revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

Ruy FAUSTO

na sequência do meu texto "Esquerda/Direita: em busca dos fundamentos e reflexões críticas", e do seu postcriptum (Como uma resposta a Vladimir Safatle)

 


"Podemos não saber o que é o bem absoluto, o que é a norma absoluta, e mesmo o que é o homem ou o humano e a humanidade, mas o que é o inumano nós o sabemos muito bem. E eu diria que hoje o lugar da filosofia moral está mais na denúncia contra o inhumano do que em tentar situar de algum modo, de uma forma não comprometida e abstrata, o ser do homem"
(Adorno, Probleme der Moralphilosophie (1963), Suhrkamp, 1996, p. 261, eu grifo).

"As objeções [ao saber especulativo], se elas estão realmente ligadas à coisa à qual se as dirige, são determinações unilaterais (...) Essas determinações unilaterais são momentos do seu Conceito; eles surgiram pois na exposição deste último, no lugar momentâneo delas, e a dialética imanente do Conceito deve mostrar a sua negação" (Hegel, Über Göschels Aphorismen..., Sämmtliche Werke [Glockner], XX, p.304- 305, citado por G. Lebrun, La Patience du Concept, essai sur le discours hégélien, Paris, Gallimard, 1972, p. 221, eu grifo).

Índice

1. Introdução
2. Estilo dos textos. As discussões (ou não-discussões) no nosso meio
3. Revoluções. Bolchevismo. A ideia de tentativa
4. Democracia
5. Safatle, Zizek, Badiou
6. Adorno vs certos autores à la mode
7. Análise de algumas das dificuldades dos textos de Safatle (a propósito de Adorno, Kant)
8. Alguns problemas maiores
9. Concluindo

 

1. Introdução

Publiquei, nos três últimos números de Fevereiro (2011, 2012),um longo texto, na realidade, um livro em primeira redação, cujo título é “Esquerda/Direita. À procura dos fundamentos e reflexões críticas”. Já havia dado a público a primeira das três partes, e trabalhava nas duas outras, quando Vladimir Safatle me enviou a primeira versão de um pequeno livro seu, ainda inédito, a respeito da esquerda. Quando as duas primeiras partes do meu texto já haviam saído, Safatle me enviou o seu livro, já então, publicado1 que continha algumas diferenças em relação à primeira versão. A leitura deste confirmou a impressão inicial De fato, parecia que, involuntariamente, eu escrevera um texto, em muito boa parte, oposto ao que Vladimir produzira. Eu insistia na ideia de uma diversificação das lutas pela emancipação, que começa tendo como pano de fundo o combate pela igualdade, e vai se enriquecendo, depois, com a luta contra os totalitarismos, a exigência do reconhecimento das diferenças, e o grande desafio ecológico. O mínimo que se pode dizer do texto de Vladimir é que ele não bate nessas teclas; antes, faz um apelo a que a esquerda retome sua vocação primeira, a de hastear a bandeira da igualdade, que ela teria em alguma medida abandonado.

Não estou certo de que acrescentaria ao meu artigo alguma coisa sobre o livro de Safatle, se tudo ficasse por aí. Mas, na versão publicada, havia uma nota, em que o autor polemizava comigo. Resumindo, ele me acusava de “criminalizar as revoluções”; mais ou menos, de supor que as revoluções levam, desde o início, em si, o vírus da burocratização e da degenerescência. Isso deve ter precipitado a minha decisão. Acrescentei à terceira e última parte de meu texto, que estava prestes a publicar, o que chamei de postscriptum. Não uma análise detalhada do livro, e muito menos do conjunto das publicações de Vladimir, mas uma pequena nota polêmica, que continha duas ou três coisas. Tratava-se de chamar atenção para o fato de que eu escrevera um longo artigo o qual, sem que esse fosse o meu objetivo, era uma espécie de contrapartida do livro dele. Em segundo lugar, eu me esforcei por responder mais diretamente às críticas de Vladimir no que se refere às minhas ideias a respeito “das revoluções” (como dizia ele). Nesse sentido, o meu postscriptum era uma resposta/réplica, e o que veio depois, de parte dele, foi uma tréplica, sendo o presente artigo, uma resposta a essa tréplica. (Isso não é o mais importante, mas convém não esquecer, para que tudo fique claro). Em terceiro lugar, eu fazia algumas breves considerações sobre o tratamento que, no livro, e para além dele, Vladimir dava a certos autores. - Como Vladimir me havia mostrado o seu livro em primeira versão antes da sua publicação, eu me achei na obrigação de enviar meu texto com o seu posfácio, antes que viesse a público.

Cerca de setenta e duas horas depois de publicada, no número 5 de Fevereiro, a terceira e última parte do meu longo artigo, Vladimir dá a público uma resposta ao meu postcriptum (ponto importante: do corpo do artigo, do scriptum, ele praticamente não diz nada). Essa resposta ele a publica numa conhecida revista “de cultura”, mas a envia também a um número importante de endereços, inclusive, com a minha autorização, a um grande número de leitores da nossa revista. Acho que, tecnicamente, a resposta de Vladimir foi uma pouco excessiva (o “meio não é a mensagem”, mas certamente altera o sentido desta) de um duplo ponto de vista: em termos temporais, porque lançada um pouco rapidamente demais (como escrevi, não se deu aos meus leitores nem um “tempo - mínimo - de reflexão”), e em termos quantitativos - ela foi enviada a um número de leitores um pouco grande demais para o meu gosto. Parte dessas considerações eu indiquei numa nota publicada em linha. A esse respeito, a única coisa em que eu gostaria de insistir aqui é que, quando essas discussões passam à mídia, e principalmente a certa mídia, entra-se numa espécie de jogo de perde-ganha. Pode-se apresentar o que se pensa serem os melhores argumentos, pode-se discutir, do modo que nos parece o mais sério, as teses do interlocutor, pode-se usar das fontes da maneira que nos parece mais responsável - de qualquer modo e apesar disso, entra-se numa lógica midiática de confronto, que tem um efeito colateral nocivo: o polemismo atrai os leitores de um modo tal (eu diria, de um modo torto), que eles acabam tomando o acessório pelo essencial, esquecendo os textos de referência aos quais a polêmica remete e que a sustentam. Ora, qualquer que seja a seriedade do debate, o principal não está no debate, mas nos textos e na teoria de base; por isso mesmo, o meu postscriptum era em parte autonegativo: ele convidava o leitor a ler (bem) o artigo. E, como Safatle não toca no conteúdo do corpo do meu artigo, acho que aquele efeito nocivo e reforçou. Quantas pessoas leram o meu texto, no qual trabalhei, permito-me dizer, uns cinco ou seis meses? Não creio que muitas. Em compensação, quantas pessoas me falaram do “debate com o Vladimir”? Incontáveis. Todo mundo sabe disso. Que solução dar a esse impasse, que é fruto de um “paradoxo constitutivo da mídia”, ou de certa mídia. Não responder? Seria pior. Como escrevi no pequeno aviso que pus em linha, decidi não antecipar a minha resposta, guardando-a para este número 6 da Revista. E dar a ela um caráter em parte teórico. Aqui vai ela. Gostaria que ela não tomasse o caráter de uma intervenção em debate da mídia, mas o de diálogo e discussão com um colega. E, para além disso, de ser um texto tentando desenvolver questões teóricas, sem dúvida, importantes, no quadro do pensamento contemporâneo. Bem entendido, falo estritamente em meu nome. A Revista não é responsável pelo que escrevo e assino. Começo pelos aspectos mais propriamente polêmicos, centrados sobretudo em Uma esquerda que não teme dizer o seu nome. Porém, em seguida, tento falar de forma mais geral: primeiro, ainda que mais ou menos brevemente, sobre o sentido do conjunto do trabalho de Vladimir, e depois sobre algumas questões teóricas e políticas, básicas, que estão por trás de todo esse desenvolvimento. Volto aos escritos de Safatle no final.

2. Estilo dos textos. As discussões (ou não-discussões) no nosso meio

As discussões (ou não-discussões) no nosso meio - Começo por algumas questões em parte formais, mas que não são, creio eu, sem interesse. A resposta de Vladimir, embora erudita, na aparência pelo menos, é bastante agressiva. Sem dúvida, o tom do meu postscriptum não era angélico. Sempre procuro evitar um estilo mais duro, mas isso, quando se trata de gente frágil ou muito jovem. Não só não era esse o caso de Vladimir, mas já há tempos se fixara entre nós (ou fui eu que fixei?) um estilo um pouco violento, mas que até aqui, supunha-se (eu supunha, pelo menos), fazia parte do jogo. A acrescentar, o que veremos melhor depois, que as questões em tela não eram problemas de erudição, mas, literalmente, “questões de vida ou morte”. De qualquer modo, se o tom foi por demais áspero ou irônico ele não tinha (nem tem) a intenção de desvalorizar o conjunto do trabalho de Vladimir, e nem o seu livro sobre a esquerda.

Mas a intervenção de Safatle, dizia, é, salvo erro, bastante agressiva. Lá eu apareço (mesmo se não literalmente) como arcaico, também como infantil (isto literalmente), e alguns dos meus argumentos são postos em paralelo com os de gente de extrema-direita… Não vou fazer disso um bicho de sete cabeças. Se toco nesse assunto, é também porque ele me permite encadear com o que se lê no início da resposta (ou tréplica) de Vladimir. Ele diz que a discussão comigo seria impossivel, porque eu o teria desqualificado, acusando-o de chafurdar no universo da competição universitária. Mas a esse propósito, acho melhor citar: “Escrevo - diz Vladimir - (…) para afirmar a impossibilidade de haver um verdadeiro debate entre nós ou talvez para constatar que, no fundo, nunca houve entre nós algo parecido a um debate. Só uma sucessão de mal-entendidos. É triste, mas há de se conviver com isto na vida intelectual e passar a outra coisa. /Depois de fazer sua resenha [sic, mas não importa, RF] de meu livro, Fausto deplora que algo como uma ‘incipiente filosofia crítica instalada em terras sul-americanas’ tenha sido perdida por pessoas como eu [itálico de RF]/ Pessoas, a seu ver, que estariam afogadas no ‘ambiente hiper-competitivo que reina em certas universidades’ e que teriam liquidado nossas possibilidades críticas. De minha parte, não creio ser o caso de ‘defender-se’ de colocações desta natureza. Apenas creio que isto é o sintoma da impossibilidade de Fausto realmente ouvir questões e elaborações intelectuais que não são as suas”.

Essa passagem me deixa literalmente abasourdi, como dizem os franceses: atordoado e consternado. Porque quando falei em ambiente hipercompetitivo e em gente que o alimenta, de forma alguma me referia a Vladimir. Eu visava outra gente. Não sei de onde ele tirou o “pessoas como eu”. A leitura que Vladimir fez do meu texto não só me surpreende, mas me é enigmática. E por quê? Porque ele sabe muito bem 1) que eu tive experiências muito violentas de competição, dentro da universidade; e 2) que nunca (jamais, em tempo algum, como se dizia antigamente) o acusei de ser um fanático da competição.2 Muito pelo contrário. Até onde sei, ele nunca pecou por esse lado. Observo, ainda, que escrevi há alguns anos um texto a respeito do assunto: “Sobre os lobbies na Universidade”,3 texto que Vladimir apreciou. E para completar as razões da perplexidade: logo que tomei conhecimento da sua resposta, eu o adverti imediatamente, de que, sem prejuízo de divergências eventuais sobre outros pontos, no que se refere à competição universitária havia simplesmente mal-entendido de parte dele. Por que ele insistiu em enveredar por aí, é, para mim, um mistério.

No contexto desse mal-entendido sobre o sentido das minhas considerações sobre a competição universitária, Vladimir se refere a uma questão importante, que é o das discussões entre nós (universitários ou, em geral, intelectuais). Digamos duas palavras sobre a oportunidade dessas discussões, para além da questão do perde-ganha midiático, de que já tratei. É incrível como poucas vezes discutimos ideias entre nós. Acho que, entre as pessoas da minha geração, e de algumas das gerações posteriores, houve só uma séria discussão teórica: a que teve lugar entre os meus colegas Oswaldo Porchat e Bento Prado Jr., em torno do tema da filosofia e do senso-comum. Fora isto, as críticas em geral são mal recebidas. Principalmente os epígonos se apressam em desqualificá-las. Em geral, o que se tem é um rumor de recusa absoluta, e um total silêncio por escrito.4 Se falei dos males da competição sem princípio, que domina certos setores da vida universitária, deveria acrescentar a detestável sociabilidade em torno de gurus, que é o seu complemento. Um tipo de sociabilidade esterilizante para a teoria e de efeitos nefastos para um julgamento lúcido, em matéria teórica ou em política, julgamento de que muito necessitamos. Nota bene: para evitar mal-entendidos, deixo claro que Vladimir Safatle não tem nada a ver também com essa última referência.

3. Revoluções. Bolchevismo. A ideia de tentativa ­

Pois vamos ao mais. Tenho certa dificuldade em discutir as teses de Safatle - as teses do seu livro sobre a esquerda e para além deste.5 É que, salvo engano, as suas posições têm mudado em alguma medida nos últimos tempos (há um “já” em sua intervenção em linha, que parece confirmar que houve mudanças, desculpe-me se me engano). Ora, uma questão prévia é a de saber o quanto ele mudou e quando. A discussão fica às vezes difícil.

Os problemas propriamente substantivos que levanta o seu livro, pelo menos os que indiquei em meu postscriptum, giram em torno da questão do fracasso das revoluções do século XX, da democracia, e, depois, do estatuto teórico ou político de tais ou tais figuras do pensamento ou do subpensamento contemporâneos. Esses pontos se interesectam em parte, e se intersectará, por isso, o desenvolvimento que darei a eles

O tema do fracasso das revoluções no século XX é relevante em A esquerda que não teme dizer o seu nome. E eu me ocupei dele no meu postscriptum. É a esse propósito que o texto em linha se alça ao tom mais violento: “(…) de todas as críticas que Fausto endereça a mim aquela que é a mais prenhe de má-vontade diz respeito a minha pretensa: ‘filosofia mallarmeana-vulgar, que pensa a história como um jogo de dados’. Ele se refere a minhas discussões a respeito dos fracassos históricos e dos movimentos de efetivação política de ideias de refundação social. A este respeito, julgo ser sinal de desrespeito acreditar que poderia imaginar coisas tão toscas quanto ‘Stálin tentou, Mao tentou, Pol Pot tentou… Não deu certo. Vamos tentar de novo…’. Se Fausto realmente acredita que eu poderia pensar algo dessa natureza, recomendo que ele deixe de me tratar como idiota. O último que falou algo parecido a respeito de meu livro foi um jornalista português de direita, José Pereira Coutinho. De Fausto, eu esperava um pouco mais”.

De que se trata? Ao falar da experiência do século XX,6 Safatle bate principalmente num tema e num argumento amplamente utilizado pela dupla Zizek/Badiou. A de que uma ideia “precis(a) inicialmente fracassar para posteriormente se realizar” (ETDN, p. 84, cf. p. 62). E de que portanto, é preciso tentar de novo. O tema, de fato, está muito presente em Alain Badiou e Slavoj Zizek. Eles invocam um texto famoso de Beckett, que Safatle utiliza como epígrafe em um dos seus livros.7 Zizek serve-se do texto para pensar o que seria a situção atual das lutas revolucionárias na sua relação com o passado, isto é, para com o comunismo dito real. Mas o que importa aqui é que, ao apelar ao “falhe de novo, erre melhor”, Zizek acaba estabelecendo com isso, queira ele ou não (na realidade, ele quer), uma espécie de continuidade de fato e de direito entre o totalitarismo maoista-stalinista e as tarefas do presente; o que tem o efeito de limpar, a barra, mesmo se parcial ou contraditoriamente, desse mesmo totalitarismo. De fato, quem diz tentemos “de novo” e “melhor”, mesmo se reconhecendo com isso que houve fracasso, estabelece uma linha de continuidade entre o passado comunista e o que deveria ser a esquerda no presente.8 Mas, o que escreve Safatle?: “(…) valeria a pena perguntar se aqueles que desqualificam o século XX como era da violência desmedida em nome do novo estariam dispostos a responder a uma questão fundamental, a saber: quantas vezes uma ideia precisa fracassar para poder se realizar? A efetivação de uma ideia nunca é um processo que se realiza em linha reta. Por exemplo, durante séculos, o republicanismo foi considerado um retumbante fracasso. Ser republicano no século XIII significava defender uma ideia que havia apenas produzido catástrofes e o enfraquecimento do Estado. Hoje, dificilmente encontraremos alguém para quem o republicanismo não seja um valor fundamental. Ou seja, o republicanismo precisou fracassar várias vezes para encontrar seu próprio tempo, para forçar o tempo a aproximar-se de sua realização ideal. Isso apenas demonstra como, graças à internalização de seus fracassos, ao fato de ela ter aparecido ‘cedo demais’, a idéia pôde efetivamente se realizar” (ETDN, p. 62, grifo de RF)9 .

