revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Luis Carlos de MENEZES 1

energia nuclear: sinal amarelo de atenção

 

O mundo foi apresentado à energia nuclear pelas bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki ao fim da Segunda Guerra Mundial, acompanhadas pela escalada armamentista ao longo da Guerra Fria, que resultou em um arsenal capaz de dizimar a espécie humana e que, ainda hoje, está longe de ser desmobilizado. Para se ter uma idéia do remanescente, um recente acordo EUA-Rússia2 reduz o arsenal nuclear de cada um desses países para “somente” 1500 bombas e 800 lançadores de mísseis, deixando sem limite o número de bombas nucleares e aviões lançadores táticos... Para complicar as coisas, a lógica do terror em grande escala, que se projetou mundialmente com a destruição das Torres Gêmeas em Nova Iorque, reforça a preocupação com a proliferação de armas nucleares.

Enfim, como não há perspectiva para um desarmamento nuclear global, que demandaria uma ordem mundial ainda fora de cogitação nesse começo de século 21, persistem os riscos relacionados à existência de muitas ogivas nucleares em condição de lançamento, cuja segurança em geral se desconhece, ou à possibilidade de desvios de componentes de artefatos nucleares, por venda ou roubo devido a eventual displicência. Não estamos mais no tempo do telefone vermelho, que ligava o Kremlin à Casa Branca para evitar surpresas, e, também, a sociedade civil está mais atenta a questões ambientais. Diferentemente do período da divisão polar do mundo, são tensões regionais, étnicas e sectárias as que hoje mais preocupam. De toda forma, enquanto não for possível um desarmamento global, ainda que não esteja acesa a luz vermelha de perigo iminente, no que se refere à possibilidade de uso agressivo de artefatos nucleares, é bom que se mantenha permanentemente aceso o sinal amarelo de atenção.

Por razões bastante diferentes, o uso pacífico da energia nuclear está atualmente sob atenção. No início, esse uso era restrito aos países que também dominavam a tecnologia para produzir bombas, mas, ao longo da segunda metade do século passado e, com correspondentes salvaguardas associadas ao risco de desvio de material físsil, ele deu origem a uma indústria energética também exportadora. Desde o começo, essa indústria foi vista com desconfiança por uma parcela expressiva de ambientalistas, menos por conta de sua relação com a produção de bombas, mas especialmente pelo compreensível temor do risco da contaminação de qualquer forma de vida quando exposta a altas doses de radiações ionizantes.

A militância antinuclear já foi muito expressiva, especialmente na Europa até há algumas décadas, mas a desconfiança popular com relação a essa energia tem oscilado e, há algum tempo, houve até mesmo uma relativa mudança de perspectiva. Um dos marcos dessa mudança foi ter sido dado um beneplácito à energia nuclear como alternativa limpa, relativamente à emissão dos gases estufa,3 o que correspondia a ter se acendido uma luz verde para a produção nuclear de eletricidade. Vários países já aceleravam a ampliação do percentual nuclear em sua matriz energética, particularmente os países com a economia em ascensão – como a China, com muitos reatores em construção –, e as críticas históricas aos riscos dessas instalações haviam pelo menos arrefecido. No entanto, o recente acidente em Fukushima, no Japão, acompanhado ao vivo pela TV em todo o mundo, reacendeu a luz vermelha ao reavivar a memória de acidentes anteriores como os de Chernobyl e de Three Miles Island, provocando recuos em programas nucleares, especialmente na Alemanha, que anunciou uma completa interrupção do uso dessa energia dentro de alguns anos.

