revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Ruy FAUSTO

a teoria da história de Zizek

 


NOTA: O presente texto é o segundo de uma série de quatro artigos - o primeiro foi publicado em Fevereiro número 1 - que tem por objeto fazer a crítica dos escritos de Zizek e de Badiou. Ele visa uma espécie de teoria da história que se encontra no livro de Zizek, Em Defesa das Causas Perdidas. A primeira versão deste artigo, escrita em setembro de 2010, abordava a versão inglesa (original?) do livro, In Defense of Lost Causes (Londres/ Nova York, Verso, 2008, abrevio por ID). Quando retomei esse texto de Zizek, visando a presente publicação neste número 5, de Fevereiro, me dei conta de que, na edição francesa, de 2012 (En Défense des Causes Perdues, Paris, Flamarion, trad. de Daniel Bismuth, abrevio por EnD), o autor eliminara uma parte considerável do livro, incluindo o que se poderia considerar seu núcleo teórico, que era o objeto principal da minha crítica. Mas a tradução brasileira de 2011 segue o original inglês, e este continua circulando. Assim sendo, não vejo por que abandonar o antigo projeto. De fato, ele aborda o Zizek que o público brasileiro conhecerá, além da circunstância de que o texto inglês roda pelo mundo. De resto, se, na versão francesa, partes importantes são eliminadas, ela conserva muitas coisas, digamos, "objetáveis" do livro, as quais, de resto, reaparecerão em publicações mais recentes do prolífico autor. Minhas conclusões gerais sobre Zizek e Badiou virão essencialmente nos dois últimos artigos, mas não consegui fugir à tentação de antecipar aqui uma ou duas conclusões gerais. Isto porque, dado o tsunami midiático que os dois desencadearam, há certa urgência na intervenção. -Meu texto estava praticamente redigido quando li a resenha dos dois últimos livros de Zizek, que John Gray, professor emérito da London School of Economics, publicou na New York Review of Books1. E li também a violenta resposta de Zizek, em seu blogue na página eletrônica da editora Verso2. Darei um lugar a essas duas peças, no final desse artigo.



 

Em Defesa das Causas Perdidas uma série de desenvolvimentos, que convergem para uma espécie de teoria da história. Dir-se-á que examino só uma pequena parcela do que escreveu Zizek e, eventualmente, que lá talvez não esteja o melhor desse autor. Sobre a extensão do campo considerado, repito que não ficarei por aqui, embora não tenha nenhuma intenção de cair na esparrela de compor uma suma, crítica embora, da volumosa obra do autor. Quanto ao segundo ponto, acredito no seguinte princípio. Para criticar os grandes autores, como Marx, Husserl ou Sartre, é preciso, sem dúvida, enfrentar os melhores textos, senão a crítica não atinge seu objeto. Porém, quando se tratar de autores - digamos - que não são grandes, vale abordar todo tipo de texto. Inclusive os piores, se é que estes são mesmo os piores; o que me importa é que ele escreveu o que comento. A meu ver, basta. O leitor julgará.

A sequência de textos que compõe uma espécie de teoria da história no livro Em Defesa das Causas Perdidas articula - ou mistura - exemplos com teses teóricas. Para efeito das considerações que farei aqui, acho que poderia esquematizar esses textos em quatro grupos: 1) os que concernem à insurreição bolchevique de 1917 e ao poder bolchevique em seu primeiro período, que se conectam com certas considerações teóricas sobre a relação sujeito/ objeto e sobre a necessidade histórica; 2) os textos - que se situam no plano da teoria da literatura - onde se fala de Kafka, de Borges, de Eliot etc., que, no plano teórico, concernem ao problema da presença de um autor contemporâneo na obra de um autor do passado e também ao tema da necessidade histórica; 3) as passagens sobre a questão das relações entre Marx, de um lado, e Mao ou Stálin, de outro (o contexto teórico adjacente é o mesmo do grupo 2); 4) os desenvolvimentos propriamente teóricos, construídos sobre aqueles exemplos (ou vice-versa), e que propõem uma espécie de teoria sobre as relações entre necessidade e acaso na história. Esses temas e problemas não são os únicos do livro, mas, nos limites deste artigo, vou ficar só com eles.

O ponto de partida é, ou poderia ser, uma passagem de Terrorismo e Comunismo de Trotski, o pequeno livro que ele escreveu contra a obra de Kautsky, de mesmo nome. Esse texto, que, em geral, nem mesmo os trotskistas quiseram assumir, é uma defesa do terrorismo revolucionário e da intervenção do "poder do proletariado" contra iniciativas democráticas, como eleições. Trotski - citado por Zizek - escreve: "Se o regime parlamentar, mesmo em período de desenvolvimento ‘pacífico’, estável, era antes um método grosseiro de descobrir a opinião do país e na época de tempestade revolucionária perdeu completamente sua capacidade de seguir o curso da luta e o desenvolvimento da consciência revolucionária, o regime soviético, que está ligado mais de perto, mais diretamente, mais honestamente à maioria, trabalhadora, do povo, ganha de fato sentido (does achieve meaning), não refletindo a maioria, mas criando-a dinamicamente"3. Zizek comenta (é preciso fazer uma citação mais ou menos longa): "Este último ponto se baseia numa premissa filosófica crucial que torna profundamente problemática a teoria do conhecimento materialista-dialética padrão (standard) [o conhecimento como] ‘reflexo’ (…) o temor de Kautsky de que a classe operária russa tomasse o poder ‘cedo demais’ supõe (implies) a visão da história como um processo ‘objetivo’ que determina antecipadamente as coordenadas possíveis das intervenções políticas; no interior desse horizonte, é inimaginável que uma intervenção política radical possa mudar essas mesmas coordenadas ‘objetivas’ e, assim, de certo modo, criar as condições de seu próprio sucesso. Um ato adequado (proper) não é apenas uma intervenção estratégica numa situação, limitado por suas condições - ele cria retroativamente suas próprias condições"4. Algumas páginas mais adiante, a política bolchevique vai servir de exemplificação para a teoria da necessidade histórica que está implicada nesse contexto: "(…) a partir do momento (once) em que os bolcheviques ganharam e estabilizaram seu domínio do poder, sua vitória apareceu como o resultado e a expressão de uma necessidade histórica mais profunda (…)"5.

