revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

José Luiz Bastos NEVES

visões da expressão filosófica em merleau-ponty

 

Até há pouco tempo, certa moda filosófica francesa – passando, é claro, por suas traduções nacionais de praxe – andou obcecada pelos ditos lados obscuros da razão. Era preciso, dizia-se, tornar a razão consciente de seus “restos”, quer dizer, forçá-la a reconhecer aquilo que ela exclui violentamente de si para garantir, somente então, sua validade sem apelo. Entravam em cena o louco, o corpo, o inconsciente, enfim, todos esses personagens conceituais que encarnariam aquela suposta alteridade absoluta da razão, doravante qualificada, é claro, de “ocidental”, “eurocêntrica”, “logocêntrica”, etc. Em todos os casos, tratava-se de desmentir através deles a vocação universalizante da razão, denunciando sua particularidade e o ato de força pelo qual ela se alçava à validade presumida. E como era um ato injustificado que permitiria à razão circunscrever seu campo de validade, compreende-se que se pudesse aproximar assim razão e violência: a norma seria efeito da normalização, a dialética, uma pacificação da diferença, e assim por diante. Muito vagamente, reconhecemos aqui alguns temas diletos de uma geração.


Linhas gerais, esse o esquema de Vincent Descombes para interpretar os anos mais ou menos recentes do pensamento francês. De modo geral, ter-se-ia buscado forçar a razão a reconhecer o abismo sob o qual se assentaria, entendendo a filosofia como um edifício em última instância injustificado. Nas palavras do comentador, tratava-se fazer o “barulho do mundo” – aquilo que escaparia às formas bem estabelecidas e aceitas da razoável civilização ocidental – ganhar seu devido lugar ao sol na auto-consciência dessa civilização. Mas como fazê-lo, se essa auto-consciência exclui aquele barulho para se estabelecer? Como trazer o ruído da razão ao discurso filosófico sem ao mesmo tempo prendê-lo aos grilhões do lógos? Seria preciso fazer da filosofia um eterno exercício de destruição de seus mitos. “Fazer filosofia” nesses termos, dirá Descombes, “é trazer o barulho do mundo ao discurso em sua forma devida (na qual o barulho não poderia se fazer ouvir sem tornar esse discurso impossível de ser escutado), produzindo, no interior do próprio discurso, um simulacro de barulho através da transgressão deliberada de certas regras governando o discurso formado.”[i] Veremos nisso tudo uma referência à desconstrução, à arqueologia de um silêncio, à crítica nominalista dos universais? Deixemos as generalizações de lado (ou melhor, num horizonte longínquo) e foquemos na menor questão que aí aparece: quais dificuldades surgem para a filosofia quando se tem notícia de sua ausência de fundamento, revelada pela existência de um “outro” irredutível? Como trazê-lo à autoconsciência filosófica sem “domesticar” sua alteridade?


Essa questão, antes de se tornar última moda, já havia sido avistada por Merleau-Ponty, quando este voltava sua atenção aos fenômenos da infância, da animalidade, do corpo etc. Tais “fenômenos obscuros” seriam tidos como uma alteridade pré ou irracional apenas graças a nossa cultura ingenuamente humanista, apressada em identificar humanidade e razão, como se tratasse de um direito milagrosamente garantido a ela por natureza. Desmentindo essa ideologia do “homem realizado”, tais fenômenos revelariam o “solo irracional” do próprio “pensamento adulto, normal e civilizado”, servindo para relativizá-lo e apresentando-o como um problema em aberto.[ii] Reconhecendo essa infra-estrutura bruta de nossa racionalidade, pensa Merleau-Ponty, estaríamos mais aptos a compreender o verdadeiro alcance dessa razão: a frequentação da alteridade apenas colocaria em xeque nosso muito estreito “pequeno racionalismo”, e muito mais que traçar limites inultrapassáveis ao domínio do compreensível, permitiria na verdade um “alargamento da razão”, aquele mesmo descoberto pelo etnógrafo cuja experiência de dépaysement aguçou o olhar para sua própria cultura.