O estilo é o mesmo, e as consequências também. O socialismo do século XX, que foi predominantemente um socialismo totalitário, seria como o republicanismo no século XIII, ele anuncia coisas muito melhores… Mas eu não estaria caricaturando o pensamento de Safatle? Afinal, ele escreve, em seguida: “Não se trata aqui de ignorar os crimes e massacres que foram feitos em nome dos ideais de esquerda no século XX, nem de relativizá-los, lembrando que, se for para contar crimes e massacres, a esquerda certamente não fica na frente dos seus oponentes. As duas estratégias são equivocadas. Trata-se, na verdade, de dizer que a melhor maneira de evitá-los é compreender o que deve ser conservado e reconstruído no interior de nossos ideais, aquilo que neles não se reduz à figura do crime e do massacre” (ETDN, p. 63). Muito bem. Mas a explicação é insuficiente. Insuficiente, porque, denunciando ou não crimes e massacres (Badiou e Zizek também denunciam, darei exemplos), Safatle põe sob uma mesma rubrica - a dos “nossos ideais” - o que queremos e devemos fazer hoje, e o que se fez no universo do chamado socialismo real. Ora, isso é um engano, e um engano com consequências sérias. É que o burocratismo totalitário não foi um socialismo que cometeu erros e até praticou crimes. Ele foi outra coisa, e deve ser estudado como tal. Ao não fazer isto, Vladimir mergulha no universo de certas tendências de esquerda, que faziam, e ainda pretendem fazer, a crítica do stalinismo, mas ficavam no meio do caminho. Penso no trotskismo, em particular.10 Foi pensando no que escrevem Zizek e Badiou - e é inútil negar a proximidade entre o procedimento de Safatle e o deles, darei mais provas disso logo mais adiante -, que me permiti perguntar:“Stálin tentou, Mao tentou…”. Pol Pot tentou? Sobre Pol Pot, isto é, os Khmer rouges, leiamos um texto de Zizek. Acho que a questão merece uma longa citação: “Há pois violência e violência, e a questão não é de desqualificar a priori toda forma de violência, mas de saber de que forma se trata. (...) Bernard-Henri Lévy se propõe explicar em que a experiência aterradora dos quatro anos do domínio dos Khmers rouges no Kampuchéa (1975-1979) teve tanta importância para a esquerda; esta experiência nos obriga[ria] a afastar definitivamente a idéia standard segundo a qual, até aqui, as revoluções fracassaram por ‘falta de radicalismo’, porque elas permitiam compromissos com o que se tratava de derrubar, e não seguiam a sua lógica até o fim. Uma coisa que se pode dizer dos Khmers rouges é que eles foram até o fim do fim, até a extremidade derradeira de uma transformação social tão impulsionada quanto se poderia imaginar: as cidades foram despojadas dos seus habitantes, o dinheiro e o mercado abolidos, todos os processos de educação bloqueados para criar um Homem Novo a partir do nível zero. A própria célula familiar foi proibida (apressou-se em retirar as crianças dos seus pais) - e o resultado foi um pesadelo. Entretanto, para ir a contra-pelo dessa observação aparentemente convincente, dever-se-ia continuar afirmando que os Khmer Rouges, em certo sentido, não foram suficientemente radicais; levando ao extremo a negação abstrata do passado, não inventaram nenhuma forma nova de coletividade, não fizeram mais do que substituir a ordem antiga por um regime primitivo de contrôle igualitário e de exploração implacável, no qual as relações sociais foram reduzidos ao paradoxo mais elementar da obscenidade do poder - o poder dos Khmers rouges tratou efetivamente a si mesmo como se ele constituisse uma obscenidade ilegal: o ato de pesquisar a estrutura do poder de Estado era considerado como criminoso. Os líderes se chamavam anonimamente ‘Irmão Número um’ (...) ‘Irmão Número Dois’ etc, e o partido governante respondia pelo simples nome de ‘Angka’, traduzido em geral por ‘Organização’ - as conotações gangsterisantes são aqui plenamente justificadas, não só em referência aos crimes cometidos, mas também na medida em que temos uma organização tratando a si mesma como se ela fosse uma oficina secreta, uma Cosa Nostra de obediência maoista”.11 Zizek pode falar de “gangsterismo” - o que de resto é muito insuficiente; perto de Pol Pot, un gangster é quase um honête homme -, pode ele falar em “crimes cometidos”, pode falar em “obscenidade”. Isso tudo diz muito pouco sobre a política Khmer Rouge; o essencial é que, no texto de Zizek, não há uma condenação do genocídio. Observem-se as frases, que, sem dúvida, resumem a sua posição e contêm o que é essencial nela: os Khmer Rouges “não foram suficientemente radicais; levando ao extremo a negação abstrata do passado, não inventaram nenhuma forma nova de coletividade”. A primeira é propositalmente demagógica; a respeito dela, remeto, em primeiro lugar, ao que escrevi no final do meu artigo “Sobre a teoria da história da Zizek” (em Fevereiro 5). Sobre a subordinada da segunda, em que ele diz que o genocídio foi “negação abstrata” (ainda que “em certo sentido”), deve-se dizer que ela contém um “eufemismo especulativo”.12 A principal (os Khmers rouges “não inventaram nenhuma forma nova de coletividade”), é a cereja no bolo, ou o pivô do que Zizek tem a dizer - ou não dizer - sobre Pol Pot: é através dela que se completa, por simples substituição (através de passagem a “outra coisa”), a ocultação semântica do genocidio.13

Mas voltando ao nosso argumento. Vê-se que a perspectiva da “tentativa que falhou” nos leva, por um caminho sutil, a entender mal o que foi o fenômeno totalitário, e, na realidade, a fazer concessões a ele. Daí a minha passagem a respeito de Mao, Stalin e Pol Pot. A resposta de Safatle é dupla. Ele escreve: 1) você pensa que eu sou idiota; e 2) isso é parecido com o que escreveu Fulano, jornalista ou intelectual de extrema direita. Ora, à vista dos textos aduzidos, acho que eu mereceria uma resposta mais séria. Reivindicaria do leitor pelo menos a aceitação da ideia de que, se aplicada ao chamado “comunismo real” - e não há dúvida de que Safatle pensa, principalmente, nisso -, e apesar dos protestos de não conivência com os horrores (que, já disse, existem também, e com certa frequência, em Badiou e Zizek) esse discurso do “errar melhor” e do “tentar de novo” arrisca mistificar, de forma sutil, a posição do problema.14

Aqui é preciso discutir, sem mais subterfúgios, a questão das revoluções ou das revoluções do século XX, melhor do que a da Revolução. Safatle me acusa de “criminalizar” as revoluções (ou de criminalizar “toda a extensão da história das revoluções”). Quais foram as revoluções do século XX? Que caráter tiveram E - questão prévia - quantos dos acontecimentos históricos, ocorridos no século XX que levam esse nome foram efetivamente revoluções, isto é, merecem esse nome? Porque finalmente, no centro do problema das revoluções do século XX está a questão do bolchevismo. A respeito disto, em particular sobre a natureza do movimento de outubro de 1917, já falei no postscriptum. O que ocorreu em outubro de 1917 foi um levante de um movimento ultraminoritário que dificilmente pode ser chamado de revolução.15 Pois o modelo instaurado pela tomada do poder pelos bolcheviques em 1917 - sem dúvida, houve primeiro o leninismo e depois o stalinismo, mas não há só descontinuidades entre os dois - determinou, de maneira direta, o curso dos movimentos posteriores. Em primeiro lugar, o processo chinês, depois o vietnamita, o cambodgiano e o laociano. Em forma diferente, o iugoslavo e, num registro ainda mais distinto, o cubano. O “pecado original” do bolchevismo impregnou todos esses movimentos. Como na Rússia, mas agora de forma ainda mais imediata, a revolução se apresentou, muito cedo, como ditatura autoritária, e pouco depois totalitária, disposta a reprimir todas as oposições de forma implacável. Esse fenômeno histórico tem de ser examinado de perto. Ora, é do bolchevismo que devemos falar e não das revoluções em geral, ou em abstrato. O impacto do bolchevismo, e depois do stalinismo, foi forte e caraterístico demais para que se possa tratar da sequência de revoluções ou pseudorrevoluções inspiradas no bolchevismo, como algo da ordem de um análogo do conceito (hegeliano), que “ao tentar determinar a efetividade, produz necessariamente o contrário da sua intenção inicial” (ETDN, p. 63). O que se teve no século XX - refiro-me ao que ocorreu depois de 1917, e na sua esteira - não foram tentativas de realizar o socialismo. Sobre o fundo de um movimento revolucionário real, o que houve, desde o início (sem dúvida, com diferenças entre o período leninista e o stalinista, mas não sem que existisse uma continuidade nada desprezível entre eles) foi a instauração de um regime que, não era - nem tendia para - alguma coisa que se pudesse chamar de socialismo. Se nos instalamos no universo dos fracassos e das tentativas não há como não concluir que aqueles regimes e os seus dirigentes tentaram alguma coisa, embora não tivessem conseguido obtê-la. Para quem escreve um livro que pretende apelar para um sobressalto da esquerda, o que evidentemente exige muita clareza sobre o sentido do que aconteceu no século XX, isso é muito insuficiente, e leva às maiores confusões.16

Não há como substituir a análise por meia dúzia de epígrafes (de Beckett, de Borges, ou de Elliot, pobres grandes autores que não têm culpa disto). Nem resolver à peu de frais a questão do seu significado fazendo intervir conceitos ou semiconceitos lacanianos do tipo “o grande outro” etc (ver Zizek, para esse tipo de jogo). Esse estilo é o antípoda da análise crítico-histórica séria. Quanto ao leninismo, a atitude de Safatle é em geral de simpatia, embora ele trate pouco do assunto de forma suficientemente direta. No final de A paixão do negativo, ele incorpora, à última hora, se não me engano, um desenvolvimento sobre Lenin. Na páginas iniciais de A esquerda que não teme dizer o seu nome, agradece a seu pai por ter-lhe dado o nome de Vladimir…. Detalhe sem importância? Piscada de olho para o leitor? Não sei. De qualquer modo, não basta. Isso é muito pouco, para quem quer escrever um livro conclamando a esquerda a assumir seus princípios básicos.17

4. Democracia

Quanto ao tema da democracia. Safatle critica a democracia representativa e propõe democracia direta. Quando encontramos um defensor da democracia direta e crítico da democracia representativa, é preciso sempre se perguntar exatamente qual é a posição que ele defende. Porque crítico da democracia representativa e defensor da democracia direta é, por exemplo, alguém como Castoriadis. Mas o bolchevismo também criticava a democracia representativa e dizia propor uma democracia direta. Qual a posição de Safatle? Ela não me parece clara. Na primeira versão do seu livro, que me foi enviada, havia uma passagem em que ele responsabilizava os democratas, que não teriam sabido defender a democracia, pelo fim das instituições democráticas em países como a Rússia. Quaisquer que tenham sido as responsabilidades de uns e outros, é passar rápido sobre o papel que teve o bolchevismo na liquidação da democracia na Rússia. Mais do que isso: é assumir a atitude de quem diz que democracia é coisa deles, não nossa. Na segunda versão, acho que essa passagem desapareceu ou se atenuou. Mas ficam problemas. Para decidir de que tipo de crítico da democracia representativa se trata, é preciso apelar para o que diz um autor a respeito de um certo número de questões. Uma delas - voltamos ao parágrafo anterior - é a sua atitude diante do “passado comunista”. Quem continua rezando pela cartilha leninista, dificilmente é um democrata plenamente assumido. Outro elemento a pôr no dossier é o papel que atribui Safatle ao plebiscito como alternativa à democracia representativa. A esse respeito, remeto de novo ao que escrevi no postscriptum: o plebiscito pode complementar e até corrigir a democracia representativa, mas não a substitui, e quando a substitui é uma arma perigosa. Nesse sentido, é válido duvidar dos ideais democráticos de quem vê no plebiscito - mesmo se no quadro de uma problemática democracia eletrônica - a alternativa à democracia representativa. (O exemplo da Islândia é entusiasmante, mas, além da incerteza que existe sobre o futuro político da Islândia, lá continua havendo democracia representativa. Esta foi melhorada, aperfeiçoada, mas, de forma alguma, substituída pela democracia direta). Um outro ponto seria a atitude diante dos “direitos do homem”. Observe-se que, no seu livro, cada vez que se trata dos direitos “do indivíduo”, na realidade, dos direitos do homem, o autor dá ênfase (para criticá-los) ao individualismo e ao direito de propriedade18 (muito à maneira do muito infeliz “A questão judaica” - in Anais Franco-alemães - de Marx, ver a crítica de Lefort), e omite praticamente a questão do direito de expressão e das outras liberdades fundamentais. A acrescentar que, em mais de um dos seus escritos - ver as resenhas, principalmente as dos livros de Zizek e Badiou, que cito mais abaixo - ele se põe a questionar os “princípios formais” e os “ideais normativos de justiça” etc etc. Tudo isso cria pelo menos muita incerteza quanto à atitude de Safatle em relação à democracia. É provável que Safatle tenha feito progresso no que se refere a esta questão, mas, como disse, não sei exatamente quanto nem quando.

5. Safatle, Zizek, Badiou

Mas afinal, que podemos dizer da relação entre Safatle, de um lado, e Zizek e Badiou, de outro? Sem dúvida, podemos encontrar observações críticas em relação a eles já em textos mais ou menos antigos de Safatle. Assim, em seu artigo “Lenin com Lacan”19 em que resenha a tradução da coletânea de textos de Lenin, editada, com um prefácio e um posfácio, por Zizek20 -, ainda que em meio a apreciações favoráveis ao livro e elogios a Zizek, “um dos nomes mais significativos da atual geração de teóricos da esquerda” -, Safatle não deixa de se insurgir contra o endosso mais ou menos indiscriminado da violência por parte deste, endosso que vai de par com loas “à grandeza intrínseca do stalinismo”. Entretanto, não vemos traços dessas críticas na resenha das coletâneas de textos de Mao e de Robespierre pelo mesmo autor,21 que Safatle publica no Estado, quatro anos depois.22 O texto conclui afirmando que “Zizek demonstra até onde vai sua capacidade de apreender a complexidade da aposta política na ‘reinvenção de um terror que emancipa’”. Porém, se ainda subsistir dúvida sobre a atitude de Safatle em relação à dupla, que se leia o número que uma revista de cultura dedicou a Zizek e Badiou, número em que Safatle tem uma posição proeminente. Lá se pode ler com todas as letras o que ele pensa dos dois autores.23 Ao dar tal crédito, junto à opinião pública brasileira, àqueles dois autores, Safatle e seus amigos prestaram um péssimo serviço - o pior que poderiam prestar - à esquerda brasileira, principalmente à juventude de esquerda, juventude muito vulnerável ao que há de mais funesto nas ideologias neototalitárias europeias.

Desde já, deixo claro que não se trata de questionar a possibilidade de citar um texto de um autor, sem estar de acordo com outros textos do mesmo autor.24 Se assim fosse, as citações seriam quase impossíveis. Mas citações não são inocentes, e conforme o caso, podem ter implicações no que se refere à atitude do autor que cita para com o autor citado. Assim, ao tratar da questão da governabilidade, isto é, da capacidade da esquerda em governar de forma acertada, Safatle se refere a Zizek. Ora, mesmo se se trata - ou pelo próprio fato de se tratar - de um problema muito importante, é de se perguntar: valeria a pena se referir a Zizek nesse contexto? Há no texto de Safatle - aqui, e em outros pontos -, uma espécie de fusão entre os temas da governabilidade em condições de vitória eleitoral, e em condições de revolução. A referência a Zizek envolve a revolução, a continuação de Safatle sobre o mote de que “a esquerda não sabe governar”, faz pensar antes na situação pós-vitória eleitoral. Mas, para além disso, vale a pena lembrar de Zizek nesse contexto? Leia-se o que ele escreve sobre Chávez em Em defesa das causas perdidas, em especial o que ele parece aconselhar a Chávez nesse livro. Ele quer que Chávez radicalize a sua política, aparentemente em termos de repressão e de liquidação das liberdades. Ora, se a referência a Zizek não prejulga a aceitação de todas as teses desse autor -, na medida em que ela se situa no campo de um problema preciso (para o qual, como acontece frequentemente, Zizek dá várias respostas, contraditórias - mas sem deixar de privilegiar algumas, as piores), é claro que o texto de Safatle pode confundir o leitor. Da mesma forma, Safatle escreve algumas páginas antes: “Uma das questões mais delicadas sobre a esquerda diz respeito à sua maneira de lidar com o passado recente. Alain Badiou comprendeu bem que poderia enunciá-la de uma maneira sucinta: o que significou o século XX? Ou seja, como compreender as experiências de ruptura que marcaram a especificidade do século que passou? Longe de um simples problema histórico, tal questão expõe a maneira como nos vinculamos aos processos de efetivação de uma ideia que, com certeza, ainda guarda seu conteúdo de verdade” (ETDN, p. 61). Bem entendido, Safatle não se compromete aí com todas as respostas de Badiou (mesmo se, logo mais adiante - id, p. 64 - ele cita elogiosamente um texto do mesmo Badiou [texto que introduzirei mais adiante] e que lhe é bem característico e essencial), mas faz dele, sim, o porta-voz da grande interrogação, o que já é lhe dar uma posição privilegiada.25 - Se no livro de Safatle, há, como já disse, muito não-dito que é preciso explicitar, ele tem, também, alguma coisa de eclético. Ora, entre o ecletismo e a dialética, a diferença é considerável.26 De resto, por detrás do ecletismo, há uma linha dominante inconfundível.

