revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Cicero ARAUJO

o stalinismo recauchutado de Domenico Losurdo

 

Após a abertura dos arquivos da União Soviética e do Leste Europeu, a historiografia sobre a experiência do chamado “socialismo real” tem passado por um período de revisionismo. As pesquisas publicadas nos últimos anos vêm nuançando fatos e visões sobre aspectos os mais diversos daquela experiência, quando não os modificando substantivamente. Estado, sociedade e mesmo personalidades são reexaminados à luz desses trabalhos.

Com isso, abrem-se espaços não só para críticas a respeito de atitudes há muito sedimentadas, especialmente durante os anos de Guerra Fria, mas também para a formação de novas atitudes, ideologicamente orientadas, tanto à direita quanto à esquerda. O livro de Domenico Losurdo traduzido e publicado no Brasil em 2010 – Stalin: História e Crítica de uma Lenda Negra (com ensaio de Luciano Canfora)1 – vai, nesse sentido, além do revisionismo histórico. Como o próprio título indica, o autor da obra não poderia ter escolhido tópico mais controverso para entrar na discussão. Losurdo não é um historiador profissional e, portanto, não lida com fontes primárias. Seu trabalho “empírico”, digamos assim, foi escrutinar um leque bem variado de estudos especializados, selecionar o material de acordo com seu ponto de vista e então produzir uma síntese de natureza político-filosófica. As teses ali defendidas, além disso, voltam a idéias discutidas em escritos anteriores – alguns deles também já publicados no Brasil – e ganham nova dimensão ao serem reinvocadas.

Desde já é preciso dizer que será impossível abordar, numa simples resenha, todas as matérias complexas que o livro se propõe a discutir. Como ele investe não só na crítica teórica, mas na interpretação de fatos, e recruta um verdadeiro exército de especialistas para ancorá-la, a crítica que aqui se fará tem algo de provisório. Para uma análise mais satisfatória do autor e sua obra, seria necessário verificar todas as inúmeras fontes de que o autor se vale, tarefa que permanece além das possibilidades deste resenhista. Este artigo, portanto, terá de ser lido apenas como uma primeira aproximação, esperando que outros colaboradores desta revista, depois de mim, possam completar a tarefa.

Embora reconheça “tragédia e horror” dos anos em que a União Soviética foi liderada por Stalin, e apesar de toda a sinuosidade de seus argumentos, a nenhum leitor escapará, ao concluir o livro, que o autor busca de fato uma defesa da biografia política do ditador soviético e das principais decisões que tomou ao longo dos quase trinta anos em que esteve à frente do país, após a morte de Lenin. Poder-se-ia pensar: estamos então diante de um sobrevivente da velha esquerda stalinista? Sim e não. Ao contrário do típico stalinista dos velhos tempos, Losurdo não elude uma série de crimes cometidos pelo regime e seu ditador, nem os qualifica simplesmente como “erros”. Também ao contrário do stalinista clássico, o autor não se preocupa em mostrar a coerência de suas práticas com o marxismo ou o leninismo. Sempre que pode, o autor coloca o termo “stalinismo” assim mesmo, entre aspas, inclusive chamando a atenção para essa grafia. Não é a consistência doutrinária e mesmo de ação o que pretende pôr à prova em sua análise.2 Antes, é a capacidade e a perspicácia em enfrentar com realismo os grandes problemas de seu país e de seu tempo – mesmo contra as crenças e utopias mais arraigadas de seus ex-companheiros de viagem – que o livro procura colocar em relevo. A despeito de todas as barbaridades cometidas, Stalin e seu regime saem de sua avaliação multifacetada com um saldo positivo. Porém, não exatamente porque souberam construir o socialismo possível, o famoso “socialismo num só país”. Mas pela simples razão de terem logrado erguer um Estado e uma sociedade suficientemente vertebrada para enfrentar o caos do “segundo período de desordens” russo e a “segunda guerra dos trinta anos” européia, com seu mais mortífero subproduto (o nazismo), que, não fosse por aquela tremenda empreitada, embora sanguinária, estava destinado a destruir as nações eslavas ao leste.3 Stalin e o stalinismo são, enfim, defendidos por razões às quais qualquer admirador da construção de Estados como um bem em si, independente de suas finalidades e justificativas ideológicas, deveriam se render. “Socialismo num só país” torna-se, nesse sentido, apenas uma fórmula que o ditador e seus partidários improvisaram para encaixar essa tarefa elementar à linguagem que lhes era compreensível.