Happy end prometido cedo demais pelo “ultra-racionalismo” merleau-pontiano? Sem dúvida, se nosso termo de comparação vier dos “filósofos da suspeita” dos anos vindouros. Resta que esse mesmo otimismo racionalista ganha contornos bem mais sinuosos se atentarmos a um outro problema, apenas aparentemente estranho a esse, que percorre toda a obra do filósofo, mudando de aspecto nas suas diferentes fases. Merleau-Ponty entenderá a filosofia como uma obra de expressão, fazendo seu o bordão husserliano das Meditações cartesianas, segundo o qual “é a experiência ainda muda que se trata de levar à expressão pura de seu próprio sentido”. Desde então, que é essa experiência muda (pré-lógica e pré-discursiva) que se trata de dizer, e que transformações ela sofre ao ser dita, isto é, ao ser alçada ao discurso filosófico? Se, na leitura merleau-pontiana, essa experiência muda é o domínio antepredicativo da vida concreta no qual o lógos deveria se fundar, de que modo é possível exprimi-la sem pressupor tacitamente sua prévia adequação às exigências do dizer filosófico? Como levá-la à expressão de seu próprio sentido sem que esse sentido não se perca ao ser transformado em sentido dito? Entremos no assunto por aqui.


I


Num artigo de 1976, Jacques Taminiaux procurou compreender as variações, ao longo da obra merleau-pontiana, da doutrina da experiência e da expressão através das diferentes interpretações que receberia, na Fenomenologia da percepção e no Visível e o invisível, este mesmo bordão husserliano: “é a experiência ainda muda que se trata de levar à expressão pura de seu próprio sentido”.[iii] O próprio Merleau-Ponty verá nessa frase a formulação da tensão máxima a que chega a fenomenologia: “assim fixando a tarefa da fenomenologia, Husserl a fixa como uma tarefa difícil, quase impossível: a experiência ainda muda, trata-se de levá-la a exprimir seu próprio sentido. Entre o silêncio das coisas e a fala filosófica, por conseguinte, o que é marcado aqui não é uma espécie de acordo ou de harmonia pré-estabelecida, é uma dificuldade ou uma tensão”.[iv] Que significa essa “tensão” entre experiência muda e expressão filosófica?


A frase é extraída do §16 das Meditações cartesianas, num momento em que, grosso modo, Husserl está delimitando o território transcendental a ser ocupado pela fenomenologia, por oposição àquele da psicologia. Por um lado, fenomenologia e psicologia teriam, ambas, seu ponto de partida no ego cogito: “não há outro começo senão o ego cogito, quer se trate de uma egologia transcendental descritiva, quer se trate de uma psicologia interna pura”.[v] Mas, é sabido, o paralelo entre elas termina aí. No caso da fenomenologia, “partir do ego cogito” exige que não se interprete de antemão, em companhia do sensualismo, a vida da consciência “como um complexo de dados provenientes da sensibilidade externa e interna”.[vi] Trata-se de bloquear interpretações prévias que a psicologia, em atitude natural, fornece acerca do “ser da consciência”, pondo entre parênteses suas posições de existência e abrindo caminho, assim, para um começo “puro” da descrição, sem prejuízos ou sedimentações teóricas que encobririam o acesso à região transparente do ego transcendental, cuja vida se trata de descrever: “a teoria descritiva da consciência, se parte de um começo radical, não tem nada que ver com tais dados e tais totalidades (...). O começo é a experiência pura” – leia-se, isenta de prejuízos objetivistas – “e, por assim dizer, ainda muda, cujo sentido se trata de exprimir de modo puro”.[vii] Em todo caso, é à região da consciência – porém de tipo diferente que aquela da psicologia – que Husserl circunscreve a experiência muda (alguma espécie de olho do espírito?), e é o sentido puro que nela se gesta que se trata de exprimir filosoficamente através da descrição fenomenológica pura.


