revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Yara FRATESCHI

por que perpetuar a ditadura? um comentário ao texto de Paulo Arantes: "1964 o ano que não terminou"

 


A anistia foi um momento importante no processo de transição para democracia no Brasil. Não pretendo aqui discutir o contexto no qual se deu a anistia, mas destacar o fato de que diversos países que passaram por um processo de transição semelhante ao nosso reviram a lei da anistia porque entenderam que o direito à memória e à verdade, bem como a responsabilização dos agentes envolvidos em crimes contra a humanidade e sérias violações aos direitos humanos fazem parte de um processo de consolidação da democracia. No Brasil, entretanto, isso não aconteceu (ou aconteceu muito parcialmente apenas pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado pelos crimes cometidos durante a ditadura). Sem a responsabilização individual dos perpetradores, resta a sensação de que a ditadura permanece entre nós: permanece com a impunidade, com o gosto amargo de que a democracia foi conquistada com a anuência aos crimes de tortura e assassinato. Mas, se há hoje quase um consenso (forjado a partir do Tribunal de Nuremberg e da Declaração dos Direitos Humanos de 1948) quanto ao direito à memória e à verdade, assim como em torno da idéia de que a anistia pode ser somente limitada, pois não pode acobertar crimes graves como os crimes de guerra e crimes contra a humanidade, cumpre perguntar por que ainda permanecemos infensos a esse consenso e à responsabilização individual dos perpetradores. Se a anistia teve a sua importância num determinado momento de transição, hoje ela não faz mais sentido e compromete a nossa democracia. Porque uma democracia construída sobre o encobrimento da história, sobre a negação da memória e sobre a impunidade se vê, de saída, perpetuando aquilo que a nega e recusando aquilo que a sustenta: o respeito aos direitos humanos, o respeito à dignidade de cada ser humano. Mais do que responsabilizar o Estado (o que o Brasil tem feito, nos governos FHC e Lula, mediante justiça reparativa1) urge responsabilizar criminalmente os agentes do Estado envolvidos em crimes durante a ditadura. O argumento de que esse procedimento impede a paz e a democracia é, hoje, falacioso. Assim como é falacioso o argumento de que a revisão da lei da anistia deveria levar a julgamento aqueles que resistiram à ditadura. Responsabilizar criminalmente os perpetradores não é um ato de vingança, mas de justiça. Um ato que tem profundas consequências democráticas, inclusive porque os países que assim agiram construíam bases mais sólidas para o respeito aos direitos humanos em suas democracias2.

