revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Daniel GOLOVATY & Alexandre CARRASCO

entrevista a Lincoln Secco, autor de história do PT 1

 

Daniel Golovaty - Lincoln, na “orelha” do seu livro, Ciro Yoshiyasse afirma: “não exagero quando digo que este livro foi pensado vinte e cinco anos atrás, por um jovem na periferia de São Paulo”. Como foi essa história?

Lincoln Secco – Como boa parte de minha geração, eu despertei para o socialismo no movimento pelas eleições diretas em 1984. Ingressei no PCB por acaso, pois tinha lido o Manifesto Comunista. Eu tinha 15 anos! Mas no ano seguinte já percebi que o PT tinha uma linha muito mais radical e ingressei primeiro na campanha de Florestan Fernandes a deputado constituinte. Florestan incendiava os corações e mentes dos jovens militantes com seus artigos na Folha de São Paulo. Desde então, militei num núcleo do PT na zona leste paulistana e, depois, no núcleo de estudos de O Capital, o qual se reunia no escritório político de Florestan. Mas sempre tive atuação de bagrinho (como se diz no jargão petista). Nunca assumi cargo no partido ou em função dele, embora tivesse sido convidado nos anos de 1990. Quando Lula venceu em 2002, afastei-me da militância “orgânica”.

D.G. – Como militante, “testemunha ocular da historia”, você certamente formou convicções sobre a origem e o significado históricos do PT. Quais delas foram confirmadas ou refutadas pela sua pesquisa?

L.S. – Eu não sei se tinha convicções originais. Eu me guiava muito pelo que o Florestan escrevia ou nos dizia em reuniões e debates. Mas ele era ambíguo às vezes (ao menos aos olhos de um jovem como eu era). Florestan achava que o PT deveria ser um partido marxista, como se pode ler no livro O PT em Movimento. Aliás, eu e alguns companheiros lemos e discutimos os rascunhos deste livro antes da publicação. Por outro lado, apoiou Mário Covas no segundo turno de sua eleição para governador. A esquerda petista, no geral, aceitava que o PT tinha uma cultura anticapitalista, mas não precisava se definir como marxista. Eu fui me inclinando para o centro partidário. Posso dizer, com apoio em cartas que publiquei na imprensa do partido na época, que eu achava que a social-democracia seria o fim do PT. Eu estava errado. Minhas pesquisas me levaram a caracterizar o PT como um típico partido social-democrata bem-sucedido.

D.G. - Como tem sido a recepção do seu livro dentro do PT e fora dele? Ela tem te surpreendido?

L.S. – A única surpresa é a primeira edição ter se esgotado em um mês e meio. Embora as tiragens brasileiras não sejam grandes, é surpreendente que qualquer livro que não tenha o aparato comercial de um best-seller venda tão rápido. É que o tema toca o coração de milhares de pessoas que anonimamente ajudaram a construir o PT. O livro foi muito resenhado. A maioria dos meus comentadores recebeu bem a obra. Curiosamente, as críticas mais acerbas, embora respeitosas, foram publicadas no órgão oficial do PT, a revista Teoria e Debate, da qual eu sou membro do conselho de redação. Os demais aceitaram o propósito do livro, que é o debate político e elogiaram muito, embora com divergências em alguns temas. O que é esperado para um livro que trata do PT. Mas a maioria das divergências reside no fato de eu não ter destacado suficientemente (ou respondido) as críticas que Francisco de Oliveira, Paulo Arantes e outros importantes intelectuais fizeram do Governo Lula. Eu posso dizer que num livro propositadamente sucinto, eu fiz escolhas. Não discuti o quanto Lula manteve da política econômica de Fernando Henrique Cardoso ou o quanto os banqueiros continuaram a ganhar. Eu preferi acentuar o que diferencia Lula de tudo o que veio antes. Bem, o seu governo, apesar de tudo, é fruto da história do PT.

