revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Eduardo JORGE & Marcela VIEIRA

em torno do crânio:
uma leitura para o poema
‘ó crânio’ de georges bataille

 

Paul Richer (1849-1933), célebre médico, professor, escultor e desenhista francês foi um dos alunos e colaboradores de Jean-Martin Charcot na Salpêtrière.[i] Seus desenhos e ilustrações de diversos casos de epilepsia histérica contribuíram para um testemunho visual dos casos clínicos diagnosticados por Charcot no nomeado e referido hospital. Na condição de professor de Anatomia Comparada na Escola de Belas Artes, Richer preocupava-se com as más-formações, ou seja, com o sintoma resultado de um desvio da formação anatômica ideal. Georges Didi-Huberman dedica a primeira parte de Ser crânio[ii] ao aluno-assistente de Charcot, mais precisamente a suas observações sobre a caixa craniana, publicadas em 1890 no livro Anatomie artistique.


Essa caixa que é o crânio, estrutura ovóide irregular, seria a responsável pelo alojamento do encéfalo, o órgão que, por sua vez, é o responsável pelo pensamento. A noção da anatomia artística de Richer é criticada por Didi-Huberman no que diz respeito à apresentação da caixa craniana; segundo ele, Richer enfatiza apenas a exterioridade da caixa óssea, inferindo assim um sistema estrutural cuja função é proteger a matéria mole do saber. Segundo o filósofo e historiador de arte Didi-Huberman, “Paul Richer simplesmente esquecia, diante da sua caixa craniana, a questão enunciada em todo cofre mágico, todo estojo, todo porta-joias, e ainda mais em todo órgão côncavo, em todo lugar vital: a questão do interior, a questão das dobras” (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 19).


O filósofo defende que para percorrer o interior do crânio e compreender suas dobras, composição e constituição visual, faz-se necessário o contato táctil com o “objeto”. E, ainda assim, nem mesmo o tato seria capaz de apreender os mistérios do pensamento; a aparência exterior, clara e óssea, sempre vai guardar seus obscuros enigmas. Mesmo partindo de Paul Richer, isto é, de um anatomista de observações descritivas de desvios da forma, ou como disse Didi-Huberman, da feiura sintomal, a leitura do crânio vai-se transformando quando se pensa em sua apresentação pela arte. A arte, afinal, aborda os fatos do mundo a partir de um ponto de vista outro, que não é o da ciência, e não pretende atuar no plano de verdades e demonstrações. Didi-Huberman, ao pensar a atuação dos artistas nesse aspecto, diz que “os artistas, sem dúvida não resolvem nenhuma das questões deste tipo. Pelo menos, deslocando os pontos de vista, revirando os espaços, inventando novas relações, novos contatos, sabem encarnar as questões mais essenciais, o que é bem melhor que acreditar responder a elas”. (Idem, ibidem, p. 36)


Em se tratando de poesia, encontramos na obra de Georges Bataille (1897-1962) versos, narrativas e ensaios de um artista praticamente arqueólogo, com uma investigação que percorre, e adentra, uma paisagem que é cega justamente por seus volumes existentes na obscuridade do interior do crânio.


Ao aproximarmo-nos da leitura craniana de Bataille, somos apresentados a uma espécie de caixa oca. Essa caixa, no entanto, não seria vazia, pois o interior e as dobras do crânio são levados ao limite pelo autor, que, no poema em questão, defende que o crânio é o ânus da noite vazia.


Indo além de uma simples metáfora, Bataille esvazia o crânio daquilo que ele tem de mais precioso – o órgão do saber –, e, comparando-o ao ânus, propõe uma outra anatomia, na qual a cabeça não ocupa um lugar superior, mas ela oculta, deturpa ou altera o ser (“la tête dérobe l’être”). Assim desarticuladas as referências de “alto” e “baixo” do corpo, a cabeça também pode assumir uma localização “baixa”, depreciada; nessa condição, ela estaria deslocada de sua função de intelecto. Encontram-se assim, em “O crânio”,[iii] a noção de interior preconizada por Didi-Huberman e os limites da experiência humana, conceito tão caro e fundamental ao erotismo de Bataille.































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[i]Importante hospital psiquiátrico, conhecido sobretudo pela prática e pesquisa da hipnose.

[ii] Didi-Huberman, Georges. Ser crânio. Lugar, contato, pensamento, escultura. Belo horizonte: com arte, 2009. Trad. Vera Casa Nova.

[iii] O poema foi encontrado em um conjunto de notas e fragmentos dispersos um pouco antes da Segunda Guerra. Seu estilo pode ser aproximado aos inéditos de L’Archangélique (mais ou menos outubro de 1943 – abril de 1944).