revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Marilena CHAUÍ

fundamentalismo religioso e teologia política

 


 

I.

 

Ainda que, determinadas pela divisão social, as religiões suscitem expressões diferenciadas segundo o imaginário das classes sociais que as adotam, elas não deixam de ser instituintes deculturas de massa - são um fenômeno que perpassa uma sociedade de ponta a ponta - e do espetáculo - não podem prescindir de rituais e cerimônias. Por isso não nos deve surpreender que, no mundo inteiro, elas se tenham tornado espetáculos de mass media e se sentido em seu elemento e em conformidade com os ares do tempo quando do surgimento da indústria cultural. E todavia nos surpreendemos. A surpresa não vem tanto da presença das religiões nos meios de comunicação ou de sua visibilidade nas praças e nas ruas, de seus signos nos trajes, nos hábitos e nos gestos, e sim da força do apelo religioso para, nos dias de hoje, mobilizar política e militarmente milhões de pessoas em todo o planeta.

Lembremos que, nos estertores da Guerra Fria, Ronald Reagan realizou uma corrida armamentista sem precedentes sob a alegação de preparar o "mundo livre" para a vitória na batalha cósmica do Armagedom, isto é, o embate entre Cristo e o Anticristo, que precede o Juízo Final. Lembremos também que, no correr dos anos 1970 e 80, apareceram sob a imagem de lutas religiosas os massacres de Sabra e Chatila, a guerra civil em Ulster e Belfast, em Beirute, em Teerã e Kabul, os nacionalismos balcânicos praticando genocídio em Sarajevo e Kossovo, a guerra em Gaza, Jerusalém e Bagdá, culminando em atentados suicidas como nobres atos de martírio em nome de Deus e tendo seu momento paradigmático na destruição das torres do Centro Comercial de Nova York, em 2001. Ora, sabemos que nunca houve na história guerra de religião e ninguém pode atribuir os conflitos contemporâneos a causas religiosas; no entanto, eles se expressam por meio dos símbolos religiosos. É isso, exatamente, que surpreende.

Poderíamos tentar vencer a surpresa invocando a boa e velha empiria, dizendo que os fundamentalismos que vimos surgir no Oriente Médio, no Afeganistão, em Kossovo ou em Sarajevo foram politicamente produzidos pelos serviços secretos e de informação do Departamento de Estado norte-americano por motivos econômicos e geopolíticos e que a reativação da religiosidade foi o único meio possível para colocar na cena uma oposição política e derrubar os regimes estabelecidos. Essa resposta não é de grande valia, pois ela nos obriga, agora, a enfrentar três novas questões: 1) por que, no caso do Oriente Médio e do Afeganistão, a oposição política só pode encontrar chefes religiosos ou dirigentes que tomaram a religião como instrumento político principal? 2) porque o discurso religioso desses dirigentes tem força para mobilizar sociedades inteiras e se torna um exemplo imitado em outras circunstâncias, como, por exemplo, nos Bálcãs? 3) porque o discurso religioso não se confinou às sociedades periféricas (ditas atrasadas), mas ganhou forças nos Estados Unidos e enfraqueceu a esquerda em Israel?

Tentemos, pois, enfrentar a surpresa por outro caminho.

Na busca da definição do caráter único e indivisível da soberania, a modernidade ocidental precisou afastar o poder eclesiástico, que impedia essa unidade e indivisibilidade. Para isso, colocou as expressões públicas da religião sob controle dos magistrados (desde a paz de Westfália, prevaleceu o adágio cujusregio, eiusreligio) e lançou para o âmbito privado suas expressões íntimas. Numa palavra, deslocou a religião do espaço público (que ela ocupara durante toda a Idade Média) para o privado. Nessa tarefa, foi amplamente auxiliada pela Reforma Protestante, que combatera a exterioridade e o automatismo dos ritos assim como a presença de mediadores eclesiásticos entre o fiel e Deus, e situara a religiosidade no interior da consciência individual. De outro lado, porém, desde as Luzes, com sua defesa da liberdade civil e religiosa (ou da tolerância), a modernidade ocidental considerou a religião um arcaísmo que seria vencido pela marcha da razão ou da ciência, desconsiderando, assim, as necessidades a que ela responde e os simbolismos que ela envolve. Sob uma perspectiva, consideroua religião algo próprio das populações rurais, dos primitivos e dos atrasados do ponto de vista da civilização, e, sob outra, acreditou que, nas sociedades civilizadas adiantadas, o mercado responderia às necessidades que, anteriormente, eram respondidas pela vida religiosa, ou, se se quiser, julgou que o protestantismo era mais uma ética do que uma religião e que o elogio protestante do trabalho e dos produtores cumpria a promessa cristã da redenção.

Sintomaticamente, a modernidade ocidental sempre menciona o dito de Marx - "a religião é o ópio do povo" -, esquecendo-se de que essa afirmação é antecedida por uma análise e interpretação da religiosidade como "espírito de um mundo sem espírito" (a promessa de redenção num outro mundo para quem vive no mundo da miséria, da humilhação e da ofensa), e como "lógica e enciclopédia populares" (uma explicação coerente e sistemática da Natureza e da vida humana, dos acontecimentos naturais e das ações humanas, ao alcance da compreensão de todos). Em outras palavras, Marx esperava que a ação política do proletariado nascesse de outra lógicaque não fosse a supressão imediata da religiosidade, mas sua compreensão e superação dialética, portanto, um processo tecido com mediações necessárias. Porhaver, entretanto, imaginado o oposto, isto é, que a religião poderia ser suprimida imediatamente, a modernidade ocidental, iluminista, parece não ter como explicar a avalanche religiosa que inunda as sociedades contemporâneas. O retorno à superfície do fundo religioso assemelha-se ao que a psicanálise designa com a expressão retorno do reprimido, uma repetição do recalcado pela cultura porque esta, não tendo sabido lidar com ele, não fez mais do que preparar sua repetição. Ora, essa repetição assume uma proporção gigantesca se considerarmos que ela põe em questão a própria possibilidade da política.

Com efeito, o traço principal da política, traço que se manifesta na sua forma maior, qual seja, na democracia, é a legitimidade do conflito e a capacidade para ações que realizam o trabalho do conflito, ações que se efetuam como contra-poderes sociais de criação de direitos e como poderes políticos de legitimação e garantia dos direitos criados. É sob essa perspectiva que a presença dos fundamentalismos religiosos nos coloca diante de um risco de imensas proporções.

