revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Richard Theisen SIMANKE [i]

a arte da leitura e os efeitos do pensar: uma introdução ao movimento do pensamento de luiz roberto monzani

 

Leer, por lo pronto, es una actividad posterior a la de escribir:
más resignada, más civil, más intelectual.

Jorge Luís Borges (1935)

 

I


Estamos num momento da evolução da filosofia acadêmica no Brasil em que esta, tendo atingido certa maturidade, certo grau de desenvolvimento institucional e certa massa crítica de pesquisadores em atividade, começa a tomar consciência de si mesma, a perceber as singularidades que lhe conferem identidade e a afirmar-se como uma potência intelectual relativamente autônoma, pouco a pouco se libertando da mera importação de modelos ou modismos e apostando na inserção internacional efetiva, numa posição de interlocução não necessariamente subordinada. É claro que esse processo está apenas no começo e não acontece uniformemente em todas as áreas da pesquisa filosófica e em todo o variado cenário institucional nacional. Mas uma parte do mesmo consiste na intensificação do debate doméstico e do comentário - crítico ou analítico - do trabalho dos filósofos brasileiros e da atenção à história recente da filosofia brasileira que conduziu ao seu estado atual. Em outras palavras, cresce a percepção de que é também digno e justificável discutir e escrever sobre o que se faz aqui. É dentro desse contexto que se deve entender essa tentativa de compreender e apresentar as linhas mestras do trabalho de Luiz Roberto Monzani, isto é, como parte do processo de reconhecimento de que o trabalho filosófico que se faz no país merece o esforço intelectual de compreendê-lo, analisá-lo e interpretá-lo, assim como ponderar sobre seus efeitos na nossa comunidade acadêmica em formação.

Jorge Luis Borges costumava definir-se mais como um leitor do que como um escritor e considerar toda a sua literatura como uma espécie de tributo às obras que aprendera a ler como ninguém[ii] - em outras palavras, entendia que a leitura era um prolongamento e aperfeiçoamento da escrita, e não o contrário, como se poderia pensar à primeira vista. É claro que essas manifestações serviam para marcar certa posição estética diante da criação literária e não se reduziam a uma manifestação retórica de falsa modéstia. Elas tampouco prejudicaram em nada o seu reconhecimento como um soberbo escritor. Mutatis mutandis, essa tomada de posição pode servir como ponto de partida para aproximarmo-nos do pensamento filosófico de Luiz Roberto Monzani. Aqueles que o conhecem de perto sabem que Monzani é um leitor voraz, que lê muito mais do que escreve (e que escreve muito mais do que publica, diga-se de passagem). Essa constatação elementar não nos impede de apreciar a sua sofisticação como pensador e como intérprete. Mas ela sugere que uma aproximação desde o ponto de vista de sua concepção do alcance e da significação filosófica da ideia  mesma de leitura não seria de todo despropositada. Uma tentativa de circunscrição dessa concepção - muito limitada e preliminar, é verdade[iii] - é o objetivo dessa introdução, assim como um breve comentário sobre quais possam ser os seus efeitos sobre a prática e a concepção da filosofia.[iv]


II


Como já foi discutido em outros lugares (SIMANKE, 2007; 2010, por exemplo), a filosofia da psicanálise - área de pesquisa e disciplina filosófica de cuja fundação na filosofia brasileira Monzani participou decisivamente - nasceu, em parte, da necessidade que uma geração de filósofos formados na escola estruturalista de história da filosofia de inspiração francesa sentiu de expandir seus horizontes para além das regras rígidas da metodologia da análise estrutural de textos e reencontrar seu caminho da história da filosofia (assim concebida) para a filosofia propriamente dita.[v] Uma das estratégias mobilizadas para tanto consistiu em aplicar aquela metodologia fora do domínio dos textos clássicos e dos sistemas filosóficos para o qual, stricto sensu, esta tinha sido forjada. Esse movimento confrontou-os com as limitações do estruturalismo, ainda dentro do campo específico da filosofia e antes mesmo que o método fosse exportado para outros ramos do conhecimento como a política, as ciências e a psicanálise. É com essas limitações que Monzani se defronta ainda em seu projeto inicial de dedicar-se à filosofia de Auguste Comte e antes mesmo que este acabasse sendo substituído por Freud.


Com efeito, uma das premissas do estruturalismo era a unidade fundamental da obra.[vi] Daí que este se aplicasse tanto mais facilmente àquelas obras filosóficas fortemente sistemáticas (as Meditações de Descartes, a Ética de Espinosa, etc.), que sintetizavam exemplarmente o pensamento de um autor e o apresentavam como um sistema teórico firmemente cerrado em torno de seus próprios princípios - nisso em que consistiria uma obra, no pleno sentido da palavra. É esta unidade fundamental que a análise estrutural teria por função explicitar, por mais que a mesma se ocultasse por trás de uma pluralidade de enunciados, de tal maneira que o próprio autor, limitado pela sua situação histórica e pela contingência e os acidentes da própria reflexão, poderia perfeitamente ter sido incapaz de percebê-la. Mas ela não escaparia ao filósofo-historiador, colocado na posição de um leitor ideal, situado fora do tempo e capaz, por conseguinte, de expor a racionalidade cristalina da criação filosófica e de purificá-la daquela contingência e daqueles acidentes; no limite, de reescrever a obra clássica com toda a transparência que original não poderia ter tido e tornar-se, assim, inteiramente o seu autor, num sentido muito mais pleno que o do sujeito histórico e empírico que a produzira inicialmente. Prado Jr., por exemplo, procura assim identificar o pressuposto intelectualista embutido no princípio da metodologia estruturalista de que o filósofo é integralmente responsável pelo que formula e seguir suas consequências na direção apontada acima:


Tornar o filósofo responsável por suas teses, no sentido do estruturalismo significa pressupor que o discurso filosófico é integralmente explicitável: em outras palavras é pressupor que é possível dizer tudo. (...) Na passagem que se operou do filósofo ao historiador a única transformação que se pôde observar foi uma multiplicação de rigor, um acréscimo de clareza. O Descartes de Guéroult corresponde exatamente às Meditações de Descartes; trata-se, no fundo, do mesmo livro, mas tal como seria escrito por um Descartes que fosse inteiramente Descartes. Não se trata propriamente de um livro ‘sobre’ Descartes, mas de um livro que retoma a palavra cartesiana, pondo em evidência todos os elos da longa cadeia de razões que até então haviam permanecido na sombra. Descartes é um Guéroult parcial e Guéroult é um Descartes liberto de suas limitações; seu livro preenche todas as lacunas deixadas em branco pelo livro de Descartes (PRADO Jr., 1966/1997, p. 382).


Para cumprir esses objetivos, seria preciso identificar a obra exemplar - o Dom Quixote de cada filósofo[vii] - e a ela dedicar todo o rigor sistemático da análise. Ora, mesmo entre os filósofos clássicos, esta configuração é mais a exceção do que a regra. Assim, Monzani recapitula brevemente, na abertura de seu livro sobre Freud, esse problema que se colocava a quem pensasse consagrar-se ao estudo do pensamento comteano. Como sustentar essa unidade fundamental? Como selecionar a obra exemplar a ser analisada, dentro de uma alternativa marcada, à primeira vista, pela maior heterogeneidade, ao menos segundo certa tradição interpretativa? Como escolher entre o Comte do Cours de Philosophie Positive e o Comte do Système de Politique Positive? É verdade que essa interpretação “dualista” acabou por ser superada, mas apenas pela aplicação de uma análise genealógica que reintroduzia a dimensão histórica e o clássico problema da formação:


‘Qual? Porque eles são dois’: essa era, ao que tudo indica, a tese preliminar assumida e a partir da qual todo projeto de leitura de Auguste Comte, até por volta de 1930, se delineava. Assumida a dualidade, era preciso então escolher entre o Comte do Cours (o sistematizador do saber positivo) e o do Système (o teorizador da religião da humanidade e da sociolatria). Escolha que era feita, evidentemente, em função da respectiva valorização das duas obras e da consequente alocação do ‘bom’ Comte. Só lentamente, a partir da obra de Gouhier e do texto capital de P. Arnaud é que essa questão tomou outra figura (MONZANI, 1989, p. 11).