Por ora, examinemos o primeiro texto e o comentário que dele faz Zizek. A passagem de Trotski vale o que vale qualquer argumentação casuística de cobertura de um golpe de Estado. Trata-se do conhecido bordão: a vontade do povo não está lá num resultado eleitoral, nem nas decisões do parlamento, mas em outro lugar - na comunidade nacional, no espírito do povo encarnado pelo governo, no "Estado Nacional" etc. etc. Dir-se-á que se trata de um caso especial, porque aqui teríamos a "ditadura do proletariado"? Mas seria possível, ainda hoje, depois de tudo o que se viu, conceder a um governo que tem contra si a maioria do proletariado (isso acontecia na Rússia, já no final do primeiro semestre de 1918) arvorar-se em encarnação do proletariado?6. Pois Zizek assume sem mais esse texto de Trotski7. E não se limita a assumi-lo. Ele trata de lhe atribuir uma dignidade teórica. A passagem remeteria à (verdadeira) "teoria materialista do conhecimento", aquela que não aceita a teoria do reflexo. (Não gosto da teoria do reflexo, mas refutá-la através do elogio do autoritarismo pré-totalitário de Trotski, é um equívoco teórico e um desastre político). E remeteria à crítica da "visão positivista da história como processo objetivo". O fechamento das instâncias representativas seria, assim, o remédio para o "objetivismo histórico". A teoria materialista tornaria pensável e legítima a criação "retroativa" das "condições do sucesso" "de uma intervenção política radical".

Até aqui, chegamos a dois resultados: 1) Zizek diz amém a uma passagem do Terrorismo e Comunismo de Trotski, que justifica a liquidação do regime parlamentar (sabemos, por outro lado, que ele assume as teses do conjunto do livro8, teses que justificam o terror de Estado e que dizem muito sobre a responsabilidade do leninismo-trotskismo pelo que veio depois); 2) Zizek acha que lá se encontra (ou de lá se pode tirar) uma importante teoria epistemológica materialista e dialética.

Mas não ficamos por aí. De Trotski, somos conduzidos a… Borges, Kafka e Eliot. Antes de discutir o que vem em seguida, é importante insistir no que representa, como efeito, tal tipo de salto. Zizek não fala apenas de política. Ele eleva a política à teoria literária. Que o leitor fique atento a esses movimentos. Eles não são a única coisa a observar no texto, porque importa também e, em primeiro lugar, a análise do conteúdo; o jogo de espelhos da articulação geral completa o jogo interno dos raciocínios de Zizek. Pois bem. Se Zizek se entusiasma com a intervenção bolchevique (com o golpe de Estado em nome do proletariado…), ele vai mostrar que, de forma análoga ao poder bolchevista,… os poetas também modificam o real e o passado. "Cada escritor" - escreve Borges citado por Zizek - "cria seus próprios precursores. [trata-se de Kafka, em sua relação com vários outros, prosadores, poetas ou filósofos, desde Zenão de Eleia até Browning e, para além dele, passando pelo chinês Han Youn, do século IX, Kierkegaard e depois Léon Bloy etc. RF]. Sua obra modifica nossa concepção do passado, como modificará o futuro"9. De Borges, vamos a Eliot (que é referido por Borges). Trata-se do ensaio "Tradition and the individual talent". Eliot trata da relação de cada grande poeta (ou artista em geral), com o passado. Este tem de escrever como se todo o passado da poesia, desde Homero, estivesse presente, fosse contemporâneo. Quando surge uma obra de arte, o passado existe como uma ordem ideal que esse novo objeto modifica em maior ou menor medida. Aquela ordem, que era completa, é agora alterada e, assim, "relações, proporções, valores de cada obra de arte em relação ao todo, são reajustados". E, com isto, "o passado deve ser alterado pelo presente tanto quanto o presente é dirigido pelo passado"10. Esses textos (de Borges e Eliot) permitiriam, segundo Zizek, dar "a solução propriamente dialética ao dilema ‘ele está realmente na fonte, ou só o lemos na fonte (…)‘ [isto é, por exemplo, certos movimentos kafkianos já estão objetivamente em Browning ou não? RF], (…) ele está lá, mas só podemos perceber e afirmar isto retrospectivamente, da perspectiva de hoje"11. Esse último ponto eu o deixarei de lado por ora, porque ele tem uma relação direta com a terceira série de textos. Fiquemos com o paralelo: intervenção bolchevista, de um lado, e intervenção dos poetas, de outro. O que escrevem Borges e Eliot converge com o que diz Trotski em Terrorismo e Comunismo? Isto é, a aproximação entre as duas séries de textos é rigorosa e legítima? Dir-se-ia que estamos longe da política à teoria literária. Essa resposta vai no caminho certo, mas assim formulada é, evidentemente, muito superficial. A diferença entre os dois casos é, na realidade, substancial, e não apenas de  objeto. De fato, na relação Kafka/ Browning (ou Kafka/ Kierkegaard ou Kafka/ Léon Bloy etc.), segundo Borges, ou na interferência do poeta sobre a tradição literária, de que fala Eliot, não existe nem luta nem violência (as duas coisas não são idênticas, mas aqui vão no mesmo sentido). Na intervenção política e bolchevique a fortiori, sim. Não se diga que, no primeiro caso, há "luta simbólica", "violência simbólica" ou algo por aí. Os dois casos são essencialmente diferentes. Quando um poeta se "insere" (objetiva-subjetivamente) na obra de um poeta do passado, a inserção não vai propriamente contra certas forças que se opõem a ela (Browning resiste a Kafka? De algum modo, mas não propriamente), e se, de certa maneira, pode-se dizer que sua intervenção se sobrepõe a outras intervenções possíveis (a que "descobriria", por exemplo, um outro romancista moderno em Browning), essas alternativas "em si e para si" não são exclusivas da primeira. Outras leituras do passado não só continuam sendo possíveis, mas eventualmente poderiam coexistir com a primeira. É verdade que, se um poeta ou romancista muda os "valores" ou o significado de toda uma tradição poética, essa mudança parece excluir outros arranjos globais do passado. Porém a exclusão é, aqui, relativa. As alternativas permanecem como leituras possíveis ou virtuais. No caso da política, e a fortiori do bolchevismo, a intervenção não só vai substancialmente contra certas forças de resistência, mas, por isso mesmo, exclui outras intervenções. Claro que, no futuro, a situação poderia se inverter. Tal coisa só poderá ocorrer, entretanto, se for neutralizada a ação inicial. Ou ganha um lado, ou ganha o outro. (Evidentemente, poderia haver, também, um equilíbrio de forças: trata-se precisamente de um jogo de forças). Os dois casos não são estruturalmente comparáveis.

