revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

Ruy Fausto

Intervenção no debate sobre o artigo "De te fabula narratur - uma reflexão sobre a construção do mito Yoani Sánchez pela sociedade brasileira", de Maria Caramez Carlotto

 


 

Discordo essencialmente da estratégia do texto.

A articulista diz que o debate brasileiro transformou a chamada “blogueira” cubana - já esta denominação é duvidosa, a cubana é, na realidade, como afirma (uma vez) a própria Carlotto, uma “dissidente” - em “mito”, positivo ou negativo. “A construção do mito Yoani Sánchez”, diz o título do texto. “Visão algo mitológica da blogueira”. A autora sustenta que a mitologização teria impedido que se fizesse o que deveria ter sido feito: discutir “a situação de Cuba e o significado político de Yoani na ilha governada pelos irmãos Castro”.

Digamos que tudo isso seja verdade. Mas o que faz a articulista? Ela declara, de imediato, que “o objeto [do seu] texto não é a Yoani Sánchez e sua ilha, mas a instrumentalização de ambos pelo debate político nacional”. Isto é, Carlotto se dispõe a falar muito mais do “mito Yoani Sánchez” do que da própria Yoani Sánchez. E tanto, que apesar da qualidade do trabalho, no final a gente se pergunta: o que importa mais, na opinião da autora, o “mito” ou a própria Yoani? Mais ainda: ela fala tanto do mito e tão pouco da pessoa, que nos perguntamos se enfim, para Carlotto, pelo menos nos limites do seu texto, a pessoa não é - ou não vai ficando - mítica, e o mito não é - ou não vai virando - realidade... A crítica dos mitos cai na armadilha do objeto, torna-se ela mesma criadora de mitos e desrealizadora do real. Quanto a falar de Cuba dos Castro - o não falar de Cuba e dos Castro é, segundo Carlotto, o resultado negativo da “mitologização” -, o artigo não vai longe: ele não diz quase nada a respeito, fora algumas fórmulas às quais vou me referir mais adiante. Ora - digamos desde já ­- transformar dissidentes em mitos, com os silêncios que isso implica, que pode haver de melhor para burocratas e “guias”?

A realidade é a seguinte: Yoani Sánchez, que esteve no Brasil em fevereiro desde ano, é uma dissidente do regime castrista. Não conheço em detalhe suas posições políticas, mas elas são de centro. Não sei se de centro-esquerda ou de centro-direita, mas Yoani Sánchez certamente não é de extrema direita. (Aliás, ouvi gente insuspeita, de extrema-esquerda, falando bem da sua intervenção em Roda Viva). Uma esquerda democrática e independente só pode saudar alguém que, socialista ou não - mas certamente não extremista de direita - se alça contra um regime autocrático e, hoje, muito pouco igualitário como o regime castrista. Não sei quanto ela sofreu com a repressão, nem quanto perdeu com a sua atitude. Mas sei o que representa enfrentar um regime autoritário. É difícil, implica em assumir muito risco. Na situação dela, a maioria de nós - é preciso dizer - não se disporia a tanto. - A meu ver, isto é o essencial e é o que tem de ser afirmado em primeiro lugar, para além do debate sobre a reação deste ou daquele partido ou personalidade.    

Mas, e sobre as atitudes de uns e de outros, no Brasil, quando da visita da dissidente? Como se sabe - e se vê muito bem pelo artigo - houve reações da direita e da esquerda (nos dois casos, com muitas nuances e algumas surpresas). Diria para começar que nos interessa muito mais o que disse a esquerda do que o que disse a direita. A reação de boa parte da esquerda é propriamente lamentável. Ela ataca a dissidente como “agente da Cia“, e marionete do imperialismo. E pior: faz tudo o que pode para impedir que ela se exprima, ação que teve êxito em alguns casos, o que basta par configurar a gravidade da coisa. Entenda-se o que isso quer dizer. Como há cinquenta anos no mundo inteiro, e ainda há vinte ou trinta anos atrás em vários países, no Brasil certa esquerda vira o mundo de cabeça para baixo: defende os opressores (que são também, à sua maneira, exploradores), contra os que se opõem à opressão. Essa reação não é, no Brasil, um fenômeno excepcional. Vimos há pouco um manifesto em favor da Coreia do Norte (!) promovido por um partido de extrema esquerda, que, ao que parece, teve o apoio, mesmo se não oficial, de muita gente que milita em outros partidos de esquerda ou se simpatiza com eles. A Coreia do Norte! A gente se pergunta se durante a Segunda Guerra Mundial ele não estariam com aquele anti-imperialista alemão, grande inimigo do imperialismo americano, e que não parava de condenar os “plutocratas“. (Dir-se-á que a Coreia do Norte é um “pequeno país”. Mas não há porque acreditar na inocência de certos pequenos países). Pois o delírio chegou até aí. Nossa resposta tem de ser a de realmente desmistificar - não a de “sobremitificar” - essas atitudes mostrando, por exemplo, o que representa o regime norte-coreano, como no nosso caso, mutatis mutandis, o cubano, em matéria de opressão e de exploração. Essa gente não distingue as coisas do nome das coisas. Um regime que se diz socialista haveria de ser socialista. - En passant, a atitude do PSTU é surpreendente, e também a do PSOL. Não estou suficientemente informado para poder comentá-las suficientemente. Mas acho um avanço que o PSOL não se comprometa com denúncias contra a dissidente, e creio também que foi importante fazer, como ele fez, uma saudação à revolução de 1959. Por outro lado, e por mais surpreendente que seja, há verdade (ou, pelo menos, verdades) na declaração que deu a público o PSTU.