Fórmula enganosa, porém. Pois o que faz do “stalinismo” de Domenico Losurdo algo muito peculiar, com pretensão a resistir à derrocada da União Soviética e do próprio socialismo enquanto ideologia, é que ele não se limita, com sua avaliação histórica dos atores em questão, a explicar o modo tortuoso pelo qual um Estado nacional conseguiu se afirmar perante os demais. Primeiro, porque a União Soviética, ao ver do autor, não era um Estado nacional, mas multinacional. Informando suas práticas (e não apenas a retórica oficial), estava um projeto de desenvolvimento das culturas nacionais dentro de uma mesma estrutura político-institucional. Em segundo lugar, e mais importante, é que esse projeto implicava uma proposta ainda mais ampla (e de caráter universal) de emancipação de todos os povos submetidos ao velho imperialismo dos países capitalistas centrais. Esse imperialismo se ancorava numa ideologia de teor mais ou menos racialista ou etnocêntrico, que hierarquizava o universo humano em dois tipos de povos, os “superiores” e os “inferiores”, o que justificaria a dominação sobre esses últimos. Uma ideologia ao qual não permaneceu imune nem mesmo o liberalismo que, apesar de seu aparente pendor universalista, restou acrítico (quando não endossou) em relação às práticas coloniais. Por conta desse ponto cego do liberalismo, entre outros fatores, as democracias dos países capitalistas centrais forjaram-se, na verdade, como “democracias de povos-senhores”. A isso Losurdo chama de “Ocidente liberal”.

Assim, olhando dessa perspectiva, a revolução russa não foi propriamente mais uma revolução européia, ou a quebra do “elo mais fraco” que desencadearia a revolução que realmente interessava, e que definiria todo o futuro da humanidade – a revolução do proletariado dos países do capitalismo desenvolvido –, mas antes a ponta-de-lança de uma revolta geral dos povos colonizados. Seu verdadeiro alvo – ao contrário da revolução francesa, essa sim uma autêntica revolução européia – não era o “Ocidente liberal”, mas todo o mundo da periferia do capitalismo. É justamente aqui que o termo “socialismo num só país” vai parecer enganoso. Pois, apesar de significar uma resposta aos internacionalistas mais puros, ela ainda permanecia no registro da expectativa “messiânica” da revolução européia (aquela que de fato interessava), e ainda mantinha a Rússia revolucionária na posição de subsidiária dessa missão. Sem dúvida, ela jogava um balde de água fria na idéia da iminência da revolução européia, adiando-a para um futuro indefinido. Porém, tal como o Tratado de Brest-Litovsk, defendido por Lenin (com apoio de Stalin, entre outros), tratava-se de uma resposta pragmática, comandada pela pressão irresistível das circunstâncias.

Ao mesmo tempo, no entanto, a tese do “socialismo num só país” oferecia espaço para uma inflexão mais decisiva. De uma estratégia puramente defensiva, um compasso de espera para a vinda imprevisível do evento decisivo, excepcional, ela poderia transformar-se numa estratégia de normalização, de rejeição do excepcional, reorientando todo o sentido da ação revolucionária. Em outras palavras, reorientando-o para a política de longo prazo de (re)construção do Estado e da sociedade. Foi o que acabou acontecendo: de improviso a improviso, mas sempre rumando nessa direção, Stalin e seus partidários não só rompiam com a expectativa “messiânica” – encarnada especialmente pelos partidários de Trotsky –, mas, na medida em que permanecia latente na liderança soviética, passavam a combatê-la com ferocidade cada vez maior. Não por acaso, essa política passou a ser qualificada por seus adversários à esquerda como “traição”. Losurdo insiste, contudo, que esse caminho não transformava a revolução russa numa simples revolução nacional. O projeto da União Soviética punha em xeque a identidade entre Estado e nação e a perspectiva eurocêntrica da “raça de senhores”. Além disso, em seu choque com o Ocidente – seja em sua versão letal, exterminadora (o nazismo), seja em sua versão branda, ainda assim dominadora (o próprio “Ocidente liberal”) –, abria-se para uma proposta de pendor “internacionalista”, isto é, o ativismo em prol da luta dos povos colonizados. Uma questão, a seu ver, perfeitamente atual, quando aggiornamos o sentido clássico do colonialismo. Por aí se vê que a reflexão de Losurdo não se limita a tentar explicar uma série de acontecimentos do passado: ao fazer o acerto de contas com esse passado – selecionando, em seu proveito, a historiografia que o revê –, ela também embute um programa político, ainda que vago, e uma atitude ideológica que pretende orientar o presente. Enfim, o que Losurdo quer oferecer não é um stalinismo nostálgico, mas uma lição inspirada no stalinismo, e apta a tornar-se uma espécie de neostalinismo.