Entretanto, acusar a resistência de setores conservadores à revisão da lei da anistia no Brasil e defendê-la como condição do aprofundamento da nossa democracia não me leva a aderir a um certo diagnóstico, baseado na teoria de G. Agamben do estado de exceção, que insiste em desfazer as linhas demarcatórias entre a democracia e a ditadura e a recusar terminantemente os ganhos da nossa recente democracia. Esse diagnóstico tem se repetido, no Brasil, não apenas no âmbito da filosofia política, mas também tem se difundido entre cientistas políticos, juristas e até psicanalistas (é impressionante a adesão de intelectuais brasileiros que se autodenominam "de esquerda" a Agamben). Em um livro publicado em 2010, O que resta da ditadura (organizado por Vladimir Safatle e Edson Teles)3, Paulo Arantes, aplicando a teoria de Agamben do estado de exceção ao caso brasileiro, responde à questão que dá título ao livro (o que resta da ditadura) dizendo que se a guerra acabou ou não, tanto faz: "o que importa é que um pólo remeta ao outro, configurando o que se poderia chamar de limiar permanente, sobre o qual pairam tutela e ameaça intercambiáveis" (p.211). O texto, intitulado 1964: o ano que não terminou, detecta a permanência do estado de exceção na Constituição de 1988, cujo artigo 142 entrega às Forças Armadas a garantia da lei e da ordem, bem como na ampliação do poder executivo "governando rotineiramente com medidas provisórias com força de lei" (p.213). O que profere Agamben, vale, então, para o caso brasileiro: "aquele deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo, baseado na indistinção crescente entre Legislativo, Judiciário e Executivo, transpôs afinal um patamar de indeterminação entre democracia e soberania absoluta" (p.214). Para Paulo Arantes, o que ocorreu no Brasil foi que resvalamos em uma "democracia meramente eleitoral" (p.216), onde vige um "Estado oligárquico de direito", ou seja, "um regime jurídico-político caracterizado pela ampla latitude liberal-constitucional em que se movem as classes confortáveis, por um lado, enquanto sua face voltada para a ralé (...) se distingue pela intensificação de um tratamento paternalista-punitivo" (p.216). A consolidação da democracia é uma ficção que se desfaz quando se percebe que a transição democrática foi pactuada com os vencedores e permanência, hoje, do estado de exceção se explica pela afinidade eletiva entre capitalismo e exceção (p.224): o estado de exceção é garantia do capitalismo (p.225) e se ele perdura é por causa do Estado de emergência econômico permanente (p.228), de modo que "o que resta da ditadura, não são patologias residuais" (p.227). O sentido (capitalista) da ditadura, se consumou "num Estado de emergência que se instalou de vez na primeira hora da democratização pós-ditadura, quando sucessivos planos de estabilização por decreto-lei consolidaram, junto com as instituições da nova democracia, o sentimento oficial de uma economia literalmente sitiada por ameaças de toda sorte: intensificações ou retorno da inflação, crise cambial, ataques especulativos contra a moeda nacional, etc" (p.233). Para resumir, no retrato que Paulo Arantes desenha do Brasil pós-ditadura há, de um lado, "uma aristocracia capitalista privilegiada e bem postada junto ao e no Estado" (p.234) - a quem interessa o Estado de emergência econômico perene - e, de outro, uma população econômica vulnerabilizada e, "agora (o texto é de 2010), consumado o aprendizado do medo, [uma população] desmobilizável ao menor aviso de que a economia nacional se encontra à beira do precipício, pelo qual certamente despencaria não fosse a prontidão de um salvador de última instância munido, é claro, de plenos poderes" (p.228).

A abordagem economicista de Paulo Arantes garante uma explicação simples, para não dizer simplista e reducionista, do atual estágio da nossa democracia: para ele, o Estado tem a função de "estabilizar o valor dos ativos das classes proprietárias" (p.235), enquanto a Constituição é eclipsada (suspensa no vácuo na inefetividade) por ser a "sede primeira do direito financeiro". O eclipse da Constituição e o aumento progressivo da capacidade normativa do poder executivo revelam a função do poder público: a tutela jurídica da renda do capital. Algum ganho de 1964 pra cá? Para Paulo Arantes não há nenhum. Contra o "coro dos contentes", Paulo Arantes quer desmistificar a suposta consolidação das nossas instituições democráticas, desmascarar os supostos ganhos da Constituição de 1988 e revelar que a nossa democracia é meramente eleitoral e está a serviço do capital. O nosso Estado, supostamente de direito, é, na verdade, Estado oligárquico de Direito. E a sociedade civil? Bem, essa não aparece no texto. Quando muito o que aparece é a massa majoritária dos desprivilegiados, aqueles a quem o Estado destina uma gestão punitiva-compensatória. No esquema reducionista de Paulo Arantes há, de um lado, o Estado a serviço do capitalismo e do outro a população econômica vulnerabilizada, totalmente desmobilizada e conformada. A ditadura, diz ele, apagou até a memória de que um dia houve "incorfomismo de verdade nesse país" (p.216). Até o movimento pelas diretas foi um engodo, um engodo de massas, que o autor reduz a uma "dramaturgia cívica" (p.221). E de lá pra cá, esquerda e direita trilharam o mesmo caminho: entre os governos de Collor e Lula, passando pelo de FHC, não parece haver nenhuma diferença substantiva. Tudo se resume à perpetuação do estado de exceção.

