revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

Maria Caramez CARLOTTO

entrevista com o Movimento Passe Livre
Lucas Oliveira
Movimento Passe Livre - São Paulo

 


Entrevista realizada em 28 de junho de 2013, na sede da Associação dos Pós-graduandos da USP-capital Helenira "Preta" Rezende - Cidade Universitária, USP, São Paulo
Entrevistadora: Maria Caramez Carlotto

 

REVISTA FEVEREIRO - Eu queria começar falando da origem do Movimento Passe Livre (MPL). A versão mais conhecida é de que o MPL surgiu em Florianópolis, em 2005, defendo o passe livre estudantil. Florianópolis que, em 2004, tinha vivido uma ampla revolta popular contra o aumento da passagem de ônibus, a chamada Revolta da Catraca ou Guerra da Tarifa. Revolta mais ou menos nos moldes da Revolta do Buzú ocorrida em Salvador em 2003. Dado esse contexto, costuma-se dizer que o MPL seria um desdobramento natural dessas revoltas populares de Salvador e Florianópolis. Mas com essa versão espontaneísta e factual da origem do MPL, perde-se muito das raízes políticas do MPL, que certamente são mais antigas: ligam-se ao movimento antiglobalização, ao autonomismo e, em certa medida, ao próprio PT. Há narrativas que ligam o MPL de Florianópolis à esquerda trotskista do PT. Eu queria ouvir você contat a história do MPL relacionando essa origem factual à origem ideológica e política.

MPL - Tudo bem. Então, eu acho que são duas coisas. De fato, as duas revoltas (Salvador, 2003 e Florianópolis, 2004) são fundamentais. Principalmente a Revolta de 2003, porque ao longo dela foi produzido um vídeo, que é do Carlos Pronzato, que se chama a Revolta do Buzú. Vários comitês pelo passe livre que existiam pelo Brasil começam a usar o vídeo Revolta do Buzú nas duas atividades. E o comitê pelo Passe Livre de Florianópolis, que existia desde 1999 ou 2000, usa esse vídeo durante as suas atividades lá, eles usam esse vídeo para fazer as atividades em escolas durante todo um ano: desde a metade de 2003 até a metade de 2004, quando ocorre a Revolta da Catraca (Florianópolis, 2004) eles usam o vídeo Revolta do Buzú para fazer atividades em escola. Além disso, tem um outro aspecto importante. Esses comitês pelo passe livre estudantil tipo o de Florianópolis existiam em vários lugares e surgiram inicialmente associados a setores das juventudes partidárias. Das juventudes partidárias não, da juventude do PT basicamente. Havia alguns poucos membros da juventude do PSTU, mas centralmente da juventude do PT. Mas eram jovens do PT que acabaram se afastando, principalmente em Florianópolis, da dirigência petista, avaliavam era que os partidos pautavam as questões de transporte e as questões específicas de juventude de um modo geral com um caráter aparelhado, ou seja, a partir dessas questões você vai dinamizar o partido, formar pessoas para atuar no partido, mas não avaliavam a questão do transporte em si.

REVISTA FEVEREIRO - Ou seja, uma preocupação muito maior com a autoconstrução partidária do que com a pauta.

MPL - Exatamente, muito mais com a autoconstrução do que com a pauta. Então, existia dentro de vários comitês essa perspectiva. O Comitê de São Paulo começa a funcionar em 2003. Em 2004, o comitê já está ativo, com as seguintes características: além de vários anarquistas, algumas pessoas da juventude do PT ligadas ao mandato do vereador Beto Custódio (PT), que era um dos formuladores do projeto de lei do passe livre. Então, tem essa composição mista: anarquistas e juventude partidária juntos, aqui no comitê de São Paulo. Além disso, tanto [a Revolta de] Salvador em 2003 quanto a de Florianópolis em 2004, tiveram a sua luta amplamente divulgada pelo Centro de Mídia Independente, o CMI. O Centro de Mídia Independente foi fundamental, mas fundamental mesmo, para a divulgação e nacionalização dessa luta, porque era a forma como a gente sabia o que estava acontecendo nas outras cidades. Não existia uma rede nacional de comunicação, a gente sabia pelas publicações do CMI. Então em 2003, a Revolta do Buzú foi amplamente documentada no CMI, e a Revolta de 2004, amplamente divulgada também, com o adendo de que a força do CMI em Florianópolis nessa época era realmente impressionante. O CMI publicava, durante a primeira revolta de Florianópolis, o CMI na rua - que era aquele jornal de poste que a gente fazia -, todos os dias. Todos os dias, durante a revolta, tinha um CMI na rua novo. Então, a partir do CMI, formou-se toda uma articulação de grupos autônomos em torno da questão do passe livre. Toda uma juventude, na qual eu me incluo inclusive, se aproximou da demanda do transporte e do passe livre a partir de conhecê-la pelo Centro de Mídia Independente. A origem do MPL vem, então, dessa mescla entre a juventude partidária dissidente, o anarquismo clássico e a experiência autonomista do CMI. E eu acho que essa mescla é muito interessante porque ela conferiu uma característica particular ao movimento. Porque, muitas vezes e em muitos sentidos, o movimento autônomo falhou, ao se negar completamente a estabelecer um diálogo institucional. Então eu acho que a mescla de gente vinda do movimento autônomo com gente vinda de juventudes partidárias permitiu que o movimento tivesse uma característica de autonomismo muito forte e, ao mesmo tempo, com uma perspectiva de existência e diálogo institucional e proposição de leis. Porque, em última instância, a reivindicação do passe livre e da tarifa zero deve se expressar na proposição de uma lei.

REVISTA FEVEREIRO - Inclusive, eu estava lendo um texto do Pablo Ortellado sobre o movimento pelo passe livre em que ele aponta que essa questão da opção pelo diálogo institucional gerou problemas em Florianópolis, porque o movimento propôs uma lei, foi para uma negociação suprapartidária e passou a ser visto com certa desconfiança por alguns setores da esquerda que não aceitavam essa negociação.

MPL - Sim.

REVISTA FEVEREIRO - Com foi isso? Como se dá essa interlocução institucional para o MPL?

MPL - Então, sempre que a gente vai conversar com a esfera institucional é importante ter claro que essa não é a nossa seara. Não é a nossa seara. A nossa seara é a rua, é a mobilização de base, a mobilização autônoma. Então, é uma articulação que é muito delicada. Eu acho que esse ano em São Paulo, a gente acertou muito nesse ponto. Porque a gente pautou que queria negociação mas deixou claro qual era o objetivo específico dessa negociação. Depois, de novo, quando a gente foi convocado... Convocado, não... Convidado pela Presidência da República, eu acho que conseguimos isso também. A gente lançou uma carta antes, pautando essa reunião, o que nos permitiu que tivéssemos um diálogo claro, do tipo "olha, é isso que a gente vai falar". Porque assim você não fica com uma característica de ser um movimento anti-institucional. Não! O movimento vai dialogar, mas vai dialogar com esses pontos específicos. Você deixa isso claro para quem está se mobilizando.

REVISTA FEVEREIRO - Depois eu quero entrar especificamente nesta questão. Mas, antes, eu queria falar um pouco mais sobre a história do MPL. Primeiro, esses Comitês pelo Passe Livre que você falou que, no caso de São Paulo, reunia autonomistas e juventude partidária. Como surgem esses comitês?

MPL - Eles surgem em torno de projetos de lei do passe livre. O comitê aqui de São Paulo pautava o passe livre estudantil a partir do projeto de lei do vereador Beto Custódio, do PT. Então a gente se organizava e fazia atividades em escola. Quer dizer, começou centralmente fazendo atividades em escola. Então a gente visitava algumas escolas e fazia um debate sobre o passe livre estudantil, porque a gente achava o passe livre estudantil importante.

REVISTA FEVEREIRO - Você está nesses comitês desde quando?

MPL - Olha, eu comecei a participar em outubro-novembro de 2004, quando eu comecei a frequentar as primeiras atividades. Inicialmente, eu ia pelo Centro de Mídia Independente acompanhar os comitês. A partir de janeiro de 2005, eu começo a fazer atividades em escola, a gente monta mais comitês regionais.

REVISTA FEVEREIRO - E, nesse contexto, como os comitês se transformaram no Movimento Passe Livre?