A expressão “projeto de leitura” foi destacada, nessa passagem, para enfatizar o fato de que há, por assim dizer, uma teoria da leitura pressuposta da abordagem estruturalista (como sugerido acima na indicação de que o método pressupõe um “leitor ideal”), à qual Monzani oporá a sua própria, que constitui o ponto de origem e o cerne de sua visão da filosofia. Podemos recorrer novamente a Prado Jr. (1966/1997) para um detalhamento dessa teoria da leitura, que revela como esta se encontra em continuidade com suas observações anteriores sobre a meta última da análise de fazer coincidir o filósofo e seu historiador numa mesma figura compósita da autoria:


É assim que a explicação pode substituir o texto explicado: os dois textos transmitem a mesma mensagem. O leitor ideal se identifica com o próprio escritor: não há diferença estrutural entre o dizer e o ouvir, entre o ler e o escrever - entre um e outro só há lacunas de compreensão, neste universo em que o Logos foi integralmente objetivado, onde ele é dissecado do ponto de vista ‘neutro’ da argumentação. Em outras palavras, se o discurso é um objeto entre outros, o ler passa a ser a verdade do escrever e o leitor se transforma no único escritor consequente. A leitura é a total explicitação do escrito e o historiador é alguém que, mais paciente do que o filósofo, se dá ao trabalho de pôr a claro as mediações demonstrativas que este se poupou. O filósofo nos transmite uma mensagem e o historiador no-la restitui em sua integridade (PRADO Jr., 1966/1997, p. 381).


A neutralidade da análise estruturalista é apenas aparente, insiste o autor; o acréscimo de rigor pretendido pelo historiador não introduz apenas uma diferença quantitativa - um texto mais detalhadamente explicado do que quando foi escrito -, mas produz uma mudança na natureza do discurso analisado. O discurso metalinguístico do historiador (um discurso sobre o discurso filosófico de alguém) se projeta no mesmo plano do discurso original, se apresenta como se fosse a plena realização de seu projeto filosófico. Essa usurpação e esse curto-circuito entre filosofia e história da filosofia - que tornou possível à segunda fazer passar-se pela primeira - resultam da identificação virtual entre as perspectivas do historiador e do filósofo mencionada acima e têm implicações diretas para a teoria da leitura aí pressuposta e que estamos tentando circunscrever. Prado Jr. pode prosseguir, então, na explicitação dos termos dessa teoria:


A atitude do historiador se apresenta como uma modificação da atitude do leitor comum - que passa a aparecer como ingênuo. Na leitura comum, o leitor se movimenta entre o que o texto diz (do mundo) e o mundo tal como lhe aparece (o mundo do leitor): pois o estilo dessa leitura é o da crítica, a aceitação ou recusa da verdade a que pretende o autor. Em sua leitura ‘modificada’, o historiador cancela o seu próprio mundo e passa a habitar o universo do discurso: além da crítica ou da aceitação, além da pretensão de verdade que habita o texto, resta-lhe descrever objetivamente suas estruturas (PRAD Jr., 1966/1997, p. 383).


Tudo se passa como se, no esforço de encontrar essa concepção alternativa sobre em que consiste uma leitura filosófica, Monzani tenha decidido acirrar as dificuldades: em vez de partir em busca de um sistema filosófico mais adequado à análise estrutural - e a respeito do qual pudesse produzir “a tese de história da filosofia que devia a seus pares”, como diz Arantes (1994, p. 176) a respeito de Bento Prado Jr -, ele optou por dedicar-se ao estudo da psicanálise freudiana. Com isso, cometia uma dupla heresia: em primeiro lugar, a de propor-se a uma tese de filosofia sobre um autor não-filósofo (Freud), o que era raridade então; [viii] em segundo, a de abordar um autor cuja obra costuma ser repartida não em duas, como acontecia com Comte, mas, como o próprio Monzani observa, “em três ou quatro”. Era um pouco como Demóstenes tentando superar suas dificuldades de dicção discursando com seixos na boca. Desnecessário dizer o quanto essa proposta requeria uma ampla reformulação metodológica. É dessa metodologia que Monzani presta contas na ‘Introdução’ de seu Freud e cujas linhas gerais procuramos traçar na continuidade.


Não é de se estranhar, portanto, diante do que se viu até aqui, que o problema de uma leitura filosófica de Freud se formule, desde o início, como uma pergunta pela unidade ou pela pluralidade da obra - ou, dito de outra maneira, como o problema da continuidade ou da ruptura entre os supostos “diversos Freuds”. A originalidade da abordagem empreendida por Monzani está justamente em que ele se recuse, de saída, não apenas a escolher entre um ou outro dos possíveis Freuds (o Freud da metapsicologia ou o da clínica, o Freud neurologista ou o psicólogo, etc.), mas também, ao propor-se como objeto de análise a obra na sua totalidade, recuse-se a escolher entre a tese da continuidade e a tese da ruptura elas mesmas, definindo seu projeto com um trabalho de problematizar ambas, o que será feito mediante os quatro “estudos de caso” que compõem o cerne do livro: a relação entre teoria da sedução e da fantasia, entre o Projeto de uma Psicologia e A interpretação dos sonhos, entre a primeira e a segunda teorias pulsionais e entre a primeira e a segunda tópica. Cada um deles pode ser lido como um estudo individual, mas os quatro, em seu conjunto, convergem para a reflexão e para a solução de um mesmo problema mais geral que lhes confere unidade e que poderia ser formulado da seguinte maneira: em qual dimensão - sincrônica ou diacrônica, estrutural ou genealógica - pode-se compreender isso que chamamos um pensamento? Isso porque a tese da ruptura, levada ao extremo (ou, simplesmente, às suas consequências lógicas), conduziria a considerar o pensamento de Freud como uma pluralidade de fragmentos incomensuráveis entre si, como outros tantos cortes transversais de um processo, em si mesmo inapreensível, e que só poderia ser reconstruído a posteriori pela razão a partir dos instantâneos que se pudessem obter de cada um de seus passos - isto é, de uma análise estrutural em sentido estrito, que os apreendesse e apresentasse como uma rede conceitual sem nenhuma virtualidade, em sua plena inteligibilidade imanente. Por outro lado, a tese da continuidade conduziria a uma abordagem exclusivamente genealógica, pensando a obra como um processo contínuo de elaboração de um mesmo conjunto de pressupostos e ideia s centrais, como se um mesmo organismo teórico se desenvolvesse, crescendo e acrescentando novas partes ao longo das etapas de seu ciclo vital, mas permanecendo sempre idêntico a si mesmo. É por isso que, ao formular a alternativa entre continuidade e ruptura, Monzani imediatamente descarte a possibilidade de uma abordagem evolutiva como estratégia para a solução do problema ou, em outras palavras, recuse que a esta seja uma alternativa satisfatória para as limitações da abordagem estritamente estruturalista:


Poder-se-ia argumentar que é a própria colocação do problema que gera impasse (...) e que, se se observa mais atentamente o conjunto da obra de Freud, assistimos é a um desenvolvimento até um estágio final onde nem tudo é mantido, mas também nem tudo negado. (...) As metáforas evolucionistas são sedutoras, mas problemáticas. Fica-se pensando se, quase sempre, não acabam por mascarar, através de um nome, aquilo mesmo que se pretende resolver. O termo desenvolvimento, por exemplo, é extremamente ambíguo. Em certos momentos, tem uma conotação gradativa evidente, como quando se fala, por exemplo, no desenvolvimento físico de uma criança. Às vezes, parece implicar certas mutações qualitativas, como quando se fala no desenvolvimento da crisálida à mariposa. No primeiro caso, é sempre a figura do ‘mesmo’ que está presente. No segundo, é toda a querela milenar do ‘mesmo’ e do ‘outro’ que se instala (MONZANI, 1989, p. 14).


Em outras palavras, a abordagem evolutiva não resolve o problema, ao situar-se ainda no registro da pura identidade - no qual não se escapa aos paradoxos da análise estrutural que, levada às suas últimas consequências, visaria sempre “reescrever o Quixote”. Ela pode, no máximo, reapresentá-los sob uma nova roupagem devido à ambiguidade do termo “desenvolvimento”, mantendo intacta a alternativa que se pretendia superar: o mesmo e o outro, a continuidade e a ruptura, a unidade e a diversidade. Daí que o trabalho de Monzani não se defina como sendo sobre a estrutura do pensamento de Freud, nem sobre seu desenvolvimento, nem ainda justapondo essas duas dimensões como algo do tipo “gênese e estrutura”, o que seria renunciar à problematização da alternativa que assim continua a se expressar. Ele encontra uma terceira via na noção de movimento enunciada em seu título e que será precisada ao final.[ix] Definido, então, o objeto da análise como o movimento da obra (ou do pensamento de Freud) - e não como desenvolvimento ou estrutura -, é preciso estabelecer a estratégia metodológica do trabalho, já que, com essa opção, a análise de tipo estruturalista e a abordagem genealógica ficaram, por definição, excluídas. É aí que entra a ideia de uma teoria da leitura, cujos princípios e rudimentos Monzani procura ainda situar em sua introdução.