Para ser breve, cumpre dizer que o diagnóstico é simplista e reducionista por várias razões, que se devem a uma só atitude: a de desconsiderar quaisquer ganhos seja no plano institucional, constitucional ou social. Há uma estratégia para levar esse procedimento a cabo: perpetuar a ditadura na figura do estado de exceção e reforçar o vínculo entre Estado e capital. A partir daí, quaisquer avanços perdem a sua importância. E aqueles que se incumbem da tarefa de avaliar não apenas as patologias, mas também os ganhos da nossa democracia são tratados como tolos contentes. Eu poderia oferecer contra-argumentos, mencionando, por exemplo, a redução da pobreza e a diminuição da desigualdade, o avanço e incremento dos programas voltados para a inclusão social, o desenho de políticas públicas voltadas para a diminuição da violência contra as crianças, as mulheres e os índios, eu poderia citar ainda a recente decisão do STF no que tange ao reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo; mas todos eles parecem perder a sua força diante do argumento da perpetuação do estado de exceção e sua afinidade eletiva com o capitalismo. Qualquer contra-argumento aparece, nesse esquema, como mera ideologia. Cumpriria perguntar a Paulo Arantes onde estaria a possibilidade de reversão desse sistema de perpetuação da dominação e do estado de exceção. Talvez, para ele, a solução exija a abolição do capitalismo, mas como não há nenhum sinal disso, resta ao filósofo político continuar a denunciar o vínculo promíscuo entre o capital e o Estado, e mostrar que quaisquer medidas tomadas em nome da inclusão social ou quaisquer avanços no plano do direito são, no fundo, mera perpetuação desse esquema de dominação. Penso, entretanto, que essa estratégia - de reafirmar a permanência da ditadura - o desincumbe de pensar como reduzir os efeitos nocivos do capitalismo e, mais, o desincumbe de refletir sobre as condições de possibilidade da diminuição da dominação não apenas no plano econômico, mas também no plano simbólico, ou seja, naquele em que vigem as mais diversas formas de discriminação (contra as mulheres, os homossexuais, os índios, os negros, os nordestinos, etc). Cumpre destacar que no esquema de Paulo Arantes só há um tipo de dominação - a dominação econômica - que, ao que parece, bastaria der desfeita para que pudéssemos viver no paraíso.

Mas o que chama, sobretudo, a minha atenção é a ausência de qualquer consideração a respeito da sociedade civil, que, quando muito, é retratada uniformemente como a massa dos desprivilegiados e que se encontra totalmente desmobilizada e apaziguada. Não é um detalhe o fato do autor desmerecer o movimento pelas Diretas: a sociedade civil está ausente do seu retrato ou só aparece nele como algo uniforme e facilmente controlável. Um dia, admite Paulo Arantes, houve inconformismo "de verdade" nesse país. Mas isso acabou com a ditadura, aliás, era esse o seu propósito. Mas qual é o critério "epistemológico" que o permite distinguir o inconformismo de verdade do inconformismo de mentira? Há uma pretensa ciência por trás disso, e ela reduz os conflitos sociais a conflitos econômicos. Mas como nem mesmo esses têm solução, a ciência se revela caduca: não dá conta de avaliar a complexidade da nossa sociedade e das suas demandas, bem como dos nossos problemas sociais e culturais. Mas a estratégia de Paulo Arantes não deixa espaço nem mesmo para essa crítica: se a voz da sociedade, seja quando demanda por reconhecimento, seja quando demanda por redistribuição, é inconformismo de mentira; novamente resta ao filósofo, refratário à complexidade das demandas atuais, desvelar a farsa.

Para se contrapor a Paulo Arantes, é preciso desmentir a tese segundo a qual não há distinção significativa entre a nossa atual democracia e a ditadura militar e o caminho para isso, a meu ver, é prestar mais atenção não apenas no ordenamento do Estado e nas suas instituições, mas também na sociedade civil, na esfera pública não oficial. Mesmo que se conceda a extensão do poder executivo, ou o relativo eclipse da nossa Constituição, mesmo que se reconheça as imperfeições e injustiças da nossa democracia, isso não permite simplesmente concluir pela indistinção entre absolutismo/ditadura e democracia, a menos, é claro que se esqueça como e com quais instrumentos de controle uma ditadura se estabelece. Há uma distinção fundamental entre democracia e ditadura: o fato de que na democracia há espaço para o dissenso e para a emergência de grupos e movimentos com demandas próprias e conflitantes e que desejam participar do processo de tomada de decisão e no desenho de políticas públicas. É evidente, portanto, que quanto maior for esse espaço, mais democrática é uma sociedade. Mas o argumento "ladeira a baixo" de Paulo Arantes parece não fazer essa distinção: qualquer sinal de imperfeição reduz a democracia à ditadura, mas numa ditadura não há espaço nem para a participação popular e tampouco para a contestação de qualquer tipo de dominação. Na nossa ditadura, o oponente era tratado como terrorista, torturado e assassinado. Paulo Arantes se incomoda com o editorial da Folha de São Paulo (17 de fevereiro de 2009) que, com um trocadilho infeliz, falava da nossa  "ditabranda", mas a indistinção promovida por ele entre democracia e ditadura não acaba por abrandar a ditadura?