MPL - Então, depois da vitória que Florianópolis teve em 2004, eles chamaram uma plenária dos comitês do passe livre em 2005, em Porto Alegre, no Caracol Intergaláctico, que era um espaço autônomo dentro do Fórum Social Mundial, organizado a partir de experiências zapatistas, experiências piqueteiras. Então o comitê passe livre de Florianópolis chamou três dias de plenária no caracol. Foram três dias de plenárias discutindo princípios e contando experiências, até chegar a uma plenária final na qual se decidiu os princípios [organizativos] do movimento. Se decidiu a horizontalidade, a autonomia, o apartidarismo e a independência. Porque a ideia é: somos todos iguais, ninguém representa ninguém dentro do movimento. Nós pensamos com a nossa própria cabeça, somos autônomos, portanto. Somos independentes, ou seja, nenhuma instituição financia o nosso movimento. E somos apartidários, isto é, nós não somos braço de nenhum partido, mas as pessoas de partido podem participar do movimento. Então, em 2005, a gente tira esse consenso da plenária, e a carta de deliberação volta para os comitês locais que aderem ou não ao Movimento Passe Livre. O comitê de São Paulo aderiu ao movimento, ou seja, concordou com os princípios organizativos e aderiu ao Movimento Passe Livre em 2005 mesmo.

REVISTA FEVEREIRO - É interessante porque você já entrou em um tema que eu iria abordar.  Porque foi repetido incansavelmente pela mídia e mesmo pelo poder público justamente o fato do movimento ser apartidário, independente, "não ter líderes" etc. Na verdade, sabemos que é muito mais do que isso. Por trás dessas denominações existe uma longa história de disputa, na esquerda, por formas de organização. A forma partido - representativo ou revolucionário - é uma forma possível de organização da esquerda, assim como os movimentos altamente estruturados, como o MST. Mas vocês, deliberadamente, optam por outro modo de organização.

MPL - Sim.

REVISTA FEVEREIRO - E essa outra forma de organização é ligada a uma crítica às demais formas. Eu queria que você explicitasse um pouco essa crítica mostrando como ela se desdobra nos princípios organizativos que você mencionou.

MPL - Então, para essa crítica a experiência de Salvador foi fundamental. Porque em Salvador, um grupo político, nomeadamente a UBES e a UMES de Salvador, participam da Revolta do Buzú em alguma instância e, de repente, se arrogam como lideranças da revolta e resolvem negociar em nome do movimento. Criam uma comissão de negociação, negociam com o poder público uma série de pautas - meia passagem para a pós-graduação, entre outras - e depois de negociar essas pautas dizem: temos essas conquistas, podemos sair da luta. E a pauta central da revolta que era revogar o aumento da passagem não havia sido conquistada. Mesmo assim, a UBES e a UMES começam a desmobilizar e isso gera uma revolta considerável, uma briga não desprezível. Isto é muito bem documentado no vídeo do [Carlos] Pronzato

REVISTA FEVEREIRO - O Pronzato era do CMI?

MPL - Não, o Pronzato é um cineasta argentino que acompanhou muitas mobilizações. Ele tem um vídeo sobre a "Guerra do gás", sobre os piqueteiros argentinos.

REVISTA FEVEREIRO - Ele é um cineasta militante.

MPL - É, um cineasta militante que faz filmes desse tipo há muitos anos. [Mas voltando para a experiência de Salvador], a gente viu o que aconteceu ali e passou a considerar que o movimento não deve ter uma direção ou uma pessoa que o controle e passe a falar em nome das pessoas, mas que deve ter uma construção "ombro a ombro", por assim dizer. Ou seja, a gente discute muito no interior do movimento, a gente prima pelo consenso. Inclusive, no Movimento Passe Livre, a maioria das decisões é consensual. As decisões sobre os princípios organizativos são necessariamente consensuais. A gente não vota esse tipo de questão. Então, a gente prima pelo consenso, pela discussão, pela construção horizontal, pela construção de relações iguais dentro do movimento. Em parte porque achamos que a própria sociedade tem que se organizar assim. Não tem sentido criar uma estrutura hierárquica para a transformação da sociedade, sendo que queremos construir uma sociedade igualitária. É preciso construir já nas formas de organização para transformar a sociedade, uma estrutura igualitária. É isso que defendemos como modelo dentro do movimento e é isso que defendemos, inclusive, como modelo de organização do transporte. Ou seja: que os trabalhadores e usuários participem igualitariamente das decisões, participem dessa gestão e construam uma gestão popular. Então é isso: construir na prática a forma como pretendemos que o transporte, a sociedade e a vida seja organizada. Mas é difícil, é claro que é difícil.

REVISTA FEVEREIRO - Mas isso, na prática, significa que todas as decisões do movimento são tomadas em plenárias... ou seja, não se institui nenhuma instância de representação dentro do movimento como, no caso, uma diretoria de partido ou uma executiva nacional do movimento?

MPL - Não, não tem nenhuma executiva nacional, nenhuma entidade organizativa desse tipo. O que acontece é o seguinte: dependendo da época, nós temos comissões e comitês de trabalho. Por exemplo, em São Paulo, tivemos durante muito tempo um comitê de trabalho na região noroeste e na região sudoeste. Então, as pessoas decidiam, nesses comitês, a organização do trabalho porque não tinha como fazer uma plenária do movimento para decidir tudo, todas as questões. Por exemplo, existe uma comissão de trabalho na zona sul, então a comissão zona sul decide como as coisas vão ser tocadas naquele espaço, porque não tem como decidir tudo o que será feito ali. Nacionalmente, somos uma entidade federada. O Movimento Passe Livre é uma federação, então tem autonomia dos comitês locais e tem um grupo de trabalho nacional, que agora está voltando a se articular e que funciona assim: os diversos movimento locais tiram deliberações para serem discutidas como pauta específica para esse grupo de trabalho nacional, e dentro desse espaço, os movimentos locais apresentam as decisões do seu coletivo e chegam a uma deliberação nacional que volta depois para ser referendada pelos coletivos locais. E esse grupo de trabalho nacional é rotativo.

REVISTA FEVEREIRO - Entendi. Agora, uma coisa muito interessante e que se comenta muito é o efeito das redes sociais como o Facebook na expansão do movimento. Eu queria, então, que você avaliasse qual o papel que as novas tecnologias desempenharam nos últimos protestos. Mas eu queria que você falasse um pouco, também, de um outro aspecto das novas tecnologias e redes que é a possibilidade de produção autônoma de conteúdo. Por exemplo, você começou mencionando a importância de um vídeo - "Revolta do Buzú" - que é expressão dessa produção autônoma de conteúdo. Depois você falou da importância do CMI para a nacionalização da luta pelo passe livre, outro exemplo. Então eu queria que você falasse das novas tecnologias e da internet, mas não só restrito às redes sociais, mas também à produção de conteúdo.

Eu vou começar pelas redes sociais porque eu falei muito disso em 2011 e agora eu volto a isso agora. Porque é o seguinte: não adianta criar nada no Facebook se você não é uma referência. Não foi o Facebook que tornou o Movimento Passe Livre uma referência, porque não é mágica esse tipo de coisa. A rede social é uma ferramenta, uma ferramenta que pode refletir o seu trabalho real. Se você não tem um trabalho de base, uma organização real, a rede social não vai alavancar nada, porque ela não faz mágica. Você precisa construir essa referência na luta cotidiana, tendo formulação. Todo mundo respeita o Movimento Passe Livre na discussão sobre transporte porque o movimento discute transporte muito bem. A gente sabe muito bem o que está discutindo, a gente produz coisa de muita qualidade nesse tema. E quando a gente produz coisa de qualidade, debate isso com muita gente, organiza-se há muito tempo, organiza-se em base, então é o que permite que a rede social reverbere isso e se torne social. Porque a rede só é social na medida que ela é contestatória (risos). Isso permite, então, que ela se torne uma ferramenta, uma ferramenta a ser usada. E é uma ferramenta importante? É importante! Ainda mais se a gente tem em conta que, a partir de 2011, aconteceu um fenômeno no Brasil: o Facebook se popularizou. Ele passou a ser utilizado massivamente pela classe trabalhadora. Todo mundo tem Facebook, principalmente os trabalhadores de serviço. Você pensa: atendente de loja, gente que trabalha em shopping, eles abrem o Facebook no computador da loja, abrem mesmo. Os trabalhadores de serviço e de escritório em massa utilizam esse espaço agora.