Daniel Golovaty e Alexandre Carrasco – No período de formação do partido, você descreve uma dialética interessante entre isolamento político e fortalecimento social, quando o discurso radical do PT o ajudou a forjar sua identidade de oposição no interior dos movimentos sociais. Qual o papel da esquerda do partido neste processo? E, para alem dele, qual o balanço histórico que você faz da esquerda petista?

L.S. – Embora eu tenha ingressado no PT pela porta da esquerda, nunca achei que ela fosse capaz de dirigir o PT. E isto ficou evidente em dois momentos. Na campanha de 1994 a esquerda deixou-se enganar por uma falsa maioria que não tinha projeto político, só projeto de poder interno. E em 2005, no auge da crise do mensalão, setores da esquerda petista erraram a avaliação da correlação de forças interna e externa e entregaram o comando para o campo majoritário. Foi a única vez em que a esquerda mais radical poderia ter comandado o partido sozinha. Mas eu seria injusto se não reconhecesse os méritos da esquerda petista, a qual eu apoiei na maior parte de minha militância. Ela nunca deu muito valor para a “ética na política”, mas também pouco se envolveu em falcatruas, como alguns membros das correntes majoritárias. E muitas vezes ela impediu que o PT fosse ao centro do espectro político cedo demais. Ela foi vital na decisão de não apoiar o colégio eleitoral, de defender sempre candidatura própria para o PT e impedir alianças com a direita, o que teria descaracterizado o partido.

A.C. – Há passagens muito sugestivas em seu livro sobre a relação entre o PT e a “teoria”. O quanto a teoria fez (ou faz) falta ao PT?

L.S. – A maioria do PT sempre desprezou a teoria. O PT foi muito obreirista porque a teoria que se lhe apresentava era um marxismo sem nenhuma incidência na realidade. E sejamos justos. Nós, que éramos marxistas no PT, não sabíamos o que fazer com temas concretos que desafiavam o partido, como a inflação. Tínhamos boas análises globais, sabíamos avaliar o papel que o Brasil estava assumindo na década neoliberal de 1990, impulsionamos a integração da esquerda no subcontinente latino-americano, entendíamos os contornos gerais das crises econômicas, mas nossa teoria não servia para um partido ao mesmo tempo militante e eleitoral. Ainda assim, o pouco que o PT teve em matéria de formação política deveu-se à pressão de suas alas esquerdistas.

D.G. – A sua militância no partido se deu através da mediação da sua participação em um núcleo, o NEC (Núcleo de Estudos do Capital). Você poderia estabelecer como esta vivência influenciou a formação das suas convicções sobre o PT e a sua perspectiva como historiador do PT?

L.S. – Eu tenho uma memória mais viva do núcleo do PT Cangaíba, onde militei anteriormente. O que é engraçado, pois o NEC foi muito mais importante na minha formação. Você conheceu um pouco das atividades do NEC, por isso preciso tomar cuidado com a resposta (risos). Ele nunca teve importância na disputa interna do PT. Mas continuou vivo até hoje! Um dia, um grande companheiro nosso nos criticou: “Vocês são um núcleo de gourmets!”. E o meu camarada Ciro Seiji, sempre perspicaz, respondeu: “É verdade, mas entre um prato e outro nós sonhamos”. Eu penso que fomos além dos pratos. O núcleo seguia duas diretrizes que eu sempre achei corretas. Que o marxismo no Brasil sempre foi abstrato e daí provinha a dificuldade da esquerda do PT dialogar com a base social do partido. E que nós deveríamos aceitar a direção operária e intervir nos seus debates internos para levá-la a posições marxistas. Mas essa era a esperança de um pequeno grupo quando deveria ser da esquerda partidária. Como historiador, eu tentei ser equidistante, o que você como historiador e psicanalista sabe que é impossível. Se não fizemos mais foi porque sempre recusamos disputar cargos.