Vamos mais adiante. Disse que havia um terceiro grupo de exemplos, os que concernem à relação Marx, de um lado, e Mao ou Stálin, de outro (Zizek se refere também à relação Lênin/ Mao etc.). Zizek afirma que haveria três respostas principais para o "antes cansativo (sic) debate sobre as origens do maoísmo (ou do stalinismo)", em sua relação eventual para com Marx: a "dos anticomunistas ‘duros’ e dos partidários ‘duros’ do stalinismo" que afirmam "que há uma lógica direta imanente" conduzindo de Marx a Stálin, passando por Lênin e chegando a Mao; a dos críticos "leves" que afirmam "que a viragem stalinista (ou, antes dela, leninista)" explora uma possibilidade inscrita na teoria de Marx, a teoria oferecendo também, entretanto, outras possibilidades (Marx não seria, aqui, nem inteiramente absolvido, nem inteiramente condenado) e a dos que rejeitam o stalinismo e eventualmente também o leninismo como estranho "à pureza do ‘ensinamento original de Marx‘". Diante dessas três opções, Zizek é categórico: "Devemos rejeitar as três versões que se baseiam na mesma subjacente noção lienar-historicista da temporalidade e optar pela quarta versão, para além da falsa questão: ‘em que medida Marx é responsável pela catástrofe stalinista? Marx é inteiramente responsável, mas retroativamente, isto é, vale para Stálin o mesmo que para Kafka na famosa formulação de Borges; os dois criaram seus próprios predecessores"12.