Faço aqui uma pequena digressão. Ainda no que tange à distinção entre ditadura e democracia, seria pertinente retomar a teoria arendtiana do juízo político, à qual faço aqui uma breve alusão. Há, hoje, na esteira de Agamben, uma tendência (principalmente no Brasil) em ver na obra de Arendt elementos da biopolítica, principalmente no que diz respeito à tese da contiguidade entre democracia e totalitarismo. Essa interpretação não falha apenas em desconsiderar que Arendt diferencia muito claramente a democracia ou a república do sistema totalitário, não falha somente por desconsiderar a importância que ela atribui ao Estado de Direito (o que desmente a tese segundo a qual o direito é intrinsecamente violento), mas também falha (o que me interessa aqui) em levar em consideração que, para ela, o juízo político não opera da mesma maneira em situações políticas excepcionais (como nas ditaduras e no totalitarismo) e em circunstâncias democráticas, sendo que a diferença consiste no fato de que no primeiro caso as condições de possibilidade do discurso público estão aniquiladas. Assim sendo, o que resta na ditadura ou no totalitarismo é, quando muito, a possibilidade de um diálogo interno que resguarda, para o indivíduo, a capacidade de julgar por si mesmo e, portanto, de resistir à barbárie dominante e ao mal extremo, ao passo que, em circunstâncias políticas democráticas, onde há espaço para a convivência com os outros através do discurso, o juízo pode ser construído a partir do diálogo e se abre a possibilidade de que cada um leve em consideração a perspectiva de todos os outros envolvidos (mentalidade alargada). O diálogo interno na forma do dois-em-um socrático pode impedir o indivíduo de aderir à violência perpetrada pelo Estado contra os seus cidadãos (e é com base nele que Arendt defende a responsabilização moral e legal dos perpetradores). No entanto, esse diálogo interno é politicamente limítrofe porque não se constrói pela intersubjetividade e, portanto, é inteiramente negativo: ou seja, não diz o que fazer, mas apenas impede que se faça certas coisas "mesmo que elas sejam feitas por todos ao seu redor"4. É muito significativo que aqueles que procuram aproximar Arendt de Agamben calam quanto a essa importante distinção, que, inclusive, passa completamente despercebida de Agamben quando ele se apropria de Arendt, e de Paulo Arantes, quando aplica a teoria de Agamben ao caso brasileiro: ao perpetuarem o estado de exceção, aniquilam a distinção entre circunstâncias políticas nas quais o diálogo público é possível, e circunstâncias nas quais o diálogo é violentamente reprimido. É evidente que há outras maneiras, além da repressão explícita, de impedir ou dificultar o diálogo público, mas isso não é razão suficiente para desfazer a distinção entre democracia e totalitarismo ou ditadura, ou, ainda, para afirmar, como faz Agamben, que o campo (de concentração) é o paradigma oculto da política moderna. Ao diferenciar situações políticas excepcionais de situações políticas em que existem condições para a intersubjetividade, Arendt não só contraria a tese central de Agamben como também estabelece um critério a partir do qual se pode avaliar democracias mais ou menos consolidadas, o que a permite detectar onde há (e houve) incremento da liberdade, a despeito de nenhuma forma moderna de Estado ter sido capaz de concretizar mecanismos que possibilitam plenamente o agir político. E é olhando para a sociedade e para os movimentos sociais, principalmente para o movimento operário e feminino, que ela detecta ganhos democráticos, na medida em que esses movimentos deram "um rosto radicalmente novo a todas as questões políticas"5 ao garantir o ingresso de novos atores na vida pública. Fim da digressão. Volto ao texto de Paulo Arantes.