D.G. - Em seu livro estão muito bem descritas as fases da burocratização do PT: o esvaziamento dos núcleos, a centralização partidária, a progressiva transformação dos militantes em funcionários a serviço de mandatários instalados no aparelho do Estado (parlamento e governos), a autonomização de Lula e de seu círculo mais próximo do efetivo controle do partido e, por fim, a subordinação do partido ao governo. Para este resultado, o quanto pesaram as circunstâncias históricas e o quanto as decisões políticas dos dirigentes do partido?

L.S. – O curso geral dos acontecimentos condicionou um partido que precisou se profissionalizar para disputar o poder. Mas a direita do partido e quase todos os analistas da imprensa cometem o erro sério de acreditar que se foi assim é porque não podia ser de outro jeito. Delfin Neto, por exemplo, sacralizou a carta ao povo brasileiro e os críticos esquerdistas do PT fizeram o mesmo com intenções opostas. Ora, se o PT não tivesse atrás de si o currículo de contestação social não seria alternativa de governo em 2002. Um partido político é determinado no curto e médio prazo pelas decisões políticas de seus dirigentes. E se as decisões são tomadas em momentos cruciais, de possibilidades de mudança estrutural (mesmo que eles não saibam, e raramente o sabem), elas definem o futuro do partido. Ninguém obrigou alguns dirigentes do PT a comprar respaldo no parlamento. O PT precisava, tinha dívidas colossais, mas no fim das contas, manteve-se vivo depois do escândalo de 2005 mesmo sem aquele tipo de apoio e sem parte dos famosos recursos não contabilizados.

D.G. – Eu pergunto isto por que, apesar de você afirmar na conclusão do livro que “se a tese do aburguesamento da social democracia feita por Michels parece inexorável, para a história nada tinha que ser como foi” – apesar desta profissão de fé de historiador – ao final da leitura a impressão que se tem é que o poder das circunstancias superam em muito o das possibilidades históricas que não se concretizaram. Enfim, apesar de seu livro não ter nada a ver com o que seria uma “historia oficial”, fica-se com a impressão de que, em determinados momentos, desliza-se da crítica a uma sutil justificação através da ênfase nas determinações históricas, como resumem as afirmações: “em 2002, muitos intelectuais, petistas até o último momento anterior à posse, não suportaram o toque da realidade (grifo meu) de um governo que declarava ter que atuar dentro dos limites constitucionais e com alianças políticas indesejadas”. Ou, mais ainda: “(...) não podemos negar que Lula e o PT tiveram a capacidade de compreender as contradições sociais de seu tempo. Elas encontraram a forma na qual podiam se mover. E este é, no fim das contas, o método pelo qual elas são resolvidas segundo disse Marx”.

L.S. – Eu posso aceitar esta crítica. Mas permito-me pensar mais nela. Decerto, o Governo Lula poderia ter assumido rumos mais radicais em alguns temas sem perder a direção política do processo. Mas Lula e seus assessores sabiam disso? O que importa é que não quiseram arriscar. Faltou-lhes coragem, vontade política, esperança? Isso o historiador nunca saberá. Mas sob a direção deles o PT cumpriu boa parte de seu programa estratégico, definido muitos anos antes no V Encontro Nacional. O critério que adotei foi o resultado. Não o de fazer história no futuro anterior, como se o resultado estivesse pré-determinado. Mas o de mostrar o quanto a estratégia adotada se revelou capaz de manter a sobrevivência das tropas em momentos cruciais e, no instante em que o terreno se fez favorável, conquistar a vitória, qualquer sabor que ela viesse a ter. Mas no livro eu mesmo avalio o quanto a vitória é de Pirro, aos olhos da tradição da esquerda brasileira. Para vencer, foi necessário adaptar-se e usar as armas do adversário, legitimando o campo de batalha outrora questionado, embora nunca rejeitado. Muita gente de minha geração lamenta que se nós vencêssemos em 1989 seria diferente. Bem, nós não vencemos. A vitória veio depois. O fruto colhido na juventude teria outro sabor, mas também outros perigos.