 

 

REVISTA FEVEREIRO - Tem também os celulares....

MPL - Pois é, os celulares. Então isso permite que você chegue a mais gente. É uma ferramenta que potencializa [o movimento]. E é interessante essa potencialização porque ela produz contrainformação. Pensando no caso do CMI. O CMI funcionava como um discurso de contrainformação, era uma informação que não passava pela mídia burguesa. Ele funcionava com uma produção autônoma de conteúdo, com a gente escrevendo nós mesmos sobre os atos, nós mesmos sobre a mobilização. E o CMI foi, durante muitos anos, um dos sites mais acessados do Brasil. Hoje em dia não é mais, mas era um site muito, muito acessado. Ele entrava sempre no Top 100 (dos sites mais acessados) e no Top 50 às vezes. Era um site muito acessado no Brasil, porém era um momento em que o acesso à internet era relativamente restrito, então você não tinha uma capilaridade tão grande. Já as redes sociais, hoje, permitem que essa contrainformação reposicionem a mídia tradicional. Não tem como a mídia tradicional ignorar que essa informação está circulando, isso força um reposicionamento. E esse reposicionamento foi muito importante para nós esse ano.

REVISTA FEVEREIRO - O reposicionamento que ocorreu da quinta (13/06/2013) para a segunda-feira (17/06/2013).

MPL - De quinta para segunda, principalmente, mas mesmo antes. Porque olha, desde o primeiro ato, a mídia tinha um discurso conservador sobre nós, mas a informação estava circulando e os atos foram crescendo. Assim, embora tivesse tendo ataques da mídia todo o tempo, os atos foram crescendo.

REVISTA FEVEREIRO - De fato, não decrescimento do número de pessoas em nenhum momento.

MPL - Não teve um decrescimento, não teve declínio. Fora no segundo ato (07/06/2013), mas ele foi convocado com menos de 24 horas de antecedência e ocorreu em uma sexta-feira. Mas esse a gente não esperava que fosse maior do que o de quinta (06/06/2013), porque não conseguimos divulgar. Mas fora isso, de modo geral, a gente conseguiu divulgar muito bem e produzir contrainformação e essa contrainformação, em algum momento, reverberou também na grande mídia e isso foi muito importante. E esse ano, eu acho que a gente teve uma estratégia de produção de conteúdo para a mídia muito boa. Tanto produções nossas quanto as notas do movimento passe livre foram muito, muito lidas, inclusive algumas exibidas ao vivo: aparecia a notinha impressa na tela do jornal e tal.

REVISTA FEVEREIRO - Vocês têm um comitê de comunicação?

MPL - A gente não tem exatamente um comitê de comunicação nesse momento. Quer dizer, minto. Dentro do movimento passe livre, desde o começo da luta contra o aumento deste ano, a gente chamou apoiadores do movimento e formaram-se algumas comissões, dentre elas uma comissão de comunicação. Mas nem sempre foi a comissão de comunicação que escreveu as notas, as pessoas [do próprio movimento] foram assumindo isso. Mas havia uma comissão de comunicação para a luta contra o aumento.

REVISTA FEVEREIRO - E esse comitê de apoio era ampliado?

MPL - Era ampliado, era um comitê de apoio que estava para além do movimento. A gente chamou pessoas que não eram do Movimento Passe Livre, apresentou a estratégia e essas pessoas opinaram. Eram pessoas que não eram do movimento mas eram de muita confiança ou pessoas que foram do movimento mas tinham se afastado. E, a partir disso, formou-se um grupo mais ampliado, que foi fundamental nessa luta contra o aumento.

REVISTA FEVEREIRO - E você acha que há alguma relação entre a ascensão do Facebook e o declínio do CMI? Porque que você não falou isso explicitamente, mas a gente poderia depreender da sua fala.

MPL - Mais ou menos. O CMI foi pioneiro em web 2.0, ou seja, em as pessoas entrarem e publicarem diretamente conteúdo. Ninguém fazia isso antes do CMI existir. Porém, o CMI continuou sendo isso. Mas a partir do CMI e das plataformas criadas pelo CMI como o Apache, criou-se outras iniciativas. Algumas, inclusive, com participação de pessoas do CMI. O Twitter, por exemplo, e o Pablo [Ortellado] conta sempre essa história, foi criado por um voluntário do CMI. Mas o CMI não se readaptou a isso, ele não se adaptou do ponto de vista de produção de conteúdo a isso. Ao mesmo tempo, o movimento que sustentava o CMI politicamente, que era o movimento altermundista, ou antiglobalização, para usar um termo mais consagrado, acabou, refluiu. Por questões internas e questões externas. Mas esse movimento teve vitórias, na verdade. Não dá para saber o quanto isso foi uma conquista só dele, mas a ALCA não foi aprovada, o FMI reformulou a sua política. Eu não acho que foi só nós que fizemos isso, mas o FMI tinha uma política neoliberal e abandonou essa política, até que na gestão Strauss-Kahn a política do FMI era quase uma política neodesenvolvimentista, keynesiana, ou seja, não era mais uma política neoliberal.

REVISTA FEVEREIRO - Mas o que eu acho muito interessante do que você colocou é que as redes sociais, inclusive com todo o potencial que elas têm, mobilizam um princípio organizativo de rede que já estava presente e se tornou popular por meio dessas ferramentas tipicamente de esquerda militante.

MPL - Sim, exatamente. Foram ferramentas de esquerda. E essa é a teoria autonomista sobre o desenvolvimento capitalista com a qual eu concordo que é a gente que vai criando ferramentas e o capitalismo vai se apropriando, tornando isso outra coisa. Sem dúvida, o Facebook não é, pretensamente nem potencialmente, isto é, ele não é e nem pretende ser, uma ferramenta de transformação social. Ele é uma empresa capitalista que se reapropriou de uma tecnologia criada a partir de um meio de esquerda. E essa aproximação foi tanto por parte do capital quanto por parte de alguns membros dessa esquerda que se aproximaram das empresas. Em parte por conta da tradição americana que acha que o mercado é um espaço interessante... os Estados Unidos têm muito essa percepção.

REVISTA FEVEREIRO - Eu queria voltar um pouco para a Revolta do Buzú ocorrida em Salvador em 2003, para entender melhor o contexto político e a forma dessas revoltas populares ligadas ao transporte público que se multiplicaram na última década. A Revolta do Buzú ocorreu no primeiro ano do governo Lula e emerge justamente durante a campanha nacional contra a Reforma da Previdência. Era um momento de mobilização dos movimentos sociais contra o governo que eles ajudaram a eleger. Tratava-se, portanto, de um contexto político específico, marcado pela presença do PT no governo e o efeito desse fato sobre os movimentos sociais. Como você mencionou, tinham algumas organizações como a UMES, a UEE, a UNE que disputam a liderança do movimento, mas rapidamente a revolta transcende essa organização formal e assume uma forma mais radical.

MPL - Muito radical.

REVISTA FEVEREIRO - Exatamente. E uma radicalidade que assume dois sentidos: tanto no tipo de enfrentamento com o poder público (bloqueios de vias, ônibus depredados, enfrentamento com a polícia etc) quanto nas formas de organização do movimento (com as assembleias de rua e outros mecanismos de democracia direta que procuraram incluir a população na decisão sobre os rumos do movimento, independentemente da organização dos partidos e entidades representativas). A explicação mais comum para essa forma de organização do movimento é atribuí-la à crise de representatividade dos partidos e entidades tradicionais que não conseguem mais organizar esse tipo de movimento. Por outro lado, revoltas populares ligadas à questão dos transportes, como as que ocorreram em São Paulo em 1947, no Rio em 1976 e em Salvador em 1981, também assumem essa forma: de uma revolta popular, espontânea, explosiva. Para você, o que explica essa forma recorrente e específica dos protestos ligados ao transporte? Ela se explica por um traço mais geral, ligado ao fato de ser uma revolta popular por uma questão muito sensível ou se explica pela dita "crise de representatividade" da política?