Assim, somos remetidos ao mesmo modelo. Stálin estaria em Marx, mais ou menos como Kafka em Browning. De novo, nos perguntamos: o paralelo é correto? Qual a diferença entre os dois casos (Stálin/Marx e Kafka/Browning)? Ela é análoga à que já vimos para o paralelo anterior (intervenção bolchevista/ Kafka em Browning etc.), mas aqui se pode precisar um pouco mais. Se para o caso anterior, insisti no aspecto "violência", aqui desenvolvo o lado "diferença", aliás, também presente - mas não o privilegiei - no paralelo anterior. Kafka está em Browning?, pergunta Zizek. Zizek responde que sim, mas - repetindo o que escreve Eliot em relação aos poetas - diz que só está depois que surgiu Kafka, não antes. Da mesma maneira, ele pergunta: Stálin está em Marx? Está, mas só depois que veio Stálin, foi este quem criou a presença dele mesmo em Marx e a sequência Marx-Stálin. Ora, o que não funciona nesse paralelo? Se entre Kafka e Browning, há, claro, diferenças (a diferença é, mesmo, de qualquer modo, primeira), ela não é da ordem da contradição. Não existe contradição, há, no máximo, contrariedade entre Browning e Kafka. Diz-se que cada obra de arte exclui as outras. Sim, mas as exclui, eu diria, em sentido fraco. Claro, poderíamos nos perguntar se Kafka é fiel a Browning. Mas já não teria muito sentido se perguntar se Browning aceitaria escrever o que Kafka escreveu. Ora, entre Marx e Stálin, a situação é diferente. Marx e Stálin como que concorrem na mesma pista (e em sentido forte, fortíssimo mesmo, para além dos paralelos literários). Trata-se de saber: 1) Se Stálin é fiel ao que dizia Marx; como também 2) de "imaginar" - mas esse "imaginar" não é arbitrário, porque se baseia em posições precisas a respeito de diversos problemas, ainda que a resposta não possa ser absoluta - o que pensaria Marx de uma ação de Stálin. Então, por exemplo, indagar-se-ia como Marx concebia uma ditadura do proletariado, o que ele poderia pensar de genocídios etc. Ora, ao fazermos do tema Kafka/Browning etc. o modelo para entender a relação Marx/ Stálin, essas questões perdem todo sentido, elas são simplesmente ou essencialmente anuladas; supomos resolvido o problema da compatibilidade dos dois, que é o grande problema. Como? Escolhemos um modelo que, certo, supõe a possibilidade de que a comparação não funcione: pode ser que não seja válido ler Kafka em Browning. Mas se existe essa possibilidade, está afastada a possibilidade de que os dois autores se excluam essencialmente, como pode ser o caso com os modelos políticos de Marx e de Stálin. (O que é enganoso nos dois casos, é que a resposta é sempre aproximada: só que a aproximação de um é essencialmente diferente da aproximação do outro). Ao escolhermos o modelo dos chamados (imperfeitamente) de "precursores" em literatura, a exclusão por contradição não se põe, resta a diferença que poderá ou não ser da ordem da contrariedade (este é o único problema que resta)13. Também poderíamos argumentar assim. Zizek supõe uma não presença do personagem futuro no personagem do passado na situação ante, mas afirma essa presença na situação post. A resposta seria aparentemente equilibrada. Mas, na realidade, não é. E isto porque só o a posteriori é decisivo, só a resposta que ele dá a posteriori decide da atitude a tomar no presente. E, a posteriori, a resposta é continuísta14. Para terminar esse parágrafo, tomemos um exemplo nosso. Se passarmos dos exemplos de Eliot e Borges para outros, tirados da literatura em língua portuguesa - a transposição é legítima -, o que Zizek afirma é que Stálin estaria presente em Marx, mais ou menos como Ricardo Reis (Fernando Pessoa) estaria presente nas Odes de Horácio… Ou, simplificando apenas, Marx estaria para Stálin, mais ou menos como Horácio para Ricardo Reis (Fernando Pessoa). Vê-se imediatamente o absurdo da comparação. Entretanto, é necessário tentar mostrar por que esse absurdo é absurdo - o que, precisamente, queria fazer aqui. (Nesse ponto, a gente se dá conta de que quanto mais absurdo é o absurdo, mais laborioso é o trabalho de desmistificação. E, entretanto, não podemos nos abster desse trabalho, porque, então, corre-se o risco de ter de enfrentar o famoso topos do "contraintuitivo" ["é contraintuitivo, mas verdadeiro"] um dos "brinquedos" prediletos de Zizek. Sem prejuízo da argumentação aqui desenvolvida, ocupar-me-ei, no próximo texto, em desconstruir também essa [meta] impostura).