6. Adorno vs certos autores à la mode

Se importa discutir a relação entre o que escreve Safatle e os escritos de Zizek e Badiou, tão importante ou mais é saber onde está Safatle - mas também, em alguma medida, onde está, pelo menos Zizek - em relação a Adorno. Safatle reclama que, num postfácio que visava A esquerda que não teme dizer o seu nome, eu tenha escrito alguma coisa sobre a sua relação com Adorno.

Diz que não fez referência a Adorno em seu pequeno livro. A questão seria secundária, pois não tratei só de ETDN no postcriptum, mas a verdade é que, ao contrário do que diz nessa intervenção em linha, ele se refere sim a Adorno em seu livro. Poucas vezes, mas num dos casos, eu diria, de maneira estratégica.27 No meu poscriptum, falei de um “sequestro de Adorno” pelos pós-modernos (ou pela caricatura deles28 ). Eu pensava em Zizek, não em Badiou. Safatle replica dizendo que Zizek e Badiou fazem críticas a Adorno. Sem dúvida, Zizek crítica Adorno,29 mas faz também um uso fácil dele 30 (volto mais adiante ao “sequestro de Adorno”).

Vou abordar aqui principalmente a questão da maneira pela qual Safatle apresenta o pensamento de Adorno. Em primeiro lugar, respondo a uma questão prévia. Ele me acusa de recusar o confronto entre Adorno e o pensamento francês. Nada disso. Aliás, nem poderia. Foucault se refere explicitamente à Escola de Frankfurt (os textos são conhecidos). Se Safatle tivesse gasto um momento para refletir sobre o meu scriptum, não se limitando ao postscriptum, veria que em dois excursos, críticos embora, eu me ocupo do confronto entre a teoria crítica e o pensamento francês. O problema não é confrontar ou não confrontar. Mas com quem se confronta, e como. No meu artigo eu falava de uma certa promiscuidade, nos escritos de Safatle, entre Adorno, de um lado, e Zizek e Badiou, de outro. Ele me responde que só raramente articulou Adorno e Zizek, e que quando o fez foi para mostrar “como Adorno pode nos auxiliar a criticar a teoria da violência de Zizek”. Ora, aqui se impõe uma discussão importante. A primeira coisa que eu diria é que se ele não confrontou Adorno e Zizek deveria ter confrontado. Na realidade, como se vê, ele confronta, mas para transformar Adorno em interlocutor, crítico embora, de Zizek.... Não há como não se explicar precisamente, e em detalhe, sobre as relações possíveis entre um e outro. Para começo de discussão, poderíamos afirmar o seguinte. Adorno se opõe aos Zizeks e companhia: 1) Pelo fato de que ele é um pensador rigoroso e sério, enquanto que o discurso desses últimos - ver os meus textos em que os examino em detalhe - é eivado de sofismas, aproximações e demagogia; 2) Adorno é um adversário intransigente dos totalitarismo, os outros nadam nas águas do totalitarismo, é o mínimo que se poderia dizer; 3) Adorno é crítico do humanismo mas não anti-humanista. Voltarei a esse ponto, essencial. Quem passa por cima desses pontos liquida a crítica adorniana, e, bem ou mal, opera sim um verdadeiro sequestro do pensamento de Adorno, e um desvirtuamento da sua significação mais profunda. Mas dir-se-á: Safatle não está obrigado a entrar nesses problemas. Ele investe o pensamento de Adorno para criticar o capitalismo contemporâneo. Se os escritos de Zizek também servem a essa crítica, que mal há em utilizar um e outro, mesmo que haja diferenças entre eles ou que eles eventualmente se oponham (aqui e ali)? Ora, a questão é um pouco mais complicada e nos leva bastante longe. Minha hipótese - já indiquei - é a de que não existem certas divergências entre Zizek e Adorno, mas que, mesmo se, aqui e ali, se pode encontrar no miúdo pontos de convergência (e mesmo isso é discutivel), há uma oposição radical entre os dois.31Digamos de um modo geral: Adorno é um grande crítico do capitalismo, em particular da ideologia capitalista, privilegiando até certo ponto, o que nos interessa aqui, essa ideologia tal como ela se mostra na mídia. Ora, sob muitos aspectos, os escritos de Zizek representam a quintessência do produto midiático. Ora, dirão: da mídia sim (ou talvez), mas não da mídia capitalista. É o argumento que provavelmente está na cabeça de Safatle. Mas o argumento é enganoso. Aqui sou obrigado a entrar na discussão do novo caráter da ideologia, que é aliás objeto do livro de Safatle Cinismo e falência da crítica32. O leitmotiv do livro é o novo caráter da ideologia capitalista, que se manifesta, entre outras coisas, por um grau importante de transparência, ou, de modo mais complexo, pela coexistência entre transparência e obscuridade. O livro começa por uma referência a Adorno, e o pensamento de Adorno aflora em vários momentos. Mas também Zizek está lá, um pouco por todo lado. De novo, perguntar-se-ia: que mal há nisso? Há aí um problema. É que, a meu ver, a nova ideologia não se caracteriza apenas pela transparência ou pela transparência-obscuridade descrita por Satafle, a partir de Adorno. Ela se caracteriza também, provavelmente, por uma espécie de destruição da ideia de verdade.33 E isto por meio um de discurso pletórico de recuperação de toda sorte de temas e teses, numa espécie de vertigem neo-sofística que, destruindo a ideia de verdade, liquida toda possibilidade de crítica. Ora, se a minha hipótese é verdadeira, Zizek, com suas palavras de ordem demagógicas (“Hitler não foi suficientemente longe”), com a salada teórica em que se encontram todas as teses e os seus contrários (exemplo: elogio da grandeza do stalinismo, e coup de chapeau a Lefort, porque ele explicou que a democracia formal não é apenas formal etc etc), é uma peça importante dessa nova ideologia. Nesse sentido, a ideologia capitalista se caracteriza por ser e não ser pró-capitalista: ela incorpora tudo, até a temática anticapitalista, e totalitária. (A acrescentar: se a dimensão “crítica do capitalismo” também existe em Zizek, não se deve esquecer que o que ele opõe ao capitalismo - ao capitalismo liberal-democrático - são formas totalitárias, ou semitotalitárias, que não são melhores do que aquele). Ora, esse aspecto não escapou a Adorno, e não seria dificil encontrar textos de Adorno que estão muito próximos do que acabo de escrever. Por outro lado, já que Safatle quer falar do cinismo, acho que a categoria se aplica bem a Zizek e às suas “palavras de ordem” do tipo da que citei. Safatle conhece o cinismo propriamente capitalista e o cinismo de certa social-democracia, mas o cinismo dos neototalitários, isso ele não conhece nem reconhece. O resultado é que ele escreve um livro sobre ideologia e cinismo em que esses últimos aparecem do lado do sujeito, como combatentes do lado da crítica, como aliados dela, mas não do outro lado (onde pelo menos eles deveriam também aparecer): como objetos, expressões do cinismo e da ideologia, que, enquanto tais, deveriam cair sob a férula da crítica. E, atenção, essa insuficiência não é pouca coisa. Ela vira tudo de pernas para o ar, e acaba servindo à ideologia. É a impressão que se tem à leitura do livro de Safatle. Talvez o essencial nesse contexto seja descobrir que a mudança na ideologia é muito maior do que Safatle supõe, e que essa mudança exige uma crítica muito mais radical e muito mais abrangente, de caráter ao mesmo tempo teórico e político. Voltando a Adorno. Quem passa por cima desses pontos liquida a crítica adorniana, e, bem ou mal, opera sim um verdadeiro sequestro do pensamento de Adorno, um desvirtuamento da sua significação mais profunda. Adorno com Zizek não é Adorno. É, em primeiro lugar, perder de vista, a dimensão de um e de outro; e, com isto, o significado de cada um deles. Quanto a fazer do primeiro o freio para os delírios maiores do segundo, é agravar ainda mais o caso. Ao fazer de Adorno o crítico de Zizek (sem tocar nos abismos, mencionados, que existem entre eles) põe-se os dois num mesmo plano, com o que se perde a medida das coisas. Não por acaso, essa perda de medida - tentarei mostrar isso melhor em outro lugar - é essencial à definição da nova ideologia e à caracterização do ethos da mídia contemporânea.

7. Algumas dificuldades do discurso de Safatle (a propósito de Adorno e Kant)

A discussão sobre Adorno nos oferece um fio para levar mais adiante a crítica de Safatle, e, generalizando, para discutir em forma mais livre, menos presa à polêmica, certos pontos de ordem teórica e política, que serão o objeto desse item 7 do presente texto.

A) A propósito da leitura de Adorno que faz Safatle, há vários pontos a desenvolver. Em primeiro lugar, é preciso notar o quanto Marx está ausente dessa leitura. Safatle fala o tempo todo de Adorno e de Lacan, trata bastante de Lacan e Hegel, mas sobre a relação entre a crítica adorniana e a crítica da economia política, assim como sobre a relação com Marx, em geral, não diz quase nada. Ora, o pensamento de Adorno está envolvido nessa crítica. Não que a sua crítica se confunda com ela, mas está marcada por ela mais do que por qualquer outra fonte. Nesse contexto, aparecem em Adorno alguns temas essenciais. Um deles é o da troca de equivalentes (como a da troca de não equivalentes), à qual Adorno volta muitas vezes. O outro é precisamente a questão do humanismo. É impossível pensar o problema do humanismo em Adorno - a sua crítica do humanismo - sem se referir a Marx, e sem pensar (pensar, realmente) qual foi a posição de Marx a respeito. Ora, nada disso se encontra em Safatle. Em mais de uma ocasião, ele observa que Adorno escreve que o homem ainda não está presente (na história). E o leitor tem a impressão de que Safatle interpreta essa ausência, de extração marxiana, como convergindo com as teses anti-humanistas de Zizek e de Badiou (um Adorno mal lido funciona precisamente como termo médio entre Marx e Zizek!). Ora, a diferença é enorme, embora pareça sutil. Ela, de certo modo, é mesmo sutil;a dialética é feita de sutilezas, mas de sutilezas que decidem tudo, e que permitem se orientar em questões que são literalmente de vida ou morte. Realmente, o leitor de Safatle teria dificuldade em distinguir as duas críticas do humanismo (a dos anti-humanistas e a dos não-humanistas estranhos ao anti-humanismo). Safatle põe como uma das epígrafes de um dos capítulos do seu livro Grande Hotel Abismo, por uma reconstrução da teoria do reconhecimento34 uma passagem de Probleme der Moralphilosophie35em que Adorno reproduz a resposta que deu aos fundadores da União Humanista, os quais o haviam convidado a entrar para a Sociedade: “Se o seu clube se chamasse União inumana, talvez eu estivesse pronto a entrar nela, mas numa que se auto-denomina (sich selbst nennt) humanística, eu não poderia entrar” (Probleme, p. 251). A citação abre um capítulo do livro de Safatle que se chama: “Há uma potência política no interior do inumano” (capítulo em que se trata da animalidade, da monstruosidade e de outras coisas que tais)36 . Apesar das aparências em contrário, o uso de Adorno que faz aqui Safatle é abusivo. Vejamos primeiro em que contexto Adorno introduz aquela passagem, e qual a modalidade do discurso que a sustenta. A referência se insere no contexto de uma argumentação que se revela explicitamente antinômica entre a necessidade de utilizar certos termos e a impossibilidade de utilizá-los porque sua expressão tem efeitos semânticos e práticos opostos aos que deveriam resultar dela (os que corresponderiam ao objeto que eles visam imediatamente, ou que, pelo menos, deveriam visar): “(...) existe aí [nessa reflexão em torno da Resistência, RF], como momento ‘suprimido’ (aufgehoben), tanto a crítica da moral abstrata quanto a crítica daquele cinismo (...) é claro que algo como uma vida justa (richtige) não é pensável, se não nos ativermos (festhalten) igualmente à consciência (Gewissen) e à responsabilidade (Verantwortung). Nesse ponto mesmo, efetivamente e com a maior seriedade, estamos numa situação antinômica. É preciso se ater ao normativo, à auto-crítica à questão do justo (richtige, correto) e do falso, e ao mesmo tempo à crítica da instância (Instanz) que confia (sich zutraut) nesse tipo de autocrítica. Eu emprego aqui a contragosto a expressão “Humanidade” (Humanität), pois ela pertence às expressões que tornam coisificadas (dingfest) e falsificam as coisas mais importantes de que se trata, pelo próprio fato de serem expressas (dass sie ausgesprochen werden).37 Segue-se a resposta à União humanista. O que precede essa resposta - o que acabamos de ler -, e, mais ainda, o que a sucede, explicita bem todo o problema, e com isso o caráter da resposta. Estamos diante da dialética do humano e do anti-humano, cujo primeiro modelo está na crítica a Kant que faz a Fenomenologia do espírito de Hegel. A linguagem do humano, escreve Adorno, bloqueia, falsifica (eu diria, com Hegel, mas é a mesma coisa: se interverte no seu contrário). Por isso ela não pode ser utilizada.38 Mas isso por acaso significa que a linguagem do inumano serve? A resposta ao clube humanista poderia sugerir que sim, mas todo o contexto mostra que não. De resto, Adorno escreve de forma característica “talvez eu estivesse pronto a entrar”. A resposta aos humanistas é um witz dialético, ele exprime uma figura dialética. Dela não se pode concluir de forma alguma que Adorno assume o inumano, nem muito menos que ele acredita em alguma coisa que vá na direção da tese da “potência política no interior do inumano”. E se ainda subsistir alguma dúvida releiamos um texto do final da mesma aula 17, em que se encontra a resposta aos humanistas, texto que utilizei como epígrafe do presente artigo: “Podemos não saber o que é o bem absoluto, o que é a norma absoluta, e mesmo o que é o homem ou o humano e a humanidade, mas o que é o inumano nós o sabemos muito bem. E eu diria que hoje o lugar da filosofia moral está mais na denúncia contra o inumano do que em tentar situar de algum modo, de uma forma não comprometida e abstrata, o ser do homem.”39 Esse texto é uma verdadeira advertência contra os que querem ler a dialética do humanismo e do anti-humanismo, como bandeira anti-humanista. Reificar o anti-humanismo, glorificar a potência política contida no anti-humanismo, como se fosse o resultado dessa dialética, é um erro colossal, tão grande quando tirar dela uma filosofia humanista, senão maior. Mas, logicamente, em que consiste esse erro? O procedimento de Safatle tem o sentido de uma dogmatização do discurso adorniano, isto é, de uma subrepção da dialética em Adorno, o que não é pouca coisa. O preço que se paga por fazer convergir Adorno e Zizek (apesar das pequenas críticas, correções, e atenuações etc), é simplesmente o da dialética. Porque a crítica dialética visa precisamente suprimir os dois opostos do entendimento. Ela recusa as oposições do entendimento que não permitem a passagem de um extremo ao outro, passagem que não implica, de forma alguma, em relativismo. Essa recusa de duas posições extremas vamos encontrar no núcleo do pensamento de Frankfurt, e em particular de Adorno, mas, para além dele, em todos os grandes textos dialéticos (em Adorno, por exemplo: crítica dos defensores da cultura, mas também crítica dos seus críticos, crítica do eu, mas também crítica dos críticos do eu, reivindicação do imediato [o suplemento] diante das regras morais, mas ao mesmo tempo afirmação dessas regras junto com o imediato, crítica da normatividade, mas também afirmação dela - Safatle pelo contrário denuncia dogmatica e antidialeticamente a filosofia normativa - etc etc); o modelo disso, já disse, é a crítica hegeliana do Aufklärung e da Superstição, mas há muitos outros exemplos. Quando não se percebe esse duplo movimento, é a dialética que se vai.40 Nesse contexto, eu diria, no que se refere a Safatle, que se ele vai bastante longe na compreensão da dialética - principalmente o seu primeiro livro importante, A paixão do negativo, Lacan e a dialética,41 contém muitas passagens dialeticamente rigorosas -, essa dialética é, por assim dizer, regional. Quando passa ao plano das teses filosóficas mais gerais, Safatle é tudo menos dialético. De fato, apesar das críticas pontuais, sua dependência para com a “filosofia do inumano” representa inelutavelmente um compromisso não com a dialética, mas com o entendimento.

Um último aspecto a propósito dessa leitura de Adorno é que ela não leva em conta suficientemente o trajeto, isto é, as inflexões cambiantes da obra de Adorno. Ou, precisando, que ele dá um peso, a meu ver, demasiado grande e acrítico a esse livro brilhante mas problemático que é a Dialética do Aufklärung.

