democracia e por menos corrupção. Os partidos encarnam a democracia e encarnam a luta contra a corrupção? Certo, um ou outro dos partidos de extrema esquerda talvez escape dos fenômenos de corrupção. Mas nem o PT nem uma parte da extrema esquerda é um modelo de intransigência em relação a isso. Basta dizer, sem sair do problema imediato, que é o do transporte, que representantes de partidos não só de direita mas também de esquerda, ocupando cargos legislativos ou executivos, mantiveram e mantêm, visivelmente, relações muito escusas com o que é preciso chamar de “as máfias dos transportes”. De resto, está na ideologia dominante na esquerda, entre os intelectuais inclusive, a suspeita em relação à luta contra a corrupção, que frequentemente é vista como encarnação do moralismo. 2

Aqui se imporia uma discussão sobre a questão da moralidade e da relação entre ética e política. Vou introduzi-la mais adiante ao tratar da questão da intervenção da direita. Mas desde já observaria - um pouco como advogado do diabo, porque em geral sou muito a favor da ética - que se a ética é um elemento novo e essencial a esses movimentos, creio que, tomada isoladamente, a bandeira da ética, embora essencial, é insuficiente e pode ser ambígua. Ver abaixo.

No que se refere à democracia - dir-se-á que os exemplos que vou aduzir são distantes, mas na realidade não são - eu observaria: não há muito tempo, grupos importantes vindos desses partidos, e alguns desses partidos e organizações, em nome próprio, divulgaram um manifesto em favor da... Coréia do Norte! 3 No mesmo sentido, esses partidos em geral condenam (ou, na melhor das hipóteses, são indiferentes) os que lutam pela democracia no que resta de países ditos socialistas. A prática dominante de certa esquerda - não de toda, mas de uma parte considerável - é jogar esses dissidentes (não se trata de opositores de extrema-direita, mas de gente de centro) nos braços da direita, ao contrário do que, já há muito tempo, faz a esquerda europeia. Um manifestante brasileiro de junho - acho eu; ou sou otimista demais? - dificilmente aceitaria essa atitude. Em entrevistas que deram a jornais e canais de televisão, os representantes dos movimentos geralmente se declararam de esquerda, mas não se declararam socialistas. O que é sintomático. Há pouco coisa em comum entre o espírito dos manifestantes desse junho 2013 brasileiro e partidos e governos autoritários, que se apresentem com o rótulo de esquerda. O caráter nitidamente libertário do movimento é incompatível com a atitude de partidos e organizações de esquerda e extrema-esquerda no Brasil, que tem o rabo preso nos governos autoritários e totalitários. Duvido que os manifestantes deixem de colocar mais tarde ou mais cedo esse problema.

De forma mais geral, no interior dos partidos de esquerda e na esquerda intelectual brasileira, os movimentos de classe média não são levados muito a sério. Continua-se supondo que movimento de classe média não vai longe; no final é sempre conciliador. Movimentos importantes são os que vêm das camadas mais pobres. Os movimentos de classe média são em princípio suspeitos e teriam tantos lados negativos que seria melhor não jogar nesse cavalo. Esses argumentos têm um grão de verdade, mas, no essencial, eles são hoje ilusórios, pois vêm de uma situação de uma outra época. As atuais mobilizações, sob muitos aspectos, estão atualmente na vanguarda das lutas populares no Brasil. São lutas de esquerda, mas, no que se refere às suas reivindicações, da esquerda tal como ela deve ser definida hoje. O que significa para o problema que levantamos no início do parágrafo: o movimento deve se politizar, e deve se aproximar dos partidos de esquerda, mas não para dizer amém à política e à filosofia deles, e sim para criticá-los e tentar mudar sua orientação. O movimento deveria ser hegemônico em relação aos partidos e organizações de esquerda, em sua forma atual, e não o contrário. Tal exigência parece simples, mas ela inverte boa parte do que serviu de fundamento até aqui ao pensamento da esquerda no Brasil (esquerda e extrema-esquerda reunidos). (É interessante assinalar o pânico que se manifestou em certos meios ligados às burocracias partidárias e para-partidárias. Algumas mensagens via internet denunciam o caráter fascista (sic) do movimento, porque ele não reconhece tais ou tais organizações.  Deve-se dizer que essa sempre foi a reação dos burocratas diante das críticas de qualquer opinião democrática de esquerda.)