Olhando de longe e no atacado, a visão que este resenhista acabou de descrever pode parecer muito sedutora e eloquente. Mas o stalinismo enquanto acontecimento histórico teima em expor sua face terrivelmente sombria. Para muitos de nós (inclusive para este resenhista), sua verdadeira face: autocrática, despótica ou totalitária, por divergentes que sejam as palavras para qualificá-lo, todas lhe reservam uma avaliação profundamente negativa e até repugnante, somente ultrapassada – mas não em todas as avaliações, pois algumas as igualam – pela experiência do nazismo. É isto o que remanesce na memória coletiva.

Losurdo tem plena ciência dessa percepção, e é por isso que não pode restringir-se a uma visão no atacado. A filosofia da história de Hegel, da qual se serve bem mais do que do materialismo de Marx, pode até ajudá-lo a transformar a história soviética como “matadouro onde se imola a sorte dos povos” num trabalho que, ao fim e ao cabo, progride, e então fazer de Stalin e seu regime como que agentes desse trabalho; mas essa dialética abstrata não vai convencer a ninguém que tenha os fatos relevantes em consideração. Até onde sei, e o escrutínio do autor não parece desmentir, nenhum dos grandes lances da pesquisa historiográfica recente, ainda quando modifica a fundo nossa visão sobre o passado soviético, põe em xeque a avaliação negativa, mesmo repugnante, acima mencionada. Daí que Losurdo tenha de conceder ao leitor, logo de saída, que se falará sim de “crimes impiedosos” promovidos primeiro por uma “oligarquia”, depois por uma pura e simples “autocracia”. Dando isso de barato, o autor procede como um advogado que, para salvar o cliente da pena capital, admite a culpa para providenciar os atenuantes. Com esse deslocamento ele pretende, na verdade, mudar o essencial, que incide exatamente sobre aquela avaliação e seu impacto na memória coletiva. E a disputa pela memória não é de menor importância; nesse caso, ela significa um trauma, um bloqueio: para que o neostalinismo se liberte, como cúmplice, do opróbrio (equivalente à pena capital) a que seu ancestral foi condenado, é preciso desbloquear a memória.

A missão, convenhamos, é hercúlea, quase impossível, se pensada no plano microscópio da intervenção de um simples filósofo, por mais ilustrado que seja. É claro que Losurdo deve estar contando com a ajuda do futuro – a absolvição da História –, para o qual seu esforço, para não soar quixotesco para si mesmo, pode ser entendido apenas como uma preparação do terreno intelectual. De qualquer forma, seu quadro de atenuações corre em dois registros: um externo e outro interno ao universo revolucionário e soviético. O primeiro, certamente, lhe garantirá alguma receptividade entre leitores de esquerda, pois se trata de defender acusando. Losurdo é mestre em encontrar, no campo adversário, um equivalente horroroso aos horrores do stalinismo.  Mas de que adversário se trata? Falar do nazismo como representativo das práticas do Ocidente capitalista seria, hoje em dia, muito pouco convincente. Mas aqui o autor se aproveita do reverso da moeda que é a farta historiografia recente sobre a Guerra Fria, com sua face voltada para revisar as práticas do lado “vitorioso”, e então acusa o “Ocidente liberal” segundo a estratégia jurídica (constrangedoramente recusada, lembra-se ele, pelos juízes do Tribunal de Nuremberg) do tu quoque, ou seja, algo como “vocês também fizeram”. E a acusação, como não poderia deixar de ser, parte menos do exame dos crimes cometidos pelos governantes da “raça de senhores” (os povos brancos) contra seus próprios membros, porém situados nos baixos escalões da estrutura de classe, do que dos crimes contra os povos “inferiores” (não-brancos) – pois é nesse deslocamento que a similaridade dos horrores se oferece mais claramente: massacres indiscriminados, campos de concentração e até genocídios.4