B)Este último fato, mais o peso do lacanismo, leva, a meu ver, a uma outra dificuldade, sobre a qual insisto, tanto pelo seu interesse geral, como pelo fato de que ela converge com o malentendido anterior, o da leitura do texto de Adorno como se ele promovesse o inumano (um quiproquó que, como acabo de dizer, vem pelo menos sob certo aspecto, de um insuficiência no investimento da dialética). Refiro-me ao que Safatle, na esteira do “Juliette ou Aufklärung e Moral”, in Dialética do Aufklärung de Adorno e Horkheimer,e do “Kant com Sade” de Lacan, pensa sobre Kant. Trata-se de estabelecer uma convergência “entre a moralidade kantiana e a perversidade sadiana”.42 Em Kant e em Sade haveria um imperativo (respectivamente, moral e de gozo) que se imporia em forma absoluta, por sobre toda empiricidade que lhe oferecesse resistência (o domínio do patológico em Kant, certas determinações empíricas como as diferenças entre os corpos em Sade43 ). Com o progressivo sucesso da Dialética do Aufklärung essa leitura se tornou famosa - o que se justifica, ela tem interesse e algum tipo de fundamento -, mas também tornou-se uma espécie de vulgata (veja-se por exemplo, o tom um pouco desenvolto da crítica de Safatle ao livro de Roudinesco).44 Mas até onde vai esse paralelo? A questão nos leva muito longe, e, claro, não pode ser desenvolvida aqui o quanto ela mereceria. De minha parte, acho que se pode reconhecer não só a originalidade, mas a verdade, digamos, regional, daquela tese. Há um elemento de coerção moral em Kant que converge com aquela espécie de lei coercitiva erótica que se encontra nos textos de Sade. Entretanto, o paralelo parece se basear numa leitura muito incompleta senão parcial de Kant. Tanto em “(...) Aufklärung e Moral” (in Dialética do Aufklärung),como no texto de Lacan (ao que parece, Lacan conhecia o que escreveram Horkheimer e Adorno), dá-se destaque a dois elementos, na ética kantiana: a noção de universalidade, e, principalmente, a ideia de coerção. É em torno dessas noções que gira, nos dois textos, a interpretação do kantismo (deixo de lado, aqui, as diferenças). Ora, há um elemento essencial que, a meu ver, foi omitido, e que, se levado em consideração, altera muito as coisas. De fato, poder-se-ia dizer, nos referindo principalmente aos Fundamentos da metafísica dos costumes, que, além dos conceitos de autonomia e de liberdade, com que se completa a exposição, há três temas decisivos na ética de Kant: sem dúvida, os da universalidade e da lei - e portanto da coerção -, mas também o dos meios e fins. A universalização e a lei estão principalmente na primeira e na terceira formulação do imperativo categórico. Os meios e os fins estão na segunda. Ora, meios e fins estão muito pouco presentes no texto de Adorno e Horkheimer, e estão ausentes do texto de Lacan. O que representa a segunda formulação? Há uma vasta bibliografia a respeito, e, evidentemente, eu não poderia entrar aqui em detalhe nessa discussão, que é de um interesse muito grande, senão decisivo, e que ultrapassa de longe o nível dos problemas de ordem historiográfica. Nos Fundamentos, Kant explica que se “em todas as fórmulas, se encontra ‘uma forma (...), uma matéria (Materie) (...) e uma determinação completa (vollständige Bestimung) (...)”,45 a primeira põe em evidência a forma, a segunda a matéria e a terceira a determinação completa. É essa expressão preferencial da matéria que fica faltando. (Observar como o texto de Horkheimer e Adorno insiste em que a razão é puramente formal: “(...) ela não estabelece fins com conteúdo (Inhaltlich)”46 . De fato, o privilégio do formalismo como que resume os da universalidade e da lei (coerção). Essa omissão é essencial à tese da convergência com Sade, pelo menos se se pretender que a tese diz a verdade do kantismo. De fato, se deixarmos de lado o imperativo como exigência de tratar a humanidade também como fim, é algo muito importante que cai fora. Com alguma liberdade, eu diria que o que Kant chama de matéria tem alguma coisa a ver com o que constituiria uma espécie de conteúdo do imperativo.47 E o teor desse conteúdo é, a rigor, o inverso do princípio sadiano. Num caso, exige-se tratar o outro, e a si próprio, (também) como fim. No outro, exige-se o direito de tratar o - corpo do - outro como se quiser, sem limitação alguma, portanto sem nenhuma exigência de ter sempre em vista a consideração de que o outro é um fim em si mesmo. Aqui, seria bom lembrar que Kant nunca disse que não se pode tratar do outro como meio, ele escreve que não se deve tratá-lo como meio, o que é diferente.48 Se se pode falar em convergência entre Kant e Sade, é uma convergência no plano da forma (não estou dizendo que a forma não importa, e principalmente em se tratando de Kant), mas digo que a forma tem de se completar com o que ele chama de matéria (é Kant mesmo que afirma essa necessidade: estude-se com cuidado a passagem da primeira formulação à segunda, e ver-se-á como ele destaca o que falta enquanto não se chegou à segunda). E quando passamos à segunda, não vejo como não concluir que a convergência Kant e Sade se revela divergência. A exigência de pensar sempre o outro também como fim vai a contrapelo do discurso sadiano. O pensamento estruturalista e pós-estruturalista é tão marcado pelo privilégio da forma que omite de maneira brutal o que está dado no conteúdo. E nesse conteúdo há uma exigência (uma das formulações do imperativo) que é literalmente pisada pelos totalitarismos do século XX.49 Nesse sentido, ele é muito atual, e quem o omite paga um preço muito alto por isso. A observar que essa desleitura de Kant vai na direção da inflexão ilegítima do discurso adorniano em direção ao anti-humanismo, que critiquei mais acima: nos dois casos, um lado - não, humanista, mas - anti-anti-humanista (o que não é a mesma coisa), ou anti-inumano, se perde. Só que com uma diferença: lá o resultado é incorporar Adorno ao discurso de glorificação do inumano; aqui, porque aparece a violência individual e, no plano da política, também, e principalmente, a violência fascista e nazista (ver “[...] Aufklärunge moral”), o resultado é fazer com que o Aufklärung tenha, sem mais, o muito ambíguo discurso sadiano como sua verdade.

Porém há quem se lembre da questão dos meios e dos fins em Kant, e não para desqualificar a tese kantiana. Quem insiste sobre a importância desse tema, e da segunda formulação do imperativo na moral kantiana, trinta anos depois da Dialética do Aufklärung, é... Adorno, na Dialética negativa. É verdade que Adorno enfatiza aqui principalmente a ideia de que o rigorismo kantiano se abre para os homens empíricos e para o reconhecimento da felicidade. Mas a questão da humanidade (Menschheit) vem à tona com isso. No segundo item (“Liberdade, para uma metacrítica da razão prática” da terceira seção, “Modelos”) da Dialética negativa,depois de insistir sobre os traços repressivos da moral kantiana, e sobre o seu teor inerentemente abstrato, Adorno escreve: “(...) que, entretanto, em várias passagens, como a notável segunda observação ao segundo teorema dos princípios da razão prática, a sua humanidade (Humanität) quebra a norma da coerência. Ele devia pressentir que sem essa inflexão seria impossivel viver segundo a lei moral. O puro princípio racional da personalidade deveria convergir com o da autoconservação da pessoa, da totalidade do seu interesse, incluindo a felicidade. (...) Que nos Fundamentos... e na Crítica da razão prática aparecem frequentemente termos com conteúdo social, pode ser que isso seja incompatível com a intenção apriorística. Mas sem uma tal metabasis Kant seria obrigado a se calar diante da questão da compatibilidade da lei moral com os homens empíricos. Teria de capitular diante da heteronomia logo que reconhecesse o caráter irrealizável da autonomia. Se, a serviço da coerência sistemática se quisesse despojar aqueles termos de conteúdo social (sozial sachhaltigen Termini) do seu sentido simples e sublimá-los em ideias, não se desprezaria apenas o texto (Wortlaut). Com uma violência maior do que a que permitiria à intenção de Kant fazer aí alguma coisa, inscrevem-se neles a verdadeira origem das categorias morais. Se lemos na famosa variante do imperativo categórico, nos Fundamentos...: ‘Age de tal modo que trates a humanidade (Menschheit), tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre igualmente (zugleich) como fim, e nunca simplesmente como meio’ - pode-se sempre entender ‘Humanidade’ (Menschheit) potencial humano nos homens só como ideia reguladora; a humanidade (Menschheit), o princípio do ser humano (des Menschseins), de forma alguma a soma de todos os homens, ainda não se realizou (verwirklichen). Entretanto, não se pode deixar cair o suplemento de conteúdo factual (faktischen Gehalt) [que está contido] na palavra: cada indivíduo deve ser levado em conta (achten, considerar, respeitar) enquanto representante do gênro Homem (Mensch), socializado, e não como simples função do processo de troca. É social a diferença entre meio e fim, acentuada de maneira decisiva por Kant, entre os sujeitos enquanto mercadoria força de trabalho, dos quais se pode extrair valor, e os homem, que mesmo enquanto [são] essa mercadoria permanecem sujeitos, em prol dos quais o mecanismo global é posto em funcionamento, mecanismo que os esquece e só satisfaz lateralmente. Sem essa perspectiva, a variante do imperativo categórico se perderia no vazio”.50 Assim, se a Dialética negativa não desautoriza a Dialética do Aufklärung, ela a completa, senão corrige.51 Deixo para outro lugar o comentário mais desenvolvido que um texto como este exigiria.

8. Alguns problemas maiores

a) Sobre a hegemonia da literatura midiática na Europa. Sem abandonar a referência aos textos de Safatle, e, em geral, a crítica aos filósofos do inumano, mas tentando generalizar um pouco, vou tratar de três pontos em conexão com as questões que levantamos até aqui. Esses problemas são: a) o do caráter geral dos escritos de autores como Badiou, Zizek e outros, e, mais do que isto, o do que poderia significar o relativo prestígio de que goza, no mundo, esse tipo de autor e de literatura; b) a questão do humanismo e do anti-humanismo, em suas conexões com o discurso dialético, tomada agora em forma mais geral, e incorporando alguns elementos que não vimos até aqui.; c) o problema político, em particular o do que deveria fazer hoje a esquerda.

No meu entender, personagens como Zizek ou Badiou52 representam um fenômeno relativamente novo, e de significação social - ou sociológica - considerável.

De fato, de uns trinta anos para cá, constitui-se na Europa uma literatura teórica - em grande parte pseudoteórica ­- que se impôs ao grande público, e que, em boa medida, veio ocupar o lugar do que se faz (ou fazia) de mais sério em matéria de teoria, e de filosofia em particular. Se eu quiser apelar para a minha experiência vivida - que, claro, pode sempre ser ilusória - quando vim pela primeira vez à França, nos anos 1960, as livrarias exibiam textos de grandes autores (Sartre, Merleau-Ponty etc) no setor de filosofia. Passados uns vinte anos, a coisa mudou de figura. Vendem-se grandes autores, mas o que se exibe de maneira mais imediata ao público são figuras midiáticas de um tipo característico. Embora eles não sejam de forma alguma ignorantes ou pouco informados, seus trabalhos não resistem a um exame mais rigoroso. São textos de brilho fácil, e de grande efeito, não no melhor sentido da expressão. E além de muito presentes na mídia, esses autores escrevem e publicam muito. São autores de sessenta livros.

Se as duas figuras de que se tratou nesse artigo se situam à esquerda da esquerda, a meu ver elas fazem parte de um gênero de literatura, globalmente de esquerda, mas compondo um leque de posições, que vai da extrema-esquerda (da esquerda) até a direita-da-esquerda, comportando outras nuances, eventualmente uma variante libertária. Bernard-Henri Levy - pelo menos enquanto autor de livros como O testamento de Deus -, e, com ele, os chamados “novos filósofos” que brilharam nos anos 1970 e 1980, fazem parte dessa família, e foram os seus primeiros representantes, sua primeira aparição. Nela, eles representaram, e ainda representam, a direita-da-esquerda. Zizek e Badiou, seus opostos têm mais coisas em comum com eles do que se poderia pensar: Zizek e Badiou são, na mesma família, a extrema-esquerda (da esquerda). É provável que alguém como Michel Onfray deva ser incluído no mesmo gênero (reservo em parte o meu juízo, porque o li muito pouco): se vale a hipótese, ele encarna a variante libertária, ou pseudolibertária. Em relação a todos eles, acho que deve valer a norma geral. Não se trata de excluí-los, de fazer silêncio sobre tudo o que escrevem - deve-se citá-los, evidentemente, se se encontrar nos seus escritos passagens que merecem ser citadas -, mas, antes de mais nada é preciso prestar atenção ao gênero sociológico a que eles pertencem, e pelo mesmo movimento, ficar atento ao que vale - ou não vale - a sua produção teórica. Não posso examinar aqui em detalhe esse movimento, simplesmente chamo atenção para um fenômeno que me parece novo.

Duas palavras apenas para o que esse fenômeno pode significar para nós; nós que, se aparentemente já não fazemos parte do mundo subdesenvolvido, pertencemos, de qualquer modo, ao bloco dos chamados emergentes. No interior da situação brasileira, penso em particular no mundo universitário, privilegiando o caso da filosofia. Até aqui, fomos muito tributários do mundo europeu, o que teve aspectos positivos e negativos. Positivos: aprendemos muito com eles em matéria de rigor de leitura e outras coisas. O negativo foi a atitude de hiper-valorização do que faziam os europeus, o culto do professor europeu, que teve e tem inconvenientes maiores. Mas, até certo momento, a produção europeia nos oferecia: 1) o pensamento dos grandes autores; 2) a literatura universitária, por exemplo, os livros de história da filosofia, literatura honesta, útil, mesmo se, frequentemente, sem grandes voos.

Com o tempo, eu não diria que surgiram grandes autores no Brasil, mas diria sim que, pouco a pouco, a produção nacional foi se alçando, em certos domínios, ao nível dos europeus, e em alguns casos os ultrapassou. Frequentemente, nosso autores e universitários não se dão muito conta disso, e professam um respeito um pouco excessivo em relação à produção europeia. Mas isso não tem maior inconveniente. Mais tarde ou mais cedo, eles tomarão consciência de que o que se faz lá neste ou naquele setor, não é melhor do que o que se faz aqui. (Claro que globalmente ainda subsistem importantes diferenças.)

Ora, é nesse contexto que surge o fenômeno do aluvião midiático. E aí o perigo é evidente. Se não nos dermos conta de que apareceu uma coisa nova, contra a qual devemos ter bem alertas as nossas antenas críticas, corremos um risco real de retrocesso. Esse risco existe no pensamento europeu e mundial, mas no nosso caso ele é sobredeterminado pela tradição de respeito, e de respeito excessivo, pelo que se faz fora. Nesse sentido, ter consciência de que até aqui escapamos dessa onda e de que, sob certo aspecto, estamos melhor armados do que eles, é simplesmente urgente. A atitude contrária, que consiste em recolher sem crítica o conjunto da produção europeia, juntando o pior e o melhor - o que resta de pensadores mais a melhor produção universitária de um lado, e de outro a literatura dos autores de sessenta livros - é propriamente suicida. Aproveitemos a distância de que estamos dos grandes centros - distância, repito, que é um fator ao mesmo tempo negativo e positivo - mais o fato importante de que há, entre nós, um germe de história intelectual com alguma autonomia, para mobilizar as forças críticas diante do que é, um pouco, um fenômeno de decadência do pensamento europeu. A nossa fraqueza de subdesenvolvidos ou de emergentes pode ser força.

Castoriadis escreveu, no momento em que surgiu a literatura dos novos filósofos, que “a presença efetiva [da] verdade” (...) era “arruinada tanto pelo totalitarismo como pela impostura publicitária”. A “impostura publicitária” era o que ofereciam os “novos filósofos”. E ele continuava: “Mais insidiosa, a impostura publicitária, não é, a longo prazo, menos perigosa do que a impostura totalitária. Por meios diferentes, uma e outra destroem a existência de um espaço público de pensamento, de confronto, de crítica recíproca. De resto, a distância entre os dois não é tão grande, e os procedimentos utilizados são frequentemente os mesmos”. Por outras palavras, comentando O testamento de Deus de B.-H. Levy - o texto de Castoriadis sucede a uma crítica do mesmo livro por Pierre Vidal-Naquet - o que Castoriadis diz (em 1979) é que ficamos entre a violência midiática de tipo publicitário e o discurso totalitário; mas que no fundo os dois fenômenos convergem. O diagnóstico de Castoriadis, se revelou, infelizmente, mais do que verdadeiro: premonitório. Com uma diferença. Hoje não temos mais a alternativa, ou impostura midiática publicitária ou discurso pró-totalitário, mesmo se convergentes. Com Badiou e principalmente Zizek - de minha parte, eu não hesitaria em dizer (para as comprovar essa tese, ver também os meus artigos) - temos impostura midiático-publicitária mais discurso pró-totalitário. Tudo numa mercadoria só. A alternativa virou conjunção. O fenômeno é muito sério e mereceria ser estudado mais de perto.

b) Sobre humanismo, anti-humanismo e dialética. Esses foram temas centrais desse texto. Porém conviria dizer alguma coisa mais geral sobre os dois. Onde está o erro ou o sofisma da moda do inumano? Talvez se pudesse resumir a dificuldade (ou o engodo) dizendo que se o inumano, claro, existe, isto não significa que devamos assumir o inumano. Entenda-se assumir plenamente, isto é, em linguagem mais técnica pôr o inumano. Diferentemente, levar em conta o inumano (já explico - ou volto a explicar - o que isso significa) é não só válido, mas essencial. Pôr o inumano é um desastre, teórico e prático.