Passemos ao problema organizatório. O grau de organização dos grupos hegemônicos no interior do movimento, ou o caráter da organização desses grupos, é suficiente para assumir de modo eficaz o papel que por razões subjetivas e objetivas eles acabaram assumindo? Os dirigentes do MPL (aparentemente o grupo mais importante) insistem sobre o fato de que eles não são desorganizados, só que têm uma articulação não hierárquica, horizontal. Sem dúvida, a recusa da hierarquia e a articulação de tipo rizomático tem certamente um lado positivo. Mais do que isso. É realmente notável ver como houve uma fusão de militantes de origem diversa, que se encontraram na ideia de um movimento autônomo e libertário. O que eles fizeram foi realmente dar um soco histórico em todas as burocracias de partidos e organizações. Bravo! Mas, eu ousaria perguntar, o estilo geral da atuação do grupo não revela ao mesmo tempo certas debilidades? Poderíamos começar discutindo a questão da sua atuação nas manifestações, deixando para mais adiante o problema do seu caráter geral enquanto organização. Nas entrevistas que deram à imprensa ou na TV, os militantes mais em vista do MPL insistiram muito no caráter não opressivo de sua participação nas mobilizações, batendo muito, inclusivo, no lado festivo ou estético como dizem eles, dessas mobilizações. De acordo. Mas seria preciso lembrar os desafios que manifestantes de esquerda devem afrontar numa cidade como São Paulo: primeiro, a intervenção da polícia; depois, a possibilidade de que delinquentes se aproveitem do movimento para promover depredações (como parece que aconteceu muito no Rio); terceiro - deixando por ora os outros aspectos do papel da direita - a possibilidade de que colunas organizadas por grupos de direita e extrema-direita se infiltrem nas manifestações. Tudo isso mostra, a meu ver, que o lado festivo do movimento encontra limites muito sérios na situação real. E mais do que isso: que, apesar dos inconvenientes que ele comporta, parece difícil dispensar uma real liderança, e mesmo a presença de um serviço de ordem (ou de alguma coisa análoga, com um nome menos sombrio) nas manifestações.  Sem isto, cada vez que ocorrem fenômenos perturbadores (polícia, delinquentes etc), a manifestação se perde no caos, como reconhecem aqueles representantes. No que se refere ao que se passa durante as manifestações, é preciso não confiar demais na espontaneidade (e não sei se, aí, a organização horizontal basta). Pelos menos em certas situações, parece que precisamos de direção ou de organização vertical, só que ela tem de ser democrática. A situação é, na realidade, muito difícil. Porque, por um lado, temos, creio eu, apesar de tudo, um certo déficit organizatório por parte dos grupos que se destacam nas manifestações. De outro, temos o estilo das direções de partidos, sindicatos, e organizações correlatas, que não comungam, é claro, com nenhuma filosofia de tipo espontaneísta, mas  cujo modelo não serve.