D.G. – Qual foi o principal efeito da crise de 2005 sobre o PT?

L.S. – Foi um desastre. Eu acredito que o PT vinha se transformando num partido da Ordem e eleitoreiro há muito tempo, mas aquela crise destruiu sua capacidade militante. Embora o processo seja contraditório, pois a derrocada ética e ideológica do PT coincidiu com o retorno de sua militância ao centro do embate político e até mesmo com uma retomada do discurso socialista. O que de modo nenhum intriga o historiador acostumado aos descompassos entre o que um partido é o que ele diz de si mesmo. Mas alto lá! O PT ainda tem reservas militantes. É o “espírito de Sumaré”, para fazer uma brincadeira com André Singer, que gosta da palavra ”espírito” em suas análises do partido. Num encontro de macro regiões na cidade paulista de Sumaré, em junho de 2011, a base petista revoltou-se contra sua direção e lhe impôs uma derrota.

D.G. – Em seu livro, você defende a tese de que, na crise de 2005, a militância petista, ao contrário de seus dirigentes, salvou o partido. Mas não faltou aí uma etapa fundamental, a da depuração ou refundação do partido? Afinal, milhões de eleitores consignaram ao PT suas esperanças e seu voto por sinceramente acreditar no discurso de que o PT era um partido diferente.

L.S. – A militância que salvou o partido era só a sombra da nova, formada por funcionários pagos. Ela voltou para defender um PT que não existia mais. O PT de sua memória e de seu passado. Com isso, salvou a agremiação que, apesar de tudo, é fruto daquele esforço militante dos anos 1980 e 1990. A depuração foi inviabilizada pela derrota da esquerda no processo eleitoral interno.

A.C. – Você acredita que o episódio do chamado “mensalão” significou, de maneira dramática, a conversão do PT ao tradicional sistema de representação política do Brasil, esterilizando qualquer energia que houvesse no PT (acredito que ainda há) para “reformar” o nosso sistema de representação?

L.S. – Não foi o mensalão que mudou o PT. O PT que se envolveu naquele escândalo já era um partido diferente. Eu concordo com você que o PT ainda tem energias para estimular a renovação do ambiente político em que atua. Isso ficou patente no seu último congresso, realizado em 2011. O partido aprovou limite de mandatos para seus parlamentares, 50% de mulheres na sua direção e quota para jovens. Também isso reflete o passado, o peso da história do PT. Veja, eu não quero mostrar um PT que é igual aos demais partidos. O PT é diferente e só ele podia ter sido o primeiro a eleger à presidência da República um operário e uma mulher.

D.G. – No livro, você atribui a corrupção partidária à nossa tradição clientelista e fisiológica. Mas não seria também necessária uma critica interna à cultura partidária que promoveu e, em parte, até justificou (muitos ainda justificam!) a corrupção?

