revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Isaac BÁBEL

 

tradução: Cecília ROSAS

di grasso

 

Eu tinha 14 anos. Pertencia ao destemido corpo de cambistas do teatro. Meu patrão era um vigarista com um dos olhos sempre semicerrado e enormes bigodes de seda. Chamava-se Kólia Chvartz. Eu fui parar em sua vida naquele ano infeliz em que a ópera italiana foi à bancarrota em Odessa. Dando ouvidos aos resenhistas de jornal, o empresário não assinara contrato com a turnê de Anselmi e Tito Ruffo[i] e decidira limitar-se a uma boa companhia. Foi castigado por essa decisão, faliu, e nós quebramos com ele. Para consertar as coisas nos prometeram Chaliapin,[ii] mas Chaliapin cobrou três mil por apresentação. No lugar dele, veio o ator trágico siciliano Di Grasso com sua trupe. Eles chegaram ao hotel em carroças atulhadas, cheias de crianças, gatos e gaiolas onde saltitavam pássaros italianos. Depois de examinar esse acampamento cigano, Kólia Chvartz disse:


— Meninos, essa mercadoria não presta.


Após a chegada, o ator trágico encaminhou-se para a feira com uma sacolinha de pano. À noite — com outra sacolinha – apareceu no teatro. O primeiro espetáculo mal juntou cinquenta pessoas. Cortamos o preço das entradas pela metade, ninguém se interessou.


Apresentaram mais tarde um drama popular siciliano , história tão corriqueira quanto a sucessão entre dia e noite. A filha de um camponês rico noivava com um pastor. Ela permaneceu fiel a ele até o momento em que chegou da cidade o jovem filho do senhor com seu colete de veludo. Conversando com o recém-chegado, a menina soltava risinhos despropositados e se calava nas horas erradas. O pastor, ao ouvir os dois, revirava a cabeça como um pássaro agitado. Durante todo o primeiro ato ele se espremia contra paredes, fugia para algum lugar com suas calças esvoaçantes e, voltando, olhava para todos os lados.


— Caso perdido — disse Kólia Chvartz no intervalo. — Isso aí é mercadoria para Krementchug [iii]...


O intervalo fora feito para dar à moça tempo de amadurecer para a traição. Não a reconhecemos no segundo ato — estava intolerante, distraída e, às pressas, devolveu ao pastor a aliança de noivado. Então, ele a levou para uma estátua miserável e colorida da Santa Virgem e disse no seu dialeto siciliano:


Signora — falou com sua voz grave e virou de costas —, a Santa Virgem quer que você me escute. Para Giovanni, moço da cidade, a Santa Virgem dará tantas mulheres quantas ele quiser; já eu não preciso de mais ninguém além de você, signora. A Virgem Maria, nossa imaculada protetora, dirá a mesma coisa se você perguntar a ela, signora...


A moça estava de costas para a estátua de madeira pintada. Escutando o pastor, batia um pé impacientemente. Nesta terra — ai de nós! — não há uma só mulher que não seja insensata nos instantes decisivos de seu destino... Ela fica só nestes momentos, sozinha, sem a Virgem Maria, e nem lhe pergunta nada.


No terceiro ato, Giovanni, moço da cidade, enfrentou seu destino. Estava no barbeiro do vilarejo, suas fortes pernas masculinas esparramadas no proscênio; as dobras de seu colete brilhavam sob o sol da Sicília. O palco mostrava uma feira no povoado. No canto mais afastado, via-se o pastor. Estava de pé, calado em meio à multidão despreocupada. Trazia a cabeça abaixada, em seguida a levantou; sob o peso de seu olhar ardente e atento, Giovanni pôs-se a se remexer, começou a agitar-se na poltrona e, depois de empurrar o barbeiro, levantou-se com um salto. Com a voz entrecortada, exigiu que o policial eliminasse as pessoas mal-encaradas e suspeitas da praça. O pastor — Di Grasso o interpretava — ficou pensativo, depois sorriu, ergueu-se no ar, voou através do palco do teatro municipal, aterrisou sobre os ombros de Giovanni e, depois de cortar sua garganta com os dentes, grunhindo e olhando de esgelha, pôs-se a sugar o sangue da ferida. Giovanni desmoronou e a cortina — fechando-se ameaçadora e silenciosa — escondeu de nós assassino e assassinado. Sem perder tempo, nos atiramos para o caixa da Travessa do Teatro que deveria ser aberto no dia seguinte. À frente de todos voava Kólia Chvartz. Ao amanhecer, o “Notícias de Odessa” informava aos poucos que estiveram no teatro que haviam visto o ator mais extraordinário do século.


Nessa passagem pela cidade, Di Grasso representou em nosso teatro “ Rei Lear ”, “ Otelo ”, “ A morte civil” e “O parasita” de Turguêniev, afirmando em cada palavra e movimento que no furor da nobre paixão há mais esperança e justiça do que nas infelizes regras do mundo.


As entradas para estes espetáculos saíam por um valor cinco vezes mais alto. À caça de cambistas, os compradores os encontravam na taverna — afogueados, vociferantes, vomitando blasfêmias inofensivas.