O que se pode e deve fazer com o inumano? Digamos que há dois (ou três) níveis em que o inumano aparece, mas nesses dois (ou três) casos ele não deve ser posto, ou plenamente posto. Por um lado, ele está presente já no quadro da crítica clássica, isto é, da crítica marxista. Aí ele aparece afetado pela supressão (Aufhebung), ou seja, sob figura da supressão (aufheben) do humano (de forma alguma afetado pela simples negação do humano). Sua presença negada se impõe, dada a interversão invitável do humano no interior de um campo semântico e prático de inumanidade ( a supressão do humano bloqueia essa interversão). Esse humano negado - é fácil ver - é o da violência como contra-violência.53 Até aqui, a crítica clássica. Para além dela, e também para além do caso da sublimação pela arte e pelo jogo (aqui reaparece a negação, mas sob outra forma), o inumano surge propriamente como limite do humano ou como um lado, sem dúvida irredutível, mas ao mesmo não mais do que parcial da condição humana. O deslizamento em direção ao inumano é uma possibilidade inscrita no homem, mas não esgota nem define a sua essência. “Levar em conta o inumano” remete a uma crítica não anti-humanista do humanismo, crítica da visão idílica da maioria dos humanismos que não vêem esse lado negativo senão como deformação de uma natureza humana - que se supõe essencialmente boa - pelo peso das condições sociais. (A psicanálise, como se sabe, contribuiu muito para a crítica dessas ilusões, que, em boa medida, estão presentes na visão marxiana das coisas. Mas o passo essencial nessa direção foi dado, no interior do pensamento de esquerda pelo menos, por Frankfurt). A natureza humana contém várias possibilidades, e hoje é evidente que o lado da agressividade e da violência não será simplesmente erradicado - embora possa ser muito neutralizado (aqui não apenas no sentido da sublimação pela arte ou pelo jogo) - se as condições sociais mudarem. Mas a lição que se tira daí não é a de que é preciso construir uma filosofia fundada no inumano, e sim de que é preciso renunciar a ideias como por exemplo a da sociedade transparente, que estava no fundo do projeto marxiano.54 Mas enfim, tudo isso posto, a assunção do inumano, pelos autores à la mode é, de qualquer modo, simplesmente uma inépcia. E uma inépcia que tem algo a ver, entre outras coisas, sem dúvida, com a sua incapacidade em investir a dialética. O anti-humanismo é um dogmatismo, no sentido em que esse último termo indica o oposto ao pensamento dialético. A propósito desses problemas, gostaria de lembrar a contribuição de um autor, a que já me referi, autor que não está ligado diretamente à tradição dialética, mas que diz o essencial, no plano do conteúdo, mas também, à sua maneira, no da forma (por forma entendo sua orientação em termos da lógica do discurso): Castoriadis. Uma das coisas mais interessantes no pensamento de Castoriadis é que, precisamente, se ele não faz nenhuma concessão às modas do inumano e do anti-humano, nem por isso reza pela cartilha do humanismo. Veja-se o que ele escreve sobre as ilusões relativas à natureza humana (ilusões professadas pelo que se caracteriza em geral como humanismo): “[A psiquê] é forçada a abandonar - ou, antes, a enterrar - o que para ela se identifica ao sentido em troca da possibilidade (da quase necessidade) de interiorizar e investir o que a sociedade lhe oferece à guisa de sentido: as significações imaginárias sociais. Mas isso quer dizer também que, a partir desse momento, a psiquê é habitada por uma irradicável negatividade,contra a sociedade, contra os outros, contra a realidade, contra essa máscara social, ela mesma, que a obrigaram a vestir - isto é, contra ela mesma como pessoa social. De onde o caráter não erradicável no nível do núcleo duro psíquico, do ódio, das tendências agressivas e destruidores e/ou de um masoquismo fundamental. Até aqui as instituições sociais afrontaram esse problema criando derivativos intra ou extrasociais, como a competição e a guerra. Pode-se e deve-se encontrar outras vias, mais humanas, para realizar essa função. Mas jamais se deveria supor um ser humano naturalmente bom, somente corrompido pelas influências perniciosas da sociedade - ilusão catastrófica partilhada pelos anarquistas, pelas feministas, e por diversos militantes radicais contemporâneos e certos psicoterapeutas. Temos razões (nous sommes fondés) para lutar por uma mudança de sociedade, por instituições verdadeiramente democráticas, para expulsar a produção e a economia do lugar central e dominante que elas vieram a ocupar no mundo contemporâneo, por uma educação orientada para a autonomia e não somente para a aquisição de competências profissionais. Mas é preciso olhar de frente a realidade - aqui, fundamentalmente, a realidade psíquica: uma sociedade muito mais humana é possível e desejável, mas um ser humano angélico não é nem uma coisa nem outra [nem possível, nem desejável, RF]”.55 E, entretanto, Castoriadis não assume de forma alguma o inumano, e é um crítico radical - mas não dogmático - do lacanismo. Na discussão sobre a psicanálise, a posição de Castoriadis é notável, porque ao contrário do que ocorre na literatura midiática de extrema-esquerda, ele rejeita tanto a psicanálise adaptativa quanto o lacanismo (sem deixar de reconhecer os méritos que tem - ou teve - este último). Essa mensagem, já disse, vale pelo conteúdo e também pela forma (lógica). Se Castoriadis não vem de uma tradição dialética, ele não se perde num polo ilusório por causa da recusa do outro. Acho que, num artigo sobre um autor tão receptivo à crítica de um dos lados da servidão (crítica unilateral, que por isso mesmo, se cristaliza em ideologia a serviço do outro lado), o seguinte texto de Castoriadis merece uma longa citação: “Desde alguns anos, há uma conversa (on bavarde)na França sobre o desejo do analista. Mas, o ‘desejo do analista’, pouco importa (on s‘en moque). O que importa - e que essas falações visam ocultar - é a visada, a vontade, o projeto do analista. É falso e mistificador dizer que o analista não quer nada para o seu paciente(...) Claro, ele não quer isto ou aquilo (...) Mas ele quer que o paciente se desaliene, que ele se automodifique, sabendo, tanto quanto é possível, que ele transforma a relação entre o seu inconsciente e o seu consciente, que ele leva aquele à expressão e este não ao domínio (maîtrise), mas à lucidez e à atividade (...) Desse ponto de vista Glover/Nacht [psicanalistas conservadores, RF] e Lacan é a mesma coisa (c‘est blanc bonnet et bonnet blanc).Os dois [Lacan, de um lado, Glover e Nacht, de outro, RF] funcionam e só podem funcionar juntos, como peças complementares do sistema da época. O que escapa ao equivalente psicanalítico do cretinismo burocrático mascarado sob a tecnicidade e o saber do des-falar (dé-parler) e do des-ser (dés-être),mesmo se, e principalmente, quando se mascaram por trás da cientificidade, a estrutura, o matema e o blefe grotesco (abismos de ignorância não por acaso - à juste titre - presupostos nos ouvintes!) de uma álgebra e de uma topologia do inconsciente: mesmo e principalmente quando eles têm a coragem (le front) (supremo desafio perverso) de falar de ética da psicanálise”.56 Está tudo aí.

c) O problema político.O terceiro ponto que eu gostaria de desenvolver é o problema político. Volto aqui, um momento, ao texto da polêmica com Safatle (de que me ocuparei ainda, no tópico final), mas só como um ponto de partida. Safatle escreve: “Em dado momento (...) ele [eu, RF] diz, a respeito de minha defesa da importância de compreender o que esteve em jogo nos projetos estéticos e políticos vinculados à temática do ‘homem novo’ (...): [Safatle cita o meu texto, RF:] “Falta a Safatle como aos seus modelos um mínimo de consciência das tendências à regressão histórica, que emergem frequentemente dos projetos escatológicos de ‘salto’ no futuro”. Eu [Safatle] diria, de minha parte, que falta a Fausto um mínimo de consciência das tendências à regressão histórica que emergem dos projetos de defesa dos limites atuais de nossa democracia parlamentar. Ou seja, há simplesmente uma incapacidade de compreender como regressões podem ocorrer nas estruturas políticas vinculadas a processos de racionalização social”. Aqui voltamos ao tema central do meu artigo (“Esquerda/direita...”). Mas em resposta a Safatle, posso acrescentar o seguinte. Como escrevi no início deste artigo, o movimento socialista se dividiu em duas tendências; e essa divisão deve ser o ponto de partida de toda crítica ou balanço da esquerda. Em linhas gerais, pode-se dizer que nenhum dos dois ramos produziu um bom resultado. O lado comunista deu em estados autoritários, depois em estados totalitários, e, em seguida à crise, em Estados híbridos (esses verdadeiros ornitorrincos) capitalistas-burocáticos ou totalitários-capitalistas. Esse processo teve como resultante a desmoralização da ideia de socialismo. E o outro lado? A social-democracia teve o grande mérito de defender a democracia, mas a sua história está marcada por erros e também por crimes. Começa com o apoio à política nacionalista durante a primeira guerra mundial, anos depois se perde em socialismos colonialistas (Guy Mollet), ou favoráveis às aventuras da direita americana (Blair) além de pôr em prática uma política econômica muito próxima da dos neoliberais (idem, entre outros). A acrescentar que a social-democracia professou uma ideologia produtivista, mesmo se, em geral, relativamente progressista em termos culturais. Mas, apesar de tudo, o balanço da social-democracia é historicamente menos desastroso, pelo menos se considerarmos as suas grandes figuras (Kautsky erra muito no início da guerra, porém logo abandona o velho partido, e forma, com outros, um partido social-democrata independente; o socialismo nórdico teve uma política independente [o que talvez tenha custado a vida a Olaf Palm]; a política de Blum teve os seus erros, mas eles não tiveram o caráter desastroso do conjunto da política de Guy Mollet ou de Blair). Do lado comunista, o que houve de positivo deve ser buscado nos seus dissidentes, e antes dos anos 1920: essencialmente no jovem Trotski antibolchevique, e em Rosa Luxemburgo (cf. o meu scriptum). Entretanto, é verdade que, hoje, no estado em que se encontra, a social-democracia, pelo menos a oficial, é sinônimo de bloqueio. Bloqueio e regressão. Mas isso não significa que devamos fazer concessões ao lado comunista ou neocomunista. É preciso reunir ao mesmo tempo um grande radicalismo no plano econômico e social, com um máximo de aspiração democrática. De fato, o problema político, hoje, é o de que, cada vez que se pretende radicalizar a política da esquerda, afloram modelos autocráticos. Nesse sentido, a evocação do nome de Mélenchon,57 por Safatle, é um engano. Não que Mélenchon não tenha méritos. Eles se revelaram principalmente durante a campanha eleitoral para a presidência da França. O seu discurso radical arejou a fala excessivamente contida do candidato vitorioso. Mas as posições de Mélenchon são duvidosas no plano das liberdades. Toma posição contra os dissidentes cubanos no parlamento europeu, defende a China na questão do Tibet, vai à Venezuela participar da campanha do seu amigo Chávez58 etc etc. Esse modelo não serve. Não só ele é insuficiente no plano teórico e político, mas em termos práticos, pelo menos na Europa, é inviável. Ninguém confia em partidários de Castro ou de Chávez. E com razão. Assim, as posições políticas de Safatle são no fundo excessivamente clássicas. Precisamos de uma visada que é relativamente nova: a união do radicalismo e da democracia. Difícil? Sim, mas não impossível.

Não é aqui o lugar de apresentar programas, mas como é urgente pôr as cartas na mesa, indiquemos as grandes linhas do que, a meu ver, seria preciso fazer: no plano econômico e social, é necessário, sem dúvida, insistir na nacionalização dos bancos, dos serviços públicos, da indústria farmacêutica, e, se houver, da indústria de guerra; no desenvolvimento da economia cooperativa, na cogestão, na liquidação de pelo menos as piores formas de despotismo de indústria (é uma ilusão pensar que opressão no interior do lugar e do processo de trabalho pertence ao passado); projeto ecológico coerente: abandono do nuclear, programa de redução drástica das emissões de CO2; democracia, a mais ampla, representativa sim, mas combinada com formas de participação direta, incluindo consultas à população sobre as questões mais importantes; em geral, esforço para alterar o ethos das sociedades existentes criando condições “para que se possa respirar” melhor, nos dois sentidos da expressão.

9. Concluindo

Concluindo, volto ainda uma vez, e mais de perto, ao pensamento e ao livro de Safatle. Que ele seja ou não partidário de Zizek e Badiou isto é, que ele seja ou não especificamente badiouista ou zizekiano, não é, exatamente, o mais importante. O essencial é que ele professa uma filosofia do inumano. Isso é explícito,59 e nesse sentido suas ideias pertencem genericamente ao universo de Zizek e Badiou.60

Retomemos - para terminar - alguns pontos. Começando pelo mantra da “contagem dos mortos”. Como disse no início, Safatle pensa na contagem, não nos mortos.61 Quem diz isso, finalmente não mede tudo o que significa esses mortos para o balanço da esquerda no século XX. O argumento é absurdo: porque não se sabe exatamente se foram 30 ou 35 milhões os mortos, por exemplo, do “grande salto para a frente (!)”, de Mao, o problema é diluido (“seriam 50, 100...”, diz Safatle, fazendo uso de uma ironia bem duvidosa em se tratando dessa matéria). Isso não é sério. Houve milhões e milhões de mortos em nome do socialismo. Apresentar tudo isso como uma questão de “contagem dos mortos”, vai junto com a ideia de que coisas como o “grande salto para a frente” foram tentativas no caminho da realização do socialismo (essa formulação ele pelo menos já endossou). Para mim, são massacres não tentativas. Quanto ao argumento de que do lado de lá não foi melhor, seria preciso lembrar: o movimento socialista não foi inventado para empatar com o capitalismo ou com formas que resultam da sua decomposição. Se nos tranquilizarmos com o argumento de que os outros também mataram milhões, é a natureza do projeto socialista de emancipação que se esvai.

O núcleo problemático de tudo isso é uma filosofia que invoca o inumano. A tese fundamental dessa filosofia - sem dúvida numa forma radical - está na Ética de Badiou. A espécie humana, em si mesma, não teria mais dignidade do que, digamos, uma espécie de insetos (Cf. a Ética de Badiou62 ). De fato, se milhões de insetos são sacrificados, importa pouco. Sem dúvida, estabelecida essa igualização, Badiou faz valer em seguida o que, na realidade, são exceções, os chamados “eventos” (situações em que o homem se infinitiza). A revolução francesa, Galileu, a música de Mozart, o amor, e.... a revolução cultural chinesa...63 Não vou responsabilizar Safatle pelas fórmulas de Badiou (pela espécie de filosofia do inumano que Badiou encarna, embora à releitura de certas passagens de Grande Hotel Abismo..., eu já tenha as minhas dúvidas), mas genericamente, Safatle professa a mesma filosofia do inumano. E, apesar das críticas pontuais, professa também a mesma atitude global em relação à experiência comunista do século XX.

Dir-se-á que Safatle dá alguns passos, alguns deles desde há muito tempo. Ao que parece, esses passos tendem a se tornar mais frequentes.64 Safatle não reza pela cartilha castrista (nem chavista, como já vimos) o que é um mérito. Além disso, é um fato, permite-se ensaiar alguns caminhos críticos. Diria mesmo, como já disse, que seu livro está no limite do ecletismo. Numa discussão pública, com dois outros universitários, a respeito de livros de Zizek e Badiou, ele chegou a afirmar que seria preciso pensar “num Estado justo, que respeitasse a liberdade e a igualdade” (isso depoisde uma intervenção genérica em que voltava ao mantra da “contagem dos mortos” e recorria ao argumento casuístico da “ideia que leva séculos a se realizar”, argumento que rediscuto em seguida, para terminar). Ora, a ideia de “Estado justo, respeitoso da igualdade e da liberdade” é compatível com o conjunto das teses de Safatle? No plano filosófico e antropológico, ele quer o “inumano”, “o homem novo”, e cultiva “o obscuro desejo de nos livrarmos de nós mesmos” (ETDN, p. 64), no plano político tem uma posição não mais do que reformista em relação à experiência comunista do século XX, além de não perder ocasião para reafirmar (mesmo se, em geral, à sua maneira oblíqua) o seu juízo essencialmente positivo em relação ao leninismo. Se a tese da necessidade de conquistar o Estado que Safatle afirmou no mesmo contexto é, sem dúvida, compatível com o projeto comunista e leninista (e mais do que isso, lhe é inerente), a ideia de Estado justo, enunciada naqueles termos, não o é, certamente. O único Estado justo para Lenin é a ditatura do proletário, cujo forte não é a defesa da liberdade. Safatle não se preocupa, parece, com tal contradição. Ele continua utilizando argumentos do seguinte tipo, como resposta à pergunta o “que significou o século XX?” (pergunta que ele introduz a partir de Badiou, o campeão da “ideia do comunismo”): o republicanismo no século XIII era uma ideia abstrata, e aparentemente irrealizável. Hoje todo mundo o aceita. Foram necessários muitos séculos e muitas vicissitudes, para que ele se realizasse. É o que teria acontecido com a ideia ... (que ideia? a ideia de esquerda do século XX, “século do advento da outra humanidade”, como diz Badiou: só pode se tratar da ideia comunista). Muito bem. Só que o republicanismo não foi a única ideia política dos séculos que nos precederam. Houve muitas outras ideias, por exemplo, movimentos messiânicos, que de algum modo concorriam com ele, e que não se realizaram. Inversamente, o comunismo não foi a única ideia na história do socialismo e da emancipação. Na realidade, ele foi uma tendência. E sob a sua forma leninista uma forma muito específica, embora viesse a ser a forma vitoriosa. Mas Safatle tem uma visão monista da história. Se, para ele, a ideia comunista talvez não envolvesse todo o projeto de emancipação, certamente o representava bem, e portanto, um dia teria de se efetuar. E se, pelo contrário, ela fosse uma variante, e uma variante que se revelou desastrosa, em boa parte uma excrescência, do grande movimento de emancipação? A esquerda que não teme dizer o seu nome não discute o que teria de discutir: o comunismo, em particular em sua forma dominante, o leninismo (suas origens, seu significado). Para um livro que pretende recolocar a esquerda sobre os seus princípios - já disse, e repito, concluindo - isso é muito insuficiente e perigoso. E se o livro, sob certo aspecto, é um avanço, em relação ao que Safatle publicou antes, sob outro, ele não só não avança, mas até recua, porque, conservando os mesmos princípios, produz ainda mais ambiguidade. O fato de que ele multiplique as explicações e concessões (não só nesse livro, também, por exemplo, em Grande Hotel Abismo...65 ) não elimina o fundamental. O mal já está feito. Para a prova disto, ver o número citado da revista de cultura, em suas resenhas dos livros dos dois autores, e not least o próprio Grande Hotel Abismo..., Safatle e seus amigos abriram as portas para que a filosofia e a política do inumano (na figura da filosofia e a política dos dois compadres) penetrassem amplamente entre nós, ganhassem legitimação e direito de cidade. Triste resultado.