Não sem relação com a interrogação sobre a atitude a tomar diante dos partidos, apresenta-se a segunda pergunta: qual deveria ser a atitude do movimento diante da violência?. A pergunta em parte já foi respondida. A meu ver, é preciso que o movimento desautorize em absoluto a violência. É claro que não são os militantes do passe livre os responsáveis pela violência. 4 Mais do que isto - a julgar, pelo menos, pelo que se tem na internet - eles parecem ser claramente adversários da violência. Por outro lado, é verdade que uma parte considerável dos atos violentos por parte de manifestantes veio em seguida à intervenção brutal da polícia e como resposta a ela. Com relação a isso, é válida a palavra dos representantes: é impossível conter quem sofreu violência por parte da polícia. Porém (além da violência dos delinquentes), parece que não houve só isso, mesmo se não fica claro qual foi o peso da violência gratuita de pequenos grupos (a mídia pode ter exagerado o seu peso). Mas, de uma forma ou de outra, seria importante uma declaração bem incisiva contra ela, além do recurso às medidas práticas que o caso exigiria. É preciso tomar distância em relação aos grupinhos violentos, por duas razões. Em primeiro lugar, por razões de princípio. Os manifestantes acreditam em soluções democráticas. Ora, se estas sem dúvida não excluem manifestações de rua, muito pelo contrário, manifestações de rua são essenciais à democracia, elas excluem sim (e eles sabem disso) a depredação sistemática de bens públicos, ou mesmo particulares. Tal posição não representa uma concessão aos adversários, mas, pelo contrário, exprime uma atitude politicamente coerente. Em segundo lugar, uma atitude senão de tolerância em relação à violência, mas relativamente passiva em relação a ela, tem efeitos práticos muito negativos para o movimento. Corre-se o risco de perder o apoio da opinião pública, a qual, até aqui, lhe foi, em geral, favorável. É de se observar que, se a violência vem em parte de grupos não organizados, há também grupos de anarco-violentos (não me refiro ao anarquismo pacífico), que teorizam o emprego da violência e a empregam de modo planificado. Com isso, os manifestantes se tornam reféns de meia dúzia de fanáticos ou de falsos doutrinários (é preciso ler os documentos que estes deram a público, para ver a total falta de rigor dos seus argumentos: falam da violência como se todas as violências fossem mais ou menos idênticas; e supõem que depredações garantem a radicalidade do movimento). Não hesito em dizer: um serviço de ordem (ou equivalente) deveria filmar os atos de violência, e fornecê-los à imprensa. É a única maneira de parar o carro da irresponsabilidade. Dir-se-á que com isso facilitamos o trabalho da repressão? Mas quando na hora das depredações os manifestantes se sentam (como o fizeram algumas vezes até aqui) de maneira a bem se distinguir dos quebradores de vitrines, eles não estão de algum modo facilitando a identificação dos responsáveis? Esse tipo não de ambiguidade, mas de consciência da complexidade objetiva da situação, é inevitável. É preciso assumi-la plenamente e não optar por uma política de avestruz. E se as depredações ocorrerem em outro lugar, como já aconteceu, o movimento deve declarar o seu repúdio (antes que a Dilma manifeste o seu) sem hesitação nem ambiguidade. - Em resumo, há que assumir uma atitude corajosa diante das depredações e dos depredadores, ou estes liquidarão o movimento. Not least, um compromisso sem ambiguidade com a não-violência, destaca ainda mais a barbárie que representou a intervenção da polícia.

Vem em seguida a questão do papel da direita. Que fazer quando, no curso das mobilizações, se ouvem palavras de ordem reacionárias contra o aborto, pela redução da maioridade penal, pelo impedimento de Dilma etc? Tratar-se-ia de infiltração de grupos de direita? Em parte, isso deve ter ocorrido. Mas participantes das manifestação em geral são unânimes em dizer que não houve só isso: por mais desagradável que seja o fato, uma parte (pequena provavelmente, mas real) dos manifestantes desfila em nome de objetivos dessa ordem. Isto é, uma fração das pessoas mobilizadas se pronuncia não por objetivos progressistas, mas em favor de projetos claramente reacionários. Não sei se essa gente estava nas primeiras manifestações ou se se incorporou depois. De qualquer forma,  se o diagnóstico é correto, é preciso perguntar o que isso significa, e o que se pode fazer diante desse fato. Para tratar dessa questão, seria necessário fazer algumas considerações de ordem mais geral sobre o que o movimento deveria representar daqui por adiante, para além dos seus objetivos e formas de organização iniciais. Isso pode parecer pretensioso, mas é na realidade obrigação de cada um de nós.