Com efeito, as grandes religiões monoteístas - judaísmo, cristianismo e islamismo, para mencionarmos apenas as "abrâmicas" -, enquanto religiões que produzem teologias (isto é, explicações sobre o ser de Deus e o sentido do mundo, a partir de revelações divinas) precisam, do ponto de vista do conhecimento, enfrentar não apenas a explicação da realidade oferecida pela filosofia e pelas ciências, mas também enfrentar, de um lado, a pluralidade de confissões religiosas rivais e, de outro, a moralidade laica determinada por um Estado profano. Isso significa que cada uma dessas religiões só pode ver o conhecimento laico, os costumes e moralidade laicos, a política laica e as outras religiões pelo prisma da rivalidade e da exclusão recíproca, um tipo peculiar de oposição que não pode suportar o conflito (de ideias, opiniões, costumes, práticas) e não tem como exprimir-se num espaço público democrático, pois não pode haver debate, confronto e transformação recíproca em religiões cuja verdade é revelada pela divindade e cujos preceitos, tidos por divinos, são dogmas. Porque imaginam a transcendência da verdade e do poder e porque se imaginam em relação imediata com o absoluto, que as constitui como portadoras da verdade eterna e universal, essas religiões recusam o trabalho do conflito e da diferença e produzem a figura do Outro como demônio e herege, ímpio e impuro, depravado e ignorante, isto é, como o Mal e o Falso.

 

II.

 

Para compreender alguns aspectos da presença da religiosidade no campo da política, pondo-o em risco, vale a pena começar com algumas breves considerações sobre as mudanças religiosas ocorridas entre os anos 1960 e 20001.

Entre 1960 e 1976, as três "religiões do Livro" - judaísmo, cristianismo e islamismo - tiveram que enfrentar os principais efeitos que sobre elas tiveram, de um lado, o final da Segunda Guerra Mundial e, de outro, a Guerra Fria. Ou seja, de um lado, a conclusão do processo iniciado com as Luzes de decisiva conquista da autonomia pela política e, de outro, a construção do socialismo num só país, ao leste, e o Estado do Bem-Estar e a sociedade de consumo, a oeste.

A conclusão do percurso iluminista, ou a autonomia do político, retirou das religiões toda e qualquer pretensão de ordenar a vida em sociedade, não deixando o menor espaço para buscar no divino a lógica da ordem social. Por sua vez, a Guerra Fria impôs uma alternativa fora da qual não havia salvação, todos obrigados a empenhar-se pelo sucesso de um dos lados e a subordinar a fé à realização de ideais terrestres.Para não perder seus rebanhos, várias instituições eclesiásticas se esforçaram para adaptar seus discursos aos novos tempos, a empreitada mais espetacular tendo sido o concílio ecumênico Vaticano II e a atualização da Igreja a que deu lugar. Fenômeno semelhante aconteceu no mundo muçulmano, no qual a expressão "modernizar o islã" se tornou palavra de ordem. Vaticano II e os vitoriosos nas guerras de independência das colônias da África do Norte e do Oriente Médio encaravam o mundo moderno com otimismo e o discurso religioso se colocava como instrumento auxiliar da política, falando em justiça, direito, desenvolvimento, progresso, liberdade numa linguagem compreensível para classes sociais que não compreendiam as categorias e a retórica modernas.

Essa situação sofre uma mudança no final dos anos 1970: do lado cristão, passa-se a falar na "nova evangelização da Europa" e em "salvar a América"; do lado judaico, recusa-se a forma jurídica Estado de Israel e passa-se à afirmação da expressão bíblica Terra de Israel (justificando a ocupação dos territórios palestinos); do lado muçulmano, já não se fala em modernizar o Islã e sim em "islamizar a modernidade". Surge uma nova militância religiosa, cujos membros não saem das classes populares nem do mundo rural, mas são jovens universitários, formados em ciências e em disciplinas técnicas, que criticam a ausência de um projeto de conjunto ao qual aderir e contestam a organização social seja quanto ao seu fundamento laico - como na Europa -, seja quanto a seus desvios seculares com relação a um fundamento sagrado - como nos Estados Unidos e nos países muçulmanos. Apropriam-se do vocabulário das ciências sociais e do marxismo para criar uma outra sintaxe conceitual com que expor e alicerçar o vínculo religioso como fundamento do sistema social.

No início dos anos 1970, a conjuntura não lhes era favorável e, diante da ausência de condições de expressão política, esses militantes trabalharam pela recristianização,rejudaização ou reislamização, agindo "pelo baixo", isto é, fazendo a religião intervir poderosamente na vida privada e nos costumes, criando adeptos (particularmente por meio de organizações comunitárias de serviços e auxílio aos necessitados) e produzindo transformações culturais em profundidade. A partir do final dos anos 1970, puderam passar ao espaço público, ganhando o campo político, incriminando as classes dominantes e dirigentes pelas falhas econômicas, sociais e políticas ebuscando revigorar a religião "pelo alto", isto é, com atos simbólicos de terror e com a tomada do poder do Estado (seja por meio de eleições ou de golpes de Estado). A ação "pelo alto" visa mudar o curso do Estado por meio da retomada de seu fundamento religioso a fim de instituir um mundo novo, cujos fundamentos se encontram nos textos sagrados.

É o momento em que, do lado muçulmano, o islã se torna "islamismo", isto é, afirma al-‘ Ummaal- islamyyaou "a comunidade de todos os crentes" (correspondente ao que o ocidente chama de cristandade) como promotora da unidade árabe; criticam-se os fundamentos laicos da modernidade (ou a ocidentalização imperialista); ganham força os grupos militarizados - como os Irmãos Muçulmanos e o Hamas, este último opondo a perspectiva religiosa à laica, que caracterizara até então El Fatah e a OLP - e eclodem as disputas internas entre sunitas e xiitas. Do lado judaico, afirma-se o grupo GushEmmunin, que fala em nome de Am Israel, o Povo de Israel, e de Eretz Israel, a Terra de Israel (a qual se estende por todos os territórios situados entre o Jordão e o Mediterrâneo), propondo uma política agressiva de ocupação por meio da colonização, e se explicita a duradoura e longa divergência entre "sionistas políticos" e "sionistas religiosos", isto é, entre os defensores de um Estado nacional, juridicamente definido e propenso a aceitar um Estado Palestino, e os integristas, que emigraram para o novo Estado de Israel depois de, nos anos 1940, recusarem sua criação e atribuir aos "sionistas políticos" a causa do extermínio dos judeus pelo nazismo (designando o genocídio com o termo religioso "holocausto" para significar que Deus, usando os nazistas, sacrificou o povo por ter sucumbido à "idolatria" de desejar um Estado Nacional).

Algumas datas são emblemáticas dessa mutação: 1977, quando, pela primeira vez em sua história, o Partido Trabalhista de Israel - majoritariamente laico e socializante - perde as eleições legislativas e Menahem Begin se torna Primeiro Ministro; 1978, quando o cardeal polonês KarolWoytila é eleito papa João Paulo II, com o apoio dos católicos conservadores norte-americanos, que encurralam a esquerda católica; 1979, quando retorna ao Irã o aiatolá Khomeyni e é proclamada a República Islâmica, na mesma ocasião em que um grupo armado ataca a mesquita de Meca, em repúdio ao poder da dinastia saudita sobre os lugares santos; também em 1979, os eleitores evangélicos norte-americanos se organizam numa instituição político-religiosa, a Maioria Moral, que pretende salvar os Estados Unidoscom a restauração dos valores morais cristãos (da prece na escola à proibição do aborto e das relações homossexuais) e, no ano seguinte, ajudará a eleger Ronald Reagan presidente da república. No início dos anos 1980, começa a guerra civil no Líbano, num conflito que envolve cristãos maronitas, muçulmanos libaneses e palestinos e Israel. Nos meados dos anos 1980, irrompe a guerra Irã-Iraque, envolvendo muçulmanos sunitas e xiitas, socialistas do Partidos Baas e lideranças religiosas; irrompe também a guerra civil no Afeganistão, envolvendo o Talibã e os poderes locais, subordinados à União Soviética.