Pois a pergunta que resulta de toda essa problematização, quando aplicada ao objeto imediato de estudo em questão, só pode ser: “Como ler Freud?” (MONZANI, 1989, p. 20).  E respondê-la exige refletir primeiro sobre a ideia mesma de leitura. Assim que, ao defender o direito do filósofo de pronunciar-se sobre o sentido do texto freudiano, frente à reivindicação de exclusividade do psicanalista, é ao caráter discursivo e científico da psicanálise que o autor recorre como argumento, isto é, ao fato de que, ao definir-se como uma forma de conhecimento articulável num discurso teórico, a psicanálise não mais aparece apenas como uma ferramenta de intervenção a requerer uma formação específica para o aprendizado de seu manuseio, mas também como algo cuja compreensão é, em princípio, acessível a qualquer sujeito que se coloque na posição do leitor e, a fortiori, ao filósofo que, mais que ninguém, pode reivindicar a condição de um leitor profissional, mesmo que a concepção de leitura envolvida nessa definição ainda esteja por ser especificada:


Freud insistiu muito neste ponto: a Psicanálise é também uma ciência e, enquanto tal, não pode ser reduzida à relação analítica. Enquanto discurso científico, por mais original que seja, a Psicanálise deve possuir os requisitos mínimos que definem qualquer disciplina científica e, ipso facto, ser passível de uma leitura e de uma interpretação que, de direito, qualquer sujeito pode realizar (MONZANI, 1989, p. 21).


Na verdade, os termos “leitura” e “interpretação”, incluídos como que distraidamente nessa passagem como variantes mais ou menos indiferentes de um mesmo procedimento, configuram uma alternativa metodológica, um par mutuamente excludente, de tal modo que, na continuidade, a sua diferença terá que ser explicitada, e a opção por uma dessas possibilidades de abordagem terá que ser justificada. Monzani remete, então, explicitamente, a Paul Ricoeur a formulação dessa alternativa entre leitura e interpretação filosófica, apresentando quais seriam as razões para optar pela primeira:


Pode-se tentar realizar uma leitura dessa obra ou então uma interpretação filosófica. A interpretação filosófica é um trabalho que pensa a obra de Freud num contexto e numa problemática que o filósofo acredita pertinentes. A leitura de Freud, por outro lado, é um trabalho de análise das ideias, e ela não coloca problemas diferentes daqueles que aparecem no exame das obras de Kant ou de Bonald, por exemplo. Ela exibe as mesmas questões e pode chegar aos mesmos resultados a que chegaram as leituras nesse campo (MONZANI, 1989, p. 21).


Essa justificativa é imediatamente posta em conexão com o conceito de movimento em que, como vimos acima, se concentrava sua estratégia para evitar as armadilhas e superar as limitações e os impasses embutidos nas noções de estrutura e de desenvolvimento. De fato, esse conceito de movimento de um pensamento vai participar decisivamente da definição de leitura que Monzani está em vias de formular:


Nesse sentido, uma leitura de Freud seria a tentativa de reconstrução do movimento de seu pensamento. Reconstrução que não coincidiria necessariamente com uma repetição pura do autor em questão, mas que procuraria explicitar as articulações que comandam a estrutura da obra. Desse modo, afirma Ricoeur, uma leitura de Freud pode pretender o mesmo grau de objetividade que foi atingido, por exemplo, pela história da filosofia (MONZANI, 1989, p. 21).[x]


E a natureza programática dessas considerações metodológicas é explicitada a seguir: “É nesse sentido de leitura de Freud que este estudo deve ser entendido” (MONZANI, 1989, p. 21). Contudo, o argumento mobilizado anteriormente para reivindicar a competência do filósofo para falar de Freud - o de que a psicanálise não se reduz à clínica, mas também se apresenta como um discurso científico - passa a requerer agora esclarecimentos suplementares. É nesse contexto que Monzani recuperará, à sua maneira, certa noção de epistemologia que, nesse momento, servirá para tornar mais precisa a concepção de leitura que pretende formular e aplicar a Freud. O primeiro passo é reconhecer certa problematicidade inerente à proposta de aplicar a uma ciência uma metodologia inspirada na hermenêutica, cujo pressuposto é a autonomia das relações de sentido, ou seja, que a interpretação de um texto não requeira o recurso a qualquer espécie de informação que extrapole o campo do sentido produzido pelas articulações intra e intertextuais. Tratar-se-ia, enfim, de “uma interpretação do sentido pelo sentido” que vai “de um sentido manifesto a um sentido oculto”, tal como o próprio Ricoeur a define na introdução de seu estudo clássico sobre Freud (RICOEUR, 1965). A ciência, ao contrário, coloca problemas que, por definição, extrapolam essa dimensão do sentido: prova validação, verificação empírica, enfim, uma concepção de verdade necessariamente distinta, à primeira vista, de uma noção filosófica de verdade, na medida em que parece implicar a referência a uma realidade de natureza extradiscursiva.[xi] Aí residiria uma diferença irredutível entre o discurso científico e os discursos históricos, literários ou filosóficos aos quais a interpretação hermenêutica se aplica:


Gostaríamos apenas de levantar um problema ao qual Ricoeur não dá muita atenção e que servirá para precisarmos melhor o que estamos entendendo por uma leitura de Freud. A questão é a seguinte: a Psicanálise freudiana tem a pretensão de ser um discurso científico e, como ciência, essa disciplina não colocaria requisitos para sua leitura e interpretação que são diferentes daqueles que são exigidos quando se lê um texto, por exemplo, de filosofia, como a obra de Descartes ou Leibniz? (MONZANI, 1989, p. 22)


A abordagem de tal espécie discurso pertenceria, assim, de direito, a outra área da reflexão filosófica, a saber, a filosofia das ciências, entre cujos objetivos se conta justamente a avaliação da adequação entre as teorias científicas e seus objetos, os quais seriam, por definição, externos a essas teorias, de tal modo que a concepção de leitura como algo que se move exclusivamente no universo dos textos a serem interpretados não encontraria aplicação aqui. Em outras palavras, não se poderia, em princípio, falar de uma leitura de uma teoria científica, da mesma maneira que se fala da leitura de uma narrativa histórica, de um código legislativo, de uma obra literária ou filosófica. A percepção que Monzani tem desse problema se manifesta no fato de que ele vai, explicitamente, abordá-lo da perspectiva da justificativa da possibilidade de uma leitura da ciência:


Acreditamos que esse trabalho é possível e legítimo. Acreditamos também que outro tipo de leitura é possível e legítimo, mesmo quando aborda um discurso científico. Leitura dupla que em nenhum dos casos se confunde com a tarefa [da filosofia das ciências] que acabamos de descrever (MONZANI, 1989, p. 22).


Duas possibilidades de uma leitura da ciência são, então, propostas, ambas definindo-se como maneiras diferentes de reaproximar as teorias científicas dos objetos da interpretação hermenêutica - a história das ciências e a ideia de epistemologia, esta última sendo aquela pela qual nosso autor irá optar. A primeira, ao debruçar-se sobre as genealogias conceituais que deram origem a certo discurso científico, ao retraçar sua rede de influências e descrever o seu desenvolvimento no tempo, recupera as formas narrativas da história, sobre as quais a hermenêutica já tinha comprovado a sua eficiência e sua adequação. A segunda resgata, à sua maneira, certos princípios do método estruturalista em história da filosofia e os aplica às disciplinas científicas como forma de opor-se à maneira de conceber a racionalidade científica que é exemplificada pela filosofia da ciência, à qual Monzani acabou de recusar o direito exclusivo de pronunciar-se sobre a mesma.


Desta maneira configura-se essa outra possibilidade de “leitura da ciência”, distinta da “história das ciências”, mas ainda assim resgatando para a abordagem do discurso científico noções como textualidade e significação, ao mesmo tempo em que coloca entre parênteses o problema da verdade das teorias científicas, pelo menos se essa verdade é concebida em termos de correspondência ou adequação empírica:


Pode-se também (...) tomar um discurso científico e conferir-lhe o ‘estatuto de um texto’, tratá-lo como uma rede, um tecido de significações que vale a pena ser explicitado, comentado, discutido, interpretado. É exatamente nesse sentido que temos a intenção de ler Freud, no qual achamos que uma ‘leitura’ é possível e desejável. Quer dizer, nosso propósito não será, por exemplo, discutir a veracidade da teoria da sedução ou do complexo de Édipo, mas o seu significado e os avatares dessa significação na trama dos conceitos psicanalíticos (MONZANI, 1989, p. 23).


Em seguida, essa perspectiva é inserida no esquema das possibilidades de abordagem do discurso científico que o autor vem traçando, isto é, em relação com a filosofia da ciência - que não consiste propriamente numa leitura ou, ao menos, não se limita a isso - e com as duas possibilidades de leitura identificadas, a história da ciência e aquela que estás sendo agora designada como epistemologia:


Se se concorda em denominar a primeira dessas tarefas como sendo do domínio da filosofia das ciências e a segunda como sendo do campo da história das ciências, poder-se-ia, então, denominar este último trabalho de epistemologia (MONZANI, 1989, p. 23).