Há quem acredite que essa decisão do governo alemão possa vir a ser revertida, pois ela teria sido adotada em função de um revés eleitoral. Além disso, é notório que autoridades governamentais de países como a França, o próprio Japão e os EUA acreditam que, mesmo em médio prazo, seja ilusória a perspectiva de abrir mão da produção nuclear de eletricidade. Não seria imediato substituí-la por formas consideradas ambientalmente menos agressivas, como a energia eólica ou de conversão solar direta, se forem consideradas as técnicas hoje disponíveis e os custos a elas associados. Além disso, especialistas acenam com reatores de nova geração, que estariam sendo concebidos para estarem a salvo dos grandes acidentes, o que tornaria essa modalidade comparável com as demais, em termos de custo, risco e benefício. De toda forma, comparados os prós e os contras, para acompanhar desdobramentos até que se possa estabelecer uma atitude mais definitiva quanto à geração elétrica com uso da energia nuclear poderia ser cautelosamente sinalizada com um farol amarelo de atenção.

Nos últimos sessenta anos, o Brasil tem tido um histórico próprio relativamente aos usos pacíficos ou não da energia nuclear, mas antes de tratar disso, vale a pena refazer brevemente um percurso mais longo, desde os primórdios da compreensão do núcleo atômico até o desenvolvimento de bombas e reatores nucleares, o que também nos permitirá compreender melhor o que são e como operam esses artefatos e equipamentos.

Radiações, bombas, reatores e acidentes

Há mais de um século, notou-se que certos minerais emitem radiações muito penetrantes,4 e seu uso como “projétil” serviu para investigar o interior da matéria e compreender a estrutura de átomos e seus núcleos. Todo átomo passou a ser interpretado como tendo um núcleo densíssimo, composto da combinação de prótons (partículas densas e positivamente carregadas), com nêutrons (partículas densas e neutras). O número de prótons define a carga do núcleo e, portanto, o elemento químico. A soma desse número com o número de nêutrons define a massa do núcleo e, portanto, define o isótopo5 daquele elemento. A neutralidade dos átomos é garantida por elétrons, leves e negativos, que circundam seus núcleos numa coroa responsável pelas propriedades químicas que constitui a maior parte do volume dos átomos.

Um desafio teórico que se apresentava era explicar a estabilidade dos núcleos, pois a forte repulsão elétrica entre prótons tão próximos uns dos outros tenderia a ejetá-los. A solução desse problema foi a descoberta de forças atrativas que só atuam no interior dos núcleos,6 compensando a repulsão elétrica; a estabilidade depende de combinações entre o número de prótons e o número de nêutrons. Em função dessas combinações, há núcleos estáveis e outros naturalmente radiativos, como os vários isótopos do urânio, que emitem aquelas radiações e se transmutam em outras substâncias. Há, ainda, núcleos, como do isótopo de massa 235 do urânio ou do plutônio de massa 239 que, se absorverem mais um nêutron, tornam-se tão instáveis que se rompem em núcleos de duas outras substâncias, radioisótopos mais leves, e emitem outros poucos nêutrons. A liberação de energia em grande escala que vem desse rompimento é muito mais intensa do que a resultante de reações químicas, que envolvem somente elétrons.7 Entre os radioisótopos artificialmente produzidos, alguns podem ser utilizados em equipamentos de diagnóstico e de terapia médica ou em gamagrafia industrial.8

Os isótopos de urânio são todos radiativos, mas o de massa 235 é físsil, assim como o plutônio de massa 239,9 ou seja, se cinde duas outras substâncias quando atingido por um nêutron emitindo outros nêutrons de altíssima energia. Tendo a primeira fissão nuclear sido realizada na Alemanha no alvorecer da Segunda Guerra, sua descoberta já deu partida à corrida nuclear10 e à construção das primeiras bombas atômicas. Quando uma massa de alguns quilos desse urânio ou plutônio for compactada e exposta a uma radiação iniciadora, os nêutrons emitidos e reabsorvidos levam à fissão uma enormidade de núcleos, numa reação em cadeia com brutal liberação de energia. Essa é a bomba de fissão, a bomba A, como a de Hiroshima, de urânio, ou a de Nagasaki, de plutônio. Mais tarde se produziu outro tipo de bomba ainda mais potente, a bomba H de fusão nuclear, em que núcleos de hidrogênio se juntam formando núcleos de hélio. Aliás, é esse tipo de reação que permite que as estrelas, como o Sol, brilhem bilhões de anos. Portanto, a energia solar é de fusão nuclear em sua origem. Essa fusão só ocorre em temperaturas de milhões de graus, de forma que uma bomba H é detonada usando uma bomba A como espoleta.