L.S. – Você tocou num problema delicado para a esquerda e que ultrapassa a questão da corrupção. Eu mesmo ouvi de dirigentes do PT em 2005 que não era errado roubar pelo partido e sim para proveito pessoal. Alguns companheiros da esquerda petista iam além e consideravam que o problema não era o PT usar métodos ilegais, mas sim usá-los para um projeto político tão moderado e pífio. Se nós observarmos bem a história recente do PT, a única pessoa que mereceu desprezo do partido foi o dirigente que ganhou um automóvel. O tesoureiro foi reintegrado porque, afinal, aguentou sozinho nas CPIs e não “entregou” ninguém. Não quero discutir a culpa formal dele. Quem vai decidir é o Supremo Tribunal. Mas, no mínimo, o PT deveria tê-lo condenado definitivamente por ter feito uma série de acordos, empréstimos e ações que quase o destruíram. Se estivéssemos numa guerra, o caso seria para corte marcial por facilitar ao inimigo obtenção de informações sigilosas, ainda que por negligência. Diferente foi o caso de José Dirceu, vítima de um esperado ataque de todos os inimigos do PT. Mas a analogia com a guerra nos leva a aprofundar sua questão. O equívoco do PT foi manter o leninismo só como técnica? Sem o conteúdo histórico que o engendrou? Numa situação de guerra é correto usar todas as artimanhas para vencê-la? E numa democracia? Algumas armas se tornam proibidas, embora o segredo e a arte do engano continuem usuais, pois a representação sempre pressupõe certa apatia ou ignorância por parte do representado. Um grande amigo e mestre me disse que ler O Capital e ignorar Da Guerra, de Clausewitz, é como querer andar com uma perna só. Nós esquecemos que Lenine e todos os grandes líderes comunistas eram clausewitzianos.

A.C. – Sobre a tese de André Singer (As raízes ideológicas do lulismo) que você menciona no livro e, pensando no impasse que parece viver o PT – partido popular ou de dirigentes –, quais os limites que você veria neste arranjo? Se o PT realizar o vaticínio de Lula e permanecer 20 anos no poder, não corre o risco de esgotar o conteúdo do lulismo muito antes de poder evitar se transformar no novo PMDB, centrista, regionalista e conjunturalmente de direita? A História do PT já não é a história do fim do PT?

L.S. – Quando algo começa a interessar um historiador, todo mundo já desconfia que é algo acabado. E de certa forma, é verdade. Um ciclo do PT se fechou. Ele surgiu de movimentos sociais, cultivou um ideário radical, institucionalizou-se e chegou ao poder. Que mais podemos esperar dele senão ações para se perpetuar no governo federal? Convenhamos, o PT nos anos 1980 protagonizou a cena política brasileira fora do poder. Hoje, no poder, ele tende a conservar e não a mudar a sociedade. Quanto ao lulismo, a tese de André Singer também já faz parte da história. E digo isso como elogio. Ele pautou a estratégia eleitoral de 2010. Ele percebeu o que o PT procurava no lugar errado. Ao longo de vinte anos o PT tentou encantar a parte da classe média que não votava nele. Em 2006, Lula encontrou as classes desamparadas. Mas há o risco de considerarmos as camadas mais baixas como desprovidas de ação política. Elas sempre atuaram num nível local (via mutirões e outras formas de solidariedade) e pressionando o Estado, já que a esquerda organizada não tinha vez num país que sempre viveu sob ditaduras. Lula surgiu com a sua desconfiança, mas uma vez no poder e com políticas sociais visíveis, passou a ser reorientado por aquela massa empobrecida. Não foi Lula quem criou a sua nova base social, foi o contrário. O Lulismo foi a forma que uma parte da população excluída da luta sindical e partidária encontrou para impor os seus interesses materiais. E dentro da democracia isso não tem volta. É difícil que a direita consiga seduzir a base lulista. A não ser que o próprio PT se recuse a aprofundar suas políticas redistributivas. O lulismo traz certo conforto material sem instigar conflitos sociais. Mas paradoxalmente o seu limite será determinado pelo quanto a atual estrutura de classes poderá suportar um arranjo desses. Num momento de crise, em que alguém tiver que perder um pouco, o lulismo implode. E o PT poderá escolher (se é que terá isso no seu horizonte) entre enfrentar interesses oligopolistas ou sacrificar sua base social.