À primeira vista, a estratégia visa ao empate. Porém, de novo, para um leitor de esquerda (certamente é esse o público-alvo principal do autor), ela não poderia resultar numa mútua absolvição, mas apenas numa mútua condenação, talvez confirmando ainda mais a prévia avaliação negativa. Losurdo sabe, portanto, que tem de enfrentar o lado mais espinhoso da questão, mudando o registro das atenuações. Assim, a história interna da revolução russa e de seus revolucionários, do regime que ela gerou e de seus governantes, tem de ser reinterpretada, para então se chegar aos problemas ainda mais espinhosos do stalinismo. De fato, é impressionante a lista de casos difíceis que o autor se dispõe a reexaminar: a começar do relatório Kruschev que, afinal, é uma acusação assumida pelos próprios governantes do regime, em seguida retroagindo para os massacres provocados pela coletivização forçada da agricultura (1929-1932), a grande fome ucraniana (1932-1933 que segue dela, o assassinato do chefe do partido em Leningrado, Sergei Kirov (1934), a virtual dizimação do corpo de oficiais do Exército Vermelho a partir do processo contra o marechal Tukashevsky, a liquidação da velha guarda bolchevique e o Grande Terror (1937-1938), as deportações de povos inteiros ocorridas durante a guerra, o “Caso dos Judeus” e a subseqüente acusação de práticas antissemitistas depois da guerra, as quais culminam no “complô dos médicos”, pouco antes da morte do próprio Stalin. Losurdo não se furta nem mesmo de problemas relativamente menores, que não configuram crimes propriamente, mas servem para ajudá-lo a desqualificar as fontes das acusações mais pesadas: teria Stalin cometido erros grosseiros de avaliação ao ser surpreendido pelo ataque avassalador, e de resultados tão desastrosos, do Exército alemão em junho de 1941? Teria sofrido um colapso nervoso no início da invasão? E o que dizer do pacto germano-soviético, dois anos antes? Para todas essas questões, o autor mobiliza, como foi dito, uma avalanche de pesquisas historiográficas, e todas, diz ele, “insuspeitas de stalinismo”, além de depoimentos de personalidades históricas eminentes, igualmente insuspeitas.

Mesmo que a cerrada argumentação do livro logre colocar essa série de problemas numa perspectiva geopoliticamente mais extensa e de longa duração, é muito duvidoso que ela consiga produzir o efeito de atenuação desejado, e assim limpar o terreno para uma avaliação qualitativamente diferente dos feitos do stalinismo. Para mostrá-lo de modo mais convincente, seria interessante criticar a interpretação de cada caso e cada passo da argumentação. Essa tarefa, como já se advertiu no início, ultrapassa os limites da resenha e do próprio resenhista. Que Stalin não foi, de modo algum, um líder provinciano e intelectualmente medíocre, mas, ao contrário, um político talentoso, parece um fato bem estabelecido, certamente reforçado no livro, e, de resto, muito plausível, a julgar por sua longa preservação na chefia do país, e considerando as gigantescas crises a que sobreviveu. Mas não se poderia dizer o mesmo de Hitler e até de Mussolini? Também suas biografias mais recentes revelam talentos nada desprezíveis, inclusive o das decisões pragmáticas, se levarmos em conta as não menores pressões ideológicas que tiveram de enfrentar de seus companheiros de viagem. Contudo, o juízo substantivo que fazemos deles naquilo que interessa (seu papel histórico fundamentalmente regressivo) não se altera por causa disso. De certo modo, até se intensifica: mesmo computando as circunstâncias favoráveis, sem esses talentos eles dificilmente teriam logrado realizar coisas tão monstruosas. E, afinal, para quem pretende, como o autor anuncia, se distanciar da crítica superficial do “culto à personalidade”, que acusa em Kruschev, não seria o caso de gastar menos tempo com essa questão?