Já a energia utilizada para a geração elétrica é de fissão, em usinas nucleares que são termoelétricas nas quais um reator nuclear faz a função da caldeira. Nêutrons liberados na fissão transferem energia à água, e o vapor d’água assim produzido impele uma turbina que é propulsora de um gerador elétrico. Os dois tipos correntes dessas usinas são os de água fervente (BWR), como as de Fukushima no Japão, e os de água pressurizada (PWR), como as de Angra dos Reis no Brasil. Nos BWR a água convertida em vapor vai diretamente para turbina, nos PWR a água vinda do reator, a alta pressão e temperatura, troca calor com a água de um circuito secundário, que é convertida em vapor que impele a turbina. Ambos os tipos operam com urânio enriquecido, ou seja, em que foi aumentada para 3%, por meio de ultracentrifugação, a proporção do isótopo de massa atômica 235, que, na mistura isotópica natural, está na proporção de 0,7%. Tal processo, que se chama enriquecimento, para produzir bombas precisa elevar aquela proporção para 80%. Também por isso, um reator jamais explodiria como uma bomba, seus acidentes sendo de outra natureza.

Em muitos países, a eletricidade hoje produzida vem dessas usinas, com um percentual tão expressivo em várias importantes economias – cerca de 80% na França, por exemplo –, que não seria possível sua substituição imediata por outras fontes, sem que houvesse repercussões econômicas em grande escala. A oposição a essas usinas nucleares se relaciona tanto a seus riscos ambientais contínuos quanto à possibilidade de acidentes maiores, e a sua defesa envolve especialmente interesses econômicos – mas por vezes também estratégicos – já que o domínio do ciclo do combustível, em princípio, também qualifica para a produção de artefatos bélicos.

Sob certo aspecto, o impacto ambiental regular da indústria nuclear energética poderia ser comparado ao do uso de combustíveis fósseis. Em ambos os casos, atmosfera e hidrosfera são expostas aos resultados de uma extração mineral da litosfera, com repercussões sobre a biosfera. No caso dos combustíveis fósseis, queima-se, em décadas, o resultado da fotossíntese de muitos milhões de anos, resultando em aumento expressivo dos chamados gases estufa, que refletem para o solo a radiação solar que seria devolvida ao espaço, aumentando assim a temperatura média do planeta com danos conhecidos ou imagináveis. No caso nuclear, retira-se da litosfera minérios que expõem a atmosfera e a hidrosfera a diferentes tipos de contaminação radiativa, e nos reatores acumulam-se substâncias radiativas artificiais, cuja duração (meia-vida) depende de seu grau de atividade. O tempo de periculosidade pode variar de minutos ou horas a milhares de anos, exigindo assim armazenamento prolongado e criterioso de rejeitos, e não existe proposta definitiva para sua disposição segura em longo prazo.

O dano para a vida devido a radiações nucleares se deve principalmente ao fato de alterarem as ligações moleculares das informações genéticas, sendo cancerígenas ou letais dependendo da dose. Além disso, rejeitos físseis, como de plutônio 239 ou sobras do urânio 235, exigem supervisão na sua disposição ou no re-processamento para seu re-uso energético, por conta de sua potencial aplicação militar. Os usos medicinais e industriais de radiações e equipamentos nucleares não são contestados quanto a seus propósitos e procedimentos, mas, os radioisótopos para tais usos, produzidos em reatores nucleares dimensionados para esse fim, exigem cuidados especiais em seu transporte, utilização e posterior disposição. Uma comparação de escala entre as quantidades envolvidas nos equipamentos de usos médico e energético pode ser feita em termos de massa, envolvendo desde algumas gramas, em um caso, a quilos ou toneladas, em outro.