Aqui se impõe discutir o caráter das organizações que se destacaram nas mobilizações, para além da sua atuação no interior das manifestações públicas. Os movimentos se constituíram em torno de reivindicações que são: 1) setoriais; e 2) precisas. Distingo as duas coisas: o MPL, por exemplo, se interessa pelo transporte público, e concretiza esse interesse em objetivos precisos, o primeiro dos quais era a anulação do aumento (a mais longo prazo, o transporte gratuito). Essa fixação em setores e essa concretização dos objetivos teve evidentemente um lado positivo. A dupla precisão ajudou a mobilizar, e garantiu a presença de uma ampla massa nas manifestações. Mas há o outro lado. Mesmo sem entrar por ora numa discussão de âmbito mais amplo. Enquanto as manifestações têm dimensões relativamente pequenas, os inconvenientes - inconvenientes  essencialmente do setorialismo, não da precisão - não aparecem. Mas, quando elas ganham um volume considerável, a massa tende a ultrapassar os objetivos apenas setoriais e propor outros objetivos; o problema é que, entre os manifestantes, há quem, embora seja contra o aumento (ou mesmo pelo passe livre), professa ao mesmo tempo um ideário de direita (pelo impeachment de Dilma, contra a liberalização dos costumes, ou o que for). Então o protesto funciona em benefício da direita. Ora, o que fazer para que isso não aconteça? Veja-se o problema. Se a manifestação é contra o aumento, todos os que são contra o aumento devem poder participar. E, no entanto... Aí se coloca o problema do caráter das organizações. Além de outras razões de ordem mais geral, a maneira de evitar a presença da direita é a ampliação dos objetivos das organizações, e com elas do movimento. Por mais que seus representantes tentem insistir no contrário, esse caminho é mais ou menos inevitável, se as organizações quiserem manter sua energia e eficácia. Bem entendido, será conveniente que elas continuem visando pontos precisos, mas ampliando o campo dos setores em que intervêm. A precisão dos objetivos necessita, como ocorreu até aqui, da ajuda de técnicos, e o recurso aos técnicos não é um dos aspectos menos interessantes do que os movimentos (em sentido específico) fizeram até aqui. Inútil entrar em detalhes sobre quais seriam esses setores: claro que saúde, educação, mas também segurança - esta última (que deve interessar, sim, à esquerda) é um ponto essencial, pouco presente até o momento. Eu acrescentaria ainda algumas coisas que me parecem fundamentais. A tabela de alíquotas do imposto de renda brasileiro deve ser uma das mais injustas do mundo. E até aqui nunca se conseguiu introduzir alguma mudança importante nela. Seria uma reivindicação a levantar de imediato, evidentemente, com um plano preciso, elaborado com a participação de especialistas. Na mesma área, há o problema da sonegação de impostos. Milhões e milhões de reais poderiam ir para os cofres públicos, se se tomassem medidas efetivas contra a sonegação (talvez a criação de um novo corpo de fiscais especializados muito bem pagos, novas formas de controle etc etc). Outras reivindicações (algumas já levantadas): exigência de que nenhuma lei que limite a ação da justiça na luta contra a corrupção venha a ser aprovada (PEC 37). Relance das formas de democracia direta ou semidireta que haviam sido tentadas em algumas cidades (orçamentos participativos). Legislação que venha a reduzir as vantagens e privilégios dos representantes. Medidas urgentes contra a violência policial: quantas foram, nos últimos anos, as vítimas da polícia na periferia da cidade? E, not least: 1) luta contra o peso asfixiante das multinacionais. 2) programa ecológico coerente, contra o nuclear e o aquecimento global. (A ecologia, e o nuclear, em particular, parece estar longe disso tudo. Longe? Converse-se um pouco com um técnico de espírito crítico para saber o que representa em termos de (in)segurança a muito obsoleta usina de Angra.)