Vemos a que nos conduzem essas considerações. Longe de ser inocente, ou de ser um simples exercício brilhante de teoria filosófico-literária, o intermezzo literário de Zizek tem uma função ideológica precisa. Através de um falso paralelismo, ele leva a uma justificação da suposta posteridade totalitária "de" Marx. Esse é o enjeu real de toda essa construção. Mas Zizek não fica aí. Vem por cima uma teoria, que já apareceu indiretamente. De fato, essas considerações culminam com teses sobre a relação entre contingência e necessidade histórica. Ao discutir a relação entre leninismo e maoísmo (mas aqui nos interessa a teorização subjacente, que vale também para os demais casos), Zizek escreve: "Deve-se dizer assim que, uma vez que a passagem (contingente) do leninismo ao maoísmo ocorreu, ela só pode aparecer como "necessária", isto é, se pode (re)construir a ‘necessidade interna’ do maoísmo como "estágio" seguinte do desenvolvimento do marxismo"15. Zizek pretende nos brindar aí com a verdadeira teoria dialética da relação entre contingência e necessidade: "Este é o movimento da ‘universalidade concreta’, esta ‘transubstanciação’ radical, através da qual a teoria original tem de se reinventar num novo contexto: só ao sobreviver a este transplante, ela pode emergir como efetivamente universal"16. E quem não acreditar que a teoria zizekeana sobre a relação entre contingência e necessidade  é o suprassumo da dialética, é, na realidade, um cultor da "noção linear-historicista da temporalidade"17, alguém que, de resto, se ocupa demais da "cansativa" e "falsa" questão de saber em que medida a catástrofe já está inscrita em Marx. "Para compreender essa interversão da contingência em necessidade, é preciso abandonar o tempo histórico padrão (standard) linear estruturado como realização de possibilidades (no momento temporal X, há múltiplas direções que a história pode tomar, e o que aconteceu efetivamente é a realização de uma de suas possibilidades): o que esse tempo linear é incapaz de apreender é o paradoxo de uma emergência efetiva contingente (contingent actual emergency) que retroativamente cria sua própria possibilidade: só quando a coisa ocorre podemos "ver" como ela foi possível"18. Evidentemente, ao discutir de uma forma rápida - é o mínimo que se poderia dizer - questões tão espinhosas como as da contingência e da necessidade, Zizek arma uma cilada a seus críticos. Porém, uma vez que comentamos seus textos, somos obrigados a discutir esses problemas e não há como escapar de uma certa brevidade. Vamos a eles. Esse desenvolvimento também não tem rigor. De uma forma resumida, poder-se-ia dizer: para poder recusar toda ideia de possibilidade histórica, Zizek confunde o par contingência/ necessidade, com o par virtualidade/ efetividade. Que um acontecimento histórico seja efetivo, não significa que em sua origem não se possa encontrar elementos que remetam à contingência. Quanto aos acontecimentos não efetivos, se toda necessidade absoluta deve ser excluída (se ela estivesse presente, eles teriam se efetivado) mesmo a posteriori se podem reconhecer diferentes linhas de necessidade e de contingência. Em suma, não se pode confundir os dois pares. Se a não efetividade (a contingência que se "perenizou") exclui a necessidade absoluta, todas as outras combinatórias são possíveis. E isto pode ser visto pela leitura da historiografia. A tese de Zizek não contradiz apenas a boa historiografia, ela contradiz a historiografia em geral. Não há historiador que não considere linhas mais ou menos necessárias, ou mais ou menos contingentes, no material histórico de um passado recente ou remoto. De fato, ocorre que a efetividade traz consigo a aparência de necessidade (Zizek escreve, aliás, "a passagem (…) só pode aparecer")19. É difícil e arriscado discutir aqui as razões dessa aparência. É como se, por uma espécie de ilusão transcendental, a razão tendesse a racionalizar o real por toda parte. Na realidade, a efetivação não transforma o contingente em necessário, mas sim o contingente virtual em contingente efetivo, o que é outra coisa (além das eventuais cadeias de necessidade que podem estar presentes e que se efetivam). Zizek simplifica isso tudo pela subrepção do efetivo no necessário e diz que essa teoria é a de Hegel. Aqui, não é o problema histórico o que mais nos interessa e a leitura de Hegel, mesmo para quem passou muitos anos estudando sua obra, é sempre complicada. Mas vamos lá. Aquilo que Zizek apresenta como sendo a leitura hegeliana da história, remete a um pseudo-hegelianismo bastante grosseiro, na realidade, uma variante da versão mais vulgar. Hegel não "liquida" a contingência, nem na apresentação do sistema, nem na história. Há um trabalho da razão sobre a contingência, que, em geral, mais do que de Aufheben, ele chama de "superação" (überwinden) da contingência20. O hegelianismo não é um "necessitarismo". Mesmo a posteriori, a contingência permanece lá, como momento do processo (como, de algum modo, ela permanece até o final na Darstelung [exposição], afetando também as figuras lógicas ou fenomenológicas mais altas). Zizek supõe que todo o trabalho da razão é redução à necessidade. Entretanto, a razão não se confunde com a necessidade. De resto, necessidade e contingência, presentes como momentos até o final (histórico, lógico ou fenomenológico), são, na relidade, superadas (überwinden), por um terceiro conceito, que é o de liberdade. Segundo Hegel, o ato livre recolhe linhas de necessidade e de acaso, e as transfigura em liberdade.

Mais importante do que a discussão sobre Hegel é o que se poderia dizer a respeito de Marx. Quando Zizek se refere ao tema da necessidade e da contingência em Marx e no marxismo, ele em geral fala dos "lugares comuns" da "necessidade que se expressa no jogo acidental das aparências e através dele"21. Porém, mais do que essa formulação, que não é satisfatória por que a ela subjaz um elemento teleológico não explicitado, seria preciso se debruçar sobre o esquema da história que Marx apresenta principalmente nos Grundrisse. Um exame desses textos mostra como Marx modula necessidade e contingência, na história, sem que a situação se modifique em nada, pelo fato de que julgamos a posteriori. Cada modo de produção tem uma necessidade própria, sendo a necessidade interna do capitalismo a mais forte. Essa necessidade é antes negativa, isto é, trata-se de necessidade de ruptura do modo, por causa de suas leis internas. Mesmo se essa necessidade vai se constituindo progressivamente, já antes da crise do sistema, na origem primeira deste, não há propriamente necessidade, mas contingência e, em certo sentido, liberdade. Ambas atuando, entretanto, sobre a base de pressupostos, que são os elementos resultantes da decomposição das formas anteriores. Não vou levar mais longe essa análise, mas é evidente que ela nos põe diante de um tratamento do tema na história, que deixa longe as elucubrações de Zizek22. Zizek não diz nada sobre isto: pergunto-me se lhe passou pela cabeça a ideia (essencial), de que o esquema da história em Marx tem implicações sérias e rigorosas, para pensar necessidade e contingência históricas. A acrescentar: Zizek jura que sua "teoria" da transubstanciação da contingência em necessidade exprime a dialética mais rigorosa, a de Hegel e a dele, Zizek; quanto àqueles que não acreditam nela - e aqui vem algo muito curioso - ele os acusa de "historicistas", ou de cultivar uma visão "linear-historicista standard" da história universal. Com relação a esse ponto, me pergunto: por que "historicista"? Por que "leitura linear historicista standard" da história? De onde Zizek tirou isto? Ele tirou de Althusser, é claro. Mas se o que diz Althusser sobre a história em Marx (como sobre O Capital etc.) é, em geral, errado, não se pode duvidar da seriedade de Althusser quando diz o que diz. Quando ele fala de "historicismo", sabemos bem o que quer dizer com isto. O mesmo se poderá dizer dos seus outros argumentos, mesmo os mais incorretos. Ora, as acusações de "historicismo", de visão linear da história etc., na boca de Zizek, têm, pelo contrário, todo o ar de uma acusação gratuita, que carece de qualquer tipo de rigor. Observe-se que, se se trata de falar em "linearidade", não é a ideia de uma história em que se efetiva o possível a que parece incorrer nesse pecado, mas antes a de um contínuo modal, um processo que é ante contingente, mas que post se transforma numa "placa" de necessidade… Assim, Zizek não só defende teses teórica e historicamente muito contestáveis, mas, ainda por cima, põe-se a alardear o rigor dos seus resultados, denunciando os adversários com epítetos, que, certo, não são injuriosos, porém - mais grave do que isto - têm todo o ar de etiquetas gratuitas, cuja única justificativa é seu "grande efeito".