Em cada um dos casos, a história local e regional determina os eventos.

No caso de Israel, foram determinantes a vitória na Guerra de Seis Dias (em 1967), a derrota na Guerra do Kippur (em 1973) e o apoio eleitoral dado pelos sefarades aos partidos militarizantes de extrema direita, como reação às condições de vida e trabalho que sempre os fizeram economicamente desfavorecidos e politicamente excluídos pela elite ashkenaze. No caso dos católicos, pesou a desorientação com a ampliação do papel e do poder dos leigos e o surgimento da Teologia da Libertação no Terceiro Mundo, em decorrência de Vaticano II. No caso do Irã, foram decisivas a crise do petróleo e a derrubada do Xá (ou a ideia de que a lógica da modernidade é responsável pelo despotismo, pela corrupção e pela miséria). No caso norte-americano, foram determinantes a inflação de dois dígitos, a crise do petróleo (que levará aocupar "amigavelmente" a Arábia Saudita, armar Sadam Hussein contra o Irã e o Talibã contra os soviéticos), a desmoralização militar no episódio dos reféns na embaixada de Teerã, criando a necessidade de rearfirmar o poderio imperial já desmoralizado com o Vietnã e, no bojo dessa rearfirmação no front externo, sua legitimação pelo reerguimento moral e religioso no espaço interno. No caso do Líbano, foi determinante a disputa entre seis projetos políticos minoritários - aluíta, maronita, sunita, copta, palestino e sionista -, suscitando não só a luta entre cristãos e muçulmanos, mas também a invasão pela Síria, pelos palestinos e por Israel. E, no caso do Afeganistão, pesaram a miséria popular e a corrupção dos dirigentes, a contradição entre o mundo tribal sob chefias religiosas e o Estado laico, e a posição estratégica do território geologicamente propício para o domínio geopolítico da região na disputa entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética.

Não basta, porém, essa referência à história local e regional, sobretudo emtempos de globalização. Lembremos que o final dos anos 1970 são os anos da crise fiscal do Estado capitalista, do término do Estado do Bem-Estar Social na Europa e da derrocada da URSS, anunciada com a Glasnost e a Perestroika;são o início do capitalismo neoliberal e de seu Estado, com o tatcherismo e o reaganismo.

 

III.

 

Francisco de Oliveira2 analisa a passagem do Estado do Bem-Estar ao neoliberalismo, ou o "colapso da modernização", a partir das transformações econômicas e políticas introduzidas pelo próprio Estado de Bem-Estar ao instituir o fundo público.

Este se caracteriza, de um lado, pelo financiamentos simultâneo da acumulação do capital (os gastos públicos com a produção, desde subsídios para a agricultura, a indústria e o comércio, até subsídios para a ciência e a tecnologia, formando amplos setores produtivos estatais que desaguaram no célebre complexo militar-industrial, além da valorização financeira do capital por meio da dívida pública, etc); e, de outro lado, pelo financiamento da reprodução da força de trabalho, alcançando toda a população por meio dos gastos sociais (educação gratuita, medicina socializada, previdência social, seguro-desemprego, subsídios para transporte, alimentação e habitação, subsídios para cultura e lazer, salário-família, salário-desemprego, etc.). Em suma, o Estado do Bem-Estar definiu a política como gestão dos fundos públicos, os quais se tornam pré-condição da acumulação do capital e da reprodução da força de trabalho por meio das despesas sociais. Houve a socialização dos custos da produção e manutenção da apropriação privada dos lucros ou da renda (isto é, a riqueza não foi socializada).

Nesse processo de garantia de acumulação do capital e reprodução da força de trabalho, o Estado se endividou e entrou num processo de dívida pública conhecido como déficit fiscal ou "crise fiscal do Estado".O momento crucial dessa crise acontece com a internacionalização oligopólica da produção e da finança, pois os oligopólios multinacionais não enviam aos seus países de origem os ganhos obtidos fora de suas fronteiras e, portanto, não alimentam o fundo público nacional, que deve continuar financiando o capital e a força de trabalho. É isso o "colapso da modernização". Temos aqui a origem da política neoliberal, que propõe resolver a crise fazendo diminuir ou encolher o papel do Estado.

O fundo público, explica Francisco de Oliveira, é o antivalor (não é o capital) e é a antimercadoria (não é a força de trabalho) e, como tal, é a condição ou o pressuposto da acumulação e da reprodução do capital e da força de trabalho. No WellfareState, o lugar ocupado pelo fundo público com o salário indireto fez com que a força de trabalho não pudesse ser avaliada apenas pela relação capital-trabalho, visto que na composição do salário entra também o salário indireto pago pelo fundo público. Ora, no capitalismo clássico, o trabalho era a mercadoria padrão que media o valor das outras mercadorias e da mercadoria principal, o dinheiro. O duplo salário pago aos trabalhadores (salário direto e salário indireto) fez com que o trabalho perdesse a condição de mercadoria padrão que media o valor do dinheiro. Por isso, o dinheiro deixou de ser mercadoria e se tornou simplesmente moeda ou expressão monetária da relação entre credores e devedores, provocando, assim, a transformação da economia em monetarismo. Por outro lado, sob a forma do salário indireto, o fundo público desatou o laço que prendia o capital à força de trabalho (ou o salário direto). Ora, no passado, essa amarra era o que fazia a inovação técnica pelo capital ser uma reação ao aumento real de salário e, desfeito o laço, o impulso à inovação tecnológica tornou-se praticamente ilimitado, provocando expansão dos investimentos e agigantamento das forças produtivas cuja liquidez é impressionante, mas cujo lucro não é suficiente para concretizar todas as possibilidades tecnológicas. Por isso mesmo, o capital precisa de parcelas da riqueza pública, isto é, do fundo público na qualidade de financiador dessa concretização.

Como se observa, o neoliberalismo não é, de maneira alguma, a crença na racionalidade do mercado, o enxugamento do Estado e a desaparição do fundo público, mas a decisão de cortar o fundo público no pólo de financiamento dos bens e serviços públicos (ou o do salário indireto) ou dos direitos sociais e maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos exigidos pelo capital, cujos lucros não são suficientes para cobrir todas as possibilidades tecnológicas que ele mesmo abriu.