Isso não tem nada de casual. Essa promoção da consciência a tema permanente das descrições fenomenológicas é decorrência, em última instância, do seu intuicionismo. “Toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do conhecimento, tudo o que nos é oferecido originariamente na ‘intuição’ (por assim dizer, em sua efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado tal como ele se dá, mas apenas nos limites dentro dos quais ele se dá.”[viii] Ora, em regime de redução (obtido, nas Meditações cartesianas, com a neutralização do não-evidente), o que se dá, se dá à consciência apenas enquanto correlato de seus atos, o que fecha na subjetividade o campo da evidência batizado de imanência transcendental, com sua “problemática da descrição das cogitata qua cogitata”.[ix] Era por não se ater a ele que a psicologia devia ser “posta entre parênteses”. Ao contrário, o fenomenólogo deve aceitar os dados evidentes como fonte de conhecimento, mas desde que se atenha ao campo reduzido no qual eles se dão, qual seja, aquele do ego transcendental, no qual os dados são aceitos à medida da intuição doadora originária. Com isso, aquela “consciência ainda muda”, cuja experiência se trata de descrever, vai ganhando as marcas da evidência, entendida como coincidência entre dado e visado, uma intuição a preencher a intenção subjetiva. Mas o que se trata de combater com o intuicionismo fenomenológico? Por que é preciso voltar a essa experiência muda?


Sendo impossível desenvolver aqui o tema de modo suficiente, digamos apenas que, em termos históricos, o intuicionismo consta da terapia fenomenológica contra a progressiva simbolização nas ciências formais, que se desconectam do mundo vivido e, operando progressivamente no domínio do signitivo, tornam-se um cálculo cego sem nada informar sobre a base concreta de que teriam partido. Assim fazendo, deixam de nos “concernir”, perdendo a universalidade presuntiva própria ao mundo-da-vida, como dirá o Husserl da Crise das ciências europeias.[x] Isso porque o signo indicativo, com o qual operam as ciências formais e nossa linguagem, entendido como conteúdo dado a sinalizar para outro conteúdo não-dado, implica um afastamento do núcleo intuitivo da presença. Essa distância, interposição do signo entre o dado e o visado, e o fato de que os signos entram num jogo de remissão autônoma entre si, é o que constitui o risco perpétuo para as ciências e para a linguagem de operarem no vazio. Donde a tarefa de “voltar às coisas mesmas”, entendida como volta clarificadora ao núcleo de presença intuitiva no qual as significações teriam primeiramente se formado.


Mas, se é assim, já se compreende a tensão intrínseca que Merleau-Ponty verá naquele bordão das Meditações cartesianas. Como “exprimir puramente” uma “experiência muda” sem nela introduzir sub-repticiamente a distância signitiva própria a todo o “dizer”? Como levá-la ao lógos sem que, no meio desse processo, ela perca sua mudez pré-lógica? Husserl é levado, dirá Derrida (pensando, é verdade, sobretudo no Husserl das Investigações lógicas), a pensar a linguagem como “evento secundário, sobreposto a uma camada originária e pré-expressiva do sentido. A linguagem expressiva ela mesma deveria suceder ao silêncio absoluto da relação a si”.[xi] A expressão viria comunicar, mas sob a pena de perder aquele núcleo de “identidade e simplicidade da presença como presença a si”, no qual “o signo e sua ordem simbólica são inúteis”, e que circunscreve o domínio da evidência intuitiva.[xii] “A evidência, no sentido mais largo do termo, é... precisamente um acesso pela visão intelectual à coisa mesma...”[xiii] Originariamente privado, o contato com o ser, aferido pela visão intelectual, perde sua marca de plenitude ao ser dito.