MPL - Olha, eu tenho muito receio dessa explicação da crise de representatividade. O José Álvaro Moisés escreve sobre isso num texto dele, atribuindo um peso a essa crise de representatividade. E é muito engraçado, porque ele está analisando os quebra-quebras da década de 1940, mas ele está claramente sugerindo a importância de existirem partidos na década de 1980. Ele não está falando dos quebra-quebras de 1940, é curioso isso (risos). É que no MPL nós já lemos bastante sobre esses quebra-quebras. Há uma coletânea que nós lemos e discutimos bastante no interior do movimento. Não era bem um grupo de estudo, mas nós fazíamos atividade de formação para todo mundo e líamos essas pesquisas históricas, compartilhávamos e as discutíamos. Então eu acho que não é exatamente uma questão de crise de representatividade. Eu acho que tem duas questões. Uma, e é uma coisa que o Caio Martins Ferreira escreveu recentemente em um artigo dele, a esquerda desaprendeu a fazer trabalho de base, o que é um problema. Ela fez uma opção pela disputa institucional, e essa opção pela disputa institucional, mesmo da esquerda mais radical, que de modo geral também optou por essa disputa institucional por sindicatos e entidades, afastou essa esquerda, tanto a mais radical quanto a menos radical, de construir as coisas diretamente, ou seja, de fazer trabalho de base e ampliar a discussão. Isso é um problema. E isso faz com que a imagem política desses grupos e agremiações, sejam eles partidos ou não, fique desgastada perante a sociedade. E eu não acho que é uma questão das pessoas não se sentirem representadas. Essas agremiações aparecem como um "corpo estranho". Então, não é só uma questão de representação. Mesmo porque a demanda não é necessariamente por representação. É muito mais uma demanda por participação. Porque quando se fala em crise de representatividade, expressa-se uma demanda por representação que nem sempre existe. Eu acho que são duas demandas muito diferentes, por isso tenho receio do discurso da crise de representatividade. Trata-se muito mais de uma demanda por participação política. Uma demanda por participação não é necessariamente uma demanda por representação política, são duas coisas diferentes. Portanto, eu acho que existe uma demanda por participação política, por atuar politicamente. Querer que isso seja uma crise de representatividade é já pensar em uma canalização de para onde essa demanda deve caminhar, ou seja, essa demanda deve caminhar para o fortalecimento de um modelo de democracia no qual a representatividade esteja assentada em uma maior interação dos partidos com a população. Não é esse o modelo que eu defendo, a princípio. Mas, ao mesmo tempo, é difícil analisar porque é tudo muito recente, mas eu acho que é isso: existe essa demanda por participação. E na questão do transporte tem uma questão específica do por que vira uma revolta popular e de por que se torna uma coisa tão grande. Todos os quebra-quebras e todas as mobilizações radicais por transporte não foram espontâneos exatamente. Existia uma organização e um debate. O quanto essa organização tinha capilaridade e o quanto ela foi responsável sobre esses eventos a gente pode discutir. Muitas vezes essa organização não tem o controle total, mas o início das manifestações sempre se dá por alguma organização. A Monique Felix fez o trabalho de conclusão de curso na PUC-SP sobre os quebra-quebras da década de 1940. E o que ela mostra é que tinha muita organização. Se eu não me engano, nesse momento inclusive, era o Partido Comunista. Mas o que houve foi que as manifestações ganham um escopo muito maior e o Partido começa a rejeitar os quebra-quebras e vira uma tensão interna entre o partido e os manifestantes. Os quebra-quebras do início da década de 1980, por sua vez, têm participação muito forte dos movimentos contra a carestia e indiretamente do que era o PCdoB na época. Existe essa participação do PCdoB, mas pouco documentada. Em parte porque o PCdoB não divulga esse tipo de documento e em parte porque, hoje em dia, eles têm uma linha completamente diferente. Mas existia essa capilaridade organizativa. O que acontece, na verdade, é que o transporte é muito ruim e é muito ruim há muito tempo. E é uma opressão cotidiana. Então, destruir o ônibus - e o Manolo, um dos participantes da Revolta do Buzú, fala muito sobre isso - tem um sentido. Tem que se pensar por que se destrói os ônibus. Não é porque as pessoas agem por um sentimento do tipo "ai meu deus, eu quero destruir um ônibus hoje". As pessoas destroem os ônibus, e destroem recorrentemente os ônibus, por algum motivo. Se da década de 1940 até 2013 as pessoas continuam quebrando ônibus em momento de revolta popular é preciso pensar por que as pessoas estão fazendo isso. E é por que aquilo é considerado para elas uma forma de opressão. É considerado algo terrível e violento. Porque não se escolhe aleatoriamente um alvo em um quebra-quebra. Não é uma escolha aleatória. Então, se destrói o ônibus porque ele é o símbolo de um cotidiano opressor, de um cotidiano violento. E aí ganha uma força e uma capilaridade muito grande. Porque o transporte é violento e, ao mesmo tempo, muito caro. É curioso reparar uma coisa: os quebra-quebras param em 1985. Não tem mais quebra-quebra desde 1985. Eles só voltam a ocorrer em 2003. Isso porque, em 1985, é aprovada a lei do vale-transporte. E é engraçado porque não existe um estudo sobre o vale-transporte. Saiu um texto da ANTT que fala sobre o vale-transporte e eles dão como dado que ele serviu para acabar com os quebra-quebras que ocorriam em 1985. É considerado um dado pelo "outro lado" por assim dizer. Mas não existe nenhum estudo que sistematize isso. Pelo pouco que eu já li - eu não me debrucei sistematicamente sobre o assunto - os quebra-quebras da década de 1980 aconteciam depois do almoço, em grande parte. A minha hipótese é a de que o almoço era um momento em que o trabalhador - e eram massivamente trabalhadores - tinha de convívio na fábrica. Porque você ainda tinha, nesse momento, grandes refeitórios coletivos. E, a partir dessa discussão, surge essa mobilização, essa revolta que se capilariza. Mas, em 1985, é aprovado o vale-transporte. E vale lembrar que no início da década de 1980, e o Eder Sader fala um pouquinho sobre isso no livro Quando os novos personagens entram em cena, é quando começam a ser retiradas as grandes linhas que levavam os trabalhadores diretamente para as fábricas. Porque, antigamente, a Volks tinha uma linha própria, as outras montadoras também. Então começa a haver essa retirada de linhas, provocando revoltas. Mas existe uma virada com a aprovação da lei do vale-transporte, antes da Constituição de 1988, sendo incorporado por ela depois. Com isso, termina esse ciclo de quebra-quebras porque o setor que protagonizava essas manifestações - os trabalhadores - passa a ter o problema do gasto com o transporte solucionado.

Revista Fevereiro - Depois eu tenho algumas perguntas que vão tocar nesse ponto dos protagonistas das revoltas e do vale-transporte, mas antes eu queria voltar para um ponto. Você disse que existe uma demanda forte por participação política. Isso, de certa forma, não atinge o próprio MPL? Porque alguns partidos como o PSOL e o PSTU, principalmente, criticaram muito o MPL porque vocês teriam concentrado demais a organização dos atos, recusando-se a conceder espaço de participação a outros indivíduos ou grupos. Eu queria saber, primeiro, como vocês veem essa crítica. E, segundo, se vocês enxergam nessa crítica uma tentativa velada desses partidos de incorporar, cooptar ou controlar o movimento.

MPL - Olha, é o seguinte. Este ano deixamos muito claro uma coisa e é importante deixar isso explícito: estávamos divulgando para todo mundo o que o MPL queria fazer. Quem mais quisesse fazer outras coisas, era muito bem-vindo. Podia fazer. Mas, como movimento, o que nós estávamos dispostos a fazer era chamar esses atos. Nós achamos ótimo que outros grupos convoquem outros atos, mas nós íamos chamar aqueles. Se alguém quisesse chamar mais, chamasse. Quem quisesse organizar outras atividades, outras frentes, organizasse, ótimo! Mas nós nos dispomos a organizar aqueles. Porém, ao mesmo tempo, para chamar os atos e organizá-los, nós mantivemos diálogo intenso com grupos organizados. Nós dialogamos com o PSTU e com o PSOL, por exemplo, apresentamos para eles propostas, incorporamos algumas deles, ainda que não todas. Mas é isso, o Movimento Passe Livre tem o caráter de ser quem pauta mais esses atos pela redução do aumento porque é quem conhece mais a pauta. E depois da luta contra o aumento vários desses grupos procuraram o MPL para dizer "vocês tinham razão, nós deveríamos ter escutado vocês mesmo, ainda bem que foi desse jeito".