É, portanto, essa noção de epistemologia que é preciso desenvolver para tornar mais palpável a proposta de trabalho que está sendo apresentada pelo autor nessas passagens.


III


Outros trabalhos de Monzani podem fornecer uma visão mais precisa do que ele entende por epistemologia e explicitar as origens dessa noção.[xii] No que diz respeito à psicanálise ela representou uma ruptura com uma tendência mais ou menos constante na recepção filosófica da obra de Freud até então, a saber, a de realizar a crítica do conhecimento psicanalítico a partir de um paradigma filosófico externo ao mesmo, resultando numa inevitável distorção na compreensão dos conceitos - aquilo que Monzani, apoiando-se em Ricoeur, como vimos acima, designa como uma interpretação filosófica de Freud, a qual opõe à sua ideia de leitura. Pode-se dizer que essa defesa de Freud frente a uma espécie de reducionismo filosófico - ou frente a sua apropriação por um projeto teórico estranho à psicanálise - constituiu o denominador comum de boa parte dos trabalhos fundadores que vieram a lançar as bases do hoje chamamos de uma filosofia da psicanálise. Em Monzani (1991), encontramos a melhor visão sintética e de conjunto dessa abordagem. Após passar em revista as interpretações humanistas e hermenêuticas de Freud, tais como as de Paul Ricoeur, Jean Hyppolite e Ludwig Binswanger, ele finaliza com uma conclusão que aponta para o caráter, a seu ver, infrutífero dessas interpretações para quem deseje compreender o sentido próprio da obra freudiana. Essas leituras que se dão a partir de um referencial filosófico pré-estabelecido, que funcionaria então como uma lente de distorção, seriam capazes apenas de fornecer uma imagem adulterada da teoria psicanalítica:


Foram necessários quase sessenta anos para aprendermos como não se deve ler Freud. (...) De qualquer maneira, agora já deve ter ficado claro para o leitor que há duas maneiras distintas do discurso filosófico relacionar-se com o discurso psicanalítico. A primeira, que até hoje só deu resultados negativos e, ao que tudo indica, sempre dará, é a tentativa de ler esse discurso através da rede de um sistema filosófico. A outra consiste na constituição de uma epistemologia da psicanálise, no sentido definido acima, e que tem se revelado frutífera e promissora (MONZANI, 1991, p. 132).


Essa epistemologia da psicanálise, tal como na introdução de seu Freud, fora, anteriormente, cuidadosamente distinguida de uma “filosofia da ciência”. Esta última, de modo geral, consistiria numa crítica filosófica da psicanálise que seguisse o figurino neopositivista tradicional. Isso significaria tomar como termo de comparação certo modelo de cientificidade - uma “concepção recebida” da ciência, em geral pautada pelo paradigma das ciências da matéria, da física ou da química, etc. -, a partir do qual as pretensões de cada disciplina específica de ser reconhecida como ciência seriam avaliadas e julgadas. Deste modo, cumprir-se-ia o programa básico desse tipo de abordagem, que é o estabelecimento de fronteiras nítidas e de critérios precisos para distinguir o que é ciência e o que não é (ou o que não passa de “pseudociência”, para usar o termo consagrado por Popper, inclusive para referir-se à psicanálise). Em suma, tratar-se-ia de resolver o problema da demarcação, a questão por excelência de que se ocupa esse tipo de filosofia da ciência. A filosofia da psicanálise, portanto, emerge, em parte e à sua maneira, da crítica ao neopositivismo e de sua concepção normativa da unidade da ciência. Em contraposição, a concepção de epistemologia delineada por Monzani deriva, em parte, da proposta descontinuísta de Bachelard e se define quase que nos antípodas da atitude que acabamos de descrever:


A epistemologia de uma determinada disciplina que se quer ciência pretende algo um pouco diferente. Embora pretenda também investigar os modos de procedimento de uma disciplina, ela não se reduz a isso e, sobretudo, sua intenção não é a de instaurar um tribunal em que as diferentes disciplinas irão humildemente depositar seus “títulos de direito” para serem julgadas segundo regras predeterminadas. Ela parte de outro ponto de vista que, no caso da psicanálise (...) tem-se revelado bem mais frutífero. Em primeiro lugar, parte da ideia de que cada domínio científico tem seu contorno e sua identidade própria e que é inútil tentar instaurar um ideal unitário de ciência. Em segundo lugar, procura, no interior de cada discurso, conferir-lhe o “estatuto de um texto” (Lebrun) e tratá-lo como uma rede ou um tecido de significações que vale a pena ser comentado e explicitado. Em terceiro lugar, a partir dessa análise interna, procurará examinar e estabelecer o conjunto dos critérios próprios e específicos de validação da disciplina em questão e qual o critério e a ideia de verdade que daí brotam (MONZANI, 1991, p. 131).


A rápida referência en passant a Gérard Lebrun na passagem citada, assim como um par de notas que pontuam a introdução dessa concepção de epistemologia em Freud: o movimento de um pensamento (MONZANI, 1989), fornecem a pista para a origem dessa distinção que está sendo traçada. De fato, num texto influente - “A ideia de epistemologia” que marcou época nos anos 70 -, o filósofo francês delineia uma distinção semelhante, ainda que com uma terminologia algo diferente: ele distingue entre epistemologia e o que denomina “reflexão racionalista sobre a ciência”. Embora esta última não seja exatamente o mesmo que a “filosofia da ciência” descrita por Monzani, [xiii] a caracterização que Lebrun faz da epistemologia revela claramente sua afinidade com aquela mencionada acima:


(...) diante do Faktum das ciências positivas, existem duas atitudes possíveis, uma de origem cartesiana, outra de origem aristotélica. Ou bem se deixa na sombra a positividade, preferindo mostrar de que modo a ciência em questão é uma explicação dos arkhaí racionais (dos quais se revela então, mais uma vez, a prodigiosa fecundidade em qualquer área): trata-se do estilo racionalista. Ou bem se presta atenção ao caráter autóctone (oikeîon) dos princípios que uma ciência apresenta e ao caráter singular dessa montagem teórica que permite determinar os “objetos” de forma até então inédita - ou seja, prefere-se, àquilo que uma ciência descobre (para maior glória da “ratio”), sua maneira própria de produzir enunciados ou regras que possibilitam sua edificação: trata-se do estilo epistemológico (LEBRUN, 1977, p. 134-35).


Embora Lebrun certamente não endossasse sem ressalvas o modelo historiográfico e tivesse sempre procurado uma maneira original de articular filosofia e história da filosofia, sua concepção não-normativa de epistemologia não deixa de adaptar, à sua maneira, as regras daquele método de análise filosófica ao tratamento do discurso científico: considera-o como um texto a ser decifrado, elucidado em suas articulações internas, pensado como um sistema de enunciados que pode ser explicado e justificado pela lógica própria que rege suas operações e suas transformações, ainda que, em algum momento, torne-se necessário refazer o caminho de volta em direção ao mundo do qual a ciência, pelo menos, pretende falar e ocupar-se, assim, com o problema dos critérios de decisão e de validação, regime de provas, concepção de verdade, e assim por diante - problemas que, em última instância, exigirão outra forma de discussão epistemológica e outra “ideia de epistemologia”.[xiv]


Seja como for, tratava-se, na filosofia da psicanálise que assim tomava forma, de ler Freud como se ele fosse um filósofo, mesmo que sem ignorar que ele jamais o fora. É pela via do método que essa nova abordagem descrita e saudada por Monzani se define como filosófica e é por essa via que ela pretende corrigir os abusos e as distorções das interpretações filosóficas da psicanálise que a precederam. Em outra passagem, Monzani aproxima explicitamente essas abordagens “epistemológicas” da metodologia de análise estrutural em história da filosofia, tomando os trabalhos de Laplanche como exemplo:


Está se realizando uma leitura atenta e rigorosa dos textos de Freud, de sua significação e de suas implicações. Leituras diversas, mas não necessariamente divergentes, que vão desde uma leitura estritamente textual - ao modelo da leitura gueroultiana em história da filosofia -, como é o caso das Problématiques de Laplanche, passando por análises mais específicas, como é, por exemplo, o caso da bela análise da noção de afeto na obra de Freud realizada por A. Green (...) (MONZANI, 1991, p. 128).