II


Que alterações se impõem a esse roteiro uma vez retomado o problema da expressão no contexto de uma fenomenologia da percepção? Em princípio, podem-se esperar algumas reviravoltas, já que a subjetividade em questão, encarnada no corpo próprio e entendida ademais como movimento de transcendência, não se fecha no circuito da imanência transcendental. De fato, era naquela figura da subjetividade que Husserl encontrava a ancoragem primitiva de todo o sentido possível da experiência. Destranscendentalizada e lançada em seus movimentos de ekstase (graças, é claro, à leitura heideggeriana da intencionalidade), a consciência não mais poderá, ao que tudo indica, desempenhar aquele papel da “experiência muda”, “contato de si consigo” experimentado no ego cogito, e na qual as abstrações das ciências e da linguagem viriam se ancorar. Entretanto, é exatamente disso que se trata no momento do prefácio da Fenomenologia da percepção em que surge, pela primeira vez no texto merleau-pontiano, aquela citação de Husserl.


Como se sabe, o prefácio da Fenomenologia da percepção examina e interpreta a seu modo aqueles que seriam os três conceitos fundamentais da filosofia de Husserl, a saber, a redução, a doutrina de essências e a intencionalidade. No momento do argumento em que o problema da expressão entra em cena, trata-se de desfazer a interpretação corrente da doutrina das essências como puras e absolutas, idealidades que seriam o idêntico repetível ao longo dos múltiplos atos de visá-lo. Contra essa interpretação idealizante, Merleau-Ponty procura encarná-las na linguagem e, através desta, no sujeito falante. Assim, as essências intuídas nada mais seriam senão fixações da linguagem que, apartadas da experiência concreta na qual teriam nascido, tornar-se-iam palavras vazias meramente signitivas ou, nos termos próprios da Fenomenologia da percepção, “fala falada”, sedimentada no hábito. É nesse contexto – e em combate aberto com o empirismo lógico da Escola de Viena, que faria da consciência uma “significação tardia e complicada que se deveria usar com parcimônia”[xiv] – que surgem aquelas passagens da Fenomenologia em que se procura fundar a “significação” consciência na experiência do contato ainda mudo de si consigo: “quaisquer que possam ser os deslizamentos de sentido que finalmente nos forneceram a palavra e o conceito de consciência como aquisições da linguagem, nós temos um meio direto de aceder àquilo que ela designa, nós temos a experiência de nós mesmos, dessa consciência que somos; é sobre essa experiência que se medem todas as significações da linguagem e é ela que faz com que justamente a linguagem queira dizer algo para nós”.[xv] Podem-se multiplicar as citações da Fenomenologia que apontam na mesma direção, garantindo a fundação da expressão linguística no silêncio da consciência, no qual tenho contato direto e mudo de mim comigo, uma experiência aquém da linguagem, e isso ainda que tal contato seja aquele peculiar tipo de cogito tácito merleau-pontiano, que só é o que é engajando-se em atos explícitos. “No silêncio da consciência originária, vemos aparecer não apenas o que querem dizer as palavras, mas ainda aquilo que querem dizer as coisas, o núcleo de significação primária em torno do qual se organizam os atos de denominação e expressão”.[ixvi] Em outras palavras, o “silêncio da consciência” ainda está a balizar a experiência antepredicativa na qual se encontra a doação originária dos fenômenos expressivos, sem a interposição de signos ou, em termos mais propriamente merleau-pontianos, sem o esquecimento – característico da “fala falada” – das origens gestuais da linguagem (outra vez, aquele domínio originário no qual há imanência do sentido emocional no gesto e não a distância do signo interposto).