D.G. – No seu livro você dialoga com muitos pesquisadores e intérpretes. A grande exceção (perdoe-me insistir neste ponto) parece ser um ex-militante histórico do PT, o já citado Chico de Oliveira. Ele é mencionado apenas uma vez e, mesmo assim, trata-se de uma tese já antiga sobre o neodesenvolvimentismo do PT – que, aliás, ele parece ter descartado em seu livro Ornitorrinco. O que você pensa das teses do Chico de Oliveira sobre a transformação do PT e o lulismo? Eu pergunto isto por que a crítica dele não se confunde com a dos chamados “revolucionários”, que acusam o PT por não ter sido algo que ele nunca se comprometeu a ser. Sobre os mandatos de Lula, Chico de Oliveira diz que teria sido “intensamente reformista no sentido clássico que a sociologia política aplicou ao termo: avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo. Os resultados são o oposto dos que o mandato avalizava”. O que você tem a dizer sobre esta avaliação?

L.S. – Eu não ignoro os problemas estruturais do país sob o governo Lula e o quanto ele deixou de resolvê-los. Como historiador eu procurei realçar a novidade do novo ciclo político do PT na forma de partido governista. Mas eu o fiz dentro de meus limites. Não criei uma teoria para explicar o lulismo e nem quis polemizar com grandes intérpretes do Brasil. Como dizia Fernand Braudel, os historiadores têm sempre certa dificuldade de filosofar e acabam por limitar-se a multiplicar os exemplos. Mas o leitor do meu livro verá nas entrelinhas, ou entranhada na própria narrativa, a minha avaliação do lulismo que, no fim das contas, é um petismo ampliado.

D.G. - Uma última questão. No livro você contabilizou a freqüência, nos documentos do PT, da palavra “socialismo”. Apesar de não contabilizada, pela leitura podemos concluir que a palavra “democracia” sempre foi muito utilizada. Mas, e sobre a palavra “república”?

L.S. – Eu usei o número de referências só como um índice (no sentido que a linguística dá a essa palavra). Eu sei que muitos documentos do PT apenas repetiam partes de documentos anteriores. Mesmo assim, não deixa de ser curioso que o socialismo foi desaparecendo do discurso petista depois que Lula ganhou em 2002, reapareceu um pouco em 2005 por causa da crise e também no IV Congresso depois da vitória de Dilma Rousseff, quando muitos acreditaram numa virada à esquerda ou num mandato mais radical do que o de Lula. Respondendo a você como memorialista, eu diria que as palavras mais fortes no PT não eram “socialismo” ou “revolução” e sim “democracia” e “ética” e, mais tarde, “cidadania”. Mas a ética era a ideia que unia a base social petista. Não a militância orgânica, do dia a dia, mas a do simpatizante e do militante em épocas eleitorais. A palavra “república” veio tarde demais, quando o PT já não tinha a mesma riqueza de debate interno, estava no governo e sob acusações, em grande medida injustas, de aparelhar o Estado. Foi uma palavra reativa. Mas isso é só um registro histórico e não afeta em nada a minha análise da história do PT. Eu procurei dar contorno às formas pelas quais as contradições que animavam o partido encontravam para se movimentar. Fiz um ensaio sobre formas, mais do que discussões acerca de conteúdos programáticos ou sobre a evolução dos conceitos. Por isso a escolha de uma síntese. É que outra história seria um pouco idealista. E há muitas análises “marxistas” idealistas! Veja o exemplo de Lula. Ele nunca mudou muito o seu discurso básico ou mudou demais (risos). Mas seguramente suas ações eram mais radicais nos anos de 1980. Qual a razão? Nós a encontraremos nos conceitos que ele reivindicou para si? Em parte sim. Mas fundamentalmente na forma do partido, que era um agregado de militantes, tendências de esquerda e movimentos sociais. O estudioso que lê só resoluções ou a “evolução das frases” pode crer nelas. Cabe ouvir outras fontes, propor outras perguntas e adotar uma abordagem “dialética” (ainda que eu tema um pouco a palavra). Aquelas resoluções, por exemplo, podem ser apenas os ecos longínquos, talvez até invertidos, das lutas de classes no Brasil.































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1 Lincoln Secco, História do PT, São Paulo, Atelier Editorial, 2011.