Revista Fevereiro - Mas vocês definiram a tática para barrar o aumento este ano em função de experiência anteriores?

MPL - Olha, a verdade é que a gente planejou muito bem essa luta contra o aumento. A gente acertou até mesmo o dia em que o aumento ia cair. O aumento caiu no dia que nós planejamos, de verdade. Foi um planejamento muito sistemático. Nós olhamos para o que aconteceu nas cidades que conseguiram barrar o aumento. O que aconteceu nessas cidades? Uma luta forte e intensa, em tanto tempo, e o grupo que chamou inicialmente as manifestações, a partir de um dado momento, não teve mais o controle total sobre elas. Então depois de estudar essas experiências, a gente concluiu: é isso que a gente precisa para São Paulo. Foi por isso que a gente propôs, uma luta intensa. E a ideia era mesmo que a gente não tivesse pleno controle e, de fato, a gente não teve. Na quarta-feira (19/06/2013), por exemplo, dia que o aumento caiu, houve um número enorme de manifestações. Para você ter uma ideia, a estrada do M'boi Mirim começou uma manifestação espontânea - e essa a gente não sabe mesmo quem chamou - na terça-feira à noite e ficou com manifestações até quarta-feira na hora que caiu o aumento, ou seja, a M'Boi Mirim ficou quase 24 horas com manifestação. Então virou uma coisa enorme. Na quarta-feira, outros grupos políticos começaram a chamar manifestações também. O MTST chamou três manifestações simultâneas nesse dia. Eu acho, então, que a quarta-feira foi central, porque foi o dia em que o poder público percebeu que, não apenas as manifestações saíram do nosso controle, como saíram também do controle deles e de qualquer pessoa que tentasse controlar aquilo. E eu acho que isso é uma diferença importante. Para nós, do Movimento Passe Livre, uma vez que temos uma organização horizontal, a possibilidade de uma coisa sair do controle não é o terror para nós. Eu acho que os partidos, de um modo geral, têm problemas quanto a isso, problemas sérios, porque a perda da direção política os deixa sem rumo. É claro que o que aconteceu na terça, na quarta e na quinta-feira, principalmente na quinta-feira, nos deixa incomodados. Óbvio que deixa. Pensar em como a gente poderia se articular ali para se contrapor a essas práticas. Mas é isso, a contradição social e uma mudança radical da sociedade ela só vai surgir a partir de uma popularização [da luta], o que implica perder a direção plena desse processo. Claro, você vai tentar construir para onde esse processo vai, mas sem controle pleno.

REVISTA FEVEREIRO - Mas uma dimensão importante ligada à perda do controle sobre as manifestações é a chamada "violência dos protestos". Primeiro, a violência que eu chamo de "expressiva", ou seja, o dito "vandalismo". Ou seja, quando se quebra um ônibus, como você disse, não dá para pensar que este é um alvo qualquer, é um ônibus, uma violência que visa expressar uma indignação com esse símbolo. Ou quando se ataca a prefeitura, de novo, essa violência tem alvo definido. Eu queria saber, então, como vocês enxergam esse tipo de violência e porque vocês não a condenaram explicitamente.

MPL - Porque violento é o Estado. Uma primeira coisa importante é isso. Eu sempre digo isso: que violência é quebrar um vidro perto de quebrar uma perna? É muito menor a violência de quebrar um vidro. Mas muito menor mesmo. Então eu acho importante ter claro que a população responde a uma opressão cotidiana e a uma violência cotidiana que sofre. Então é isso que está sendo colocado. Você tem uma violência cotidiana que a população sofre, contra a qual ela se revolta. Isso foi constatado na Pesquisa do Ibope segundo a qual um terço da população do Brasil inteiro era a favor depredação dependendo dos casos.

REVISTA FEVEREIRO - Eu vi.

MPL - O que é um percentual muito expressivo considerando o bombardeio que a gente sobre na mídia cotidianamente contra o "vandalismo". Os "vândalos" destruíram Roma.

REVISTA FEVEREIRO - E qual foi o papel dessa violência expressiva na redução da tarifa? Ela teve algum papel político?

MPL - A radicalidade dos atos teve um papel político importante, mas eu não acho que a radicalidade seja igual ao quebrar as coisas. Por exemplo, vamos considerar o primeiro ato contra o aumento que parou a Avenida 23 de Maio colocando fogo em pneu. É muito diferente colocar fogo em pneu e quebrar coisas. Mas é muito radical a opção da população de colocar fogo em pneus. Outro exemplo: parar a Marginal Pinheiros inteira é uma ação radical. Eu acho, assim, que esse tom de radicalidade foi importante na redução da tarifa. E o que houve foi: a radicalidade estava posta, colocou-se sobre ela a violência policial e a resposta à violência policial foi "quebrar coisas". Em alguma instância, a violência policial divulgou as manifestações. É terrível isso, mas aconteceu.

REVISTA FEVEREIRO - Mas você não acha que isso aconteceu também porque existe um caldo cultural contra a polícia, militar principalmente, em São Paulo?

MPL - Sem dúvida. Porque existe uma discussão posta sobre o que é a polícia, o que representa a polícia, uma polícia militar inclusive. Toda a discussão sobre a desmilitarização da polícia, o questionamento e a crítica a essa militarização, que nós questionamos, inclusive, na carta que nós enviamos à Presidenta da República.

REVISTA FEVEREIRO - Já que você entrou na questão da violência policial eu quero fazer uma pergunta sobre isso, porque foi um tópico que se discutiu muito. Há quem diga que a violência policial contra as manifestações, que sempre foi grande, tem se intensificado pela adoção de novos métodos, instrumentos e técnicas de contensão de multidões que já estariam preparando a polícia para conter possível manifestações na Copa do Mundo ou em outros grandes eventos que o Brasil passa a sediar. Você sentiu isso ou você acha que a violência policial não mudou e foi como sempre é?

MPL - A questão é que sentimos a violência da polícia contra um movimento social. Porque a violência da polícia é cotidiana. O Rodolfo [Valente], que é nosso advogado e que acompanha há muito tempo a Pastoral Carcerária, fala que o que nós sofremos, a população sofre todos os dias: a humilhação na delegacia, a prisão arbitrária, o encarceramento como política de Estado. E ele diz, e eu concordo totalmente com ele, que sobre esse Estado, todo preso é um preso político. Então a gente não fala que nossos presos são políticos. Eles são fruto da criminalização dos movimentos sociais? São! Estão tratando a mobilização social como se fosse crime. Mas a forma como o sistema prisional é organizado e a existência de uma política de encarceramento em massa por parte do Estado é uma política de criminalização da população e encarceramento em massa. E nós temos esse contexto mais amplo muito claro no interior do movimento. Então, de fato, existe uma repressão? Existe e ela é muito forte. E é por isso que é fundamental discutir o uso das chamadas armas "menos letais". E veja que são "menos letais" porque elas continuam sendo letais. Este ano, de fato, elas mataram pelo menos uma pessoa: uma mulher morreu em Belém do Pará por causa do efeito do gás lacrimogêneo. Isso implica que ter uma outra política de como lidar com essas armas é fundamental.

REVISTA FEVEREIRO - Eu sei que vocês levaram essa demanda para a presidenta Dilma Rousseff, tal como explicitado na carta aberta que vocês endereçaram a ela. O que vocês pediram exatamente e o que ela respondeu?