Focando agora na sociedade, é bastante significativa a completa desconsideração de Paulo Arantes no que diz respeito aos movimentos sociais, às organizações da sociedade civil e à participação popular como meio de democratizar decisões e permitir o debate de novos temas e questões. O autor está tão fortemente imbuído da tarefa de desmascarar o nosso Estado "oligárquico" de direito, que desconsidera o fato de que a sociedade civil reingressa na cena política brasileira no final da década de 70 "na medida em que atores e organizações buscaram o objetivo de aprofundar e expandir a democracia por meio de reivindicações de direitos de cidadania"6. Com o final da ditadura, ocorre a emergência de novos atores políticos organizados das mais diversas maneiras. Quando Paulo Arantes afirma que a Constituição de 1988 "incorporou todo o aparelho estatal estruturado pela ditadura (p.221)" e se encontra blindada pelo estado de emergência econômico perene que bloqueia os direitos econômicos e sociais (p.234), ele se esquece que a Constituição de 1988 abre espaço para instituições participativas e que, também, durante o período da Assembléia Constituinte, a sociedade civil não estava completamente desmobilizada, tanto que foi capaz de promover "inovações institucionais significativas à medida que seus atores juntaram forças com a sociedade política para influenciar a nova constituição brasileira", como mostram Wampler e Avritzer. Faço essa observação não com o intuito de sugerir que os direitos estipulados pela Constituição têm plena efetividade (haverá algum lugar no mundo onde isso ocorra?), mas com a intenção de apontar que sem essa garantia constitucional (que é também uma conquista da sociedade civil) não haveria embasamento formal de práticas que efetivamente se sucederam, como, por exemplo, a do orçamento participativo, a dos conselhos gestores (por exemplo, nas áreas da saúde, educação e cultura, direitos das crianças, adolescente e mulheres) e, mais recentemente, a das Conferências Nacionais. Ocorre que, como Paulo Arantes parece reduzir a Constituição de 1988 ao artigo 142 - aquele que supostamente embasa, no plano constitucional, o seu diagnóstico acerca do estado de exceção brasileiro -, ele desconsidera não apenas essa garantia formal como também aquilo que a gerou (em parte a pressão de setores da sociedade civil) e os seus resultados no âmbito da ampliação de canais de participação da sociedade no desenho de políticas públicas. Não pretendo adotar uma posição romântica com relação a esses canais de participação ou com relação à própria mobilização da sociedade civil. É preciso reconhecer as limitações da cidadania participativa e deliberativa no Brasil, bem como apontar para as deficiências na comunicação entre a sociedade e o Estado ou na própria organização, por exemplo, dos Conselhos Gestores e das Conferências Nacionais. Entretanto, para refletir sobre essas dificuldades é preciso detectar que há âmbitos de participação e deliberação que envolvem a sociedade e que esta não se encontra, desde o fim da ditadura, como supõe Paulo Arantes, completamente apática.

Em suma, o diagnóstico do estado de exceção brasileiro é empiricamente deficiente porque teima em não levar em consideração as diferenças significativas entre o período da ditadura militar e aquele se inaugura com a redemocratização no que diz respeito não só às instituições do Estado, mas também no que diz respeito à emergência de novos atores e novas demandas. Essa cegueira é condição de possibilidade da aplicação da teoria de G. Agamben (que desfaz as fronteiras entre democracia e governo absoluto) ao caso brasileiro. No plano teórico, revela-se, então, a completa desconsideração de toda uma literatura que procura abordar a democracia não apenas do ponto de vista da esfera pública oficial das instituições representativas, mas que foca - como fazem as teorias da democracia deliberativa - nos movimentos sociais e nas associações políticas, religiosas, culturais e civis. Isso porque lhe falta até mesmo a admissão de uma esfera pública que extrapola o âmbito das instituições e é composta pela atividade de diversos grupos que resultam em conversações e contestações públicas7. Paulo Arantes está tão determinado em acusar a exceção brasileira que acaba reduzindo a esfera pública ao seu elemento oficial. É claro que ele o faz com determinação crítica, mas como não enxerga além do plano oficial (e mesmo isso ele faz muito parcialmente) fica bloqueado para pensar a ampliação da democracia. Ao fim e ao cabo, a perpetuação da ditadura o torna confortavelmente refratário à esfera pública oficial e não oficial e também o exime da tarefa de refletir sobre o aprofundamento da democracia nas sociedades capitalistas atuais. É um jeito de jogar a toalha.