Um livro em torno da situação atual da esquerda - devo dizer que foi o que tentei no meu artigo - deve fazer coisa bem diferente do que pretendeu Safatle. Claro que é preciso reafirmar o tema da igualdade. Mas: 1) afirmá-la a partir de uma discussão profunda, autocrítica, e pondo todas as cartas na mesa, da questão do totalitarismo e do destino da esquerda no século XX. Tal atitude não implica em masoquismo, nem é defensiva. Mas ela tem de ser clara: o claro-escuro do lado bom e do lado ruim do comunismo, não basta nem serve; 2) dando todo o peso que merece à questão ecológica. Na realidade, estamos à beira de uma catástrofe (se isso é “catastrofismo”, eu reivindico o catastrofismo). O que não serve é a esquerda se limitar a reafirmar seus princípios igualitaristas, e denunciar - como Safatle sempre fez - os movimentos verdes. Se estes são frequentemente decepcionantes, não é verdade que, na Europa, pelo menos, eles tenham se ligado à direita. Por outro lado, mesmo sob forma capitalista, não tenho medo de dizer, fenômenos como o abandono do nuclear (veremos em que dará o projeto de redução também das emissões de CO2) pela Alemanha, são fatos positivos. Afinal é o destino da vida ­humana no planeta que está em jogo, e a esquerda não pode ser indiferente a isso. 3) continuando a pôr em primeiro plano as lutas em torno das diferenças, as quais estão na ordem do dia, com o recrudescimento dos fundamentalismos antifeministas e com as mobilizações contra os direitos dos homossexuais (França). A esquerda tem de continuar a se abrir, e muito, para esses problemas. Enfim, precisamos de uma esquerda que afirme princípios, é claro. Mas esses princípios são hoje bem mais do que o da igualdade (de resto, já a ideia clássica continha a crítica da opressão, inclusive dentro da fábrica). A propósito, há certa verdade em que não se deve abrir mão de certas coisas, e há também verdade na ideia de que se deve aceitar riscos. Mas o risco a aceitar não é o do terror zizekiano (aliás, para Zizek, não é risco, é benção) nem o das gracinhas da chamada revolução cultural chinesa, tão apreciada por Badiou. O risco que a esquerda deve aceitar é o da quebra do consenso e o da derrota eleitoral. O que significa: ela deve se dispor a tomar medidas radicais, por exemplo, uma verdadeira reforma fiscal, uma verdadeira conversão energética, um verdadeiro progresso democrático etc, aceitando a possibilidade de perder eleições, e com elas, o poder. Diga-se de passagem, o medo de quebrar o consenso - medo que se mostrou desastroso, pois levou precisamente ao resultado contrário ao que se visava - mostrou bem os limites da política do atual governo socialista francês. Mas a solução, já indiquei, também não está no estilo e nas propostas da extrema esquerda. Radicalismo e democracia devem andar juntos.

O aceno democratizante no plano da política cotidiana, que emerge aqui e ali no discurso de Safatle, acabará por romper a carapaça, isto é, sua filosofia anti-humanista e sua “grande política” que não se dispõe a fazer uma crítica radical do comunismo? Difícil saber. Por ora, ficamos a meio caminho; a mensagem é pelo menos muito ambígua. Divulgada pelo impressionante aparelho midiático de que o autor dispõe, estou convencido de que essa mensagem, em sua forma atual, e, mais do que isso, em suas bases teóricas atuais, representa menos um avanço do que um obstáculo para um balanço sério da esquerda (e a fortiori da esquerda no Brasil). Sem dúvida, nela desponta um lado realista e quase-democrático. Encore un effort....

 (Com agradecimentos a Ricardo Crissiuma e Mônica Stival. Sem responsabilidade)

                                                                                                          abril/maio de 2013









fevereiro #

6



ilustração:Rafael Moralez



1 Vladimir Safatle, A Esquerda que não teme dizer seu nome, São Paulo, Três Estrelas, 2012. Abreviarei por ETDN. A intervenção de Safatle se encontra em www.revistacult.uol.com.br, “Vladimir Safatle rebate à crítica de Ruy Fausto’. O meu “Direita/ Esquerda...” saiu nos números 3, 4 e 5 desta revista (respectivamente, junho de 2011, janeiro de 2012 e outubro de 2012; o postcriptum está neste último número).

2 En passant, observação de ordem técnica sobre nossos textos em linha. Descubro que muitos leitores se atrapalham com o uso das notas de fevereiro. É preciso clicar sobre o número da nota no texto, o que faz aparecer, no alto, nas notas, o conteúdo da nota em questão. Terminada a leitura da nota, deve-se clicar no número da nota nas notas. Ela nos reconduz ao texto. No alto, estará o número da nota de que partimos, e o ponto a que havíamos chegado na leitura.

3 Discutível é, talvez, a atitude de Safatle para com a mídia, ou o uso, talvez excessivo, que faz dela. A meu ver, devemos pôr limites quantitativos e qualitativos nas nossas intervenções na mídia. Mas isso é outra coisa.

4 Atualmente em meu livro Outro dia, São Paulo, Perpectiva, 2010.

5 O fato de que, algumas vezes, houve um tom irônico nas críticas não desculpa essa atitude. Irônicos ou não, os textos em geral terminavam fazendo balanços muito elogiosos dos autores em questão. (Aliás a farpa, ou a sua violência, é às vezes involuntária. Aproveito a ocasião para dizer que, em um desses textos polêmicos de que fui autor [visando os escritos de um outro colega], corrigi uma delas na publicação em livro; tratava-se de uma frase involuntariamente infeliz, o resto assino e reafirmo). Defendo o direito à ironia: ela tem um lugar e um papel nessas discussões e se justifica. Só é preciso evitar os excessos e, digamos, certa ironia maldosa.

6 Se é sem válido, examinar o conjunto dos textos de um autor, e não só um dos seus livros, no caso presente, isso é válido a fortiori, dado o número de não-ditos que o seu livro contém. Darei alguns exemplos mais adiante.

7 Sem dúvida as referências de Safatle ao passado da esquerda não visam só ao comunismo, já que ele menciona, também, pelo menos Allende, e de forma bastante elogiosa (ver ETDN, p. 56 e 56). Há também uma menção das diferenças relativamente pequenas de salários nos países nórdicos (ETDN, p. 25). Mas o comunismo é evidentemente a referência central. Para uma análise rigorosa do passado da esquerda, cabe - como tentei fazer - separar a história do comunismo da história da social-democracia. Safatle começa por aí (ver ETDN, p. 11). Mas não segue por esse caminho. Na realidade, é preciso fazer uma crítica específica a cada um desses dois “destinos“.

8 Cf. V. Safatle, Grande Hotel Abismo, por uma reconstrução da teoria do reconhecimento,São Paulo, WMF Martins Fontes, 2012, p. 275. Ver S. Beckett, Worstward ho: “All of old. Nothing else ever. Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better” (en linha).

9 Não posso analisar aqui, em detalhe, os textos de Zizek e de Badiou, a respeito. Fi-lo em parte, nos dois artigos que publiquei a respeito deles em Fevereiro (ver Fevereiro, numeros 1 e 5),e devo continuar a fazê-lo nos próximos artigos que consagrarei ainda aos dois personagens. Como já indiquei, nesses textos e em outros, reconstituir a lógica desses senhores é de grande importância. Aqui me limito a citar algumas passagens, com breves observações: “Nossa defesa das causas perdidas não nos compromete com nenhum jogo do estilo ‘toda Causa tem primeiro de ser perdida de maneira a enxertar sua eficiência como causa’. Pelo contrario, o objetivo é deixar para trás, com toda a violência necessária, aquilo a que Lacan ironicamente chamou de ‘narcisismo da causa perdida’, e aceitar corajosamente a plena atualização da Causa, incluindo o risco inevitável de um desastre catastrófico. Badiou tinha razão quando, a propósito da desintegração dos regimes comunistas, propôs a máxima: “mieux vaut un désastre qu‘un désêtre”. Melhor um desastre da fidelidade para com o Evento, do que um não-ser indiferente em relação ao Evento. Parafraseando a memorável frase de Beckett, à qual devo voltar adiante muitas vezes, depois de falhar, deve-se ir para a frente e falhar melhor, enquanto a indiferença nos faz mergulhar cada vez mais profundamente no pântano do Ser imbecil (imbecilic Being)” (Zizek, In Defense of Lost Causes, Londres-New York, Verso, 2008, p. 7). Observe-se a ambiguidade radical do texto: Zizek não quer “nenhum jogo do estilo ‘toda a Causa tem primeiro de ser perdida...’, quer “deixar para trás (..) com a violência (sic) necessária (...) ‘o narcisismo da causa perdida’, mas, ao mesmo tempo, aceita a máxima badiouana de que é melhor um “désastre do que um desêtre, oque se insere no culto do “Evento” (“a fidelidade para com o Evento” (!!), bla, bla, bla e mitologia), e “a aceitação do risco inevitável de um desastre catastrófico” (!). A referência a Badiou remete ao livro Conditions:Compreendamos que a culpabilidade da filosofia ao seguinte, que mais vale um desastre do que um des-ser (desêtre)”.(Alain Badiou, Conditions, Paris, Seuil, 1992, p. 230, grifo do autor). Esse discurso geral sobre o “errar melhor” ou sobre o “desastre e o des-ser” visa (entre outros) as figuras concretas de Mao e de Lenin: “(…) isto [trata-se de um pretenso recuo de Kant em tirar todas as consequências da sua ‘revolução ética’, RF] se aplica à relação entre a Revolução Cultural Chinesa e a atual explosão do sistema capitalista como a sua ‘verdade’: esta explosão é também o signo de que Mao recuou não tirando todas as consequências da Revolução Cultural, isto é, que o espaço para a explosão capitalista foi aberto por este compromisso, pelo fato de que Mao não quis empurrar até o fim, não quis guardar plena fidelidade à ideia da Revolução Cultural. E a lição, nos dois casos, no de Kant como no de Mao, é a mesma, a saber, aquela que tiramos do Worstward Ho de Beckett ‘Falhe de novo. Falhe melhor’”(Zizek, In Defense of Lost causes, op. cit., p. 210). Até aqui, se trata de Mao. No seguinte texto, de Mao e de Lenin: “Lembre-se da palavra de ordem de Mao ‘de derrota a derrota, até a vitória final’, que ecoa a divisa já citada de Beckett: “Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor”. / Nesse sentido preciso, Lenin era um Beckettiano avant la lettre: o que ele propôs basicamente para ser feito pelos bolcheviques, na situação desesperada do final da Guerra Civil não foi diretamente “construir o socialismo”, mas falhar melhor do que o estado burguês ‘normal’” (id., p. 361, grifo do autor). Quaisquer que sejam as críticas e as reservas que ele emite aqui ou lá aos feitos do socialismo totalitário e dos seus corifeus - críticas que são, frequentemente, paradoxais, pois elas dizem o que dizem mas também o seu contrário -, o resultado final é bel e bien certo tipo de continuidade e de justificação do passado comunista. Sobre Pol Pot, ver mais adiante.

10 “(...) vemos hoje um grande esforço em apagar essa história, isso quando não se trata de apenas criminalizá-la como se as tentativas do passado em escapar das limitações da figura atual do homem devessem ser compreendidas, sem sua integralidade, como a simples descrição de procesos que necessariamente se realizariam como catástrofes” (ETDN, p. 65, eu grifo). Cf. p. 63 (eu grifo): “(...) o conceito, ao tentar determinar a efetividade (...)”, frase que, mais adiante, cito na integralidade.

11 Curiosamente, Safatle aponta um vezo de ex-trotskista, no que escrevo, e em consequência um impacto (embora em forma negativa, isto é, de rejeição) do trotskismo. E faz valer a sua condição de pessoa de outra geração, que estaria longe e acima disso tudo. Mas se há impacto do trotskismo, ou de um pensamento próximo do trotskismo, sobre alguém (no caso, um impacto positivo, de aceitação), é sobre Safatle, não sobre mim. De fato, as ideias dele sobre o comunismo estão bastante próximas do que eram (ou são) as posições trotskistas. O mais arcaico de nós dois, o mais velho, se me permito dizer assim, não é aquele que parece ser…

12 Zizek, Vivre la fin des temps, (trad. francesa de Living in the end Times), Paris, Flammarion, 2010, p. 522 (Zizek grifa “não foram suficientemente radicais”, “a si mesmo”, “a si mesma”).

13 O genocídio vira “negação abstrata”. Observo que essa expressão - e não tão curiosamente - nós mesmos, eu mesmo usava a propósito da violência stalinista (ver o final de Marx, Lógica e Política I, (1983) ensaio 1). Só que com duas diferenças em relação a Zizek (além do fato de não se tratar de Pol-Pot). A primeira, é que embora caindo na esparrela dessa fórmula dialética enganosa (quando aplicada a esse caso), jamais a prolonguei em comentários interpretativos do tipo, “eles foram insuficientemente radicais”, ou “não foram suficientemente longe”. Fórmulas de pura demagogia midiática, destinadas a “épater”, e que mostram o quanto Zizek, esse pseudo-crítico da mídia é, na realidade, um dos seus melhores representantes... A segunda diferença é que, se nós falávamos, eu falava de “negação abstrata” a propósito da violência stalinista, isso ocorreu em... 1975, quando foi escrito o ensaio em questão. Alguns poucos anos depois - ver uma entrevista de 1983, dada a um jornal de São Paulo, reproduzida no meu livro Outra dia, op. cit; a minha ruptura com esse tipo de expressão data na realidade de 1979/80 - eu me auto-criticava por ter usado essa fórmula. Assim, se utilizávamos, se eu utilizava a fórmula em 1975, no final dos anos 1970 já não acreditava nisto. Quanto a Zizek, ele escreve em 2012... Para ver como esses “pensadores” à la mode não têm nem mesmo o mérito da novidade. Trata-se de retomar uma velho discurso “reformista” em relação ao totalitarismo, agora sob a forma de um produto altamente vendável no mercado.

14 “E aqui eu gostaria de lembrar da passagem da resposta de Safatle, em que ele me tacha de infantil por distinguir amigos de inimigos (“Este jargão amigo/inimigo parece-me, na verdade, uma maneira infantil de tratar de tema desta natureza”). Se a terminologia é dele - tirada de Schmitt - e não minha, eu não hesitaria em dizer que considero senão um inimigo pelo menos um adversário a combater, quem lida de forma tão irresponsável - é o mínimo que se poderia dizer - com um dos grandes horrores do século (horror - circunstância agravante - vindo de um campo que era, originariamente, o da esquerda). Se essa atitude de indignação diante da impostura é infantil, francamente, prefiro não ser adulto…

15 Reforçando a sua temática da “tentativa” e do “errar melhor”, Safatle remete ao uso, por parte de Adorno, das expressões de Beckett. De fato, também Adorno fala do “errar bem”, tentar de novo etc. Mas, primeiro, ele o faz no plano da moral (ver a referência em ETDN, p. 83-84), não no plano político. E o que é mais importante: ele de forma alguma utiliza esse tema para atenuar retrospectivamente a responsabilidade do totalitarismo de esquerda, lido como “tentativa”. A referência a Adorno é, entretanto, bem útil, para dourar a pílula.