Uma corrente de calor rosa e empoeirado foi injetada na Travessa do Teatro. Merceeiros de chinelos de feltro trouxeram para a rua garrafões verdes de vinho e barris de azeitonas. Diante dos armazéns, macarrão cozinhava em tinas de água espumosa, e seu vapor se dissolvia nos céus distantes. Velhas calçando botas masculinas vendiam conchas e lembrancinhas e, aos berros, corriam atrás de compradores hesitantes. Judeus ricos com suas barbas bifurcadas e bem penteadas chegavam ao Hotel do Norte e batiam baixinho nas portas de morenas gorduchas de bigodinho — atrizes da trupe de Di Grasso. Todos estavam felizes na Travessa do Teatro, menos uma pessoa, e essa pessoa era eu. Naqueles dias, a morte me rondava. A qualquer minuto meu pai podia dar a falta de um relógio que eu tomara dele sem autorização e empenhara com Kólia Chvartz. Acostumado ao relógio de ouro e, por ser um homem que bebia vinho da Bessarábia em vez do chá da manhã, Kólia, mesmo depois de receber seu dinheiro de volta, não podia decidir-se a devolver-me o relógio. Assim era sua personalidade. Em nada diferente da personalidade do meu pai. Espremido entre esses dois homens, eu via como passavam voando por mim os arcos da felicidade alheia. Não me restava outra coisa a não ser fugir para Constantinopla. Já estava tudo combinado com o segundo mecânico do vapor “Duke of Kent” mas, antes de lançar-me ao mar, decidi despedir-me de Di Grasso. Ele interpretava pela última vez o pastor que se desprendia do chão por obra de uma força incompreensível. Ao teatro compareceram a colônia italiana liderada por seu cônsul careca e esbelto, gregos meio encolhidos, os estudantes barbudos do externato cravando fanaticamente os olhos em um ponto que ninguém via, e Útotchkin, [iv] com seus braços longos. Até Kólia Chvartz trouxe consigo a esposa envolta em um xale violeta com franjas, uma mulher apta a ser granadeira e comprida como a estepe, com uma carinha amassada e sonolenta na ponta. Quando caiu o pano, estava banhada em lágrimas.


— Seu miserável — disse ela para Kólia saindo do teatro —, agora você está vendo o que é amor...


Pisando forte, madame Chvartz andava pela rua Lanjerónovskaia; de seus olhos de peixe corriam lágrimas, em seus ombros gordos estremecia o xale de franjas. Arrastando os pés masculinos, sacudindo a cabeça, pela rua ela enumerava ensurdecedoramente todas as mulheres que viviam bem com seus maridos.


— Minha pombinha — é o que dizem esses maridos para suas esposas —, minha joia, meu benzinho...


Kólia, domesticado, caminhava ao lado da mulher e soprava baixinho os bigodes de seda. Por hábito, eu andava atrás deles e soluçava. Calada por um instante, madame Chvartz escutou meu choro e virou-se para trás.


— Seu miserável — disse para o marido, arregalando os olhos de peixe —, que eu não viva até minha boa hora se você não devolver o relógio para esse menino.


Kólia congelou, abriu a boca, depois voltou a si e, aplicando-me um beliscão dolorido, enfiou o relógio de banda nas minhas mãos.


— O que ganho dele? — lamentava-se inconsolavelmente a voz grossa e chorosa de madame Chvartz, afastando-se. — Hoje, coisas animalescas; amanhã, coisas animalescas... Eu te pergunto, miserável, quanto tempo uma mulher aguenta esperar ?


Chegaram até a esquina e dobraram na rua Púchkin. Apertando o relógio, fiquei sozinho e de repente, com uma clareza que nunca tinha experimentado até então, vi as colunas da Duma estendendo-se para o alto, a folhagem iluminada na alameda, a cabeça de bronze de Púchkin brilhando com o pálido reflexo da lua, vi pela primeira vez o mundo à minha volta como era de fato, — silencioso e de uma beleza indescritível.




Referência bibliográfica:


•  BÁBEL, I. Конармия; Одесские рассказы Moscou: Editora Эксмо, 2010. pp. 411-415.


•  ——. Red Cavalry and other stories. Edição e notas, Efraim Sicher. Tradução e introdução,  David McDuff. Londres: Penguin Classics, 2005.


•  FREIDIN, Gregory. “Fat Tuesday in Odessa: Isaac Babel's "Di Grasso" as Testament and Manifesto”. Russian Review, 40 (1981) pp. 101-121.


•   www.stanford.edu/ ~gfreidin/ Publications/ babel/ freidin_babel _di_grasso_1981.pdf































fevereiro #

3



[i]Grandes cantores de ópera da época. Titta Ruffo – transliterado “Tito” no conto – era barítono, e Giuseppe Anselmi, tenor.

[ii]Também cantor, considerado o melhor baixo russo na passagem do séc. XIX para o XX.

[iii]Cidade no interior da Ucrânia.

[iv]Aviador ucraniano.