Para concluir essa minha reflexão sobre o texto de Paulo Arantes, o retrato que ele faz do Brasil atual é extremamente empobrecido na medida em que ignora que reivindicações de grupos diversos se tornaram contestadoras na esfera pública das democracias capitalistas (inclusive na nossa) e estão implicadas em lutas por reconhecimento e redistribuição8. Mais ainda, ao se rogar detentor de um critério (não explicitamente revelado) que permite distinguir o que é inconformismo "de verdade" e inconformismo "de mentira", sendo que o primeiro a ditadura destruiu e o segundo é o que existe hoje, o autor destitui de valor e retira a dignidade de todas as demandas e reivindicações que se fazem presentes atualmente no Brasil da parte da sociedade civil.

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Há formas diversas de perpetuar a ditadura: uma delas é a recusa em responsabilizar criminalmente os perpetradores, que encontra apoio em setores conservadores, geralmente aqueles que revelam algum tipo de afinidade, histórica inclusive, com a ditadura militar; outra forma é desfazer as fronteiras que marcam a distinção entre democracia e ditadura recusando quaisquer ganhos democráticos como se estes apenas escondessem o nosso estado de exceção. A perpetuação da ditadura não interessa apenas à direita, portanto, e entre os dois lados o denominador comum é a resistência à democracia, mais especificamente a resistência à idéia de que a democracia, como diz Claude Leffort, "institui-se e se mantém pela dissolução dos marcos de referência da certeza" e inaugura "uma história na qual os homens estão à prova de uma indeterminação última quanto ao fundamento do Poder, da Lei e do Saber, e quanto ao fundamento da relação de um com o outro, sob todos os registros da vida social"9; ou, enfim, revela uma resistência à idéia de que numa democracia não pode haver qualquer constrição prévia da agenda dos debates políticos e que esta exige a abertura das instituições decisórias à participação ampla dos cidadãos com demandas distintas, como é próprio de um mundo plural. O embotamento de uma discussão ampla sobre a revisão da lei da anistia levado a cabo pelos setores conservadores, assim como a determinação prévia de um critério capaz de distinguir quais reivindicações sociais devem ser consideradas "verdadeiras" compartilham da resistência à indeterminação e ampliação irrestrita do debate público. Os extremos, assim, involuntariamente se encontram, razão pela qual é preciso criticá-los simultaneamente. Rever a lei da anistia, que hoje só serve para acobertar criminosos e atrasar o nosso comprometimento com os direitos humanos, é um passo necessário no sentido da consolidação da nossa democracia. Mas para falar em consolidação da nossa democracia é preciso, ao mesmo tempo, reconhecer os seus ganhos e não apenas as suas patologias - até porque é apenas num contexto democrático que pode surgir, como surge hoje no Brasil, um debate em torno do direito à memória, à verdade e à justiça - mas, para isso, o diagnóstico de Paulo Arantes não serve, a não ser, é claro, para perpetuar artificialmente a ditadura.

Setembro de 2011.

































fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ






1Conferir a esse respeito o texto de Glenda Mezaroba "O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio" in O que resta da ditadura, Edson Teles e Vladimir Safale (orgs.), São Paulo, Boitempo, 2010.

2Vale conferir, a esse respeito, o artigo de Kathryn Sikking e Carrie Booth Walling, "The impact of human rights trials in Latin America". Cf também, de Sikking, "A era da responsabilização: a ascenção da responsabilização penal individual" in A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada (Oxford: Universidade de Oxford; Brasília, Ministério da Justiça, 2011).

3Arantes, Paulo. "1964 o ano que não terminou". In Teles, Edson e Safatlle Wladimir (orgs). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.

4Arendt, H. "Algumas questões de filosofia moral", in Responsabilidade e julgamento, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 170.

5Arendt, H. O que é política, Rio de Janeiro, Bertrand, 2004, p. 74.

6Bryan Wampler e Leonardo Avritzer. "Públicos participativos: sociedade civil e novas instituições do Brasil democrático", in Participação e deliberação, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 216..

7Benhabib, Seyla. Claims of culture. Equality and diversity in the global era. Princeton: Princeton University Press, 2002,  p.21.

8Benhabib, Seyla. Situating the self. Gender, community and postmodernism in contemporary ethics, 1992, p.1.

9LEFORT, C. Pensando o político. Ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.