E ainda mais importante, e já no plano das primeiras conclusões sobre o fenômeno Zizek: qual a significação geral dessa "teoria" da necessidade exposta? Ou, que função ela tem? A significação geral e a função são evidentes: ela elimina qualquer ideia de contra-história. Aceitas as regras de Zizek, toda tentativa de pensar caminhos alternativos para uma história que já se efetivou é impossível (ou é uma ilusão historicista etc.)23. Ora, é evidente a implicação disso: como a crítica histórico-política está ligada, de algum modo, à possibilidade de pensar uma contra-história, ou, antes, "contra-histórias", a argumentação de Zizek bloqueia toda crítica. Ela é um formidável aparelho de supressão da crítica. De fato, sob uma aparência radical, seu discurso é acrítico (anticrítico) e repressivo. Se o leninismo se impôs, é vedado pensar a possibilidade de que ele não tivesse se imposto. Antes, isso poderia ser feito, agora não pode mais… Vê-se a enormidade desta "teoria". Nela está presente uma dose considerável de dogmatismo e de autoritarismo. Toda essa máquina teórica - na realidade, ideológica, no sentido mais preciso do termo - tem por finalidade justificar formas históricas e formas políticas que trazem o selo da "ditadura do proletariado", mas que desde 1918 pelo menos, se sabe, representam bem mais a ditadura "sobre" o proletariado e sobre o resto da população. Em resumo: o discurso de Zizek é como um ukase da censura. Embora ele próprio viole pelo menos uma vez essa regra, de direito (isto é, nos termos de sua "teoria geral da história") é proibido discutir o que aconteceu. Quem não obedecer a esse preceito vai para o lixo do "historicismo".

As elucubrações de Zizek sobre a história, a relação entre o presente e o passado, a significação da contingência e da necessidade, que, como mostrei, se apresenta em forma de exemplos, meio teorizada, se prolongam ainda em textos sobre outros autores: Deleuze, principalmente, onde aparece uma referência a Proust. Não vou me ocupar disto aqui. Mas é curioso que, precisamente na edição francesa, Deleuze venha a "encolher", e Proust desapareça…

Concluo. Como disse no início, gostaria de inserir minhas conclusões mais gerais a respeito de Zizek e de Badiou no último dos meus quatro artigos. Lá espero fundamentar melhor minhas teses gerais, com novas análises e exemplos. O que vimos, tanto quanto ao conteúdo (material e formal) dos textos, quanto ao estilo do autor (por exemplo, a maneira pela qual legitima a verdade de sua posição e a falsidade suposta dos outros), mostra já um certo número de traços característicos. Mas não resisto à tentação de antecipar alguma coisa de ordem mais geral.

Eu diria que há em Zizek três elementos: um se refere à "lógica" dos seus escritos, outro propriamente ao conteúdo e o terceiro a seu "estilo". Logicamente: o discurso de Zizek - comecei a mostrar, mas espero fazê-lo mais precisamente - é rigorosamente sofístico: paralelos que não procedem porque os objetos (conteúdo e forma) são essencialmente distintos, comparações que não se sustentam porque extraem de totalidades ou constelações um ou uns poucos elementos que não as definem etc. etc.). Assim, em primeiro lugar, tem-se uma lógica rigorosamente sofística. Lendo Zizek dá vontade de escrever uma nova "Refutação dos argumentos sofísticos" (mais detalhes no próximo texto). Em segundo lugar, o que é evidente, mas pouca gente observou: o discurso de Zizek é a expressão mais perfeita do discurso da mídia. Zizek é um perfeito representante da indústria cultural, ou, mais precisamente, da grande mídia. Não falo isso apenas porque ele vende centenas de milhares de exemplares de suas várias dezenas de livros. Afirmo-o a partir de uma análise interna de seu discurso (também aqui, ver meus próximos artigos). Zizek não tem compromisso com a verdade. Não é o verdadeiro que lhe interessa. É o insólito. O sensacional. O que vende, ou, mais exatamente, o que escandaliza (épate) e lhe dá notoriedade. Não quero me antecipar, mas há momentos extraordinários de marketing na "obra" de Zizek. Por exemplo, quando ele diz e repete que "Hitler não foi suficientemente violento". Que tal utilizar esta frase - que está no livro que comentei, inclusive na versão francesa de 201224 - como manchete de um jornal da tarde?25 (Ver, a esse respeito, a resenha de John Gray no NYRB, a que me referi no início, e que, para finalizar, incorporo à discussão, juntamente com a resposta de Zizek. A propósito da vocação midiática de nosso autor, e começando no estilo moderado de um scholar anglo-saxão, o resenhador acaba dizendo, senza pietá, a mesma coisa que eu. A resposta de Zizek, muito dura, é um primor de confusionismo sofístico. A violência de Hitler, como Zizek diz por todo lado, não seria violência porque ela é "reativa"26, violento "mesmo" foi Gandhi. Nos próximos artigos, desconstruirei em detalhe essa cadeia sofística27. A acrescentar que essa resposta é um puro discurso de ladrão que grita "pega ladrão")28.