As mutações políticas a que nos referimos anteriormente - a mudança na forma da religiosidade invocada pelos sujeitos políticos, a partir de 1977 - encontram aqui um solo para germinar e frutificar. Resta saber como se constituiu um novo imaginário político-religioso.

 

IV.

 

Na fase industrial de estilo fordista, o capital induziu o aparecimento das grandes fábricas (nas quais se tornavam visíveis as divisões sociais, a organização das classes e a luta de classes) e ancorou-se na prática de controle de todas as etapas da produção (da produção ou extração da matéria-prima à distribuição do produto no mercado de consumo), bem como nas ideias de qualidade e durabilidade dos produtos do trabalho (levando, por exemplo, à formação de grandes estoques para a travessia dos anos). Em contrapartida, na fase dita pós-industrial, predominam a fragmentação e dispersão da produção econômica (incidindo diretamente sobre a classe trabalhadora, que perde seus referenciais de identidade, de organização e de luta), a hegemonia do capital financeiro, a rotatividade extrema da mão-de-obra, os produtos descartáveis (com o fim das ideias de durabilidade, qualidade e estocagem), a obsolescência vertiginosa das qualificações para o trabalho, em decorrência do surgimento incessante de novas tecnologias, e o desemprego estrutural, decorrente da automação e da alta rotatividade da mão-de-obra, causando exclusão social, econômica e política. A desigualdade econômica e social atinge níveis jamais vistos e, além de manter a distância entre países centrais ricos e países periféricos pobres, também, em todos eles, divide a sociedade entre bolsões de riqueza e bolsões de miséria.

As determinações econômicas e sociais da nova forma do capital são inseparáveis de uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo, designada por David Harvey3 como a "compressão espaço-temporal", ou seja, o fato de que a fragmentação e a globalização da produção econômica engendram dois fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias eletrônicas e de informação, a compressão do espaço - tudo se passa aqui, sem distâncias, sem diferenças nem fronteiras - e a compressão do tempo - tudo se passa agora, sem passado e sem futuro. Na verdade, fragmentação e dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço indiferenciado e um tempo efêmero, ou sob um espaço que se reduz a uma superfície plana de imagens e sob um tempo que perdeu a profundidade e se reduz ao movimento de imagens velozes e fugazes. Podemos falar em acronia e atopia4, ou na desaparição das unidades sensíveis do tempo vivido e do espaço topológico da percepção sob os efeitos da tecnologia eletrônica. A profundidade do tempo e seu poder diferenciador desaparecem sob o poder do instantâneo. Por seu turno, a profundidade de campo, que define o espaço topológico da percepção, desaparece sob o poder de uma localidade sem lugar e das tecnologias de sobrevôo. Vivemos sob o signo da telepresença e da teleobservação, que impossibilitam diferenciar entre a aparência e o sentido, o virtual e o real, pois tudo nos é imediatamente dado sob a forma da instantaneidade temporal e da transparência espacial de imagens apresentadas como evidências, de maneira que a experiência e o pensamento se efetuam na perigosa fratura entre o sensível e o inteligível.

Volátil e efêmera, hoje a experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente vivido como instante fugaz. Essa situação, longe de suscitar uma interrogação sobre o presente e o porvir, tem levado (como se vê na ideologia pós-moderna) ao abandono de qualquer laço com o possível e ao elogio da contingência e de sua incerteza essencial. O contingente não é percebido como uma indeterminação que a ação humana pode determinar, mas como o modo de ser dos homens, das coisas e dos acontecimentos. Com isso, não só a experiência se dá na ausência da profundidade do passado, mas também na perda da profundidade do futuro como possibilidade inscrita na ação humana enquanto poder para determinar o indeterminado, ultrapassar situações dadas, compreendendo e transformando o sentido delas.

É aqui que podemos vislumbrar como o imaginário religioso encontra um caminho para se disseminar: a compressão do espaço e do tempo, a atopia e a acronia, e a fratura entre o sensível e o inteligível tem sido recusadas pelo imaginário religioso com as figuras do espaço sagrado e do tempo sagrado.

Contraposto ao espaço homogêneo do Estado (o território) e ao espaço atópico da tecnologia de satélites, mísseis e internet (o virtual), o espaço sagrado se oferece como terra santa, terra simbólica ou espaço absoluto, comunitário, gerador da identidade plena, defendido pelo espaço topológico da guerrilha e da resistência.

Da mesma maneira, a fugacidade do presente, a ausência de laços com o passado objetivo e a perda de esperança em um futuro emancipador suscitam o (re)aparecimento do tempo sagrado. As ideias de guerra santa como missão coletiva (do lado muçulmano), a de retorno à terra prometida, como realização da promessa salvífica (do lado judaico), e a do entusiasmo carismático, acrescido de aparições celestes, particularmente as da Virgem Maria (do lado cristão), são manifestações religiosas que condenam o presente e conjuram os humanos a reatar com a temporalidade sacral para reencontrar o caminho da salvação.

Esse imaginário é a tentativa de capturar o espaço e o tempo, infundindo-lhes um sentido transcendente.A reunião da terra santa com o tempo sagrado exprime a luta contra o efêmero da experiência e a busca do eterno. Essa reunião desenha a figura do presente como exílio e como missão. Exílio: o presente se define pela distância, pela ausência ou pela interdição que afeta a relação com o espaço santo. Missão: o tempo sagrado, como realização do retorno à terra sagrada, introduz a guerra santa como missão.

 

V.

 

Examinando o projeto moderno, Boaventura dos Santos5 considera que este assentou-se sobre dois pilares: o da regulação e o da emancipação. O pilar da regulação, por sua vez, assentou-se sobre três princípios: o Estado (ou a soberania indivisa, que impõe a obrigação política vertical entre os cidadãos), o mercado (que impões a obrigação política horizontal individualista e antagônica) e a comunidade (ou a obrigação política horizontal solidária entre seus membros). O pilar da emancipação, por seu turno, foi constituído por três lógicas de autonomia racional: a racionalidade expressiva das artes, a racionalidade cognitiva e instrumental da ciência e técnica, e aracionalidade prática da ética e do direito.

O projeto da modernidade julgava possível o desenvolvimento harmonioso da regulação e da emancipação e a racionalização completa da vida individual e coletiva. Todavia, o caráter abstrato dos princípios de cada um dos dois pilares levou cada um deles à tendência a maximizar-se com a exclusão do outro, e a articulação entre o projeto moderno e o surgimento do capitalismo assegurou a vitória do pilar da regulação contra o da emancipação. Se quisermos ilustrar a descrição de Boaventura Santos, podemos dizer que a Dialética do iluminismo, de Adorno eHorkheimer,e a História da loucura, de Foucault, são as primeiras interpretações filosóficas do fracasso do projeto moderno (a harmonia dos dois pilares) ou da vitória da regulação sobre a emancipação.

