revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

Alexandre CARRASCO

Breve nota sobre "De te fabula narratur - uma reflexão sobre a construção do mito Yoani Sánchez pela sociedade brasileira", de Maria Caramez Carlotto

 


O texto de Maria Caramez Carlotto toma para si um ângulo “de ataque” bastante particular. Ele deliberadamente toma distância, e uma distância sobretudo material da personagem em questão, a dissidente cubana Yoani Sánches - uma distância estudada, vale notar -, para melhor entender o enredo da apropriação da personagem entre nós. Os riscos da abordagem já foram, em parte, indicados por Ruy Fausto: perde-se o sentido propriamente material do problema, que não é pequeno: Cuba e o que ela representa (ou, não mais representa) para as esquerdas. Não entro exatamente no mérito do ponto de partida de Maria por concordar em parte com os cuidados que ela toma, e já me explico.

Se se evita dizer quem é Yoani Sánchez, o cuidado não é gratuito. Os heroísmos da iniciativa de Yoani são opacos e não me parecerem oferecer material suficiente para um juízo: quem a financia, em que condições tem acesso à internet na Ilha (já que parece que tem, o que por si só é inusitado), quem a lê e para quem fala, o quê, de fato, “perde”, e que riscos corre com sua militância, se é que perde alguma coisa, e se é que corre mesmo algum risco. Há inúmeros dissidentes em Cuba, restaria entender o que lhe daria certo estatuto especial, pelo menos para a direita organizada no Brasil, já que veio a seu convite, talvez a suas expensas.

Sem querer parecer, nem pretender ser diversionista, diria que se é para tomar materialmente a personagem, não há de se furtar em saber disso e circunstanciar melhor sua dissidência. Em abstrato, toda dissidência a um regime com claros traços de regime policial é bem-vinda. Diria mesmo que o direito à dissidência é direito humano a ser permanentemente reconhecido, no que não vou muito além do óbvio. Em concreto, temos o episódio das fotos com o deputado Bolsonaro, seguido de passeio no Congresso Nacional brasileiro em convescote carnavalesco com ele e outros de sua jaez. O mesmo deputado partidário da tortura, da homofobia (um dos temas contra o qual há inúmeros dissidentes lutando em Cuba), da ditadura militar (é militar de pijamas) e parte de seu eleitorado vem daí igualmente.

Isso diminui a importância da dissidência? Por certo que não, mas põe muitas dúvidas acerca da natureza de nossa personagem. Ademais, não custa lembrar a situação da América Latina e as liberdades que toma certo Departamento de Estado.

A cada um o que lhe convém, portanto.

Entre nós, sabe-se quem lhe dá audiência: o pior da direita brasileira, o que não é pouca coisa a considerar.

Pouco se sabe quem é ela, e a personagem midiática que ela se fez ou fizeram dela, em parte pelo menos, foi construída com sua anuência. E segue a mil e um encontros da Internacional Reacionária mundo afora, como, por exemplo, a SIP (Sociedade Interamericana de Impressa). Vale dizer: um direito que lhe cabe e contra o qual nada há a dizer, em sentido formal. Faço uma ressalva: suas posições, em geral, são de centro, como já foi observado. Parece-me, porém, insuficiente tomar posições individuais como determinante último para definir natureza política da personagem.  O que não invalida, evidentemente, o direito à dissidência. O que ela representa, naturalmente, escapa ao escopo de suas boas intenções. Tanto para as posições que professa, quanto para a dissidência que pratica, há, parece-me, melhores personagens.

Faço esse enorme preâmbulo (enorme para os fins desta nota) com dupla intenção: primeiro, se não me disponho a nenhuma solidariedade ou compromisso à personagem, igualmente recuso qualquer tipo de “censura” ou violência de qualquer ordem a que ela poderia ser submetida em nome de seja lá o que for. Segundo: tomar distâncias da personagem não me obriga, de maneira nenhuma, a imediatamente apoiar os que se declaram seus inimigos ou opositores.

Esse raciocínio parece trivial, mas não é. E dele Maria tira muito boas conclusões.

De todo modo, não é por por meio desses materiais que Maria dá sentido ao problema. Partindo do mito e de seu avesso - o que é narrado e aquele que narra -  ela toca em um ponto (entre outros tantos, assim parece) cego de nosso dispositivo político: um tipo de discurso de oposição ao outro, reconhecido e praticado seja à direita, seja à esquerda, dogmático e excludente, que, ao evitar posições médias e “alternativas”, bloqueia qualquer reflexão e perde inevitavelmente o objeto. Assim foi o Fla-Flu em torno de Yoani Sánchez: ela, inadvertidamente ou não, passou a ser a porta-bandeira do outro, normalmente inimigo. Para a esquerda, “agente da CIA”, para a direita, “irrepreensível resistente da tirania castrista”. Ao explorar algumas engrenagens dessa máquina cega, Maria mostra o quanto se perde no esforço (cego) de salvaguarda um ponto de vista moral, a Cuba gloriosa, que em nada incide sobre as contradições da experiência brasileira recente da esquerda. Assim, nada se aprende, nada se conhece, mas apenas se repete o mito. Há, além disso, além dessa vontade por disputa quase nominalista, como que uma disposição orquestrada a esse bloqueio, de modo a que certos atores forçam deliberadamente o discurso monolítico, a ponto de paralisar qualquer discussão, e salvaguardar, claro, terceiros e quartos interesses.

Nesses termos, perdem todos, menos os discursos hegemônicos, de um lado e de outro. Aqui, pode-se dizer que o mito não se conta. Apenas se repete.

 









fevereiro #

6



ilustração:Rafael Moralez




ilustração:Rafael Moralez




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