Mas tudo isso implicaria, a médio prazo, numa evolução do caráter das organizações, e implicaria também, sem dúvida, numa mudança de nome. (Claro que são as organizações que vão decidir isso, mas acho que os de fora devem opinar, embora isso pareça pretensioso).  Mas, a meu ver, qualquer que fosse esse nome, seria importante que ele reivindicasse a condição de movimento (aqui em sentido específico) “de esquerda“.  (E se ele - juntando-se a outros, eventualmente - se chamasse algo assim como nova esquerda? Parece vasto demais, mas organizações que mobilizam um milhão de pessoas podem pretender a um nome mais abrangente. Claro que tal denominação é uma espécie de limite [a denominação que indiquei é, de resto, simplesmente uma, entre outras possibilidades] e só poderia se impor se houver uma grande universalização das lutas. Mas insistir nela talvez facilite a sua efetivação. 5 ) De resto, não é impensável uma organização de tipo horizontal para um grupo maior, mesmo se o tamanho complica as coisas. A verticalidade deveria aumentar em alguma medida, mas talvez fosse possível manter a horizontalidade, dentro de certos limites. É pensável, a meu ver, uma nova esquerda que se organizasse como movimento de um novo tipo, mas atentando para as exigências de certa verticalidade por ocasião da mobilizações. E com uma perspectiva política que ultrapassasse os limites da luta setorial e se alçasse à crítica, em todos os planos, das esquerdas dominantes, extrema-esquerda inclusive.

Um elemento essencial nessa reconversão seria definir precisamente o sentido das campanhas contra a corrupção. Que a esquerda se disponha a lutar contra a corrupção é, a meu ver, um avanço; ao mesmo tempo (como ocorre também com a defesa da democracia), é evidente que a direita pode penetrar mais facilmente em organizações e movimentos de esquerda que levantam essas bandeiras do que naqueles que não as levantam. Mas isso é, até certo ponto, uma dificuldade inevitável. Só que, ela pode ser muito atenuada, se se deixar bem claro o que significa uma luta de esquerda contra a corrupção. Bem entendido, a exigência ética é - se me permitem o aparente oxímoro -, de certo modo, absoluta, pelo menos em termos - eu diria - intensivos. Não se trata de instrumentalizar essas exigências. Ao mesmo tempo, digamos, extensivamente, 6 a reivindicação de honestidade administrativa não pode ser uma reivindicação única, isolada de exigências políticas que devem acompanhá-la. Isso porque se governo de gente honesta deve ser um objetivo da esquerda, ela quer gente honesta à testa de um governo que não explore nem oprima. Porque, no limite - mesmo se, em termos absolutos, isso é raro -, pode-se pensar num governo em que os seus titulares não põem a mão nos cofres públicos, embora ele encarne um Estado de opressão e exploração. No fundo, é esse Estado que visam - ou que dizem visar, porque o grau de hipocrisia nisso tudo é, de qualquer modo, grande - as campanhas da direita. Como evitar a confusão? Pondo essa diferença na mesa. Desenvolvendo esses mesmos argumentos. Ora, isto é muito difícil para organizações que visam simplesmente anular o aumento dos transportes públicos, ou mesmo que visam o transporte gratuito. Não é difícil, entretanto - por que então tudo fica muito claro -, para organizações que se apresentam com um leque de reivindicações e se declaram expressamente como organizações de esquerda.

Se o movimento e as organizações hegemônicas em seu meio souberem afirmar assim seus objetivos, e a sua própria identidade e originalidade, estarão dadas as condições gerais para enfrentar as infiltrações da direita, dos seus militantes e mercenários, e também da sua muito poderosa mídia. Assim, como toda degenerescência direitista do movimento.