Mas o problema maior que vejo em sua argumentação é o non sequitor da tentativa de contextualização e esclarecimento dos motivos dos atores para o que eles acabam fazendo com isso. Só para ficar nas reações mais formidáveis e bárbaras: vamos assumir que fosse verdade que Stalin não tenha sido o mentor do assassinato de Kirov, e que houvesse razões para suspeitar de um complô de dissidentes bolcheviques. Qual o vínculo minimamente plausível entre esse fato e a razia que se abate sobre os quadros do Estado e do partido nos dois anos seguintes, atingindo indiscriminadamente centenas de milhares de acusados e de seus familiares? Ao contrário, há mais fortes razões para se pensar o episódio como um pretexto, mesmo que inicialmente fora de controle do regime (o próprio assassinato) – como, aliás, também parece ter sido o incêndio do Reichstag alemão logo no início da ditadura nazista, mas com resultados semelhantes –, para em seguida desatar a ação terrorista do aparato repressivo do Estado. Algo similar se pode dizer da suposta conspiração (tentativa de golpe de Estado) do marechal Tukhatchevski: como explicar que daí se siga a eliminação de praticamente todo o alto comando do Exército Vermelho, além de dezenas de milhares de oficiais, causando prejuízos incalculáveis a seu patrimônio de experiência, capacidade técnica e elos de comando, a ponto de o próprio Hitler suspeitar, na época, de um acesso de loucura do ditador? E o que dizer do Terror que ceifa não só o que resta da velha guarda bolchevique, além de seus familiares, mas leva de roldão uma enorme quantidade de quadros políticos e técnicos, agora com prejuízos incalculáveis para a administração civil? E isso de modo ainda mais impressionante que os anteriores, pois que o expurgo, como estipulavam as famigeradas “ordens operacionais” do NKVD, se faz através de quotas, vale dizer, metas puramente quantitativas para as diferentes seções do partido espalhadas pelo país: não importa se inocentes ou culpados (de quê?), se leais ou não ao regime, o aparato repressivo deveria “produzir” um tanto de fuzilados, outro tanto de condenados a prisões mais ou menos longas, ou ainda a trabalhos forçados ...

Enfim, como, a partir da mera suspeita de “conspiração, infiltração e espionagem” contra o regime, ainda que razoável, em vista do contexto – admitindo, outra vez, a plausibilidade da construção que faz o autor, inspirado em depoimentos e estudos históricos “insuspeitos” exibidos no livro –, se poderia chegar a um grupo tão grande e indiscriminado de condenados, no qual são explicitamente irrelevantes os motivos de suspeita, e do qual seria fácil presumir, ao contrário, que a esmagadora maioria fosse composta de leais stalinistas? O fosso é grande demais para imaginar que a motivação real da fúria repressiva fosse de fato uma guerra contra putativos dissidentes – “guerra civil”, para usar o incrível eufemismo encontrado pelo autor para designar o que não passou de um imenso abatedouro humano.5 Nesse ponto, continua tendo força as teses de H. Arendt – alvo de frequentes ataques do autor ao longo do livro – sobre a semelhança formal (malgrado a grande divergência dos conteúdos ideológicos) dos regimes qualificados como “totalitários”, de direita ou de esquerda: a necessidade contínua de movimento, que resulta na produção imaginária do “inimigo” (objeto da mobilização) e o subsequente desatamento do terror de Estado. Mesmo que levando enormes prejuízos à capacidade operacional do regime, o terrorismo ideologicamente motivado torna-se um imperativo superior à eficiência e à racionalidade do Estado, na medida em que extorque de seus cidadãos a obediência incondicional e cega.6