Quanto à direita e à extrema-direita. Claro que eles trataram de utilizar a figura da dissidente, fazendo um carnaval em torno da figura recuperada. Qual deve ser a atitude de uma esquerda democrática diante deles? Em uma palavra: não cair na armadilha da direita e da extrema-direita. Isto é, em primeiro lugar, não se pôr a defender o regime castrista porque a direita e a extrema-direita o atacam. Porém mais do que isso. Não só não defender o regime castrista, mas ainda não cair na defensiva, não se sentir pouco à vontade, diante da visita da dissidente, pelo fato de que a direita a instrumentaliza. Ora, se no artigo de Maria não há propriamente defesa do castrismo, há evidentemente um certo mal-estar diante da dissidente, mal-estar que não se justifica e não ajuda a entender as coisas. A dissidente é uma dissidente - não socialista, embora - de um regime autoritário, e merece a nossa simpatia, como mereciam os russos não de extrema-direita que se opunham ao stalinismo, fosse eles socialistas ou não. Para aquém da simpatia, o mínimo que se deveria fazer seria assegurar o seu direito de palavra e protestar contra os que atentaram contra ele. Mas a posição da articulista em relação ao regime é curiosa: ela fala mais de uma vez em “experiência cubana”; também na “necessidade de reforma do regime castrista”; refuta a “condenação sem mediação” do regime cubano, e se inscreve contra a “defesa acrítica do comunismo cubano”. A meu ver, há aí muita “consciência pesada” e muita concessão, que não se justificam. O regime castrista nasceu de uma revolução democrática (que o PSOL faz muito bem em saudar), revolução à cabeça da qual se alçou pouco a pouco o grupo dos Castro e de Guevara. Claro que eles tiveram um papel no processo, mas gradativamente, e já antes da tomada do poder, foram neutralizando as outras tendências. Depois, contando também então com o apoio do PC, que, no início, era contrário ao movimento, cedo transformaram o regime em autoritarismo quase-totalitário. Que significa hoje falar em “experiência cubana“, e na necessidade de não esquecer as “mediações”? Mediações, se houve, eles ficaram no passado. Os irmãos Castro. com o apoio de Guevara, liquidaram o que havia de libertário e pré-socialista na revolução democrática. Quanto a chamar a história de Cuba sob o castrismo de “experiência cubana”, acho que é enganoso. A uma experiência muito negativa, na realidade, quase catastrófica, a gente não dá o nome de “experiência”. O termo se usa, em geral, para os casos em que o lado positivo está muito presente ou, pelo menos, presente. Não creio em absoluto que seja, hoje, o caso, na Cuba sob os Castro. Lá não se tem liberdade, e o que sobrou de igualitarismo é muito pouco para compensar a liquidação brutal dos direitos civis e políticos. Isto significaria absolver o capitalismo? Ora, até quando vamos acreditar nessa lógica dual, de terceiro excluído? Para começar, o capitalismo pode ser autocrático (como o de Pinochet), ou liberal-democrático como o nosso. É claro que, embora a democracia que existe no Brasil seja muito imperfeita, o fato de haver democracia no Brasil é uma coisa muito positiva. E o seu espírito, apesar das aparências, é tendencialmente oposto ao do capitalismo. Defender a existência e o aperfeiçoamento da democracia é tudo, menos uma defesa do capitalismo. Aliás, seria preciso sublinhar os aspectos em que a extrema)direita, nostálgica do regime dos generais, se aparenta à extrema esquerda castrista, radicalmente antidemocrática.

É o que eu teria a dizer sobre o artigo - de resto muito rico e apoiado numa pesquisa sociológica quase exaustiva - de minha amiga Maria Caramez Carlotto.

 









fevereiro #

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ilustração:Rafael Moralez




ilustração:Rafael Moralez




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