Os grandes acidentes em usinas de potência têm basicamente uma única causa, que é a interrupção na refrigeração do reator11 pela falta de circulação de água para retirar o calor produzido, pois a radiatividade das pastilhas contendo urânio, uma vez iniciada, não pode ser interrompida. Mesmo quando esses elementos exauridos, tendo perdido eficácia, precisarem ser substituídos, continuam com alta atividade e precisam ser mantidos por muito tempo em piscinas permanentemente refrigeradas, geralmente no próprio edifício do reator. O aquecimento da água de operação continua a ocorrer em qualquer circunstância, de forma que “desligar” o reator exige continuar a refrigerá-lo, além de interpor substâncias que parcialmente absorvam nêutrons. Caso contrário, a pressão subiria levando ou à liberação de material radiativo para a atmosfera, de forma gradual, se controlada, ou, o que é pior, de forma explosiva, com a ruptura do próprio reator ou das paredes de contenção.

De diferentes formas e níveis de gravidade, algo assim aconteceu nos reatores em Three Miles Island nos EUA em 1979, em Chernobyl na então União Soviética. hoje Ucrânia, em 1986, e em Fukushima, no Japão nesse ano de 2011. O primeiro, em Three Miles Island, era um PWR que teve o circuito primário principal desativado quando o circuito de refrigeração de emergência deveria estar operando, mas não estava. O segundo, em Chernobyl, era um reator moderado a grafite que já era uma sucata irresponsavelmente em operação, quando de seu acidente que vitimou um grande número de pessoas e cuja emanação radiativa alcançou países ao norte da Europa. Foram dois casos de problemas técnicos agravados por erro humano ou negligência.

Já o terceiro e mais recente grande acidente, um BWR com refrigeração de emergência movida por unidade a diesel, teve sua operação automaticamente desligada por conta do terremoto, mas seu circuito de refrigeração de emergência foi inutilizado pelo tsunami subseqüente. Nesse caso, foi um dimensionamento insuficiente da prevenção de incidentes geológicos que resultou em algumas mortes reconhecidas e em graves danos humanos e materiais ainda não de todo avaliados, certamente mais altos do que os recursos que aquelas usinas teriam gerado ao longo de sua vida útil.

O sentido dessa digressão “científica” neste texto é a dificuldade que, na falta dela, seria explicar a correlação entre o bélico e o energético, em termos do enriquecimento do urânio, ou de se discutir a diferença entre os riscos ambientais das indústrias nucleares e petrolíferas, ou ainda se compreender o que foram de fato as grandes acidentes até hoje registrados.

A energia nuclear no Brasil

É indiscutível que o interesse brasileiro na energia nuclear, manifestado já nos anos 1950, teve originalmente motivação estratégica e militar. Isso estimulou o fomento à pesquisa científica, já que a própria criação do Conselho Nacional de Pesquisas, O CNPq, não foi independente daquela motivação.12 Esse histórico não difere muito do ocorrido em outras nações, como os EUA, onde as forças armadas foram, ao longo de décadas, uma das principais financiadoras do desenvolvimento científico, não somente, mas até especialmente na área nuclear.

No caso do Brasil, ao lado da pretensão de se afirmar potência – o que por muito tempo foi sinônimo de potência nuclear – havia igualmente uma disputa por uma hegemonia continental com a Argentina, igualmente interessada em desenvolver bombas A. Mantidas as proporções quanto às tensões, essa disputa lembrava outras de caráter regional, como entre a Índia e o Paquistão, que acabaram por desenvolver suas armas, apoiadas aberta ou veladamente pelos protagonistas da guerra fria (a Índia mais alinhada com a União Soviética e o Paquistão mais com o Ocidente). No nosso caso, décadas depois, antes que essas armas tivessem sido produzidas, uma mobilização da cidadania promovida pela comunidade científica acabou impondo maior sensatez, pois o Brasil, além de signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e de protocolos adicionais, incluiu, em sua Constituição de 1996, uma proibição ao desenvolvimento ou uso daqueles artefatos. Essa afirmação de princípio daria hoje condição para efetivo engajamento brasileiro em prol de um desarmamento nuclear global. Isso ainda não acontece, mas ainda pode vir a integrar uma nova política externa brasileira, quando e se nosso prenunciado crescimento econômico se ampliar, dando mais consistência a pretensões de integrar o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.