Porém, se desprezamos teorias como essas, resta a possibilidade da paranóia sistêmica – não necessariamente em contradição com aquelas teorias –, que leva a uma espécie de giro em falso de um regime movido pela suspeita, prefigurando, tal como a paranóia psíquica, sua autoaniquilição. E é talvez por conta dessa vertigem autodestrutiva que os subordinados acabam levados a propor, como o grupo liderado por Kruschev, a crítica da autocracia e o retorno à oligarquia. Diga-se de passagem, como lembra um ácido crítico do livro de Losurdo, o relatório Kruschev não ataca o período stalinista como um todo, mas tão somente o que se inicia com a erosão da “direção coletiva” (1934, justo o ano do assassinato de Kirov) até a morte do autocrata. Por mais frágil que seja em termos intelectuais, a crítica do “culto à personalidade” pretende exatamente aquilo que a própria expressão sugere: atingir a pessoa de Stalin, mas não o stalinismo. É certo que o documento contribuiu não pouco para o processo de distorsão da verdade histórica e o correspondente impacto, ainda que remoto, sobre a memória coletiva, contra o qual Losurdo se diz insurgir. Compreende-se sua indignação: quem acaba vítima dela é a própria memória do stalinismo! Mas para isso contribuiu, em grande parte e da maneira mais tosca, o mesmo Stalin, ao fabricar despudoradamente uma série de “histórias” da revolução, do partido e da União Soviética, até com direito a manipulação e apagamento de imagens em fotos, filmes e outras tantas iconografias. E não foi também ele que certa vez disse a Ignátiev, um de seus agentes terroristas no após-guerra: “Nós mesmos seremos capazes de determinar o que é e o que não é verdade”?7 Está aí a lição do stalinismo, pelo menos no que tange ao exercício da memória coletiva: não se brinca com a verdade impunemente.

Por conta de tudo isso, parece menos defensável ainda a conclusão da obra: Stalin e seu regime foram toda aquela “tragédia e horror” a despeito de si mesmos, em virtude de um embate que lhes foi imposto em duas frentes – de dentro e de fora do campo revolucionário, causando ao regime um “estado de exceção” quase permanente. De fora, o embate com as “condições objetivas”, a herança negativa da história russa e a absoluta escassez de recursos, somadas às ameaças dos adversários ocidentais, que, contando com enormes vantagens materiais e as da própria normalidade, impunham desafios que de tempos em tempos interrompiam os esforços de normalização. De dentro, o embate contra o “messianismo anarcóide” e o “utopismo abstrato”, levando a um prolongamento adicional do estado de exceção. Esse segundo fator, explica Losurdo, “desde logo fortemente estimulado pelo horror da Primeira Guerra Mundial, e todavia intrínseco a uma visão que espera a dissolução do mercado, do dinheiro, do Estado, da ordem jurídica” (p. 303 da edição espanhola). Cito o resumo da ópera: “Nos três decênios de história da Rússia soviética dirigida por Stalin o aspecto principal não é a passagem da ditadura de partido para a autocracia, mas sim as repetidas tentativas de passar do estado de exceção a uma condição de relativa normalidade, tentativas que fracassam por razões tanto internas (utopia abstrata e messianismo que impedim o reconhecimento dos resultados alcançados) como internacionais (a ameaça permanente que paira sobre o país de Outubro), ou então pela soma de umas e outras”. (Idem, p.157)

Porém, não lhe ocorre discutir seriamente a hipótese de uma lógica intrínseca ao regime e às ações de seu ditador, no sentido da busca visceral da exceção, da fuga da normalidade através do terror, como forma de enfrentar a ameaça de perda da lealdade de seus cidadãos. Como se viu, ainda que reais os embates indicados acima, eles estão longe de explicar, em si mesmos, a reação inteiramente desproporcional do regime. Ao contrário, é bem mais plausível supor que este último, partindo daqueles embates, vai tornando-os funcionais à sua legitimação, até que se dê o salto na pura fantasmagoria: fabrica-se o inimigo para que, pelo negativo, se fabrique legitimidade e obediência. No fim das contas, a fantasmagoria é a “droga” que faz o regime subsistir, ainda que ao custo de levá-lo à “fadiga de material” e à beira do abismo – sua autoaniquilação. É evidente que, funcionando assim, nem Stalin, nem o stalinismo, nem qualquer regime similar poderia um dia, por sua própria iniciativa, almejar uma transformação no sentido da democracia. O máximo que se pode esperar é aquela oscilação entre a autocracia e a oligarquia do partido único que caracterizou a história da União Soviética e de tantas outras experiências passadas e presentes. Eis o ponto: a vontade de democracia, essa sim, é que acaba sendo o fator estranho à sua reprodução, aquela que ou se impõe, aqui e agora, na luta desafiadora dos governados, ou sucumbe na espera ilusória da boa ação dos governantes, tão logo as supostas condições adversas deixem de existir.