No entanto, essas comparações são aproximativas e servem apenas para tornar mais clara a ideia de epistemologia que está se propondo, uma vez que, como vimos, são as limitações da abordagem estritamente estruturalista quando aplicada a certas modalidades do discurso filosófico e, mais ainda, ao discurso científico que parecem estar na origem da intensa reflexão metodológica que cerca o trabalho inaugural de Monzani. Tudo se passa como se três atitudes extremas fornecessem, então, as balizas entre as quais vai se esgueirar a proposta de Monzani: a do método estrutural, a da perspectiva estritamente genealógica ou evolutiva e a da filosofia da ciência judicativa e normativa, a qual fornece o contraponto mais imediato para a ideia de uma epistemologia como análise do movimento da obra, que se materializa em seu livro sobre Freud. Na conclusão deste último, Monzani propõe duas metáforas articuladas entre si para especificar esse seu conceito da obra como movimento e demarcar-se de outras abordagens com as quais sua proposta poderia ser confundida. Essas metáforas foram constantemente retomadas em trabalhos posteriores em filosofia da psicanálise - os que se ocupam de Freud, principalmente - que seguem a via aberta por Monzani, e vale a pena recordá-las aqui:


Duas imagens ou metáforas nos parecem indicar, para se fixar o pensamento, esse movimento do pensamento freudiano: o pêndulo e a espiral. De um lado, o discurso freudiano aparece como claramente pendular, isto é, ora enfatiza um pólo da questão, ora seu oposto. (...) Seguindo, porém, esse movimento pendular, percebemos que ele acaba formando, quando penetramos nessa complicada rede teórica que é o freudismo, um movimento espiralado, com a condição de se pensar essa imagem no espaço e cilindricamente, onde as mesmas questões são abordadas, ‘esquecidas’, retomadas, mas não no mesmo nível em que estavam sendo tratadas anteriormente... Trata-se de vários procedimentos e operações... O que temos é sempre uma progressiva rearticulação e redefinição dos conceitos determinada por sua lógica interna e pela progressiva integração dos dados da experiência (MONZANI, 1989, p. 303).


O que Monzani parece estar recuperando é o movimento vivo de construção da obra,[xv] isto é, um processo histórico no pleno sentido da palavra, pensado como uma sucessão de acontecimentos no tempo, com tudo que a palavra acontecimento preserva em termos de contingência, de acidentes e, sobretudo, de referência a uma dimensão extrateórica que, embora não seja abordada enquanto tal pelo método de leitura proposto, não pode ser ignorada por ele, já que assinala a especificidade do discurso em questão e seu pertencimento ao campo da ciência e não da pura filosofia. Ou seja, ainda mais que a filosofia, a psicanálise não pode ser encerrada naquele “isolamento narcísico” implicado pelo método estruturalista, que faz abstração do mundo e universaliza a esfera do discurso.[xvi] Daí que haja um limite para a aproximação entre as formas de leitura da psicanálise em que Monzani se inspira e o estruturalismo, tanto quanto há para a inspiração hermenêutica que desempenhou um papel na formulação de seu método para a leitura de Freud. Uma e outra serviam para enfatizar o respeito às significações imanentes do texto na tarefa da interpretação e para prevenir o equívoco comum, detectado em leituras filosóficas anteriores de Freud (Binswanger, Hyppolite, Politzer, Dalbiez e, no limite, o próprio Ricoeur) de forçar a psicanálise no leito de Procusto de um crivo filosófico pré-estabelecido, o que exigiria o seu estiramento ou a amputação de partes essenciais (a “metapsicologia” ou a “doutrina de Freud”, por exemplo, nas análises clássicas de Politzer e Dalbiez). No entanto, salvaguardado esse ponto, é necessário explicitar as diferenças e enfatizar a necessidade de outro “respeito” no plano epistêmico, a saber, aquele devido à especificidade de cada discurso concebido como um objeto para o pensamento.


Na verdade, essa exigência suplementar de atentar para a especificidade do objeto da leitura é apresentada para justificativa pela própria opção por uma abordagem epistemológica, no sentido apresentado acima. Monzani não deixa de reconhecer o caráter convencional da definição de epistemologia proposta, mas essa convenção não é arbitrária: ela serve para enfatizar que é da leitura de uma ciência que se trata aqui, e não de qualquer leitura, como se fosse indiferente a natureza do texto em questão e só o método importasse:


O que nos levou a essas considerações foi o fato de que, para Ricoeur, por exemplo, parecem não ter muita importância as características particulares e específicas do objeto ao qual aplica uma determinada leitura. É, sobretudo (para não dizer exclusivamente), o modo de tratamento que parece ser o relevante para ele. (...) Suspeitamos [ao contrário] que a natureza do objeto tem uma importância razoável no seu modo de tratamento. (...) pensamos também que certas particularidades de uma modalidade discursiva não devem ser desprezadas e que, portanto, por mais próximas que possam estar a leitura de um discurso filosófico e a de um discurso científico (...) tal fato não basta para pensarmos numa identidade (MONZANI, 1989, p. 23-24).


Talvez não seja temerário arriscar a conclusão de que é do rigor de sua proposta metodológica, discutida e analisada pelo autor em todas as suas minúcias e nuanças, que seu trabalho extrai suas principais virtudes, as quais o converteram num modelo para muito do que se produziu depois no campo dos estudos freudianos no Brasil.


IV


No entanto, esta está longe de ser sua última palavra sobre o assunto. No ‘Prefácio’ que acrescentou à sua tese quando da sua publicação em forma de livro, Monzani, de certa maneira, renega a noção de epistemologia sob cuja rubrica tinha colocado todo o trabalho sobre Freud que agora está apresentando ao público leitor:


Conservei, na introdução, uma série de considerações a respeito da natureza do trabalho que ofereço ao leitor e que rotulo de ‘epistemológico’. Confesso que, para mim, hoje, essa é uma questão secundária. Deixei-a apenas como um testemunho de um modismo que fez época. Hoje tenho a tendência a pensar que, se existe uma teoria da leitura como compreensão das articulações de um texto, ela é a mesma nos seus pressupostos gerais e básicos, e pode ser aplicada seja a Descartes, seja a Freud, seja a Laclos ou às ‘Eddas’ mitológicas ou heróicas (MONZANI, 1989, p. 10).


Podemos aplicar as próprias metáforas elegidas por Monzani para exprimir sua visão do movimento do pensamento de Freud ao movimento de seu próprio pensamento. Não se trataria aqui tanto de um desdizer-se radical, mas antes de executar como que um movimento de retorno pendular para atingir, num outro plano (da ascensão em espiral), uma ideia mais abrangente de leitura. Antes, como vimos, ele tomara a interpretação hermenêutica e a análise estrutural como modelos para uma leitura rigorosa de Freud, para depois demarcar-se das mesmas e reivindicar o respeito epistêmico às idiossincrasias do discurso científico ou clínico. Estabelecida essa exigência, é possível agora relativizá-la e extrair da ideia de epistemologia anteriormente formulada uma teoria da leitura que possa ir além dela, ainda que conservando os princípios ali estabelecidos. Ou seja, em outras palavras, reivindicar que há uma homologia estrutural entre as diversas formas de discurso - sejam elas científicas, filosóficas, literárias ou mitológicas - suficiente para uma generalização de seu caráter textual e, portanto, para a aplicação do método de leitura anteriormente forjado, de tal maneira que aquela ‘epistemologia’ não seja propriamente abandonada, mas possa ser entendida como um caso particular ou como uma aplicação especial de uma concepção mais ampla sobre o que seja ler um texto. Como veremos a seguir, essa correção aparentemente circunstancial é crucial para a extensão da sua metodologia àquele que será seu próximo objeto de análise - o lugar do pensamento de Sade na filosofia moderna e iluminista. Ela estabelece, assim, o nexo entre os dois trabalhos mais importantes e de maior fôlego de Monzani: o livro sobre Freud e seu Desejo e prazer na Idade Moderna, publicado em 1995.[xvii]


De fato, o projeto deste último trabalho não deixa de apresentar algumas semelhanças notáveis com o que fora dedicado a Freud. Em primeiro lugar, trata-se de abordar um autor cuja relação com o campo filosófico é igualmente ambígua. Se Freud definia a psicanálise como uma ciência, ao mesmo tempo em que mantinha relações ambivalentes e equívocas com a filosofia, Sade é um literato libertino profundamente envolvido no debate filosófico de sua época, seja como herdeiro, seja como antagonista. Em segundo lugar - e por isso mesmo - a questão sobre Sade pode ser colocada em termos bastante semelhantes à que foi formulada sobre Freud, ou seja, em termos de uma alternativa entre continuidade e ruptura. Só que, em Freud, tratava-se de uma pergunta sobre as relações entre os diversos momentos do movimento de constituição de sua própria obra e, portanto, uma questão sobre as articulações conceituais internas ao pensamento freudiano. Agora, com relação a Sade, trata-se de uma questão sobre seu lugar e seu modo de relação com uma tradição mais vasta - no limite, com a própria modernidade enquanto tal. Inicialmente, Monzani considera a tese da continuidade:


(...) passado o impacto que a obra do Marquês traz inevitavelmente, procurei examiná-la mais friamente, e nasceu a suspeita não só de que Sade dependia muito, nas suas concepções, de certas matrizes de pensamento do século XVIII, como também, sob muitos aspectos, ele era a realização completa e acabada dessas mesmas matrizes (MONZANI, 1995, p. 11).