A política nuclear energética no Brasil já se iniciou nos anos 1960. As duas usinas nucleares em operação há algumas décadas, Angra I, comprada dos EUA nos anos 1960, e Angra II, comprada da Alemanha nos anos 1970 (assim como uma terceira Angra III também alemã e adquirida na mesma época e só agora em construção), todas concentradas em Angra dos Reis, no litoral do sudeste, foram adquiridas por decisões de governos militares em regime de exceção. Também por isso não se pode excluir que ainda houvesse alguma equivocada ressonância com intenções de natureza estratégica, até porque a compra dessas usinas não se baseava em perspectiva consistente de crescimento da demanda de eletricidade já que o parque hidrelétrico na época ainda estava em grande medida inexplorado. Vale lembrar que, da dezena de usinas previstas há mais de trinta anos no acordo nuclear com a Alemanha, apenas uma delas foi construída e a segunda somente agora se instala. O panorama atual pode sofrer mudanças a médio ou longo prazo, mas não há argumento para se priorizar agora essa fonte de energia, nem para se abrir mão dele, em definitivo, consideradas as potencialidades e as perspectivas ainda muito em aberto.

Expressivamente dotado de recursos renováveis hídricos ou de biomassa, e de novos campos petrolíferos já prospectados, o Brasil dispõe hoje de matriz energética favoravelmente equilibrada e da possibilidade de mantê-la assim, fazendo um balanço de custo, risco e benefício das várias fontes e cotejando demandas econômicas e preocupações ambientais, antes de se optar para incursão mais intensa na geração nucleoelétrica. Já se anunciou, há alguns anos, o domínio do ciclo do combustível, pelo menos em escala piloto, no contexto de projeto da Marinha, que está interessada na construção de submarinos nucelares e, mais recentemente, além da terceira usina em construção, tem-se falado em ampliar expressivamente o parque nuclear brasileiro que, hoje, supre em torno de 2% da demanda energética.

Na realidade, faltando competência para a construção autônoma de reatores de potência, uma ampliação em curto prazo do parque energético nuclear implicaria simples compra de reatores, produzindo mais dependência, como já aconteceu no passado. E mesmo no que concerne ao processamento de urânio, a despeito de ter expressivas reservas de minérios, o Brasil ainda importa todo o combustível nuclear para as duas usinas e até mesmo os radioisótopos para uso médico e industrial.

Por isso, um passo que responsavelmente deveria ser dado nos próximos anos seria a construção autônoma, ou preferencialmente em consórcio solidário, de um reator multipropósito, para a produção de radioisótopos e para a pesquisa científica. Assim, seria ampliada a qualificação tecnológica nacional no setor, para as diferentes finalidades que possam vir a ser consideradas a médio prazo, competência inclusive para evitar maiores preocupações relativas à segurança nuclear. Aliás, o perigo da fiscalização insuficiente na operação e na disposição de equipamentos nucleares já nos foi dramaticamente alertado por um trágico acidente ocorrido em Goiânia há pouco mais de duas décadas, com uma unidade de radioterapia desativada irresponsavelmente abandonada em um depósito de sucata comum.