Ora, precisamos constatar que, em nossos dias, a crítica da regulação acabou conduzindo também à crítica da ideia moderna de emancipação, uma vez que o pensamento pós-moderno julga a razão moderna não só incapaz de produzir emancipação, mas a considera construída para impedir a emancipação. Se os modernos encontravam na religião o obstáculo à emancipação prometida pela razão, os pós-modernos julgam que a própria razão é o obstáculo, pois a adesão racional às ideias de identidade, causalidade, totalidade, finalidade, progresso e verdade nada mais é do que adesão a simulacros perversos, que ocultam a diferença, a singularidade e a alteridade, a descontinuidade temporal, o sentido e a contingência essencial do mundo. Basta lembrarmos o que escrevia Lyotard, no início dos anos 1970:

Razão e poder, dá tudo no mesmo. Podem dissimular a primeira com a dialética ou a prospectiva; de todo jeito, terão o outro nu e cru: prisões, interdições, bem público, seleção6.

Se a vitória da regulação sobre a emancipação conferiu hegemonia à identidade entre ordem e racionalidade (repressiva), o pensamento pós-moderno, por sua vez, abandonando os dois pilares modernos por julgá-los igualmente ilusórios e perversos, tentou suprimi-los exatamente como a modernidade julgara poder suprimir a religião: imediatamente e sem mediações. Essa dupla supressão imediata leva, do lado pós-moderno, ao elogio da descontinuidade e da contingência, e, do lado da modernidade reguladora, à confiança no mercado como agente da racionalidade.

Podemos indagar o que acontece quando articularmos os seguintes aspectos da história contemporânea:

- a atitude moderna que, desde as Luzes, simplesmente lançou a religiosidade para o espaço privado e esperou que a marcha da razão e da ciência findariam por eliminar a religião;

- o mercado neoliberal, que opera por extermínio e exclusão e com a fantasmagoria mística da riqueza virtual e dos signos virtuais;

- o Estado neoliberal, que se define pelo alargamento do espaço privado dos interesses e o encolhimento do espaço público dos direitos;

- o pensamento pós-moderno, que se apóia na fratura morfológica do espaço e do tempo para recusar a tradição racionalista;

- a condição pós-moderna de insegurança (gerada pela compressão espaço-temporal), na qual o medo do efêmero leva à busca do eterno.

Podemos responder que essa articulação nos oferece algumas pistas para nos aproximarmos de dois fenômenos entrelaçados, que marcam a política contemporânea: a despolitização da sociedade e o ressurgimento do fundamentalismo religioso não apenas como experiência pessoal, mas como interpretação da ação política, ou seja, o retorno da teologia política.

O conjunto de traços da economia contemporânea, a presença política de megaorganismos econômicos privados transnacionais nas decisões dos governos e a forma do Estado neoliberal indicam que estamos diante da privatização da pólis e da res publica. Essa privatização produz, entre vários efeitos, a despolitização, cujos principais aspectos podem ser assim resumidos:

- o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado sob a ação da economia e dos governos neoliberais, uma vez que se definem pela eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos, garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados da classe dominante, isto é, em proveito do capital (ou seja, a solução neoliberal para a crise do fundo público);

- a destruição da esfera da opinião pública, que deixa de ser o campo onde grupos e classes sociais exprimem opiniões divergentes sobre a vida econômica, social, cultural e política em vista de determinar ou orientar decisões e ações políticas. Hoje, a opinião pública tornou-se a manifestação pública de gostos, preferências e sentimentos individuais, que outrora pertenciam ao campo da vida privada;

- a destruição da discussão e do debate públicos sobre projetos e programas de governo e sobre as leis, destruição produzida pelo surgimento do marketing político, que submete a política aos procedimentos da sociedade de consumo e de espetáculo. O marketing político busca vender a imagem do político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor. Para obter a identificação do consumidor com o produto, o marketing produz a imagem do político enquanto pessoa privada: características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichos de estimação. A privatização das figuras do político e do cidadãoprivatiza o espaço público;

- a ação dos meios de comunicação de massa, que se tornam cada vez mais o campo dos discursos dos especialistas, que nos ensinam o que e como pensar, sentir, agir e viver. Como observa Christopher Lash, em Thecultureofnarcisism, os massmedia tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade: para que algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável. Os fatos cedem lugar a declarações de "personalidades autorizadas" e de "formadores de opinião", que não transmitem informações, mas preferências, de sorte que a vida privada surge como suporte e garantia da ordem pública;

- a ideologia da competência, que pode ser assim resumida: não é qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pré-determina os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir, e, finalmente, define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento a afirmação de que a sociedade se divide entre os competentes, que possuem conhecimentos científicos e técnicos e por isso têm o direito de mandar e comandar, e os demais que, não tendo tais conhecimentos, são tidos como incompetentes e têm a obrigação de obedecer. Sob o efeito da ideologia da competência, a política é considerada uma questão técnica que deve ficar nas mãos de especialistas competentes, cabendo aos cidadãos reconhecer a própria incompetência, confiar na competência dos técnicos e reduzir a participação política ao momento do voto nas eleições;

- o aparecimento da chamada "sociedade do conhecimento", expressão que pretende explicitar a constatação de que a sociedade contemporânea não se funda mais sobre o trabalho produtivo e sim sobre o trabalho intelectual, ou seja, sobre a ciência e a informação, que, dessa maneira deixaram de ser simplesmente conhecimentos aplicados pela produção econômica e se tornaram parte do próprio capital, isto é, forças produtivas. Visto que o poder econômico se baseia na posse e na propriedade privada dos conhecimentos e das informações, estes se tornaram secretos e constituem um campo de competição econômica e militar sem precedentes e por isso bloqueiam ações e poderes democráticos, fundados na exigência da publicidade da informação.

Aparentemente, a ideologia da competência e a sociedade do conhecimento tornariam enigmático o retorno da teologia política, fundada na ideia da verdade como teofania, isto é, como revelação divina, e do poder como escolha divina do governante. Estamos, porém, diante de um verdadeiro enigma?

A ideologia pós-moderna, ao recusar a ideia de emancipação como processo ou movimento possível da ação humana como história e afirmar o primado da contingência e do instante fugaz, tem levado tanto a esquerda como a direita à fascinação pela ideia do "decisionismo"proposta por Carl Schmitt, que define a soberania como poder incondicionado de decisãoem situações de exceção, isto é, de guerra e de crise. A decisão não tem passado nem futuro, existe apenas como instante presente e, visto que depende exclusivamente da vontade do soberano, ela é contingente. A compressão espaço-temporal, a atopia e a acronia - isto é, a fratura entre o sensível e o inteligível -, o modo de operação da forma atual do capitalismo - guerra e extermínio - e a ideologia da competência pavimentaram o caminho para o retorno da teologia política.

 

VI.

 

Pode parecer surpreendente falar em retorno da teologia política.