Essa tese da continuidade é classicamente ilustrada pela Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer, com a qual, no entanto, Monzani só concorda parcialmente (ele esclarece discordar das premissas, embora concorde com parte das conclusões). De fato, o trabalho sobre Freud já o ensinara fartamente que a questão continuidade versus ruptura muito dificilmente pode ser resolvida pela opção simples por uma das duas alternativas (se é que alguma vez o pode). É preciso, então, considerar a alternativa oposta - a da ruptura, nesse caso, mais comum na literatura sobre Sade - e igualmente recusá-la, pelo menos na sua formulação absoluta:


Nasceu em mim, então, a suspeita de que era necessário encontrar o solo real do qual o discurso de Sade brotava. De qualquer maneira, resolvi abandonar, provisoriamente, a ideia tão difundida - sobretudo pelos próprios estudiosos de Sade na sua grande maioria - de que sua obra seria uma exceção monstruosa e única, e passei a trabalhar com a ideia de que talvez Sade apenas tivesse levado às últimas consequências, no plano moral, certas premissas de pensamento estabelecidas na idade moderna (MONZANI, 1995, p. 11-12).


Observe-se que a opção pela tese da continuidade é, inicialmente, justificada em termos metodológicos e - embora, ao fim e ao cabo, esse trabalho de Monzani vá pender mais para a continuidade do que pela tese da “exceção monstruosa” (ruptura) - a própria hipótese de que Sade tenha levado “às últimas consequências” certas premissas das formas de pensamento típicas da modernidade já aponta para a ideia de uma mudança de plano que aproxima essas conclusões daquelas formuladas a propósito de Freud. O aprofundamento da pesquisa - e o concomitante alargamento de seus horizontes, que vão passar abranger não apenas o século XVIII e o Iluminismo, mas, no limite, a totalidade do pensamento moderno[xviii] - vai reencontrar essa questão da continuidade e da ruptura, da convergência e do distanciamento, praticamente a cada passo, repartindo-se numa séria de filiações e oposições parciais, que terão que ser examinadas caso a caso, a fim de que seja possível situar o lugar do pensamento de Sade nesse quadro de referências agora extremamente abrangente. Assim, após examinar - sem muito sucesso, ao seu juízo - as relações de Sade com o restante da literatura libertina, Monzani depara-se com a seguinte situação ao passar para o campo da filosofia:


O referencial imediato de Sade - no plano filosófico - são os materialistas franceses. Particularmente, La Mettrie, Helvétius e Holbach. (...) No caso desses pensadores, a filiação realmente era inegável. Nem sempre da forma colocada pelo próprio Sade. Ele faz questão de afirmar, por exemplo, que as bases do que denomina ‘seu sistema’ estão, basicamente, nos textos de Holbach. Isso é verdade no que concerne às linhas gerais, isto é, à ideia de uma matéria em perpétuo movimento produzindo e destruindo incessantemente novas formas, o ateísmo integral, etc. Mas, com relação ao problema ético, Sade é, na verdade, um profundo devedor com relação a La Mettrie. Se se quer achar os antecedentes imediatos das concepções de Sade, elas estão seguramente muito mais no Anti-Sêneca do que no Sistema da Natureza (MONZANI, 1995, p. 12).


Aqui se percebe a razão da necessidade de se relativizar a centralidade antes concedida à ideia de epistemologia: resolver o problema do lugar a ser atribuído à obra de Sade no âmbito do pensamento moderno exigiria a consideração de uma variedade de fontes que ultrapassa em muito os limites do discurso científico, embora o contenha. Além de Sade ser simultaneamente um literato e um filósofo - nos dois sentidos que o século XVIII atribuía a esse termo, isto é, o de pensador e o de escritor libertino -, suas fontes e influências ou, em todo caso, aquelas que é necessário analisar para compreender sua obra singular, incluem autores e obras que abarcam o campo da literatura, da filosofia, da medicina, da história natural e da ciência da época em geral. Não faria sentido fazer uma epistemologia stricto sensu de toda essa pluralidade de discursos diversos, mesmo no sentido muito particular que Monzani atribui a esse conceito no seu Freud. Uma coisa é tratar o discurso científico como um texto, outra, muito diferente, é tratar todo e qualquer texto como se fosse uma obra de ciência, aplicar-lhe as mesmas exigências, etc. Ainda por cima, era preciso levar em conta que as fronteiras entre esses gêneros e categorias (ciência, filosofia, literatura, etc.) não eram nada nítidas até o século XVIII e, pelo contrário, estavam em processo de se demarcarem. Tudo isso levado em conta, no entanto, apontava para a possibilidade de reter, daquela epistemologia anteriormente praticada, tão somente a teoria da leitura implicada ou pressuposta por ela, mas que, de forma alguma, lhe era exclusiva e, enquanto tal, poderia ser aplicada a objetos textuais os mais diversos. É isso que Monzani empreende em Desejo e prazer, o que aparece como um prolongamento ou, mesmo, uma expansão, daquele princípio de fidelidade à diversidade interna ou comparada dos discursos e de atenção à sua especificidade histórica, às contingências e acidentes da sua formulação, assim como da recusa em hipertrofiar as suas propriedades lógicas, de modo a convertê-los nos resultados do puro exercício de uma razão desencarnada, situada fora do tempo e sem relação com o mundo. Diz Monzani, explicitando esse ponto de vista: “Não procurei, enfim, reconstituir epistemés de diferentes épocas” (MONZANI, 1995, p. 15).


Essa atenção à diversidade e à especificidade histórica reaparece na conclusão do livro sob a forma de um inventário do que ainda seria preciso realizar e quais materiais levar em conta para uma apreciação mais completa do problema ali em foco: a tradição do pensamento dito insular e a plêiade dos moralistas britânicos; a obra de Rousseau, em si mesma, um caso exemplar da diversidade discursiva mencionada, já que transita entre o tratado, o ensaio, o romance, a autobiografia, a autocrítica e o gênero ambíguo do “devaneio”; o empirismo e o hedonismo que se espalham pelo pensamento francês e europeu ao longo do século XVIII; a sexualidade, que empurra o problema do prazer para o campo da medicina e da biologia (ou filosofia biológica); por fim, como que para ter certeza de não deixar nada de fora, o pensamento econômico.


A atenção a este último item, inclusive, deu origem a um pequeno e notável livro, publicado bem mais tarde - Raízes filosóficas da noção de ordem dos fisiocratas (MONZANI, 2007) - no qual os mesmos elementos e o mesmo tipo de projeto dos trabalhos comentados até aqui reaparecem, claro que num outro nível de maturidade e com plena consideração da especificidade do problema. Trata-se, com efeito, mais uma vez, do problema da filiação conceitual ou, em outras palavras, de recolocar em questão a continuidade ou a ruptura entre noções oriundas de campos diversos do pensamento. Nesse caso, a pergunta é pela continuidade entre a noção de ordem em Malebranche e aquela empregada pela escola dos fisiocratas franceses (Quesnay, Le Trosne, Nemours, Rivière, etc.), considerados, em muitos aspectos, fundadores de uma economia política no pleno sentido do termo:


Tentaremos, em primeiro lugar, questionar o óbvio: se há uma filiação com relação à noção de ordem de Malebranche nos fisiocratas. (...) Queremos saber a significação e as implicações dessa filiação. Significação, em primeiro lugar, já que, na maioria das vezes, essa filiação é quase sempre indicada, sobretudo baseando-se na aproximação superficial de alguns textos de Malebranche e outros dos fisiocratas, que nem sempre deixam claro ao leitor que essa filiação é mais que uma filiação superficial; e, também, pela razão - que o exame mais atento dos textos mostra - que há sérias dificuldades em se estabelecer essa filiação (MONZANI, 2007, p. 11-12).