Como já dito, instalações médicas e industriais que fazem uso de tais equipamentos ou dispositivas demandam contínuo cuidado específico, tanto quanto instalações energéticas nucleares. O que mais preocupa no caso brasileiro é o fato de, ignorando orientações da Agência Internacional para a Energia Atômica e apelos da comunidade científica, o mesmo órgão governamental que promove o fomento da energia nuclear, a Comissão Nacional de Energia Nuclear, CNEN, também cuida da segurança, do licenciamento e da fiscalização de todas as instalações e equipamentos nucelares. Já há consciência de que isso precisa ser mudado, até mesmo com afirmações oficiais no sentido da criação de agência autônoma de regulação e fiscalização do setor, mas o impasse se posterga anos a fio, por obstáculos de natureza política e por conta de interesses corporativos.

Também no Brasil, o acidente nuclear de Fukushima teve perceptíveis repercussões. Por um lado, houve um recuo relativo ao anúncio de que já se definiam locais para a construção de quatro novas usinas, como etapa para uma ampliação expressiva no percentual nuclear da matriz energética brasileira. Por outro lado, ganharam evidência pública e aceleraram-se iniciativas para aperfeiçoamento na segurança das instalações em operação em Angra dos Reis. Sendo região praiana cercada de encostas sujeitas a deslizamento, o que inspira mais cuidado é a hipótese de impacto nos equipamentos das usinas e/ou de obstrução da rodovia Rio Santos, que seria a principal rota de escape em caso de acidente. Os costumeiros argumentos de improbabilidade foram relativizados, tendo em vista a convergência de fatores que agravaram o acidente na costa do Japão. Assim, renova-se a análise à segurança, inclusive no que concerne ao sistema suplementar de refrigeração, e também já se estão provendo rotas alternativas de escape, por mar.

Para o futuro, a determinação de se desenvolver ou não essa indústria mais expressivamente dependerá de uma variedade de fatores, entre os quais a continuidade e a ampliação do crescimento econômico, que certamente pode condicionar uma demanda bem maior do que a atual. Mas também deverá ter-se em conta a evolução tecnológica e os custos relativos das várias fontes, e isso não se definirá simplesmente dentro de nossas fronteiras, mas mundialmente, como será apontado a seguir.

Perspectivas para a energia nuclear no Brasil e no mundo

Previsões de qualquer natureza devem, nesse momento, levar em conta uma crise econômica em pleno curso, expondo, há alguns anos, fragilidades do sistema financeiro internacional e envolvendo diretamente os principais blocos de nações em suas especificidades: nos EUA o imbróglio político-partidário impede políticas de estado para alavancar retomada no crescimento e geração de empregos; na Europa a articulação franco-alemã se revela insuficiente para lastrear o endividamento de nações mal equilibradas em seu mercado comum; ao lado dos tigres asiáticos, que gravitam as economias centrais, no Japão acidentes geológicos sacodem uma condição já endêmica de estagnação; na China e na Índia, um mercado interno em franco crescimento minimiza mas não evita o impacto da diminuição das exportações e, mantidas as proporções, o Brasil também recebe impactos da crise com alguma elasticidade. De toda forma, o desenrolar dessa situação condicionará, arrefecendo por algum tempo, os investimentos em infra-estrutura e, por conseguinte, na energia nuclear, o que dará mais tempo a outros desenvolvimentos.

Há um número razoável de usinas em construção, cujas obras não deverão ser interrompidas, especialmente na China, ainda que eventualmente tenham itens de segurança revistos no ambiente pós-Fukushima. Haverá também um esmaecimento da memória do acidente, já verificado nos casos de Chernobyl e Three Miles Island, após o que a lógica econômico-financeira voltará a predominar, quando a crise internacional ceder e der lugar a eventual novo ciclo de crescimento da demanda energética. Mas esses são elementos circunstanciais, ao lado dos quais será preciso acompanhar desenvolvimentos energéticos intrínsecos. Por exemplo, se for efetivada a promessa de reatores de quarta geração, que estariam livres das situações responsáveis pelos grandes acidentes, eles serão cotejados, por exemplo, com conversores de energia solar e eólica cujos custos relativos se pretende diminuir, intenção que poderá ser realizada a partir da decisão alemã de descontinuar sua geração nuclear. Quanto ao Brasil, numa economia globalizada, não há qualquer razão para se duvidar que isto venha a acompanhar as tendências mundiais em sua política energética e nuclear.