Com efeito, sabemos que o nascimento da política - a "invenção da política", como escreveu MosesFinley - foi um acontecimento que distinguiu para sempre a Grécia e Roma em face dos grandes impérios antigos. A política nasceu ou foi inventada quando o poder público, por meio da invenção do direito e da lei (isto é, a instituição dos tribunais) e da criação de instituições públicas de deliberação e decisão (isto é, as assembleias e os senados),foi separado de três autoridades tradicionais: a do poder privado ou econômico do chefe de família, a do chefe militar e a do chefe religioso (figuras que, nos impérios antigos estavam unificadas numa chefia única, a do rei ou imperador). A política nasceu, portanto, quando a esfera privada da economia, a esfera da guerra e a esfera do sagrado ou do saber foram separadas e o poder político deixou de identificar-se com o corpo místico do governante como pai, comandante e sacerdote, representante humano de poderes divinos transcendentes.

Nesse caso, como seria possível uma teologia política? Em outras palavras, o enigma do teológico-político não se reduz ao fato de seu reaparecimento no momento em que a ideologia da competência julga a política uma atividade inteiramente racionalizada sob a autoridade de especialistas, mas nos obriga a indagar como é possível a teologia política,se a condição do surgimento do político foi justamente seu distanciamento com relação ao sagrado e à religião. Que haja uma autoridade religiosa e um poder teológico, isso não é um problema. A dificuldade só aparece quando essa autoridade e esse poder são denominados políticos.

Ora, para falar em retorno da teologia política não precisamos enfrentar apenas esse paradoxo, mas também outro, exatamente oposto a este primeiro. De fato, como falar em retorno do teológico-político, se, a crermos em Carl Schmitt, a política ocidental sempre foi e é teológica ou mera secularização da religião?

Todos os conceitos fecundos da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados. E isso é verdadeiro não somente de seu desenvolvimento histórico, porque foram transferidos da teologia para a teoria do Estado - pelo fato, por exemplo, que o Deus onipotente tornou-se legislador onipotente -, mas também de sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica desses conceitos7.

Pensamos que um caminho interessante para compreender as ideias de Schmittnos é oferecido por sua inserção no campo de pensamento instituído pelo Idealismo Alemão. De fato, este pode ser caracterizado como uma gigantesca operação teórica de dessubstancialização da realidade. Dessa dessubstancialização, as expressões sucessivas mais relevantes são: a separação entre fenômeno (o que podemos conhecer) e realidade em si (inalcançável por nosso entendimento), proposta por Kant; a tese de Fichte de que o mundo é o Não-Eu posto pelo Eu (o entendimento humano); e o Espírito Absoluto, proposto por Hegel, como pura atividade de auto-constituição ou como sujeito que se põe a si mesmo pela posição, negação e supressão de seu negativo, isto é, o objeto exterior.

De maneira sumária e grosseira, diremos que o Idealismo Alemão afirma que a atividade teórica da razão põe o mundo como objeto de conhecimento e a atividade prática da razão põe o mundo como moralidade, ou seja, a objetividade (no conhecimento) não é alcançada como conhecimento de uma substância natural existente em si (a Natureza), e a moralidade (na ação) não resulta da essência de uma substânciahumana (o Homem em si), mas são produzidas pela ação racional da subjetividade.

O parentesco de Schmitt com essa herança é evidente: o primado da ação e a dessubstancialização da realidade aparecem na afirmação da autonomia do político, isto é, de uma ação incondicionada ou não condicionada por determinações teóricas nem pelas outras esferas da existência humana, assim como as teses de que o religioso precede a Igreja (ou a Igreja pressupõe o religioso porque é posta por ele), o político precede o Estado (ou o Estado pressupõe o político porque é posto por ele), a decisão precede a lei (ou a lei pressupõe a decisão porque posta por esta). O político, o religioso, a decisão são formas de ação das quais decorrem as instituições. Disso resulta a tese de que a guerra é o locus por excelência de manifestação do político, não só porque é pura ação como também porque nela se explicitam, de um lado, a essência do político como oposição entre amigo e inimigo e, de outro, a essência da soberania como poder de decisão nas situações de exceção.

Uma vez que, para Schmitt, a política moderna é a teologia secularizada, houve um único momento histórico em que essa secularização se realizou de maneira perfeita: na monarquia absoluta, instante glorioso da civilização europeia que, após o absolutismo, só conheceu a decadência acarretada pela Revolução Francesa, isto é, o surgimento da república e da democracia. Com o absolutismo, a origem do Estado tornava-se plenamente visível, pois ele nasce da pura vontade do soberano, de uma decisão absoluta que não se funda na razão nem na discussão nem na lei e sim emana do poder absoluto de posição com que a vontade soberana institui o Estado. Como Deus, o soberano cria ex nihilo e não tem nenhuma obrigação de ser racional ou justo. Assim como Deus é onipotente para criar o mundo, também a vontade do soberano é onipotente para criar o Estado. Assim como Deus não está acorrentado pelas leis divinas, também o soberano, legibussolutus, está acima das leis. Assim como Deus suspende suas próprias leis e interfere no universo por meios extraordinários - o milagre -, também, em momentos de perigo, a ação do soberano não é retida pelas leis, mas responde à exceção com um ato excepcional ou com a "razão de estado": "A situação de exceção tem para a jurisprudência a mesma significação que o milagre para a teologia."8

A demiurgia e a exceção definem, pois, a soberania como monopólio da decisão: "É soberano aquele que decide na situação de exceção"9.

E porque o absolutismo era o reflexo e a manifestação dos cosmos - ordem e hierarquia, disciplina e vitalidade - nele se realizou a perfeita definição do que é o Estado:

No sentido estrito do termo, o Estado, fenômeno histórico, é um modo de existência (um estado) específico de um povo, aquele que decide nos momentos excepcionais, constituindo assim, em relação a múltiplos status imagináveis, quer individuais, quer coletivos, o Status por excelência10.

Na verdade, o absolutismo, ao explicitar a essência da soberania e do Estado como decisão absoluta, torna visível a política como esfera autônoma, isto é, não determinada pela razão ou pelo conhecimento, nem pela moralidade e a religião, nem pelo direito e a economia. Cada esfera da existência humana é polarizada por uma dicotomia constitutiva: o bem e o mal, na ética; o belo e o feio, na estética; o lucro e o prejuízo, na economia; o justo e o injusto, no direito. A dicotomia constitutiva da política é a oposição amigo-inimigo. A autonomia do político pressupõe que sua dicotomia não deva ser nem possa ser definida segundo os critérios das outras dicotomias, ou seja, amigo e inimigo não podem ser pensados em termos éticos, estéticos, religiosos, jurídicos ou econômicos. Politicamente, amigo é o que compartilha nosso modo de vida, inimigo, o outro, "o estrangeiro" que ameaça nosso modo de vida e, com isso, nossa existência. Nesse sentido, o inimigo, porque político, é sempre inimigo público e somente o soberano ou o Estado tem o poder para designá-lo como tal.

A distinção específica do político, à qual podem ser reenviados os atos e móbeis políticos, é a discriminação do amigo e do inimigo. Ela fornece um critério de identificação com valor de critério e não uma definição exaustiva e compreensiva. Na medida que ela não é deduzida de nenhum outro critério (...) é autônoma, não no sentido de que corresponderia a um campo de atividade original que lhe seria próprio, mas no sentido de que não pode ser fundada em nenhuma outra oposição nem reduzir-se a nenhuma delas11.