Ao longo desse texto minha preocupação foi a de que: 1) O movimento ganhe em extensão e universalidade; 2) que ele não perca o seu caráter democrático e de movimento refratário à violência. É fácil querer radicalizá-lo, e é válida a ideia de radicalização, mas desde que se precise o que se entende por isso. É preciso evitar que sob pretexto de fidelidade às lutas das grandes massas se proponha um esquema antigo, que só nos levará aos impasses habituais (populismo, liderança autoritária etc). Nos países árabes, a direção democrática foi submergida por outras mais radicais. Vimos no que deu. Claro, aqui não há fundamentalistas. Mas há radicalismos delirantes e perigosos. No fundo, o ideal seria que se conservasse o tipo de direção que desencadeou (ou as direções que desencadearam) o movimento, porém com um projeto mais amplo e efetuando a passagem da quase não-direção à direção democrática.  Isso será possível? Acho, em todo caso, que é nesse sentido que deve agir uma esquerda democrática. Com o que, não quero dizer, absolutamente, que o futuro das lutas de esquerda no Brasil não dependa da mobilização das camadas mais desfavorecidas. A mobilização delas é e será sempre decisiva. Mas é preciso ver quando, sob que condições, e sob que direção. Ela não pode ser um absoluto que desligitimize todo movimento que não venha de lá, no estilo masoquista dominante em certa intelectualidade radical de esquerda, a qual nunca vê outra saída que não seja a da mobilização dos proletários e dos camponeses. A mobilização dos mais pobres é, certamente, decisiva, só que, atualmente, tal mobilização dificilmente escaparia da manipulação dos partidos e organizações tradicionais de esquerda ou de extrema-esquerda. Nem por isso, devemos ter uma atitude negativa diante dela; ela teria, de qualquer modo, grande significação. Mas não acredito que em condições atuais uma eventual mudança da base do movimento seja uma panaceia para as dificuldades que encontramos.  (Com  as últimas explosões, o problema se torna, em parte, pelo menos, formal. Assim, surgem mobilizações em cidades pequenas ou médias - Cubatão por exemplo -, das quais, aparentemente, participa gente bastante modesta, o que indica  que o movimento transborda.)     Assim, se no plano do conteúdo do projeto o movimento de jovens revela um potencial mais rico (mas por ora limitado: a insistência nas causas pontuais por parte dos seus representantes tem certa justificação, mas vai se revelando insuficiente), no plano organizatório ficamos entre a tendência, apesar de tudo relativamente espontaneísta dos jovens ou de seus representantes, e o estilo autoritário e mais ou menos burocrático da direção do PT e dos partidos neocomunistas da extrema-esquerda.

Em resumo, acho que as mobilizações são um grande acontecimento, e que as perspectivas são estimulantes, embora os riscos de recuperação e de mais repressão sejam, também, consideráveis. À esquerda independente e democrática cabe saudar o movimento, mas não sem examiná-lo criticamente, tentando indicar insuficiências e apontar saídas. Que ele seja o ponto de partida de uma esquerda independente, ao mesmo tempo radical e democrática, deve ser o nosso objetivo.

24/6/03

(Agradeço aos amigos e amigas as observações críticas que fizeram às versões anteriores desse texto [alguns concordaram com o essencial dessas versões, outros discordaram], assim como a narrativa de experiências das mobilizações: Mônica Stival, Daniel Golovaty Cursino, Cicero Araujo, Lidiane Rodrigues, Ana Rieger Schmidt, Maria Caramez Carlotto, Ricardo Crissiuma e Marcela Vieira.  Sem nenhuma responsabilidade.)

Fotos: Verônica MANEVY

 









fevereiro #

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ilustração:Rafael Moralez



1Ao dizer que o movimento é de esquerda, eu me situo no plano do ser ou do dever-ser? Certamente, ao longo deste artigo, tento precisar o que acho ser o caminho mais desejável para o movimento (em termos dos interesses dele mesmo e do conjunto das forças progressistas do país). Mas, ao mesmo tempo, penso que a caracterização que faço tem base suficiente no que é. Os representantes (ou quase-representantes) da organização que poderia ser considerada como hegemônica (pelo menos no início), o MPL, se declararam, mais de uma vez, “de esquerda” (mesmo se não partidários). Mas nem sempre ficava bem claro se se referiam ao seu grupo ou ao próprio movimento popular. (Nota: Neste texto, movimento visa este último sentido, salvo referência expressa às organizações, direções, ou ao MPL etc).

2 Quando houve a crise do mensalão, alguns setores do PT assumiram uma postura relativamente crítica. Mas é de se observar que ficaram fora desse grupo crítico não só gente comprometida direta ou indiretamente com a corrupção, mas também quadros e simpatizantes honestos e acima de qualquer suspeita, que agiam, entretanto, como se nada de grave estivesse acontecendo. Por que? É que a luta contra a corrupção não faz parte do ideário ortodoxo que eles professam. E mesmo hoje, a julgar por certas declarações e entrevistas, os mesmos não parecem se ter dado conta o quanto suas ideias estão longe do que exige a feição que tomam atualmente as lutas sociais mais avançadas. Eles parecem continuar dormindo um sono, senão dogmático, pelo menos excessivamente ortodoxo. Isso sem falar naqueles que, dentro do PT, trataram de defender os mensaleiros.
Esperemos que fique claro para eles que os manifestantes se mobilizam também contra esse tipo de atitude.