Como conclusão, pode ser dito que, a curto prazo, as perspectivas da energia nuclear terão sua linha de continuidade influenciada, mas não truncada, por crises, e, sua superação, por acidentes e sua prevenção. Em um prazo mais longo, mais para o final deste século, digamos, será preciso considerar outras possibilidades: do lado tecnológico, seria ao menos imaginável que se alcançasse o controle da fusão nuclear, uma fonte de incrível quantidade de energia não produzindo nem utilizando radiatividade; do lado social, não custa sonhar com uma reconfiguração global de políticas socioambientais em que melhor distribuição e racionalização apontem para menos energia, não mais energia. A médio prazo, são ainda incertas as alternativas econômicas e tecnológicas, ainda duvidosas as garantias de segurança, e será preciso avaliar cada passo a cada momento: sinal amarelo de atenção.































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ilustração: Rafael MORALEZ






1 Luis Carlos de Menezes, físico e educador na Universidade de São Paulo, atualmente preside a Comissão de Acompanhamento da Política Nuclear na Sociedade Brasileira de Física.

2 Acordo START (Sigla em inglês para Tratado de Redução de Armas Nucleares) renovado em abril de 2010 entre os governos americano e russo, para a desativação de parte do arsenal nuclear de ambos os países.

3 James Lovelock, intelectual ambientalista famoso como autor da hipótese Gaia - ou seja, da idéia metafórica de considerar o planeta Terra como um organismo vivo, em 2004 - apontou a energia nuclear como alternativa mais recomendável do que combustíveis fósseis para a geração elétrica, tendo em vista a preocupação central com a geração de gases estufa, que contribuiriam para o aumento da temperatura média do planeta.

4 Já no início do século 20, Ernst Rutherford as denominou, pela ordem de ocorrência, como radiações alfa beta e gama. Mais tarde, elas foram identificadas como sendo: alfa, um "pacote" com dois prótons e dois nêutrons, como o núcleo do hélio; beta, elétrons de alta velocidade; e gama, radiação eletromagnética de altíssima freqüência.

5 Isótopo, do grego "isótopos", ou seja no mesmo lugar, indica elementos quimicamente equivalentes, portanto, que estão no mesmo lugar da tabela periódica, ainda que tenham massa distinta.

6 Hidekyi Yukawa concebeu uma força atrativa que atuaria no interior do núcleo, entre prótons e nêutrons, com base na troca de partículas chamadas mésons.

7 Ilustra essa diferença o fato de o poder destrutivo da reação de alguns quilos em um artefato nuclear ser dado em megatons, ou seja, milhões de toneladas de dinamite.

8 Processo de radiografia de peças metálicas utilizando raios gama.

9 O plutônio de massa 239 é produzido, intencionalmente ou não, em reatores, pela transmutação do isótopo mais freqüente e não físsil do urânio, o de massa 238, quando esse absorve um dos nêutrons resultantes da fissão do isótopo físsil de urânio, o de massa 235.

10 Em 1938, Otto Hahn, realiza a primeira fissão, quatro anos depois, nos EUA começa a operar o primeiro reator, seguido do Projeto Manhatann, sob a coordenação de Robert Oppenheimer, que produz as primeiras bombas A.

11 A sigla desses acidentes é LOCA, da expressão em inglês para acidente de perda de refrigeração.

12 O Almirante Álvaro Alberto foi talvez a figura pública mais importante em iniciativas científicas e militares naquele período, tendo chegado a promover a importação de ultra-centrífugas, que acabaram sendo literalmente emparedadas décadas a fio, em função do veto norte-americano a seu uso e da ascensão que o governo dos EUA tinham sobre o do Brasil.