MPL - Então, ela não respondeu nada. É meio triste isso. A gente pediu várias coisas. Primeiro, a gente pautou que nos surpreendeu esse chamado porque nenhum movimento social estava sendo recebido pela presidenta. Os indígenas estavam sendo massacrados no Mato Grosso do Sul e pediam uma reunião desde o começo do ano e não foram recebidos. Ninguém foi recebido antes. Então nós achávamos que era fundamental explicitar que a gente faz parte de um escopo maior de movimentos sociais que precisam também ser recebidos e ouvidos, ao que ela não respondeu na hora, mas aparentemente ela fez mais reuniões com esses movimentos. Não que isso tenha implicado mudanças, mas é fato que ela fez mais reuniões com eles. Nós pedimos, também, apoio explícito à PEC 90 de 2011, que prevê que transporte seja incluído no artigo 6° da Constituição Federal como direito social, ao que presidenta respondeu que também considerava o transporte um direito, no entanto, quando perguntamos se isso significava que ela iria se posicionar publicamente em favor da PEC 90, ela não respondeu. Não ainda. Nós criticamos, também, a política de desoneração de impostos, mas a Presidenta insistiu que vai seguir fazendo as desonerações. Por que nós somos contra? Porque desonerar é, na verdade, diminuir o controle público sobre como o transporte é gerido e reforça o que o próprio Carlos Zaratini chamou, agora, de "cartéis". Porque você passa o dinheiro diretamente para os operados privados e são eles que decidem como esse subsídio vai ser gerido e repassado, não o poder público. Então, nesse sentido, nós defendemos uma política oposta a essa, que é uma reforma tributária progressiva que cobre mais de quem tem mais, associada a uma cobrança maior sobre as empresas de transporte. Além disso, a gente pautou, também, a municipalização da CIDE, que é uma possibilidade do governo federal ajudar a tarifa zero, porque, em última instância, quem aprova e quem implementa a tarifa zero são os municípios. Mas o governo federal pode ajudar a criar mecanismos que ajudem nesse sentido e a municipalização da CIDE a gente aponta como uma possibilidade disso, ao que a presidenta não respondeu. Ela não respondeu sobre a municipalização da CIDE, mas insistiu muito na desoneração de impostos como saída. E insistiu, também, em uma coisa que nós não somos contra, em hipótese alguma, que é o investimento em inter-mobilidade, ou seja, a criação de novas estruturas de mobilidade urbana. Nós não somos contra isso, mas a gente não acha que isso vai resolver o problema da exclusão na cidade, não vai criar uma cidade onde as pessoas tenham acesso, uma cidade democrática, no sentido de que as pessoas possam circular livremente por ela. Até porque a riqueza que está na cidade é a riqueza produzida pelo trabalho dessas pessoas. Então, em última instância, circular pela cidade é um mecanismo de desalienação.

REVISTA FEVEREIRO - E a questão das armas menos letais que vocês levaram pra ela?

MPL - De fato, desculpa, esqueci de mencionar. Nós pautamos a necessidade de haver uma regulamentação federal sobre o uso de armas menos letais, ou seja, criar uma orientação e uma política de regulamentação e de combate a essas armas, ao que ela também não respondeu. Ela insistiu muito que dialoga com movimentos pacíficos, que é contra o vandalismo, o que é um discurso particularmente estranho na boca de alguém que pegou e armas (risos). É particularmente estranho, particularmente curioso porque a presidenta já optou por uma transformação radical. É claro que era um contexto totalmente diferente e eu não estou defendendo aqui pegar em armas! Mas o repúdio veemente? O não posicionamento em relação à violência, eu compreendo. Porque é claro que a presidenta não incentivaria o vandalismo, ou seja, ela não falaria "o vandalismo é tudo bem". Eu não imagino nenhum presidente falando isso. Mas o repúdio veemente e reiterado a isso mostra uma tentativa de não compreender. E eu volto a esse ponto. Eu gosto muito do título do livro do Eder Sader. Porque quando tem novos personagens que entram em cena, quando assistimos novas pessoas se incorporando à vida política, é preciso compreender qual o tipo de ação política que elas estão propondo, e não dizer, a priori, que aquilo não é uma ação política. Porque é uma ação política. É preciso entender por que as pessoas estão fazendo isso e não dizer: "São vândalos! São criminosos!". É preciso, antes, compreender: por que as pessoas estão fazendo isso? Porque veja, um terço da manifestação acha que aquilo pode ser válido. Se um terço acha isso... Vamos considerar os protestos no Brasil todo, três milhões de pessoas saíram às ruas, um terço desses manifestantes acha que é válido a depredação em alguns casos, então um milhão de pessoas têm que ser presas porque acham que isso é válido? Não tem sentido isso!

REVISTA FEVEREIRO - Eu tenho uma questão relacionada a essas "novas personagens" e a forma da sua ação política. Você comentou que os protestos de 1985 tinham como base social um proletariado clássico, a base social era de trabalhadores. Na Revolta do Buzú em 2003, a base social, pelo que podemos acompanhar das descrições da época, eram de estudantes secundaristas de escolas públicas, principalmente. O Datafolha, pesquisando os protestos em São Paulo, mostra para um perfil social totalmente diferente: 77% tem ensino superior, 76% são trabalhadores com carteira assinada. Então são esses jovens trabalhadores altamente qualificados, oriundos, em geral, da classe média.

MPL - Eu queria comentar que eles não são altamente qualificados.

REVISTA FEVEREIRO - Mas eles têm ensino superior o que, no Brasil, já os distingue relativamente a outros trabalhadores.

MPL -  Mas isso não significa que eles são altamente qualificados em São Paulo, porque você tem uma explosão do ensino superior privado em São Paulo

REVISTA FEVEREIRO - É verdade. Mas eu fiquei impressionada que 13% dos manifestantes da segunda-feira eram alunos na USP, segundo o Datafolha.

MPL - Nossa, 13%? É, tudo bem. Mas para a maioria dessas pessoas, o trabalho que elas exercem implica um contrato precário. Elas trabalham em escritório, são basicamente trabalhadores de escritório. Eu acho sempre complicado esse movimento, e eu estava pensando nisso quando eu estava vindo para cá: o incentivo a clivagens internas dentro da classe trabalhadora beneficia a burguesia, de um modo geral. Porque a burguesia não incentiva as clivagens internas à sua classe, ela tem muito claro qual o seu interesse.

REVISTA FEVEREIRO - Mas você se surpreendeu com o dado de 76% dos manifestantes eram trabalhadores?

MPL - Não. E eu tenho insistido muito nisso. Eu acho que os manifestantes são jovens. Mas são trabalhadores jovens.

REVISTA FEVEREIRO - Exatamente.

MPL - É claro, são trabalhadores jovens, são pessoas que trabalham e que são jovens: são professores, são trabalhadores de escritório, são pessoas que trabalham no metro, pessoas que trabalham no telemarketing. Os protestos têm uma quantidade gigantesca de pessoas que trabalham no telemarketing. E boa parte das pessoas que trabalham em telemarketing estão cursando ensino superior. Trabalham em telemarketing e fazem administração na UNIP ou na UNINOVE. Estudam Recursos Humanos, Secretariado. Então, eu acho que existe essa questão: são trabalhadores, jovens, que buscam uma melhor qualificação e eu acho que é interessante também esse dado porque ele evidencia que esse dado não é por causa da crise econômica.

REVISTA FEVEREIRO - Eu concordo totalmente.

MPL - Nos últimos dez anos você teve uma ampliação da capacidade econômica e do poder de compra da população de uma maneira geral e elas começam a perceber que elas podem mais. Que elas podem querer mais e exigir mais. E nesse contexto, passa a ser um absurdo pagar R$ 3,20 no transporte sendo que você pode ter um transporte gerido de outra forma, um transporte pago de outra forma. Porque você começa a pensar mais claramente em que direitos pode ter, e o transporte pode ser um desses direitos. Porque você passa a pensar, portanto, na estrutura social mais ampla. 

REVISTA FEVEREIRO - Eu tenho bastante acordo com a sua análise. De todo modo, eu fiquei muito impressionada com o dado de que 13% do total de manifestantes que saíram às ruas na segunda-feira [17/06], o dia da grande expansão dos protestos, eram alunos da USP. Antes, talvez, fosse até mais.

MPL - Isso é impressionante mesmo. A margem de erro é três por cento ou quatro por cento?

REVISTA FEVEREIRO - Acho que é quatro porque é uma contagem. De todo modo, o que eu queria frisar é o envolvimento da USP nesse processo. Além de 13% das centenas de milhares de pessoas serem alunos da USP, muitos dos membros do Movimento Passe Livre - todos os que se manifestaram publicamente, pelo menos - eram alunos da USP. Eu queria saber se vocês têm uma reflexão específica sobre a relação do MPL com a universidade pública de modo geral, e com o movimento estudantil, em particular.