A distinção entre amigo e inimigo exprime "o grau extremo de união e desunião, de associação e dissociação". Inimigo é aquele com quem o conflito não pode ser resolvido nem por normas pré-estabelecidas nem por um árbitro imparcial e cuja existência, sendo um perigo para a nossa, exige a guerra, isto é, sua neutralização ou submissão e, em caso extremo, sua eliminação física. O inimigo é o Outro.

Visto, porém, que a verdadeira política institui um poder de decisão sobre a vida e a morte, um poder que é absoluto porque único e indiviso, será inimigo quem pretender compartilhar ou dividir o poder soberano e, assim, o inimigo também pode ser interno - é aquele que deseja um outro Estado - e por isso o soberano deve afastá-lo, puni-lo, submetê-lo e, em caso extremo, eliminá-lo.

Se é necessário que o Estado defina a figura do inimigo é porque este só pode existir particularizado e porque os antagonismos morais, religiosos, econômicos se transformam em antagonismos políticos quando têm a força para reagrupar os homens em amigos e inimigos. Nesse sentido, a guerra de religião é um acontecimento político, assim como a luta de classes quando passa à forma revolucionária. Em outras palavras, o termo "política" não designa uma forma de vida que envolve as várias esferas da existência humana (moral, religião, estética, economia, direito) nem uma atividade específica (a administração estatal). O termo "política" designa apenas o grau de intensidade de associação e dissociação de seres humanos por motivos econômicos, religiosos, morais ou outros para uma prova de força, cabendo à soberania decidir o conflito e restabelecer a unidade. A guerra (e toda guerra), isto é, toda situação de exceção, depende, de um lado, da intensidade dos antagonismos oriundos das outras esferas da existência humana e, de outro, da determinação da figura do inimigo pelo Estado, e sua finalidade é "a negação existencial do inimigo", negação que não precisa significar necessariamente extermínio, podendo significar submeter o outro ao nosso modo de vida (isto é, a colonização) e exterminá-lo somente se isso não for conseguido.

Ora, Schmitt nos coloca diante de um aparente paradoxo. Com efeito, visando assegurar a dessubstancialização e a autonomia do político, recusando, portanto, que a política seja, à maneira grega, por exemplo, um modo de vida e, à maneira contemporânea, uma atividade específica de profissionais, Schmitt é obrigado a afirmar que a ação política é um acontecimento ou um acontecer que depende da intensidade dos conflitos oriundos das esferas não políticas e que a soberania é uma ação ou o poder para decidir quanto ao rumo e ao término dos conflitos. Qual o paradoxo? Se a política é um acontecimento que depende da intensidade dos antagonismos em outras esferas da existência humana, então a autonomia do político é relativa e a demiurgia do soberano está mais próxima do demiurgo do Timeu de Platão, que trabalha sobre uma matéria já dada (no caso, os conflitos oriundos das outras esferas), do que do Deus do Gênesis bíblico, que opera ex nihilo. Schmitt, entretanto, julga conseguir resolver o paradoxo dizendo que o surgimento da política, em cada circunstância, ao reconfigurar amigos e inimigos para uma prova de força é sempre uma situação de exceção sobre a qual atua a vontade absoluta do soberano e, por outro lado, essa reconfiguração excepcional indica que a política é uma forma da guerra.

O adágio célebre afirma que a política é a guerra continuada por outros meios, mas Schmitt, ao distinguir entre o político (a oposição amigo-inimigo) e o Estado (a instituição pública normatizada) e entre o político como ação soberana e as instituições públicas como materialidade inerte, e ao afirmar que o político emerge quando as divisões sociais se exprimem pelo antagonismo amigo-inimigo,ele nos diz, em suma, que não hádistinção entre política e guerra. A guerra, por ser situação de exceção, define a soberania - ou melhor, sem a guerra não há soberania e sem a soberania não há política porque sem soberano não pode haver determinação da figura do inimigo -, e, por ser o ponto máximo da tensão amigo-inimigo, a guerra é o signo mais perfeito da política, pois esta, afinal, é a lógica da força. Assim, não é por acaso que, concordando com De Maistre e Donoso Cortez (homens do poder teológico-político), o absolutismo ou o poder imperial como poder teocrático secularizado lhe pareça ser o momento de apogeu da política. Por conseguinte, compreende-se que atribua à Revolução Francesa a decadência da política.

A idéia moderna de Estado de Direito se impõe com o deísmo, com uma teologia e uma metafísica que rejeitam o milagre e recusam a ruptura das leis da natureza, ruptura contida na noção de milagre e implicando uma exceção devida a uma intervenção direta, exatamente como recusam a intervenção direta do soberano na ordem jurídica existente12.

A modernidade, isto é, a Revolução Francesa, é a catástrofe, em primeiro lugar, porque, ao introduzir a ideia de Estado de Direito, dá anterioridade jurídica ao político e o substancializa na instituição estatal; em segundo, porque destrói o núcleo definidor da soberania, ao proibir que o soberano intervenha na ordem jurídica; em terceiro, porque destrói a ideia de cosmos (ou de ordem hierárquica) e com isso prepara a catástrofe maior, qual seja, a união do individualismo igualitário e apolítico do liberalismo (econômico) com a democracia.

Essa união é catastrófica porque mescla a dicotomia econômica e a dicotomia política, tirando a autonomia de ambas. Com efeito, a democracia como política, ainda que de maneira fluída e vaga,mantém a distinção amigo-inimigo, pois admite apenas a igualdade dos cidadãos, cuja semelhança decorre de sua identidade pela língua, pela moral e pela religião, excluindo o outro ou o diferente. Em outras palavras, a lógica democrática exige a exclusão do escravo, do estrangeiro e do bárbaro, este último podendo ser o ímpio, o herege ou o ateu. Ao contrário, o liberalismo introduz a igualdade universal sem discriminação porque é apolítico, uma vez que a política é uma operação de distinções e desigualdades. Pela mediação da democracia, o liberalismo se torna uma política escondida e clandestina, sob a máscara do direito, da justiça, da lei, da verdade, da universalidade e da racionalidade. No rastro de Donoso Cortez, Schmitt julga que o lugar por excelência da hipocrisia liberal é o parlamento, cujas discussões intermináveis simplesmente exprimem a impotência para a tomada de decisão.

Essa breve referência a Carl Schmitt não é motivada apenas pelas considerações anteriores, mas também pelo parentesco entre suas ideias e as de Leo Strauss.