Como se vê, é o mesmo problema continuidade vs. ruptura que guiou a análise da obra de Freud (e da articulação interna de seus diversos momentos, isto é, de seu movimento) e análise do lugar do pensamento de Sade na modernidade. Se, com relação a este última, as conclusões de Monzani tendiam a restaurar certa continuidade (filiação, herança, consumação de uma linha de pensamento) entre a obra do Marquês e alguns tours de force do pensamento moderno sobre a vida passional, sobre a natureza e suas consequências no plano da moralidade, trata-se agora, muito mais, de questionar uma continuidade por vezes levianamente estabelecida (entre os fisiocratas e Malebranche), de tal maneira a não somente distorcer a compreensão de uma noção central dos primórdios do pensamento econômico - a ideia de uma ordem natural -, mas também ocultar uma filiação mais legítima (no caso, Santo Agostinho), cuja identificação contribui muito mais para a elucidação de seu sentido próprio:


Feito esse percurso, podemos retomar a questão da qual partimos: qual a relação da noção de ordem de Malebranche nos fisiocratas? Existem elementos extrínsecos e intrínsecos que mostram claramente a presença da filosofia malebranchista no pensamento fisiocrático. Mas, sobretudo, a semelhança das fórmulas com relação à noção de ordem (essa regra ou lei imutável governante dos seres do universo) faz com que o leitor seja levado a pensar que Quesnay e seus discípulos nada mais tenham feito que aplicar a um domínio particular essa fórmula malebranchista, e encará-la sob um aspecto laico. (...) Mas, pese esse conjunto de semelhanças, acreditamos haver mostrado que a noção de ordem natural que é utilizada pelos fisiocratas é herdeira mais direta da concepção agostiniana de ordem, do que da concepção malebranchista (MONZANI, 2007, p. 78-9).


Poderíamos, talvez, afirmar que esse tipo de questão constitui o eixo em torno do qual gira o pensamento de Monzani como filósofo e se organiza o movimento que o constitui, já que se trata de uma questão que reencontramos em campos tão diversos como uma análise interna da obra freudiana, a investigação do pensamento moderno e iluminista sobre o desejo, o prazer e as paixões e o questionamento das origens e da significação do conceito de ordem nos primórdios da economia política. Seja como for, a sua identificação, pelo menos, nos fornece uma pista a partir da qual se pode tentar compreender a riqueza e a originalidade de uma maneira particular de conceber o trabalho filosófico e a prática da reflexão.


V


Por tudo que acabamos de ver, é possível concluir que os principais efeitos do pensamento de Monzani no processo de constituição de uma comunidade acadêmica voltada para a prática da filosofia no Brasil dizem respeito à constituição de uma metodologia e de um parâmetro de rigor para o trabalho filosófico, não apenas exemplificados pelo seu trabalho - que pode ser constantemente retomado como modelo -, mas também explicitamente tematizados, mesmo que no contexto aparentemente secundário de uma introdução, de uma conclusão ou de um escrito de circunstância. O que se procurou fazer aqui foi apresentar mais sistematicamente essa proposta e despi-la desse ar de circunstancialidade que pode, talvez, fazer passar despercebida sua importância para um leitor mais incauto.


No entanto, talvez se possa arriscar, mais especulativamente, a circunscrição de um pressuposto, por assim dizer, mais profundo, que preside a essas elaborações sem ser totalmente explicitado como tal. Vimos como a proposta de Monzani procura encontrar, desde o início, uma alternativa a uma visão mais restrita da filosofia como, fundamentalmente, história da filosofia e, na verdade, como uma versão bastante específica sobre em que a história da filosofia deve exatamente consistir. Ao mesmo tempo, ele recusa opor, a essa concepção do estruturalismo filosófico, outra abordagem que fosse pura e simplesmente evolutiva ou genealógica. Recusa-se, também, no caso específico de Freud, a pensar o movimento de seu pensamento segundo o modelo da dialética hegeliana. Quanto a esta última, a própria conjugação das metáforas da espiral e do pêndulo, na conclusão do trabalho sobre Freud, presta-se a exprimir os limites de uma reconstrução dialética do processo de construção da obra freudiana: embora a espiral tenha sido uma imagem frequentemente empregada para representar o movimento dialético - que ultrapassa suas próprias questões para reencontrá-las depois em outro nível mais “elevado” de elaboração -, a imagem do pêndulo funciona como um limite para a essa visão exclusivamente ascendente de um movimento que progredisse inexoravelmente em direção ao seu telos imanente, já que introduz as ideias de oscilação, hesitação e abandono momentâneo de certos problemas ou soluções, as quais Monzani procura enfatizar. Ele também apontou como uma visão exclusivamente evolutiva não resolve o problema da alternativa entre continuidade e ruptura, entre o mesmo e o outro, uma vez que pode ser perfeitamente concebida como uma sucessão de passos que, por mais que se desviem por aqui ou por ali, conduzem necessariamente a um estado final estabelecido de antemão que, mais uma vez, passa a ser o princípio racional a governar todo o processo.


Todas essas considerações apontam para o problema da história como o ponto de fuga conceitual para o qual convergem as reflexões de Monzani e para a necessidade de encontrar uma concepção da história que não seja nem a da história da filosofia estruturalista; nem a da filosofia normativa das ciências (a visão “racionalista”, nos termos de Lebrun), com sua visão cumulativa e homogeneizante do progresso científico; nem a do evolucionismo linear; nem, enfim, a de uma dialética de inspiração supostamente hegeliana. Todas essas concepções teriam em comum, para além de suas diferenças, uma visão da história como regida por um logos simultaneamente universal e eterno (a-histórico, portanto), o que, se levado às suas últimas consequências, significaria a própria negação da ideia de história. É, pois, uma concepção histórica do pensamento como processo que se encontraria por trás das elaborações metodológicas de Monzani que acabamos de examinar - uma concepção segundo a qual não é possível excluir do mesmo, sem descaracterizá-lo, o que ele apresenta de contingente, de acidental e de irredutível a um logos universal. Todas essas características seriam inerentes à ideia de processo enquanto tal, e o respeito a essas especificidades estaria na raiz da sugestão de Monzani de opor uma arte da leitura a essa espécie de ciência da leitura propiciada pelas diversas visões racionalistas da história da qual ele procura se afastar. Este seria o sentido mais profundo do conceito de movimento aplicado ao pensamento de Freud e que, por isso mesmo, procuramos aplicar aqui ao trabalho do próprio Monzani. Trata-se da ideia  segundo a qual, para ser um processo efetivamente criativo ou produtivo - e não apenas a atualização de uma possibilidade dada desde o início -, a história deve ser, forçosamente, um movimento pleno de hesitações, regressões, desvios, o que é apenas uma maneira mais prolixa de dizer que se trata de um movimento vivo, em que diferença e identidade devem necessariamente coexistir ou, mais ainda, engendrar-se mutuamente. Assim, ainda a respeito de Freud, Monzani diz:


Enfim, tudo parece indicar que a possibilidade ou de um Freud que sempre disse a mesma coisa ou de um outro que em alguns momentos abandonou tudo para repensar a teoria a partir de outras e novas perspectivas é uma falsa alternativa. A Psicanálise freudiana parece ter sido muito mais uma lenta gestação conceitual onde as noções foram retificadas, precisadas, repensadas ou explicitadas umas em função das outras e, também, em função das novas aquisições fornecidas pela prática clínica. Hesitações, oscilações, abandonos temporários? Tudo isso houve, sem dúvida. Mudanças radicais e definitivas? Tudo parece indicar que não (MONZANI, 1989, p. 302).


A figura da gestação exprime, nessa passagem, essa articulação necessária entre criação e contingência que se procurou propor acima. Em sua Introdução a Desejo e prazer, logo após afirmar que seu trabalho não procurou reconstituir diferentes epistemés, Monzani nos oferece a mais clara evidência de que - no horizonte de seu trabalho e para além de seus diferentes objetos - foi o resgate de uma concepção mais efetiva de história que esteve em questão, na contramão dos diversos “racionalismos” (estruturalista, dialético, científico, etc.) aos quais ele procurou se opor:


Procurei seguir um filão (...) trabalhando retroativamente, como um detetive que reconstrói uma história. História parcial, sem dúvida, mas que, nos seus limites, parece-me correta. Por último, não pretendi também, nas análises positivas que procuro realizar, esgotar um tema num determinado autor. Salientei apenas aquilo que julguei pertinente para esclarecer a trama de uma problemática. Assim, o especialista neste ou naquele autor poderá sentir-se decepcionado com o tratamento a eles conferido. Tenho consequência dessa limitação, mas é a consequência de inserir um autor ou texto numa determinada questão que se desenrola historicamente (MONZANI, 1995, p. 15).


Essas considerações conclusivas são apenas sugestões que podem vir a ser desenvolvidas futuramente. Que elas tenham sido sugeridas pelo trabalho de Monzani não o torna, evidentemente, responsável pelas mesmas e por tudo que possa haver nelas de equivocado. Mas a principal evidência da fecundidade de um pensamento e da possibilidade de este ultrapassar a si mesmo em seus efeitos talvez seja sua capacidade de dar origem a linhas de reflexão que podem apontar para muito longe dos territórios em que ele se movimentou originalmente.




Referências Bibliográficas


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[i] Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos e dos PPG em Psicologia e em Filosofia daquela Universidade. e-mail: richardsimanke@uol.com.br.