Em terceiro lugar, no plano do conteúdo: Zizek é não um fascista, mas um pró-totalitário e um partidário da violência terrorista de Estado. Sobre o que isto significa, remeto a meu texto "Esquerda/ direita…", cuja conclusão publico neste número 5 de Fevereiro. Pró-totalitário, partidário do terrorismo de Estado… (O autor da resenha do NYRB, que se ocupa de dois livros de Zizek que ainda não chegaram às minhas mãos, nos conta um detalhe interessante: em um deles, Zizek toca no delicado problema do genocídio no Camboja [sobre o qual, salvo erro, pouco falara até aqui]. Pois o autor da resenha nos informa que diante do genocídio, Zizek se limita a lamentar - seria este o grande erro dos cambojanos! - o fato de que (depois?) eles não conseguiram construir nada de fundamentalmente novo. Sobre o genocídio mesmo, nada a declarar…)29 Zizek e cia estão criando uma nova categoria histórica: a do "genocídio de esquerda", espécie particular de genocídio que evidentemente deve ser tratado com pinças, isto é, com compreensão e benevolência. E quem ganha com isto? A direita, incluindo, é claro, a extrema-direita. Enquanto houver, na esquerda, gente que escreva essas enormidades, a botica da extrema-direita não cessará de prosperar.

18/7/12

































fevereiro #

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1John Gray, "The violent visions of Slavoj Zizek" New York Review of Books, n. 12, v. LIX, jul.-ago., 2012. Disponível em www. nybooks .com /articles /archives /2012 /jul /12 /vio lent -visions -slavoj -zizek /?pagination =false.

2Slavoj Zizek, "Not less than nothing but simply nothing". Disponível em www. versobooks. com/blogs /1046-not -less-than -nothing -but- simply- nothing.

3ID, p. 311, grifado por Zizek; Em Defesa das Causas Perdidas, tradução de Maria Beatriz de Medina, prefácio de Alysson Leandro Mascaro, São Paulo, Boitempo, abrevio por ED, p. 313. Eu refiz todas as traduções.  Ver  Trotski, Terrorism and Communism, prefácio de Max Schachtman, s/l, University of Michigan, An Arbor Paperback, 1961, p. 45; Trotski, Terrorisme et Communisme, apresentação de Alfred Rosmer, Paris, UGE, 10/18, 1963, p. 80.

4ID, p. 311; ED, p. 313.

5ID, p. 316; ED, p. 317.

6Como já em 1918 escrevia Kautsky - que cometeu erros graves durante a guerra, mas logo se revelou um lúcido crítico do bolchevismo - tínhamos lá não uma ditadura do proletariado, mas uma ditadura sobre o proletariado.

7A defesa da violência antidemocrática vem justificada (ver ID, p. 310, ED, p. 312) como recusa da "imagem do grande Outro". Assim, o jargão lacaniano é posto a serviço do autoritarismo. Où a pu se nicher le lacanisme…

8Ver Slavoj Zizek, prefácio. In:Trotski, Terrorism and Communism: a reply to Karl Kautsky, Londres, Verso, 2007.

9Jorge Luis Borges, "Kafka y sus precursores". In: Borges, una antologia de sus textos, organizada por Emir Rodrigues Monegal, México, Fondo de cultura Economica, 1981, p. 309, grifo de Borges. Citado em ID, p. 311-312; ED, p. 313.

10T.S. Eliot, "Tradition and the individual talent", in. In: Points of view, Londres, Faber and Faber, 1942 (1941), p. 23-34. Citado em ID, p. 312-313; ED, p. 316.

11ID, p. 312; ED, p. 313.

12ID, p. 180; ED, p. 188,, primeiro grifo ("Marx é inteiramente responsável") de RF, segundo grifo ("retroativamente") de Zizek.

13É aliás sintomático que Borges escreva: "No vocabulário crítico a palavra 'precursor' é indispensável, mas seria bom tratar de purificá-la de toda conotação polêmica ou de rivalidade" (Borges, "Kafka y sus precursores", art. cit., p. 309, grifos de RF). No caso da relação Marx/ Stálin, a "rivalidade" é um elemento essencial e, de certo modo, o ponto de partida obrigatório da discussão.

14Claro que ele poderia supor a continuidade e condenar os dois, conforme uma das possibilidades que ele havia considerado. Mas esse caminho também se fecha, pois a condenação dos dois só é pensável na hipótese de uma continuidade imediata. Isso significa: se, por um lado, a escolha do (falso) modelo da relação do poeta com a tradição para pensar a relação Stálin /Marx elimina toda resposta crítica pondo em evidência incompatibilidades fundamentais, ela também fecha o caminho de um continuísmo negativo, da condenação de Stálin junto com Marx. (A boa resposta é precisamente a que faz apelo às possibilidades históricas. Marx não é totalitário, mas há em sua obra certos pontos cegos que facilitam, até certo ponto, um "enxerto" totalitário). Enfim, o modelo literário pressupõe muita coisa e prepara o caminho para afirmar um continuísmo - continuísmo a posteriori, mas é este o essencial - e de caráter afirmativo, isto é, cujas consequências políticas o autor legitima.