Há consequências a se extrair disso. Enquanto fenômeno expressivo sedimentado, as doutrinas filosóficas recebidas na tradição cultural também precisam ser reconduzidas ao seu solo próprio na experiência. Como as idealidades foram compreendidas como modos de fixação linguística, também as idealizações teóricas recebidas da tradição filosófica devem encontrar sua fundação na experiência antepredicativa, se é que pretendem alguma validade, já que tais interpretações recebidas da tradição apenas exprimem e ocultam – ao se sedimentarem como fala falada – a mesma experiência concreta. Donde o método, repetido à exaustão na Fenomenologia da percepção, de se desfazerem os prejuízos idealista e empirista, reflexivo e cientificista, através da fundação de suas idealizações nas significações fluidas do mundo-da-vida. Essa “redução” apenas retoma o procedimento de voltar, das interpretações sedimentadas, à experiência silenciosa perceptiva. Com isso, vê-se que a tentativa de fundar as essências na linguagem, as significações na vida antepredicativa do sujeito falante, não é de modo algum uma doutrina marginal da Fenomenologia da percepção, constituindo o nervo mesmo que possibilita suas próprias descrições. Como diz Merleau-Ponty, “o primeiro ato filosófico seria então voltar ao mundo vivido aquém do mundo objetivo (...), reencontrar os fenômenos, a camada de experiência viva através da qual outrem e a coisa nos são primeiramente dados”.[xvii]


Entretanto, essa fundação das essências no “silêncio da consciência” causa evidente embaraço para o projeto do filósofo, dado o papel que a consciência ganha com relação às significações, e que parece em demasia aproximar Merleau-Ponty de Husserl e, com ele, das filosofias da consciência que o próprio Merleau-Ponty gostaria de combater. Por isso, é preciso insistir nas diferenças que separam uma figura consciência da outra. Pois, se o sujeito é agora encarnado num corpo próprio, se sua facticidade proíbe a passagem ao ego transcendental, nem por isso se deixa de afirmar um cogito aí presente, donde a crítica que se faz à filosofia da consciência não excluir, por ora, toda figura da consciência admissível. Precisamente, esse cogito não deve ser pensado trivialmente como contato de si consigo: esse contato é antes um dos momentos da ekstase, havendo sempre uma relação “dialética” entre cogito tácito e cogito engajado, cogito silencioso e cogito verbal. Esse fundo de consciência silenciosa tem por função apenas impedir o cogito engajado de se perder no movimento de transcendência. Por isso aquela experiência muda, núcleo primitivo de sentido onde tomo contato pela primeira vez com aquilo que as significações exprimem (em que pese a força dessa reaclimatação existencial e perceptiva do intuicionismo), não fecha o ego em seu interior, mas o lança ao mundo assim chamado “concreto”, finalizado pelos interesses prático-vitais desse ser-no-mundo.


Entendendo-se desse modo a experiência muda na qual a expressão viria se fundar, e por diferentes que sejam as regiões circunscritas por essa palavra “experiência”, os projetos de Merleau-Ponty e Husserl, sustenta Taminiaux, parecem logo convergir na tese de que “a tarefa da fenomenologia é reencontrar, como uma instância primordial, uma consciência originariamente silenciosa na qual e para a qual se opera a primeira manifestação do sentido. Com relação a essa primeira manifestação do sentido, a denominação e a expressão são derivadas e periféricas. Elas se organizam em torno de um núcleo de significação primária que as precede e que é o que é independentemente delas”.[xviii] Se a expressão se funda na experiência, a experiência, ainda muda, não carece daquela para ser o que é. Vê-se o ponto em que Merleau-Ponty prolonga o intuicionismo fenomenológico, e do qual esse procedimento de fundação é testemunho: aqui e ali, há uma intuição evidente supostamente capaz de fornecer, na intimidade da experiência muda e privada, um núcleo primitivo de sentido. De certo modo, é o que Merleau-Ponty acaba assumindo por sua conta, ao fazer da percepção o cânone do encontro com o ser. E se não se trata mais, no seu caso, da vida muda de um ego transcendental fechado sobre si, nem por isso essa região da consciência encarnada merleau-pontiana deixa de ser menos privada, uma vez que a experiência concreta à qual ela se abre é de antemão enfeixada por seus próprios projetos anônimos corporais.