Quando lemos as obras de Strauss sobre gregos e romanos, Maquiavel, Hobbes e Espinosa, ou suas obras sobre o direito natural, a filosofia política e política norte-americana, não parece ser possível estabelecer relações com a obra de Schmitt (aliás, criticada sob vários aspectos por seu aluno Leo), a não ser pelo fato de serem ambos críticos da modernidade e da Revolução Francesa, do liberalismo, da democracia liberal, do marxismo e do comunismo, e de ambos tomarem os desacertos da República de Weimar como prova da correção de suas próprias ideias políticas. No entanto, à medida que a leitura prossegue, as semelhanças inicialmente invisíveis começam a se tornar manifestas, a tal ponto que, ao fim e ao cabo, não nos surpreenderemos emencontrar em Strauss a dicotomia amigo-inimigo sob a formulação nós-eles nem de lermos que a justiça é fazer o bem aos amigos e o mal aos inimigos, isto é, aos que são outros que nós mesmos.

Vejamos num ponto preciso como a diferença inicial se transforma em semelhança final. Em vez de partir da afirmação da autonomia do político diante da moral e da religião, Strauss afirma que toda sociedade necessita de uma ortodoxia pública que defina o bom e o mau, o justo e o injusto, o nobre e o ignóbil, o verdadeiro e o falso, pois a unidade e coesão da sociedade política dependem de que essa ortodoxia seja inculcada e interiorizada por todos os seus membros, o que só pode ser feito pela mediação de uma religião oficial. Por que a religião? Porque ela estabelece o vínculo da ordem política com a verdade, isto é, com a realidade última, de maneira a dar a essa ordem uma sacralidade e uma santidade tais que os cidadãos queiram lutar, matar e morrer para defendê-la. Em suma, a religião traz para a política algo que lhe é essencialmente necessário: a transcendência da origem do poder. A teologização do poder é o único recurso eficazcontra a modernidade. É nesse ponto preciso que Strauss encontra Schmitt.

Assim como para Schimitt a origem do Estado é a decisão absoluta do soberano que, como Deus, age por criação ex nihilo, para Strauss a fundação política é sempre obra de um grande legislador, cuja genialidade está em oferecer ao povo um mito de origem capaz de, simultaneamente, produzir respeito e devoção e suscitar o medo. Donde a crítica de Strauss à modernidade e, em particular, a Maquiavel, Hobbes e Espinosa, que criticaram a presença da religião na política e propuseram separá-las definitivamente. Por que religião e mito são necessários à fundação e à conservação política? Porque há um conflito insuperável entre o interesse individual e o bem comum. Nem a razão, nem as instituições, nem as leis e nem a força podem superar esse conflito, que só pode ser resolvido pela majestade e transcendência atribuídas à origem do poder. Essa majestade e essa transcendência só podem ser oferecidas pela religião. Ora se é esta o elemento que unifica e cimenta uma sociedade e legitima um Estado, isso significa que cada sociedade e cada Estado só podem ter uma única religião e que a pluralidade religiosa é um perigo político. Como Schmitt, também Strauss identifica pluralidade e inimizade.

Se passarmos agora à relação entre moral e política, veremos, novamente, a diferença entre os dois pensadores rumar para a convergência. No ponto de partida, a diferença é clara: como já dissemos, Strauss não admite a autonomia da política com relação à moral (foi, aliás, sobre essa questão que escreveu uma crítica a Schmitt). Se, contra a modernidade, a política quiser recuperar a dignidade, ela precisa retomar a questão do bem e do mal, do verdadeiro e do falso. Entretanto, essa é apenas uma parte da argumentação de Strauss. De fato, assim como o decisionismo de Schmitt pressupõe a figura onipotente do soberano, Strauss também desenvolve a tese de que somente a figura de um chefe forte pode livrar a política dos malefícios da modernidade.

Essa tese o leva à ideia da formação ou educação política de uma elite encarregada da missão anti-modernista (isto é, anti-racionalista, anti-secularista e não nihilista). O ponto inicial consiste em separar uma pequena elite e dar-lhe uma educação que a prepare para governar indiretamente a sociedade por meio da influência sobre aqueles que a governam diretamente. Trata-se da formação dos conselheiros do dirigente. A essa elite são abertos os segredos do poder e os aspectos sombrios e terríveis da realidade - isto é, a política tal como pensada por Schmitt! -, sob a condição expressa de que isso seja mantido secreto e que nem mesmo o governante direto disso tenha conhecimento. Ao contrário, essa elite deve demonstrar à sociedade (nela incluída os futuros governantes diretos) os efeitos destrutivos da educação moderna, aberta ao exame da razão, substituindo-a por uma outra, capaz de produzir a interiorização dos valores sociais como absolutos e invioláveis. Desconhecendo os segredos do poder e da realidade, educado como os governados para defender a inviolabilidade dos valores de sua sociedade, o governante, imbuído da majestade de seu poder em decorrência da continuidade entre sua figura e a dos fundadores (que para ele é real e não mítica), será uma liderança forte e convincente, enquanto seus conselheiros tramam secretamente a verdadeira política, tal como pensada por Schmitt.

Leo Strauss dedicou seu trabalho acadêmico a essa tarefa. Na Universidade de Chicago, durante aos anos 1950-1970, formou mais de uma centena de intelectuais que, aliados à direita cristã - a Maioria Moral, a que já nos referimos ao mencionar o movimento "Salvar a América" -, encontraram em Ronald Reagan, primeiro, e em George W. Bush, depois, a oportunidade de tomar a si a direção política dos Estados Unidos. Foi essa elite que decidiu, etpour cause!, caracterizar a figura do inimigo como uma figura religiosa, o que foi feito graças à dissimulação teológico-política da guerra econômica e geopolítica de ocupação norte-americana dos territórios que se estendem do Afeganistão a todo o Oriente Médio, apresentando-a como luta do bem contra o mal.

Revelação divina que promete a Terra santa a ser conquistadapelo Tempo santo da guerra justa, do lado religioso; oposição amigo-inimigo ou nós-eles, teologização necessária do poder como decisão ex nihilo e razão de Estado, do lado teológico: eis o quadro da posição da transcendência do poder e da impossibilidade da práxis política.

































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ilustração: Rafael MORALEZ






1Seguiremos aqui as considerações de Gilles Kepel, La revanche de Dieu. Paris, Seuil, 1991.

2Francisco de Oliveira, "O surgimento do anti-valor. Capital, força de trabalho e fundo público", in Os direitos do antivalor. A economia política da hegemonia imperfeita, Coleção Zero à Esquerda, Petrópolis, Vozes, 1998.

3David Harvey, A condição pós-moderna,São Paulo, Loyola, 1992.

4Paul Virillo, O espaço crítico, Rio de Janeiro, Editora 34.

5Boaventura dos Santos, Crítica da razão indolente, São Paulo, Cortez, 2007.

6Jean-François Lyotard, Derive à partir de Marx et de Freud, 10/18, 1973, nouvelle édition, p. 13

7Carl Schmitt Théologie politique I, Paris, Gallimard, 1988, p. 46.

8Id., ibid., p. 46.

9Id., ibid., p. 15.

10Id., La notion de politique, Paris, Flammarion, 1992, p. 57.

11Id., ibid., p. 64.

12Id., Théologie Politique I, op. cit., p. 46.