16 É verdade que ele vinha precedido de uma grande mobilização camponesa e operária, e que os operários tenderam progressivamente a apoiar os bolcheviques, principalmente nas eleições para os sovietes locais e as dumas locais. Mas isso não significa que as massas operárias (sem falar nas camponesas) apoiassem um movimento em favor de um governo unipartidário em outubro. O golpe de outubro se fez certamente, sob o fundo de uma grande mobilização, e, nesse sentido, ele foi sem dúvida um golpe sui generis, ou se se preferir, até uma revolução, mas uma revolução imediatamente traída. Nicolas Werth, grande especialista francês da história russa, fala, muito percucientemente, em “quiproquó de outubro”.

17 Já falei em linha sobre a maneira conciliadora, com que o autor se referiu, em discussão pública, à questão das origens do Goulag e sobre a sua tentativa de reabilitar a ideia de “homem novo”. Sobre esse último ponto, só acrescentaria, como complemento, que o “homem novo” foi também uma bandeira do fascismo mussoliniano.

18 Rosa Luxemburgo põe no papel a discussão sobre o bolchevismo, já em 1918… A acrescentar que o jovem Trotski - mas também, em parte, a própria Rosa - já o fizera em 1903.

19 Ver ETDN, p. 45-46, “(...) conjuntos liberais de valores (direito à propriedade, afirmação do individualismo etc) (...)”. Outros textos (cf p. 63, 67, 68) não vão, essencialmente, mais longe.

20 In Margem esquerda, ensaios marxista, nº 6, São Paulo, Boitempo Editorial, 2005.

21 Às portas da revolução - escritos de Lenin de 1917, Boitempo, 2005. A versão em português contém ainda uma “Introdução à edição brasileira” de Zizek.

22 Respectivamente Zizek, Sobre a prática e a contradição, e Virtude e terror, publicados em português pela Zahar (2008).

23 “Invenção do terror que emancipa“, Estado, 11 de janeiro de 2009. Não há como não citar amplamente esse texto (os grifos são meus): “(...) Zizek - escreve Safatle - procura estabelecer uma articulação original entre política e teoria do sujeito (...) se trata de interrogar o sentido da ação revolucionária no interior do projeto moderno de reconhecimento das exigências de uma subjetividade que não pode ser compreendida nos quadros normativos do humanismo. (....) Zizek quer mostrar como os fatos decisivos da história política mundial desde a Revolução Francesa foram animados pelo advento de uma noção de subjetividade que não podia mais ser definida através da substancialização de atributos do ‘humano’ e cujos intereses não permitiam ser compeendidos através da lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. Ao contrário, a partir da Revolução Francesa, sobe à cena polítia um subjetividade ‘inumana’ por recusar toda e qualquer figura normativa e pedagógica do homem, por recusar de maneira ‘terrorista’ os hábitos e costumes, por não se reconhecer mais em natureza e em determinação substancial alguma. Assim, se Zizek pode olhar para Robespierre e dizer que ‘o passado terrorista deve ser aceita como nosso’ (...) trata-se de insistir que o verdadeiro problema político legado desde o advento da modernidade é: como construir estruturas instiutucionais universalizantes capazes de dar conta de exigências de reconhecimento de sujeitos não-substanciais que tendem a manifestar como pura potência disruptiva e negativa? (...) A sagacidade de Zizek, apoiando-se aqui em reflexões de Alain Badiou, consistiu em mostrar como essa experiência disruptiva, inscrita na essência da conduta do sujeito foi o motor da nossa história recente. História revolucionária na qual se imbricam violência, criação, destruição, procura e que, principalmente, não pode ser lida apenas como uma sequência de lutas pela redistruibuição da riqueza e de generalização de direitos. Recalcar esta história, como se fosse questão de uma sucessão de catástrofes (o comunismo, o terror, as ilusões de ruptura do modernismo, etc) como se o tempo devesse ser avaliado a partir da contagem de mortos (...) no fundo, dirá Zizek, maneira de entificar uma política limitada pelo respeito a princípios formais gerais que, simplesmente, não conseguem mais dar efetividade alguma ao que um dia esteve contido na ideia de democracia. Princípios que não têm fôrça para impedir, por exemplo, processos como a generalização do estado de exceção como prática ‘normal’ de governo. Maneira de, no limite, reduzir a política a uma ‘assustadora reunião de homens assustados’ unidos não mais pela possibilidade de ‘reinventar a ordem da vida cotidiana’, mas apenas pelo medo. Medo em relação ao crime, ao terrorismo, aos imigrantes, ao Estado excessivo com seus impostos, às catástrofes ecológicas”. - Que dizer desse texto? Acho que o que se lê aí é enorme. Politicamente, é um elogio do terror e, apesar de um parágrafo ligeiramente ambíguo que vem em seguida, também do totalitarismo (observar o desprezo pela “contagem dos mortos”: o problema, Vladimir, não é a “contagem”, são os mortos...). Teoricamente sou obrigado a dizer que considero isso tudo uma salada teórica de muito mau gosto, e de consequências propriamente nefastas. O elogio do terror vem ligado à crítica do humanismo, como se todo crítico do terror fosse humanista, humanismo que por sua vez vem, sem mais, ligado, ao utilitarismo, à maximização do prazer etc etc,. Tudo para terminar - depois de passar pela recusa do normativo e do “respeito a princípios formais” - pela crítica do “estado de exceção” (como se o ideal político que se depreende desse texto não implicasse num super-Estado de exceção...). Não há, em tudo isso, uma única frase verdadeira e, eu diria, nem uma pitada de lucidez política. Claro que a direita explorou esse texto para fazer passar a sua própria mensagem de violência. Mas só uma inepta lógica dual do terceiro excluido se recusa criticar um texto porque a direita também o criticou (de outro jeito). Se fosse assim, teríamos que fazer o elogio do Stalinismo, como de resto, já vimos, Zizek o faz. Esse texto é a pior coisa que Safatle já escreveu.

24 Só pude obter a versão on line do número em questão, e não a versão em papel que conheço bem. Mas lá já se encontra o suficiente, sob a assinatura de Safatle ou de seus amigos. Por exemplo: “Grosso modo, podemos dizer que Badiou compreende muito bem que a política não pode ser guiada por exigência de realização de ideais normativos de justiça e consenso que já estariam presentes em alguma dimensão da vida social. Pois isso nos impede de desenvolver uma crítica mais profunda que nos permita questionar a gênese de nossos próprios ideais de justiça e consenso. Ou seja, a crítica não pode ser apenas a comparação entre situações concretas determinadas e normas socialmente partilhadas. Essa é, no fundo, uma crítica de juizado de pequenas causas que se contenta em comparar normas e caso. Antes, a verdade crítica tem a força de se voltar contra nossos próprios critérios de justiça e consenso democrático, já que ela se pergunta se nossa forma de vida não é mutilada a ponto de se orientar por valores resultantes de distorções patológicas./ Daí porque Badiou não teme sequer fazer a crítica da democracia parlamentar como forma mutilada de vida social que tenta esvaziar a possibilidade de todo acontecimento radical, assim como não teme fazer a crítica da colonização da política pela ética. Pois se trata de mostrar como a experiência contemporânea da ética é assombrada pela temática da finitude do indivíduo, desse indivíduo exposto ao sofrimento, à morte, às catástrofes históricas das múltiplas formas de campos de concentração. Em suma, indivíduo que deve ser primeiramente reconhecido na sua condição de vítima em potencial. Como se a ‘humanidade’ do homem só aparecesse quando o interrogamos na sua condição de vítima” (Vladimir Safatle, “De que filosofia do acontecimento a esquerda precisa?”, grifos de RF).

25 Mesmo porque não estou absolutamente dizendo que Zizek é nulo, ou que Badiou é ignorante (este é professor agrégé etc). Diria mesmo que, em seus primeiros livros, Zizek revela ter entendido, pelo menos a ideia geral da Lógica,de Hegel. Por outro lado, principalmente, nos seus primeiros livros, há desenvolvimentos discutíveis mas à sua maneira sérios, no campo da debate sobre a psicanálise; e, nos livros posteriores, há momentos de lucidez, e elementos válidos. Mas se isso ocorre, é um pouco porque lá se encontra tudo, num moinho sofístico cujas leis é preciso estudar. Mas o que é decisivo é a linha dominante dos textos. O lado sofístico e irresponsável de Zizek vai se impondo em seus livros posteriores. E, no plano político, a sua mensagem (se me permitem o oxímoro) é - e, ao que parece, sempre foi - de uma “clara ambiguidade” neototalitária. Como já adverti o leitor, e agora dou as referências precisas, as indicações críticas que forneço aqui, devem ser completadas, pelo que escrevi em meus artigos “A ofensiva teórica do anti-humanismo” (Fevereiro nº 1, maio de 2010) e “A teoria da história de Zizek” (Fevereiro, nº 5, outubro de 2012). Um terceiro texto, “A lógica frágil do anti-humanismo”, versão escrita de uma conferência pronunciada em Curitiba, na Universidade Federal do Paraná, em outubro de 2012, no quadro de um colóquio sobre a filosofia francesa contemporânea, deve sair em livro coletivo contendo os trabalhos apresentados ao Colóquio.Tenho em preparação mais dois artigos sobre a dupla.

26 Dir-se-á que me contradigo, já que no postcriptum falei de citações de Lefort, que deixam na sombra o fato de que o núcleo do pensamento de Lefort vai contra o que pensa aquele que cita. Mas os dois efeitos podem coexistir. No conjunto dos livros e artigos de Safatle, as referências a Lefort são excepcionais e externas, e, por isso, servem, simplesmente, ao argumento e são como que incorporadas a este. As referências aos dois autores, que são quantitativamente consideráveis, e em que se decalca a conceituação e a temática destes, tem o efeito contrário, de legitimação. A contradição, se contradição existe, está, aqui, creio eu, menos na crítica do que em seu objeto. Ela é mais objetiva do que subjetiva. Há, salvo erro, alguma coisa de razões de advogado na maneira pela qual Safatle vai incorporando aliados aqui e ali.

27 Uma análise detalhada do estilo de Safatle revela coisas curiosas, que não posso deixar de registrar, em se tratando de um autor certamente muito atento aos procedimentos midiáticos. Além da dedicatória do livro, provavelmente não inocente, que comentei acima, é de se perguntar que função tem (ou se trata de mero exercício gratuito?) a epígrafe (de Brecht): “Melhor morrer de vodca do que de tédio?”. “Vodca” é, salvo erro, expressão metonímica que remete à Rússia. É à superioridade da experiência russa que a epígrafe quer destacar? A observar, por outro lado, como o jargão teórico de Badiou e Zizek se introduz também nas entrelinhas do textos. Por exemplo, respectivamente: “(...) um acontecimento verdadeiro não garante a sequência das suas consequências” (ETDN, p. 74 eu grifo). Ou “A história é o processo que transforma contingências em necessidades”(ETDN, p. 75, eu grifo).

28 Ver acima meu comentário sobre a referência de Safatle (ETDN, p. 83-84) à presença em Adorno do tema beckettiano do “tentar de novo”, e sobre a função dessa referência.

29 Outra questiúncula. Safatle me critica por ter chamado Badiou e Zizek de “caricaturas do pós-estruturalismo“. O problema da denominação é pouco importante, mas já que ele o levanta, eu diria o seguinte. Os autores em questão merecem sim a denominação de “caricaturas do pós-estruturalismo”, no duplo sentido de que eles caricaturam certos estruturalistas e macaqueiam também certos pós-estruturalistas. Para me limitar a dois exemplos, vejam a utilização que faz Zizek de Althusser e de Deleuze em Em defesa das causas perdidas. Tratei em parte do assunto no segundo dos meus artigos sobre Zizek e Badiou, em Fevereiro n. 5.

30 A esse respeito ver, principalmente, os dois primeiros capítulos de Zizek, Ils ne savent pas ce qu‘ils font, le synthome idéologique, (trad. francesa),(s/l), Point Hors Ligne, 1990.

31 Assim, em certa passagem do seu posfácioàcoletânea de textos de Lenin de 1917 op. cit. p. 188, Zizek compara a Dialética negativa de Adorno com o Materialismo e Empiro-criticismo de Lenin... Sobre os textos que acompanham essa coletânea de escritos de Lenin e que contém uma verdadeira defesa tanto do stalinismo como em geral dos pelotões de fuzilamento “de esquerda”, e onde Zizek tem a coragem de afirmar, ao mesmo tempo, que a “revolução” de 17 foi necessária, entre outras coisas, para garantir a liberdade de imprensa..., permito-me indicar a resenha que publiquei, no suplemento Mais! da Folha, em 2005 (agora, sob o título “Lenin, outubro, o charme discreto da ortodoxia”, em meu livro A esquerda difícil, Perspectiva, 2007)).

32 Vê-se que proponho uma estratégia quase inversa à de Safatle, no que concerne ao tratamento a dar a certo tipo de autor: recusa no atacado, aceitação pontual no varejo, quando e se for o caso.

33 São Paulo, Boitempo, 2008.

34 Estou utilizando fórmulas aproximadas e provisórios. Será preciso voltar ao tema.

35 Op. cit., p. 217.

36 (Problemas da filosofia moral), editado por Thomas Schröder, Frankfurt, Suhrkamp, 2010 (1996). O volume contém uma série de aulas de Adorno sobre a moral.

37 Para ficar claro que a minha crítica não vai além do que diz o texto de Safatle, seria bom indicar desde já uma passagem que cito mais adiante in extenso, na qual Vladimir escreve com todas as letras e contra toda a verdade que há em Adorno “uma extremamente relevante defesa do inumano” (Grande Hotel do Abismo..., op. cit., p. 222, eu grifo).

38 Id, Problème der Moralphilosophie, p. 250-251.

39 Cf. o que Adorno escreve sobre a relação de Marx e Engels com a utopia: “[Marx e Engels] eram inimigos da utopia, no interesse mesmo da sua realização”, (Gesammelte Schriften 6, Negative Dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1990 (1973), p. 316, Dialectique Negative, trad. francesa du grupo de tradução do Colégio de Filosofia..., Paris, Payot, 1978, p. 252 . “Espírito do mundo e história natural. Digressão sobre Hegel, “contingência do antagonismo?”, eu grifo). (Em mais de um passo, utilizei também a tradução brasileira: Dialética negativa, tradução de Marco Antonio Casanova, revisão de Eduardo Soares Neves Silva, Rio de Janeiro, Zahar, 2009, aqui, p. 268). Apesar de conter o sintagma “inimigos da utopia”, a frase significa rigorosamente que Marx e Engels, a rigor, não nem eram partidários da utopia, nem adversários dela (ou as duas coisas, ao mesmo tempo). A frase tenta responder a uma situação em que a posição da utopia nega a utopia, e Adorno responde, comme il faut, de maneira contraditória. O discurso de Safatle fica aquém da compreensão dessa dialética.

40 Adorno, Probleme der Moralphilosophie, op. cit.,p. 261, eu grifei.

41 É por essa razão que inseri em epígrafe um texto de Hegel que contém um tema hegeliano recorrente, o do caráter ilusório das leituras do discurso dialético que só enxergam um lado deste. Embora o o objetivo daquele texto seja responder a certos críticos da dialética, e no nosso caso não se trata propriamente disso (aqui se lê errado para endossar não para criticar - porém se erra do mesmo jeito) o texto interessa pela reafirmação do caráter bilateral da dialética e da crítica dialética.

42 São Paulo, Unesp, 2005. Pelo menos em parte, o livro se situa na esteira dos escritos sobre a dialética - e também sobre a dialética e a psicanálise - que vieram a luz no Brasil. Uma característica, confirmada pelas referências e a bibliografia, e que é, a meu ver, uma qualidade. É importante continuar o que se começou a fazer entre nós.. - Devo dizer, por outro lado, que, em Grande Hotel Abismo..., op. cit., p. 189, Safatle cita honestamente uma passagem de um dos meus textos que implica numa mise en question das suas teses.

43 Safatle, “Para cada um, o seu perverso, dizia Lenin”, Estado, 29 de junho de 2008. Esse texto é uma resenha bastante crítica do livro de Elisabeth roudinesco A parte obscura de nós mesmos - uma história dos perversos (Zahar, 2008). Para o desenvolvimento do tema, ver o capítulo 4 (Parte II) de A paixão do negativo..., op. cit..

44 Ver A paixão do negativo, op. cit.,161.

45 Sem discutir os méritos ou os defeitos deste livro, é claro que, nele, Roudinesco não reza pela cartilha de Lacan (“nada menos lacaniano”, escreve Safatle). Pecado grave. Quando a autora diz que o modelo comunista não cessou de estimular “o gozo do mal”, Safatle observa que “o senador Mc Carthy não teria dito outra coisa”.

46 Kant‘s Werke, ed. da Academia de Ciências Real Prussiana, Berlim, 1911, p. 436, Oeuvres Philosophiques II, Gallimard, Pléiade, p. 303.

47 Adorno, Gesammelte Schriften, v. 3, Horkheimer e Adorno, Dialektik der Aufklärung, philosophishe Fragmente, 1984 (1944), Frankfurt am Main, Suhrkamp, p. 108. Dialética do Esclarecimento, tradução de Guido Antonio de Almeida, Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p. 88 (modifiquei a tradução, eu grifo).