[ii]“Não sei se sou um bom escritor; creio ser um excelente leitor ou, em todo caso, um sensível e agradecido leitor” (BORGES, 1988).

[iii]Apoiei-me aqui, basicamente, nos capítulos introdutórios e conclusivos de Freud: o movimento de um pensamento (MONZANI, 1989) e Desejo e prazer na idade moderna (idem, 1995), além do ensaio Discurso filosófico e discurso psicanalítico: balanço e perspectivas (idem, 1991) e de uma rápida consideração do livro Raízes filosóficas da noção de ordem dos fisiocratas (idem, 2007). Qualquer trabalho mais ambicioso, evidentemente exigiria uma base textual muito maior.

[iv]Esse artigo foi redigido originalmente para integrar uma coletânea de textos sobre e a partir do trabalho de Monzani (SIMANKE, CAROPRESO & BOCCA, 2011), que deve ser publicada em breve. Muitos dos textos ali reunidos se apresentam, de fato, como exemplos desses efeitos sobre a formação e o trabalho de novos pesquisadores, de modo que o seu conjunto pode ser considerado uma ilustração da interpretação que se tentou desenvolver aqui.

[v]Arantes (1994) faz uma análise pormenorizada das estratégias para essa superação nas duas gerações de filósofos uspianos anteriores à de Monzani, analisando, por exemplo, o recurso ao marxismo (Giannotti e Fausto), ao ceticismo (Porchat), à literatura (Prado Jr.), etc. O recurso filosófico à psicanálise, a partir dos anos 70 e 80 pode ser entendido como dando continuidade a esse processo.

[vi] Prado Jr.(1966/1997) confrontou-se com esse mesmo problema a propósito das concepções rosseauístas do imaginário (como criação de um novo mundo e como transfiguração do mundo dado): “Como chegar, portanto, à unidade desse pensamento que insiste em permanecer no nível diagnóstico das situações? Como chegar a uma concepção unitária da imaginação, quando o que o autor queria dizer era outra coisa, quando ele sempre a visava em contextos particulares?” (op. cit., p. 379, grifos nossos). Ele o tomou como uma ocasião para discutir explicitamente as limitações da abordagem estruturalista em história da filosofia: “Isto significa que justificar nossa perspectiva consistirá, simultaneamente, na definição dos limites do estruturalismo” (ibidem, p. 380).

[vii] Ver Simanke (2007) para uma aproximação analógica entre o estruturalismo e a sátira ao historicismo apresentada no Pierre Ménard, autor do Quixote, de Borges (1944), que foi inspirada pelo parágrafo de Prado Jr. citado acima.

[viii]Um dos raros exemplos dessa empreitada anterior ao trabalho de Monzani é Mezan (1982), também originalmente uma tese de filosofia.

[ix]Impossível não lembrar aqui do clássico Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, de Jean Hyppolite (1946). No entanto, Monzani tampouco opta por uma superação dialética dessa oposição, que não encontraria pleno respaldo naquilo que foi efetivamente praticado por Freud na elaboração de sua obra, e a contrasta explicitamente com a sua concepção sobre a obra como movimento: “Mas é necessário pensar com maior clareza essa conceito de superação no interior da obra de Freud. Nem sempre trata-se de uma superação de tipo hegeliano. Nesse sentido, pode-se dizer, com segurança que o pensamento de Freud é muito pouco dialético. Essa superação em Freud parece estar muito mais ligada a um movimento onde essas oscilações (...) acabam por se compor numa unidade, sem que, no entanto, haja necessariamente uma síntese no sentido hegeliano” (MONZANI, 1989, p. 302).

[x]A reaproximação com a metodologia estruturalista que transparece nessa passagem é limitada pela referência à consideração de Paul Ricoeur, em seu Conflito das interpretações, de que não se trata, numa “leitura” desse tipo de uma “repetição pura do autor em questão”. De qualquer maneira, o próprio limite dessa inspiração metodológica na hermenêutica de Ricoeur é apontado depois por Monzani, como veremos adiante..

[xi]É claro que essa diferença se acentua – e os problemas consequentemente se agravam – quanto mais se trate de uma concepção realista da ciência, para a qual o conhecimento científico versa sobre um mundo independente do investigador e das teorias e enunciados que o descrevem e/ou explicam. Mas mesmo uma concepção anti-realista da ciência (construcionista ou convencionalista, por exemplo) dificilmente chegaria ao ponto de propor a absoluta autonomia do discurso científico com relação aos fatos de que esse discurso fala, seja lá como for que estes últimos sejam concebidos (como ficções, convenções, construções sociais, etc.).

[xii]Os parágrafos seguintes retomam, de forma ligeiramente modificada, algumas considerações desenvolvidas em Simanke (2007; 2010).

[xiii]Na verdade, o que Lebrun define em seu texto como “reflexão racionalista sobre a ciência” é uma concepção mais ampla de uma maneira possível de posicionar-se diante da prática científica que, embora não se esgote naquilo que foi proposto pela filosofia da ciência do positivismo lógico – à qual Monzani parece estar se referindo quando fala, de modo geral, de uma filosofia da ciência – pode encontrar nela uma de suas ilustrações mais exemplares.

[xiv]Para uma discussão da necessidade de se passar de uma epistemologia imanente para uma epistemologia geral na avaliação filosófica da psicanálise freudiana, ver Fulgêncio (2008). Para uma discussão das idéias desse autor e de outras questões epistemológicas gerais relevantes para a psicanálise freudiana – a do realismo científico, sobretudo –, ver Simanke (2009).

[xv]Guardadas as diferenças, é um objetivo semelhante que motiva as críticas de Prado Jr. ao estruturalismo filosófico que discutimos acima, isto é, a decisão de não engessar o movimento vivo do pensamento de Rousseau nos rigores daquelas exigências metodológicas: “Não é possível encontrar sua resposta através de uma investigação linear, ao termo de uma única caminhada. É o próprio estilo do autor e o movimento de seus textos que nos obrigam a um itinerário tortuoso: jamais nos é dada uma teoria unitária da imaginação; o que encontramos é a emergência do tema em contextos diferentes” (PRADO Jr., 1966/1997, p. 376, grifos nossos). A referência à retórica (Prado Jr.) e o conceito de movimento do pensamento (Monzani), especificado pelas metáforas do pêndulo e da espiral, cumprem assim um mesmo objetivo, de duas maneiras distintas, adaptadas aos seus respectivos autores-objeto (Rousseau e Freud): reencontrar a unidade da obra em outro plano que não seja o da redução intelectualista pretendida pela abordagem estrutural.

[xvi]“Mas esta modificação [introduzida pelo historiador da filosofia] empresta nova natureza ao texto lido: no jogo de espelho que faz com que a explicação e o explicado, a linguagem e a metalinguagem se superponham, o texto é encerrado num isolamento narcisístico que antes desconhecia” (PRADO Jr., 1966/1997, grifos nossos). Podemos contrastar, por exemplo, a leitura guéroultiana de Descartes com a de Merleau-Ponty (houve debates explícitos entre os dois), que se recusa, entre outras coisas, a separar a metafísica e ciência cartesiana, buscando preservar, assim, a abertura da primeira para o mundo da experiência que faz o objeto da segunda (ao menos na maneira como Merleau-Ponty interpreta a análise cartesiana da percepção visual na Dióptrica, por exemplo). A clínica psicanalítica desempenharia um papel semelhante com relação à metapsicologia e, ainda mais, frente às suas reconstruções filosóficas.

[xvii]Na abertura da ‘Introdução’ de Desejo e prazer, Monzani descreve como se deu o despertar de seu interesse por Sade e diz: “Há poucos anos (...) propus a mim mesmo uma leitura mais sistemática desse autor um tanto quanto esquisito” (MONZANI, 1995, p. 11, grifos nossos). E, mais adiante: “Depois dessa leitura, agora mais metodicamente elaborada...” (ibidem, p. 11, grifos nossos). Depois de tudo o que vimos da intensa reflexão sobre a idéia de leitura pressuposta na análise da obra de Freud, essas referências não podem mais ser tomadas como acidentais, mas sim como indicando certa tomada de posição metodológica que, com todas as alterações exigidas pela mudança de objeto, derivam do trabalho anterior.

[xviii]“Refletindo sobre isso, não foi difícil concluir que o que estava provavelmente norteando tudo isso era uma concepção sobre os fundamentos da vida passional que pouco ou nada tinha que ver com a concepção clássica. Era preciso, de certa maneira, operar um recuo ainda maior e questionar onde, na modernidade, poder-se-ia encontrar os primeiros indícios dessa concepção. Tudo levava a crer que isso deveria ser buscado no século XVII, mais particularmente em T. Hobbes” (MONZANI, 1995, p. 13).