MPL - Não, uma reflexão específica não. De um modo geral, a maioria dos militantes do Movimento Passe Livre, apesar de estudar na USP, tem pouca vontade de se envolver no movimento estudantil universitário, por avaliar que ele tem práticas muito viciadas e estruturas de participação muito pouco efetivas. Então, boa parte dos militantes embora estudem aqui tem uma relação difícil com o movimento estudantil pelas características internas do movimento estudantil dentro da USP. Mas, de fato, a gente já organizou alguns debates dentro da universidade, com professores da universidade, debatendo a tarifa zero. Esses debates foram organizados em vários lugares. Têm alguns professores da universidade que são apoiadores da tarifa zero. Muitos, inclusive, se posicionaram publicamente como o Lincoln [Secco], como o Mauro Zilbovicius, da Poli, que é um dos formuladores do projeto original de tarifa zero. Então, existe dentro da universidade alguns professores que apoiam a pauta e, de fato, existem muitas pessoas aqui que apoiam também. Por outro lado, na manifestação de segunda-feira foi tirada uma paralização dos estudantes da USP para ir à manifestação, então isso ajuda a aumentar o número de alunos da USP nos protestos.

REVISTA FEVEREIRO - A partir do que você colocou sobre as estruturas viciadas no movimento estudantil da USP, eu teria uma questão específica. Pensando em toda essa estrutura de organização que você apresentou do MPL, inspirada no autonomismo, eu queria saber se você pessoalmente participou do movimento de Ocupação da reitoria em 2007? Justamente porque esse movimento teve uma estrutura de organização interna muito parecida com a do Movimento Passe Livre, ligada também a críticas muito semelhantes ao funcionamento dos partidos e a formas de representação viciadas. E curiosamente, também, foi um momento de ascensão do movimento estudantil da USP, ligado a uma tentativa, interna, de construir formas mais efetivas de participação.

MPL - Olha, eu fui um apoiador do movimento de ocupação da reitoria, mesmo porque eu fiquei muito doente. Então eu fui um apoiador, ajudei em tarefas de comunicação, na recriação do blog, quando ele foi destruído. Então eu ajudei, fui um apoiador, participei das assembleias, mas eu não posso dizer que eu "encampei" a ocupação da reitoria de 2007, mesmo por essa situação particular.

REVISTA FEVEREIRO - Não, na verdade, meu interesse era que você analisasse essa semelhança entre as críticas e os princípios organizativos que estavam na base desse movimento assim como estão na base do MPL.

MPL - Eu acho que, de fato, aquele foi um momento de exceção dentro do movimento estudantil da USP, em que se permitiu a criação de outros laços sociais e outras formas de participação e articulação. E houve, uma coisa que é comum nesses momentos, um tensionamento muito grande e uma aversão muito forte à atuação partidária. Os militantes de partidos eram vaiados em todas as assembleias. E eu acho impressionante que toda a vez que acontece um grande ascenso político e os militantes de partidos são vaiados, isso não gera uma reflexão sobre porque eles estão sendo tão vaiados (risos). É sério isso. Não gera nenhuma reflexão. Talvez eles precisem se organizar de outro jeito. Eu não estou dizendo para que os partidos deixem de existir, mas talvez seja preciso repensar a forma como os partidos estão trabalhando. Porque, de fato, eles têm importância. Eu não participei de nenhuma dessas vaias e eu acho importante a atuação dessas pessoas também, mas tem que repensar a forma de se organizar. Porque não dá para falar "ah, as pessoas são ignorantes, por isso elas vaiam a gente". Sempre?

REVISTA FEVEREIRO - Indo por essa questão, é impossível falar dos movimentos que aconteceram nas últimas semanas no Brasil todo sem falar da ampliação da pauta, o famoso "não é só por vinte centavos". Eu queria saber como o MPL viu essa expansão e se vocês acham, também, que os protestos foram sequestrados pela direita.

MPL - Olha, é meio complicado isso. A gente defendeu que a partir do momento que foi revogado o aumento, em São Paulo, as manifestações decaíram. Decaíram, decaíram, decaíram. Então, dizer que não era só por vinte centavos? Não. Era por vinte centavos! Vinte centavos era a questão central ali. Era central! Se não fosse isso, os protestos não decairiam. E decaiu porque a questão era essa. Existiam outras pautas? Existiam, existiam inúmeras outras. Inúmeras, inúmeras, inúmeras outras.

REVISTA FEVEREIRO - Como em todo o protesto.

MPL - Como em todo o protesto, é isso. Mas o que agrupava todo mundo ali era a questão dos vinte centavos. Isso em São Paulo. Fora de São Paulo, para mim, é muito difícil analisar. Por exemplo, em Salvador, eu sei dizer que não, o protesto não foi sequestrado pela direita. Teve um participação popular periférica muito grande, pautou-se a tarifa zero, teve uma repressão violentíssima contra as pessoas. Então, em Salvador, eu tenho clareza que não. Em Florianópolis, por sua vez, teve uma disputa muito grande entre a direita e a esquerda. Mas em Florianópolis a direita é outra coisa, a direita é organizada, sai na rua (risos). É outra coisa: é a direita!

REVISTA FEVEREIRO - Diz ao que veio.

MPL - Diz ao que veio. Eu acho que a grande questão é que, de fato, existiu dentro das mobilizações uma articulação e uma mobilização muito conservadora de alguns setores. Alguns setores organizadamente conservadores, alguns setores desorganizadamente conservadores, pautando uma repressão e uma violência contra organizações de esquerda. Isso teve.

REVISTA FEVEREIRO - Inclusive eu li que o próprio MPL foi hostilizado.

MPL - Em alguns momentos inclusive o MPL. Mas de modo geral, o MPL foi mais poupado porque criticar o MPL era difícil. Mas a grande maioria dessas pessoas que estavam na rua, e mesmo a maioria das pessoas que hostilizou partidos políticos, era composta de pessoas sem formação política, pessoas que estavam participando das primeiras manifestações na vida. E a grande questão passa a ser como disputar essas pessoas.

REVISTA FEVEREIRO - É interessante, porque você disse, e eu concordo totalmente, que em São Paulo, diferentemente do que talvez esteja acontecendo em outros lugares, a questão central era a do transporte.  Eu queria saber se você acha que isso tem alguma relação com o fato de termos um prefeito do PT que priorizou a questão do transporte público durante a campanha. Ou seja, o Haddad na prefeitura abre uma janela para o passe livre?

MPL - Eu acho que talvez o fato do prefeito ser do PT conta. Mas eu acho que a pauta do transporte público em São Paulo foi decisiva nas duas últimas eleições para prefeito. E eu não acho que foi coincidência, porque em 2006 a gente teve uma luta muito intensa contra o aumento da passagem. Muito intensa mesmo. Em 2011, a gente teve outra luta muito forte contra o aumento. Eu acho que isso afeta a agenda política da cidade. Eu acho que ter um movimento na cidade que conseguiu se manter organizado durante oito anos pautando a questão do transporte ajuda a construir um forte apoio em relação a essa pauta. Mas mesmo se a gente for ver no Brasil todo, o transporte é a pauta mais citada de porquê as pessoas estavam nas ruas. Porque o Ibope fez a pesquisa para o país todo.

REVISTA FEVEREIRO - Eu vi, eles levantaram que 6% da população saiu às ruas.

MPL - E segundo o IBOPE a pauta mais citada era a questão dos transportes. Aí depois é reforma política. A tão falada PEC 37 foi citada apenas 4% (risos).

REVISTA FEVEREIRO - Pois é. 

MPL - Então, eu acho que é isso: Ter um movimento organizado por muitos anos influencia a agenda política e influencia, inclusive, a agenda política da prefeitura. Eu acho que o Haddad pautou fortemente a questão do transporte público, em grande parte, porque ele sabia que havia uma mobilização política em torno disso. Ele sabe ler a sociedade. Então eu acho que o transporte público ter sido pautado na candidatura do PT foi relevante. O fato dele ter divulgado amplamente o seu programa para o transporte fez com que mais gente pudesse discutir o programa de transporte da cidade. A gente divulgou, inclusive, um artigo crítico sobre o Bilhete Mensal que se chama "Reflexões sobre o bilhete mensal". Porque é uma política de transporte que, na verdade, não resolve o problema de transporte da cidade, não propõe uma transformação radical, beneficia uma parcela relativamente pequena da população e por isso a gente se opõe. Mas aqui em São Paulo é isso. Agora, no Brasil, de fato, o transporte público também foi muito pautado. Mas é mais fácil a gente conseguir evitar o chamado "sequestro pela direita" onde existe uma organização da esquerda para disputar as pessoas. E disputar as pessoas não é só na rua. Isso é central para a esquerda agora. Como a gente vai disputar essas pessoas? Tem um monte de gente interessada por política agora, como a gente vai disputar? A gente, do MPL, vai disputar pela tarifa zero, vai fazer trabalho de base, vai organizar. Mas é isso: precisa disputar as pessoas na rua? Claro que precisa! Mas a rua só é lugar de disputa se tiver trabalho de base, se tiver organização.