Com base na explicação insatisfatória que oferece do passado, pode-se adivinhar as bases igualmente insatisfatórias do discurso que o neostalinismo losurdiano tem a oferecer para o presente. Note-se uma de suas possibilidades: a luta contra o imperialismo ou a versão atual do colonialismo precede a luta democrática. Não há democracia possível sem a vitória sobre o primeiro, pois este empurra qualquer empreitada emancipatória para o campo da anormalidade, por sua vez caldo de cultura do messianismo e do utopismo, que retroativamente só empurra a empreitada para mais anormalidade. A quê isso leva? A não ser que o discurso previna, em virtude das lições da história, a sedução do poder político e da construção do Estado – mas então como seria possível ao menos tentar vencer a dominação colonialista? –, o neostalinismo, cedendo mais uma vez ao que supõe ser a face cinzenta (mas inescapável) do realismo, não oferece outra alternativa senão... o velho stalinismo!































fevereiro #

4



1 Infelizmente, a tradução brasileira da Editora Revan  não está nada amigável. Mas há uma edição em castelhano (da Editora El Viejo Topo, 2011), bem mais honesta.

2 “(...) a categoria de ‘stalinismo’ não é convincente: parece pressupor um conjunto homogêneo de doutrinas e comportamentos que não existe” (p. 308 da edição espanhola).

3 Os dois “períodos de desordens” russos, termo encontrado num texto do historiador francês N. Werth, remetem, o primeiro, ao século XVII, durante a transição para a dinastia Romanov, e o segundo, ao colapso da própria dinastia Romanov, no final da participação russa na Grande Guerra, até a consolidação do Estado soviético. A “primeira guerra dos trinta anos” européia são as guerras de religião do século XVII; a segunda abarca o “contínuo” das duas guerras mundiais. Um historiador jesuíta, atuante no Vaticano, fez essa última analogia histórica num livro publicado em 1947 (sou grato a João Guilherme Vargas Neto pela indicação bibliográfica).

4 Mas oferece também um contraste. Não é casual que Losurdo tenha de desconstruir a acusação de antissemitismo no período final do ditador soviético, quando sua ferocidade se volta contra grupos de origem judaica. Pois a questão racial configuraria um tipo de regime autoritário completamente estranho, ao ver do autor, ao regime soviético, diferença para a qual a categoria do “totalitarismo” permaneceria cega. Os crimes de Stalin teriam resultado, assim, de uma “ditadura desenvolvimentista”, e não de um regime racialista. Essa idéia, por sua vez, está em linha com a tese da União Soviética como paladina dos povos “não-brancos”, colonizados pelo imperialismo “branco”, europeu e anglo-saxão.

5 Para Losurdo, a série de crimes em massa do período em que Stalin chefiou o país são tomados como desdobramentos da guerra civil de 1918-1921: a coletivização forçada é chamada de “segunda guerra civil” e o Terror de “terceira guerra civil”. Tais como os bombardeios aéreos dos aliados sobre as populações civis da Alemanha e do Japão, as maiores atrocidades do stalinismo são enquadrados, portanto, como crimes de guerra.

6 Certos historiadores destacam, porém, o papel econômico nada desprezível do grande contingente de condenados a trabalhos forçados, “recrutados” para fazer o trabalho pesado dos campos de mineração, da construção de rodovias e ferrovias, o próprio esforço de construção da bomba atômica e de hidrogênio etc. Mas sua viabilidade econômica é posta em questão por Moshe Levin (O século soviético, cap.11).

7 Citado na biografia de S. Montefiore (Stalin: a corte do czar vermelho, p. 690).