3 Uma organização sindical nacional, uma organização dita camponesa, uma organização estudantil nacional e pelo menos um partido de extrema-esquerda assinaram manifesto em favor da Coréia do Norte. Além de intelectuais do PT! Dir-se-á que dou um pulo grande demais, passando dos vinte centavos de aumento à questão do regime norte-coreano... E entretanto, o salto se impõe. Mais tarde ou mais cedo, o problema da perspectiva política geral entrará na ordem do dia. Nas entrevistas, aliás, os líderes foram perguntados sobre o que pensavam do socialismo real (e isso não foi, absolutamente, provocação de jornalista). À esquerda democrática independente cabe levantar essas questões, porque eles são da maior importância. A longo prazo, gente que acredita na causa da Coreia do Norte só poderá trazer desastres ao movimento.

4 Bem entendido, em toda mobilização, existem pequenos estragos: pisa-se grama protegida, maltrata-se alguma árvore do parque, um banco de madeira se quebra, no jardim, etc etc. Mas isso não tem nada que ver com fogo em automóveis, destruição de vitrines ou depredação de ônibus.

5 Alguns amigos levantam a questão: será que os manifestantes se reconhecem como esquerda? Como já disse, os representantes - pelo menos o mais conhecido deles - responderam, mais de uma vez, de forma positiva. Mas recusando, ao mesmo tempo, para a liderança e para o movimento, o epíteto de socialista. De qualquer forma, como perspectiva, creio que se impõe lutar para que os representantes não só reconheçam sua organização como sendo de esquerda, mas para que eles tentem imprimir cada vez mais ao próprio movimento um caráter de esquerda. Senão, por outras razões, por que isso é condição necessária (embora não suficiente) para... se distinguir da direita, e para neutralizar de modo eficaz as infiltrações e as tentativas de deturpação. Aproveito para retomar um segundo ponto, que tem alguma analogia com essa questão. Se a clara separação das águas entre esquerda e direita se impõe, há uma outra separação (menos radical, mas real) em que insisti até aqui, e à qual quero voltar ainda uma vez. A que eu creio existir entre o movimento e o conjunto das esquerdas tradicionais. Seria válido bater nessa tecla? Eu estou convencido disso. Apesar de algumas exceções, o grau de confusão das atuais esquerdas é tal que só pode haver progresso se formos capazes de propor uma visão diferente. Que há receptividade para a crítica, o prova por exemplo, apesar de tudo, e embora muita gente não acredite nisso, o sucesso que tiveram os verdes nas últimas eleições. Mas o movimento verde está no impasse: a rede que ele vai constituindo é muito heterogênea, e o programa de Marina em termos de sociedade é muito retrógrado. (Isso evidentemente não justifica as tentativas de alijar a Rede do processo eleitoral por meio de medidas duvidosas, como faz atualmente a esquerda-de-poder). Ora, os movimentos atuais apontam na direção de uma abertura para tudo o que a esquerda tradicional perde de vista (democracia, honestidade administrativa, provavelmente também ecologia), mas, ao contrário dos verdes (ou da sua principal figura), eles hasteiam uma bandeira radical, e sem concessões, também no plano das reivindicações “de sociedade“ (luta contra as discriminações, direito de aborto etc). Nesse sentido, importa destacar e incentivar a sua originalidade e o seu caráter heterodoxo. O que não significa, já disse, que se deva boicotar a participação dos militantes de partidos, nas manifestações. Nem que se deva jogar sistematicamente uma carta antipartidos. Eu insisto é na necessidade de se diferenciar dos partidos no plano dos objetivos políticos a médio e longo prazo, objetivos que, mais cedo ou mais tarde, serão postos em discussão.

6 Não no sentido de que a ética só valha regionalmente, mas no de que ele não ocupa todo o espaço de significação da praxis.