15ID, p. 179-180; ED, p. 188, grifado por RF. Observar o resultado: o maoísmo vira, sem mais, "estágio seguinte do desenvolvimento do marxismo".

16ID, p. 180; ED, p. 188, grifado por Zizek.

17Ib.

18Ib.

19Ib. E ele põe "necessária" entre aspas.

20Sobre a contingência em Hegel - mais sobre a contingência no sistema, mas também na história -, ver o livro decisivo de Bernard Mabille, Hegel, l'épreuve de la contingence, Paris, Aubier, 1999.

21ID, p. 316; ED, p. 317.

22Permito-me remeter a meu livro Marx: Lógica e Política, investigações para uma reconstituição do sentido da dialética (três volumes, São Paulo, respectivamente Brasiliense, 1983, Brasiliense 1987, e Editora 34, 2001), onde esses problemas são tratados em mais de um lugar.

23Dir-se-á que necessidade não é fatalidade. Mas se esta necessidade não é absoluta, então não há como afirmar que a contingência foi anulada. A contingência permanece lá. Por outro lado, em outro momento do livro, a propósito do que Trotski poderia ter feito, Zizek, curiosamente, ensaia alguns passos de "contra-história" e diz que "a história é aberta" (ID, p. 233, ED, p. 237). A partir das teses que acabo de discutir, seria possivel dizer em relação a uma situação passada -, ele fala também em manter "um mínimo de antideterminismo" (ID, 361, ED, 358), mas aí não se refere ao passado - que a história é aberta? Não vejo como. Seria talvez esta a razão pela qual, se essa passagem sobre Trotski se manteve na versão francesa, todo o resto caiu. Zizek teria se arrependido do que escreveu no original inglês? Se assim foi, ele o deveria ter dito honestamente, no prefácio da versão francesa. Ora, depois de afirmar que "as coisas mudaram desde 2008" e de fazer uma referência às revoluções recentes (tais acontecimentos, importantes embora, não poderiam, entretanto, por abaixo toda uma teoria geral da história), ele só nos informa que convenceu o editor francês "a reduzir o texto original e a acrescentar um longo complemento" (EnD, p. 5) (onde - remato - também não encontro nenhuma justificação).

24ID, p. 151; ED, p. 162; EnD, p. 96.

25Uma outra "gracinha", que aliás serve de subtítulo, "como Stálin salvou a humanidade do homem", que comentarei no próximo artigo, também está nas três edições (respectivamente, p. 211, 217 e 99).

26Cf. Nietzsche mais Badiou.

27Antecipo: violência "reativa" - se a expressão tem algum sentido, para além de Nietzsche e Badiou, ela só o tem, se a traduzirmos como a violência que vai contra o "progresso social" - violência "reativa" não deixa de ser violência (se a liquidação de seis milhões de judeus não é violência, não sei bem o que significa o termo; en passant, a "teoria" de Badiou sobre o nazismo, de que Zizek faz uso aqui, é arbitrária e errada, ver meu texto em Fevereiro, número1.). Se é possível inventar novos termos e novos significados para termos conhecidos, as invenções de significados têm evidentemente limites, sob pena de cairmos na confusão mais completa. Depois, se a violência de Hitler foi "reativa", ela teria ido em direção contrária à da "boa" violência. Mas então não tem sentido dizer que Hitler "não foi suficientemente longe". Porque a expressão indica que a direção teria sido correta. E aqui o essencial: Zizek sabe perfeitamente de tudo isto. Quando usou da palavra "violência", ele estava perfeitamente consciente de como o público a interpretaria e por isso mesmo a empregou. No seu uso primeiro (supositio mediatica), não no comentário (supositio academica), ele próprio, Zizek, a empregou no sentido mesmo em que o público a entendeu. E que o público a compreendesse assim, corretamente, era o que ele queria. O importante é o efeito, não a verdade.

28"A verdade não interessa [ao crítico do NYRB]", diz Zizek, "o que interessa é o efeito" [!!] "[a resenha]", acrescenta Zizek, "dá tristes indicações do nível do debate intelectual hoje em dia" [!!]. De te fabula narratur… Essas frases de Zizek contra seu resenhador se aplicam como uma luva a ele mesmo. Esse procedimento é comum na prática discursiva do stalinismo clássico, e é sintomático de um cinismo potenciado. A julgar pelo que conheço dos outros livros de Zizek, a resenha do NYRB é perfeitamente honesta.

29Em sua resposta no blogue da Verso, Zizek diz que, muito pelo contrário, ele é inimigo de derramamento de sangue. Então o elogio do livro de Trotski, o da política de Robespierre ( ou o silêncio sobre o significado do genocídio polpotiano) teriam que ser entendidos cum grano salis? Ora, nada nos leva a interpretar assim os textos correspondentes e, de qualquer modo, se tal fosse o caso, caberia uma explicação do autor naquele contexto mesmo, e não um duvidoso remendo a posteriori, banhado em virtuosa indignação. Na realidade, o leitor entende o elogio do terrorismo por Zizek por aquilo que de fato é - elogio do terrorismo. De novo, não houve mal-entendido algum e Zizek sabe disto. Ao mesmo tempo, ele tenta "limpar a barra" com o melhor do mundo acadêmico, o que, de fato, é de prudência elementar, mas só agrava seu caso.