48 Há uma literatura crítica abundante sobre o problema das diversas formulações do imperativo, que, de resto, são bem mais do que três. Consultei a respeito principalmente os clássicos H.J. Paton, The Categorical Imperativa, A study in Kant‘s Morality, (New York, Hutchison‘s Un. Library, e Tiptree, Essex, The Anchor Press, 1946), D. Ross, Kant‘s Ethical Theory, A commentary on the Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Oxford at the Clarendon Press, 1962 (1954) e Victor Delbos, La Philosophie Pratique de Kant, Paris, Félix Alcan, 1905. É verdade que em Crítica da razão prática só há uma formulação geral do imperativo que se aparenta mais de perto com a terceira. No texto dos Grundlegung que se segue à imputação respectiva da forma, da matéria e da determinação completa (Kant‘s Werke, op. cit., IV, p. 436-437, Oeuvres Philosophiques II, op. cit., p. 306), a cada uma das três fórmulas que ele havia apresentado, Kant parece privilegiar, num primeiro momento, a terceira e, depois, a primeira. Porém a terceira corresponde à “totalidade do sistema”, e, além disso, ele escreve pouco antes “que as três maneiras (...) de representar o princípio da moralidade não são no fundo (im Grunde) mais do que várias fórmulas de uma só e mesma lei (eben desselben Gesetzes), cada uma das quais reune em si e por si mesma (von selbst in sich) as duas outras” (W. IV, 436, Oeuv., 306).

49 Safatle aflora o tema kantiano dos meios e fins, mas para criticá-lo. Há um momento em Grande Hotel Abismo... (p. 287) que exige um comentário. Safatle comenta passagens dos Problemas de filosofia moral,de Adorno,que tratam da questão da tortura. Depois de citar Adorno, que por sua vez se refere a Brecht, a propósito do “impulso imanente ao comportamento moral, a pura angústia física e o sentimento de solidariedade [para com] os corpos torturáveis”, Safatle continua: “(...) o que podem ser os fins do outro a não ser uma projeção das estruturas dos meus fins? (...) o que deve ser o outro para que eu o reconheça como tendo fins em si mesmo? Por outro lado, o imperativo de não tratar o outro como meio para a realização dos meus interesses é contraditório pois simplesmente inviabilizaria toda e qualquer relação humana. Em alguma dimensão o outro é sempre meio para a obtenção de algum interesse (nem que esse interesse seja segurança, necessidade de fato, reconhecimento. Vale a pena lembrar que nem sempre é degradante ser o instrumento do outro” (eu grifo). Safatle está resumindo alguém nesse texto, ou é ele quem escreve? De qualquer modo, seria preciso ressaltar, em primeiro lugar, que Kant nunca disse que não se pode tratar o outro como meio. O que ele afirma é que se deve tratar também como fim. O que significa: cada vez que o tratamos como meio, temos de levar em conta que ele é também fim. O que tem como resultado um limite (uma limitação) do tratamento do outro como meio. Mas não a sua anulação. Este engano, é o locus classicus da leitura errada de Kant. Por outro lado, e talvez ainda mais importante - porque transcende o plano da leitura de Kant -, a afirmação “o que podem ser os fins do outro a não ser uma projeção das estruturas dos meus fins” (que Safatle resuma um autor, ou que seja dele próprio a frase), concede ao psicologismo e ao relativismo, e é finalmente falsa: sabemos bem quando instrumentalizamos um outro. A frase liquida um topos rigoroso, essencial a toda crítica de ordem ética e, em última análise, também de ordem política.

50 Aqui um detalhe curioso. Como Eichman invocou a exigência de cumprir o dever (e, mesmo, mais do que isto, falou da influência que Kant teria tido sobre ele, a esse respeito - mas disse também que abandonou Kant ao abraçar a “solução final”, ver H. Arendt, Eichmann em Jerusalém, ed. Gallimard, Quarto, 2002, pp. 987, 1149-1151), alguns se apressaram em mostrar a convergência entre a prática nazista e pelo menos certas consequências da filosofia kantiana. Como já disse, é claro que há em Kant (ver, precisamente, Adorno) um elemento repressivo, e que este pode sempre ser utilizado por uns ou por outros. Mas, com este elemento, coexiste o outro lado, o da formulação material do princípio, no qual este aparece como o contrário direto das práticas totalitárias do século XX. Há, na Segunda Crítica, uma referência direta ao problema do conflito entre injunções políticas e exigências morais (a historieta hipotética do principe que exige um falso testemunho contra um honnête homme, texto que Adorno comenta, ver Dialectique Négative, op. cit., p. 223, trad. francesa, op. cit., p. 177 e a que se refere também Lacan, em “Kant com Sade”). Kant julga que, numa situação como esta, se a atitude que tomará de fato o indivíduo é incerta, este certamente considerará como possível a opção moral (ver Kritik der Praktischen Vernunft, in Kant‘s Werke, Ed. da Academia Real Prussiana, Berlim, 1913, vol. V, p. 30, trad. francesa Oeuvres Philosophiques, Paris, Gallimard, Pléiade, 1985, p. 643). Mas o problema é o de saber qual seria a aitude de Kant, e ela, como se sabe, é complexa. Para além da questão da famosa distinção entre o uso (que Kant chama de) privado da razão, e o uso (que ele chama de) público, há todos os textos de Kant condenando a resistência aos poderes, cujas implicações se imagina. (Ver a propósito, entre outros, o importante livro de Kurt Röggers, Kritik und Praxis, Zur Geschichte der Kritikbegriff von Kant bis Marx, Berlim, Walter de Gruyter, 1975, cap. III). Mas, no plano da atividade crítica - o que é, ao mesmo tempo pouca coisa, e muito - há, certamente, um primado do imperativo moral. E aí, se o imperativo valeria contra o falso testemunho ordenado pelo “príncipe”, deveria valer a fortiori,, quando o conflito opõe o imperativo a Auschwitz e à “solução final”.

51 Negative Dialektik, op. cit., p. 251-252. Dialectique Négative, op. cit., p. 201-202. Dialética negativa, op. cit., p. 214-216 (eu traduzi utilizando o original e as duas traduções, eu grifei).

52 Observe-se que no texto de Adorno e Horkheimer há pelo menos uma referência à redução dos indivíduos a coisas, no contexto do nazismo, o que aparentemente não é o caso do texto de Lacan. Ver Dialektik der Aufklärung..., op. cit.,p. 105; Dialética do esclarecimento, op. cit.,, p, 85.

53 Dir-se-á que é forçado juntar as duas figuras. Mas os dois têm bastante coisa em comum, apesar de as suas formações respectivas serem diferentes. Num debate público,Paulo Arantes falava de Badiou como de um professor francês da tradição, o último deles. Eu diria que, se Badiou sem dúvida tem um laço com a tradição dos professores-pensadores ele exprime, a meu ver, a decomposição dessa tradição. O que tentarei mostrar mais de perto nos meus artigos em publicação.

54 Cornelius Castoriadis, “A indústria do vazio” (1979) in Les Carrefours du Labyrinthe, 2, Domaines de l‘homme, Paris, Seuil, 1983, p. 34, eu grifo.

55 Permito-me remeter ao meu texto “Dialética marxista, humanismo, anti-humanismo”, in MLP I, para a análise do problema nos limites da crítica clássica.

56 Entretanto, há mais coisas positivas do que se supõe no esboço marxiano da sociedade futura. O que não funciona é a utopia da transparência, do fim do Estado e do direito. Mas, como insistem Christian Laval e Pierre Dardot, em Marx, prénom: Karl, (Paris, Gallimard, 2012, ver principalmente o capítulo XI, “Le communisme comme projection idéaliste”), há ali aspectos positivos. De fato, retomando um topos saint-simoniano, Marx faz repousar a sociedade comunista não em uma estrutura coletivista, mas finalmente nos indivíduos (o que não pode agradar aos lacanianos). Marx fala em “produtores associados”. A referência a “produtores” não é muito feliz, porque economicista. Mas que ele pense o “comunismo” como associação de indivíduos, pelo menos depois das catástrofes, coletivistas sem dúvida, do século XX, deve ser posto em evidência.

57 Cornelius Castoriadis, Les Carrefours du Labyrinthe, IV, Figures du Pensable, “La Psychanalyse: situation et limites”, Seuil, 1999, p. 236-237, grifos do autor.

58 Cornelius Castoriadis, Les Carrefours du Labyrinthe (I), “La psychanalyse, projet et élucidation“, op. cit., p.103-105.

59 Jean-Luc Mélenchon, político francês de extrema-esquerda, lider do Parti de Gauche, aliado do PCF.

60 A observar que Safatle toma distância em relação a Chávez (ver ETDN, p. 54 e 57).

61 Cito agora in extenso um texto já parcialmente citado: “Exatamente por não acreditar que a humanidade do homem já está realizada, podemos encontrar em todos eles [“autores vinculados à tradição dialética como Lacan e Adorno” (...), RF] por razões distintas, uma extremamente relevante defesa do inumano. Isso significa defender que a capacidade de controntação com o inumano, com o que, no sujeito, não porta a figura atual do homem, seria a condição maior para a regulação de toda e qualquer política que se queira ainda fiel à exigências de emancipação” (Grande Hotel Abismo, por uma teoria do reconhecimento, p. 222, eu grifo). Não retomo a crítica do mal-entendido a respeito de Adorno. Para a significação global do texto, digamos que Safatle toma a contrapartida do tema marxiano do homem que ainda está na sua pré-história: é o homem ainda identitário que representa um problema, não o homem negado. Como já vimos, há, aí, sem dúvida, alguma verdade (o eu adaptado é uma face da servidão), mas tomar esse aspecto como um absoluto, e se arvorar em mensageiro do inumano, ao contrário do que supõe Safatle, é liquidar tanto a teoria crítica como todo projeto de emancipação. Nas páginas, que se seguem, do livro, o inumano aparecerá na figura da impessoalidade, da animalidade e da monstruosidade. Para tomar apenas a figura da animalidade - a que recorre também, mas de outro modo, Derrida -, diria somente o seguinte: a animalidade também é momento, mas pô-la como uma espécie de bandeira teórica e prática, depois de um século caracterizado pela tentativa de reduzir parte da humanidade à condição de verme, é fazer uma aposta teórica e prática de consequências potencialmente terríveis.

62 Há, sem dúvida, uma certa ambiguidade na assunção do inumano por Safatle. Digamos que ele parte da ideia de que o homem “ainda não é” (ideia que está também em Marx). A partir daí, há duas leituras possíveis, ou, antes, há nos seus textos dois caminhos que se sobrepõem. Por um lado, como indiquei na nota anterior, Safatle como que inverte o esquema de Marx. Em Marx, é finalmente o indivíduo reconciliado com a comunidade o resultado final. Em Safatle tem-se, em grandes linhas, e apesar de um certo número de reservas, mais ou menos o contrário da afirmação de um processo de que resulta o indivíduo (reconciliado). Por outro lado - e é nesse sentido que o seu estilo é antidialético - o humano e o desumano se definem como se poderia dizer que, apesar de tudo, eles se definem em Marx (o desumano é a violência, o humano a reconciliação), mas precisamente Safatle cristaliza, em maior ou menor medida, e apesar das concessões, o momento do inumano. Ver sua resenha dos livros de Zizek, ver sua atitude em relação ao jacobinismo, ou ao leninismo, ver a maneira com que lida com os massacres etc, além do próprio fato de se servir do termo não inocente de inumano. Seu discurso se contrói sobre a base deste duplo Irrgang (curso errado, labirinto).   

63 Recomendo com urgência a Safatle a leitura da literatura crítico-histórica sobre a chamada revolução cultural chinesa, o “grande salto para a frente” e a coletivização forçada. É preciso mergulhar na história e na história crítica para entender o que se passou no século XX. Em vez disso, certa produção midiática nos oferece um prato indigesto: má filosofia (má metafísica), mais lacanismo em altas doses. Supõe-se - ó ilusão - que essa beberragem substitui com vantagem o estudo sério, meticuloso e longo, da história contemporânea.

64 Alain Badiou, L‘Éthique, essai sur la consciente du mal, Caen (França), Nous, 2003, p. 87-88: (...). Posto em relação com a sua simples natureza, o animal humano deve ser situado sob a mesma etiqueta (“enseigne”) que os seus companheiros biológicos. Esse massacrador sistemático busca, (...) interesses de sobrevivência e de satisfação nem mais nem menos estimaveis do que os das toupeiras ou das cicindelas [besouros de mau cheiro que se alimentam de insetos, RF]. Ele se revelou o mais astuto (“retors”) dos animais, o mais (...) submetido aos desejos cruéis da sua própria potência. (...) Assim pensado (e é o que sabemos dele), é claro que o animal humano não remete “em si“ a nenhum juízo de valor” (eu grifo). Citei e comentei esse texto no meu artigo de Fevereiro 1.

65 A partir daí, ele tenta evitar o pior, através de piruetas teóricas. Assim, Auschwitz não poderia ser justificado porque o nazismo é simplesmente o inverso do comunismo e, enquanto tal, participa negativamente do processo de infinitização do homem. Há que condenar a liquidação dos judeus. Mas, e a liquidação dos camponeses do sul da Rússia e da Ucrânia por Stálin, nos anos 30...? Para condenar esses massacres, a filosofia de Badiou parece não ter argumentos teóricos, ou argumento algum (ver a respeito o meu artigo em Fevereiro, 1).

66 Entre outras coisas, é preciso sem dúvida, assinalar, que nos seus artigos de imprensa mais recentes, há muita coisa justa e oportuna. Não citar esses textos, talvez desequilibre um pouco o balanço final, mas, citá-los agora implicaria em alongar por demais esse artigo. Fica a menção: os leitores não terão dificuldade em encontrá-los.

67 Mas já que ele gosta dos amálgamas baseados no princípio do terceiro excluído, um advogado do diabo poderia dizer - como ele diz contra mim, a propósito de outras questões - que o que ele escreve sobre Cuba parece com as de fulano ou sicrano, ideólogos de extrema-direita... Escrevo isto não porque acredite nessas aproximações fáceis e caluniosas, mas só para mostrar como certas facilidades retóricas são nefastas e se voltam contra quem fala, quando este não é alguém pura e simplesmente dogmático.

68 Em ETDN - ver p. 23-24 - ele também se refere ao papel do Estado.

69 No decorrer desse debate, e no contexto daquela mesma crítica, Safatle, observou com razão a ausência da economia nos escritos de Badiou. Paulo Arantes, que também participava da discussão - discussão que, foi, em parte pelo menos, um modelo daquelas tentativas, a qui fiz alusão mais acima, de substituir o estudo sério e meticuloso da história contemporânea por um coquetel de má filosofia mais altas doses de lacanismo - completou a observação dizendo, também com razão, que falta em Badiou não só economia, mas muitas outras coisas, falta história, em geral. Só que o próprio Paulo faz muito pouca história quando fala da política contemporânea, e em particular do comunismo. Por exemplo, se ele condena os estados burocráticos, procurar-se-á em vão nos seus escritos, uma análise desses Estados, os quais entram ex-machina no seu texto, como “estados policiais” (isso vai junto com a sua tendência a diluir todas as formas políticas do século XX no “capitalismo”). Quanto ao que ele disse sobre os escritos de Badiou e Zizek, sua análise é, como sempre, brilhante, mas tem um caráter mais descritivo do que crítico. Ora, é de crítica que precisamos.

70 Em todo caso, evita enfrentar o problema do comunismo e do leninismo. Há só uma frase que se poderia interpretar como um pouco crítica. Ao falar dos “equívocos complementares” da reforma e da revolução, ele evoca “a discussão tão rica que perpassa a história da esquerda desde ao menos a querela de Lênin contra Kautsky” (ETDN, p. 72).

71 Ver ETDN, p. 61-64. A passagem termina aliás pela citação bem sintomática de um texto de Badiou: “Até o final, o século [XX] foi de fato o século do advento de uma outra humanidade, de mudança radical do que é o homem. E é nesse sentido que permaneceu fiel às extraordinárias rupturas mentais de seus primeiros anos” (ETDN, p. 64, eu grifo).

72 Ver, por exemplo, Grande Hotel Abismo..., op. cit., p. 293, n. 102, algumas observações críticas a propósito da violência e do indivíduo, nos escritos de Zizek. Mas isso num livro em que os grandes princípios do anti-humanismo, com os seus corolários filosóficos e políticos (ver por exemplo, Grande Hotel Abismo..., op. cit., p. 66,a comparar com a resenha no Estado, de janeiro de 2009), asaber, a política de denúncia dos que “têm medo da história e da política”, dos “escravos da forma normativa do homem”, dos que querem “criminalizar revoluções” etc etc., são afirmados com todas as letras (ver principalmente o capítulo VII do livro).

73 Ponho esse parágrafo em tipo menor, como já fiz com um outro parágrafo pouco acima, porque este meu artigo já se alongou muito. Embora julgue importante o que vem aí, se o leitor preferir abreviar, que o deixe de lado e passe ao parágrafo final.

74 Encontrei em ETDN só uma breve alusão a uma mobilização ecológica (ETDN, p. 47).