Nessa altura, como entender o fenômeno da expressão? Note-se, de início, que Merleau-Ponty entende a própria filosofia apenas como um desses fenômenos de expressão. Novamente, essa tese não é casual, mas conclui necessariamente o argumento, formulado longamente na introdução da Fenomenologia da percepção, segundo o qual a reflexão filosófica é interior ao campo fenomenal, e não o dispõe diante de si para contemplá-lo de modo neutro (donde a crítica às filosofias de sobrevoo). Graças à estrutura da temporalidade, o campo fenomenal é alçado à função de campo transcendental, como condição de toda experiência possível. Desde então, a gramática filosófica encontra sua infraestrutura nesse mesmo campo da experiência, donde a necessidade de se entender a peculiaridade de uma descrição que, enquanto reflexão, é também parte dessa mesma experiência refletida. A tese sempre repetida segundo a qual toda reflexão se dá sobre um fundo irrefletido, como fica evidente, apenas resume o que se está vendo. Por isso só pode haver um lugar para a filosofia em Merleau-Ponty: “a experiência antecipa uma filosofia assim como a filosofia é apenas uma experiência elucidada”.[xix] O texto ecoa outra vez aquele bordão das Meditações cartesianas, apresentando a filosofia como expressão pura do sentido da experiência.


Delimitado o alcance do problema da expressão, resta agora compreendê-lo. Taminiaux acredita encontrar uma “tensão” entre duas séries de textos acerca do tema na Fenomenologia da percepção. Essa tensão tem sua origem no modo como se compreende aquela experiência antepredicativa. Essa experiência é obtida pela redução dos prejuízos da objetivação, e se existe um reconhecimento do “fracasso da redução completa”, trata-se simplesmente da impossibilidade de se reduzir uma segunda vez essa experiência concreta a seus invariantes gerais.[xx] Diante de quê esse “fracasso da redução” instala o filósofo? Por um lado, sustenta Taminiaux, haveria um conjunto (a) de textos segundo o qual a redução conduz à “estranheza, o paradoxo, a ausência de fundo”,[xxi] e daí a retomada da definição de Eugen Fink acerca da redução como “perplexidade”, “admiração” diante do mundo. Mas, por outro lado, haveria também (b) textos garantindo que a redução nos instala naquele mundo concreto finalizado pelos comportamentos do corpo próprio, na vida antepredicativa do sujeito lastreada pela costura imanente das partes feita na temporalização. Os dois sentidos de expressão que se encontra na Fenomenologia seriam decorrência direta dessa ambiguidade acerca da redução. Aos textos do primeiro conjunto (a), à redução como desvelamento de um “sem-fundo”, corresponderia a ideia de uma expressão sem apoio num ser prévio: como se lê no prefácio do livro, “o mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser anterior, mas a fundação do ser, e a filosofia não é o reflexo de uma verdade anterior, mas, assim como a arte, é a realização de uma verdade”.[xxii] Por outro lado, à redução que nos instala na vida antepredicativa da percepção (b), corresponderia a ideia de uma expressão que apenas manifesta um sentido já latente no mundo-da-vida: desde então, a percepção “fornece o texto do qual nossos conhecimentos procuram ser a tradução em linguagem exata”.[xxiii] E agora a expressão seria uma atividade garantida por um texto original fornecido na vida concreta, ainda que em estado de esboço, ao qual se trataria apenas de dar visibilidade. Ali estaria fundada a expressão, na medida em que se teria naquela experiência o “núcleo de significação primária” em que primeiro se gesta o sentido. Antes de a geografia me ensinar o que é a paisagem, dizia Merleau-Ponty, eu a percebo no meu entorno.