REVISTA FEVEREIRO - E a suspensão da licitação dos transportes públicos em São Paulo somada à abertura para a participação da sociedade civil que o Haddad aponta. Como vocês estão vendo isso?

MPL - Olha, a gente não sabe o que vai ser esse Conselho Municipal de Transporte. Não sabe nem se vai deliberativo ou se vai ser apenas consultivo, como o Conselho da Cidade de São Paulo, que o Haddad ignorou, inclusive. Um dos maiores erros políticos que ele cometeu foi ignorar esse Conselho. Até o Bresser Pereira falou para ele reduzir a tarifa e ele ignorou. Enfim, não sabemos se vai ser um conselho deliberativo ou consultivo. Suspender as licitações é ótimo, na verdade, para discutir e pressionar por um outro modelo. É ótimo para poder pressionar para que não seja mais pago por quilômetro rodado, mas por passageiro transportado, ou mesmo para mudar a forma de gestão do transporte, mudar o modo como o transporte é gerido, não deixar mais que as linhas sejam propriedade das empresas. E é isso, está em disputa agora.

 

 

REVISTA FEVEREIRO - E vocês vão disputar? Vocês estão organizados para isso, influir na licitação?

MPL - A gente deve lançar algumas notas críticas, mas ainda não lançou. Porque a gente precisa estudar melhor a licitação para lançar alguma coisa. Mas a gente está observando, está atento a isso, vai lançar alguma coisa.

REVISTA FEVEREIRO - Caminhando para o final, eu queria perguntar sobre a tarifa zero. Porque agora vocês colocaram esse ponto na agenda política e vai ser discutido daqui para a frente. Eu tenho duas perguntas em relação a isso. A primeira é a questão do financiamento da tarifa zero. Porque uma questão que você já mencionou é que, para o MPL, um projeto avançado de tarifa zero é inseparável de uma reforma tributária. Então eu queria que você falasse sobre isso. Em segundo lugar, você mencionou a questão do vale-transporte que, pela lei, é pago pelas empresas. A tarifa zero subsidiada pelo Estado não seria uma forma de transferir para o fundo público um gasto que hoje é massivamente das empresas?

MPL - Quanto ao vale-transporte, é uma questão mais pontual. Você pode pensar em outras formas de cobrar das empresas esse valor. Outras formas de garantir que essa cobrança seja feita. Uma outra coisa que eu acho fundamental é: ninguém pergunta para um movimento de moradia como você vai custear a reforma urbana. Ninguém pergunta porque não é função do movimento social ser gestor público. A gente não quer ser gestor público. Dar opções e discutir isso politicamente, até porque a gente estuda o tema, tudo bem. Mas a função essencial do movimento social é se mobilizar politicamente para garantir uma demanda e criar formas de organização para isso, e não gerir o Estado. Não é isso que a gente vai fazer. Mas, ainda assim, eu acho que a gente pode pensar em formas de financiamento, a gente pode apontar para algumas coisas. Recentemente, um economista do BNDES publicou na Folha de S. Paulo um artigo chamado "Ônibus gratuito". O que ele fala? Que o ônibus de graça desenvolveria a economia da cidade porque mais gente circularia, as pessoas gastariam o dinheiro do transporte em outras coisas, teria uma mobilidade social maior, tendo uma mobilidade maior, aumentaria o PIB, aumentando o PIB, aumenta a arrecadação, então a médio e longo prazo, se paga. Essa é a posição dele. Uma posição parecida com a do Ladislau Dowbor, que nunca escreveu sobre isso, mas já discutiu conosco algumas vezes. Porque quem se beneficia mais pela circulação das pessoas na cidade não são as pessoas que circulam na cidade, e sim quem lucra com isso. Então a ideia é mudar, ao invés de pagar quem se transporta, paga quem se beneficia. A ideia é pagar quem se beneficia, e quem se beneficia são os setores que têm mais dinheiro na sociedade. E por isso a questão de uma reforma tributária progressiva que incida sobre a parcela mais rica da população é fundamental. Você pode, por exemplo, criar contribuições específicas para empreendimentos que alteram a mobilidade urbana, você pode pensar quais as estratégias para isso, sem dúvida. Mas uma coisa que eu acho importante destacar é que, atualmente, um trabalhador em São Paulo trabalha 13 minutos para pagar a tarifa de ônibus. Um trabalhador em Pequim trabalha 3 minutos para pagar a tarifa de ônibus. Em Buenos Aires, é preciso trabalhar 1 minuto para pagar a tarifa. É uma desproporção muito grande.

REVISTA FEVEREIRO - Vocês têm uma reflexão muito forte sobre a relação entre o transporte e a questão urbana.

MPL - Sim.

REVISTA FEVEREIRO - E é interessante que o movimento ascende no mesmo momento em que a crise urbana se intensifica.

MPL - Isso.

REVISTA FEVEREIRO - E coincidentemente ou não, no exato momento em que o governo do PT abre mão, de certo modo, do Ministério das Cidades, cedido para o PP durante a crise política de 2005. O PT, que tinha um projeto de reforma urbana. Como vocês veem essa relação entre crise urbana e ascensão do movimento?

MPL - É exatamente isso. Está em pauta, agora, que modelo de cidade queremos. O MPL tem um modelo claro: uma cidade em que as pessoas possam circular livremente, uma cidade em que as pessoas participem das decisões políticas, uma cidade voltada para os seus trabalhadores. É esse o nosso modelo. É esse modelo que estamos pautando nas nossas organizações. E, recentemente, com a intenção do Brasil abrigar mega eventos, a política de reordenamento urbano colocada nas cidades é uma política contrária a isso, uma política que vai no sentido frontalmente contrário a esse modelo ideal. Então, é fundamental disputar isso politicamente, e é politicamente que se disputa e é isso que estamos fazendo.

REVISTA FEVEREIRO - E isso seria o elo perdido entre os protestos que aconteceram em São Paulo, centrados na questão dos transportes, e os que estão acontecendo no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, mais ligados à questão da copa, mas no centro de todos está a questão urbana.

MPL - Exatamente.

REVISTA FEVEREIRO - Mas para vocês, o fato do transporte ser essencialmente ligado à questão urbana transforma-o em uma questão social transversal ou ele permanecesse uma questão de classe?

MPL - Eu acho que as duas coisas. Ele é transversal, na medida em que permite a garantia de vários direitos. Mas quem é excluído da mobilidade urbana nas cidades, com a tarifa e com o atual modelo de transporte, é uma classe específica, que é a classe trabalhadora. É a classe trabalhadora que não tem acesso à cidade, que fica presa nas periferias e que não pode circular livremente. É ela que não vai ter dinheiro para pagar o transporte. É ela que vai estar em lugares em que a condição de transporte é pior. Então é de classe. É transversal, no sentido que o transporte garante o acesso a vários direitos. É transversal, na medida que é a cidade em questão. Mas é de classe, na medida que tem um grupo que é excluído. O Lúcio Gregori diz isso bastante: a tarifa serve como controle de demanda dos trabalhadores no transporte. Você exclui um grupo da possibilidade de circular, via transporte, livremente.

REVISTA FEVEREIRO - E daqui para frente, qual é a estratégia para conseguir a tarifa zero?

MPL - Então, o MPL tem um projeto de lei de iniciativa popular pela tarifa zero, estamos coletando assinaturas.

REVISTA FEVEREIRO - Por que nenhum vereador nunca encampou esse projeto?

MPL - Porque o MPL não quis, principalmente. Nós achamos importante construir esse projeto social e publicamente. Então estamos coletando assinaturas, estamos divulgando, para mais gente coletar assinaturas, para pautar a questão da tarifa zero no legislativo municipal.

REVISTA FEVEREIRO - Esse será o foco agora?

MPL - É. Agora é tarifa zero.

 

 

 

Fotos: Verônica MANEVY







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ilustração:Rafael Moralez