Contudo, haverá mesmo aqui “dois” conjuntos de textos divergentes? Basta situá-los em seu contexto argumentativo para desfazermos a diplopia do comentador. Que se tome a primeira série de textos (a). Dizer que a redução é uma forma de “espanto” diante do mundo significa, no prefácio da Fenomenologia, apenas que ela suspende as sedimentações do mundo da cultura que veiculam uma interpretação tácita da experiência. Trata-se, numa palavra, de suspender a objetivação espontânea da experiência: a intencionalidade, a teleologia da consciência ou do corpo dirigida a algo, tende a esquecer-se em benefício do objeto, dando origem à ilusão de um mundo naturalista sem subjetividade. A primeira redução da atitude natural, como Husserl já mostrava, apenas conduz do naturalismo científico ao personalismo do mundo-da-vida, o que já representa o ganho de se desfazer a ideologia do objetivismo e sua correlata determinação completa. É esse o “espanto” de que se trata quando Merleau-Ponty retoma as palavras de Fink: ver o mundo com a ingenuidade da intuição imediata, sem os prejuízos espontâneos do objetivismo, isso não seria coisa fácil para os homens de cultura, donde o tal “espanto diante do ser”. Por isso, essa série de textos em nada invalida aquela segunda série (b), segundo a qual a redução tão-somente nos instala na vida concreta do sujeito existente, sempre já cheia de “esboços de sentido”. Fazer dessa experiência um “irracional positivo”, que se furtaria a qualquer tipo de lógos, nunca fez parte do projeto merleau-pontiano. Tratava-se apenas de mostrar que o lógos que aí habita não é aquele do objetivismo.


Que resta então daquelas passagens acerca da filosofia como “realização de uma verdade”, e não “reflexo de uma verdade anterior”? Aparentemente, não havendo divergência entre (a) e (b), a filosofia só poderá mesmo ser explicitação de um sentido já esboçado pelo mundo-da-vida. E, com efeito, sobram textos para relativizar aquela ideia de uma “expressão sem apoio”. Que se leia, justamente, a explicação que Merleau-Ponty dá daquela afirmação, citada por Taminiaux, que fazia da filosofia a “realização de uma verdade”, e não “explicitação de um ser prévio”. Perguntar-se-á, escreve Merleau-Ponty, “como essa realização é possível se ela não reencontra nas coisas uma Razão preexistente. Mas o único lógos que preexiste é o próprio mundo, e a filosofia que o faz passar à existência manifesta não começa por ser possível: ela é atual ou real, assim como o mundo, do qual ela faz parte”.[xxiv] A atividade de expressão não sobrevoa o mundo para capturar-lhe os invariantes essenciais, ela está presa nessa mesma experiência que se trata de descrever. Apenas por isso essa experiência não “preexiste” à expressão. Isso não quer dizer que a expressão “crie” a racionalidade, nem que o mundo mesmo, antes de a filosofia nele fazer entrada, já não sussurre uma lógica própria, pela qual, aliás, o próprio sujeito da temporalização é responsável. De certo modo, o mundo já parece prometido às explorações filosóficas. “A racionalidade não é um problema... nós assistimos, a cada instante, a este prodígio da conexão das experiências, e ninguém sabe melhor do que nós como ele se dá, já que nós somos este laço de relações.”[xxv] Por isso, dizer que a expressão filosófica é “sem apoio” exige que se tome o termo com certo grão de sal. Como a expressão é parte integrante da experiência, ela não tem um texto diante dela para representar. Apenas nesse sentido, é verdade que a filosofia é “realização” de uma verdade, transformação de um sentido vivido em um sentido dito. Mas isso não acontece sem que ele já não seja sugerido e antecipado pela experiência anterior à expressão, ponto em que se pode reler o texto merleau-pontiano já citado: “a experiência antecipa uma filosofia assim como a filosofia é apenas uma experiência elucidada”.[xxvi] Por isso, ainda que a expressão não tenha um texto prévio que ela “representaria”, ela também não aponta para uma criação ex nihilo de sentido. Não haverá mais, aparentemente, “problema da expressão”, uma vez desfeita a suposta “tensão” entre “realizar uma verdade” e “exprimir uma verdade já esboçada nas coisas”.


Contudo, sobrepondo rápido demais o esquema husserliano à Fenomenologia da percepção, Taminiaux deixa de perceber o núcleo do problema. Apenas, ele não reside na oposição entre “realização, sem apoio, de uma verdade” e “expressão de uma verdade já antecipada no mundo”. Retomemos os traços gerais dessa experiência de mundo aberta pela redução do objetivismo. Como vimos, essa experiência antepredicativa não representa qualquer flerte com um “irracional positivo”, “abismo da razão” e outros espantos, já que, finalizada pelos projetos anônimos do corpo próprio, ela fornecerá aquele primeiro esboço de sentido que a expressão irá apenas tornar proferido. É por isso que, nesse domínio, as abstrações da ciência e da linguagem (como fala falada) encontrariam seu “núcleo intuitivo de doação”, uma vez apresentada nessa experiência a “fisionomia concreta das coisas”. Entretanto, importa sublinhar que essa experiência, finalizada pela intencionalidade subjetiva (no caso merleau-pontiano, corpórea), é um campo fenomenal válido primeiramente para mim: “a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas articulações são as mesmas de nossa existência, e porque ela se põe na extremidade de um olhar ou ao termo de uma investigação sensorial que a investe de humanidade”.[xxvii] E por mais que a coisa se fenomenize ainda como transcendente às tomadas subjetivas, ela aparece inicialmente como finalizada pelos interesses práticos que dotam o mundo percebido de predicados de sentido. Se é assim, esse mundo concreto finalizado que assim aparece é, pelo menos num primeiro momento, algo de particular e privado. Sem a segunda redução que nos fazia passar, em Husserl, do mundo-da-vida às estruturas transcendentais do ego puro, “a particularização do mundo-da-vida se agrava em Merleau-Ponty” e permanecemos assim a léguas de distância de uma “universalidade possível”. Etienne Bimbenet mostrou-o de modo convincente: “concebida com todo rigor, isto é, no término de uma dupla suspensão do pensamento objetivo, a experiência perceptiva torna-se duplamente incomunicável: ela deve ‘ser vivida’ para se compreender, não se a pode compreender do exterior, e, portanto, nesse sentido preciso, não se a partilha; mas, além disso, ela é um ato fundamentalmente vivo, por conseguinte fechado, por uma forma de narcisismo fundamental, no meio que é o seu. (...) A alucinação, o sonho, o mito, ou ainda a infância, põem a nu aquilo que Merleau-Ponty chama de ‘a espacialidade originária da existência’, dito de outro modo, ‘o ato mais secreto pelo qual elaboramos nosso meio ambiente’: entendamos, o ato impartilhável pelo qual nós elaboramos um meio impartilhável, o vivido singular que nos encerra em uma Umwelt singular. Estamos aqui o mais longe possível de um ‘mundo comum’, do lado de um ‘mundo privado’.”[xxviii] Essa infra-estrutura vital e biológica de nossa vida perceptiva nos abre, pois, para um mundo inteiramente particularizado pelos interesses práticos que nosso corpo dirige ao seu meio-ambiente. Porém, essa infraestrutura vital, a porção de natureza inscrita em todo organismo, não esgota evidentemente todo o sentido de “humanidade”. Por fechado que esteja no seu mundo vital particularizado, o homem é capaz de uma teleologia universalizante, uma visada que torna essa experiência “para-mim” presuntivamente a mesma que “para-outrem”. Ora, não é esse exatamente o problema da expressão?


Com efeito, por ancorada que esteja na experiência, cujos contornos particularizantes já se observou, a expressão pretende torná-la acessível de direito a outrem = x, quer dizer, ela comporta um télos universalizante do qual a capacidade de comunicar a uma intersubjetividade possível representa, aqui, apenas o efeito mais visível. Não era precisamente essa a dúvida de Cézanne, que não sabia se sua obra teria sido algo além de um “grito”, se ele teria “efetivamente dito alguma coisa”? Noutras palavras, trata-se de saber se a expressão venceu sua inerência vital particularizante e captou, naquela “vida informulada”, algo de “válido-para-todos”. “É possível que, não obstante suas fraquezas nervosas, Cézanne tenha concebido uma forma de arte válida para todos. (...) O sentido de sua obra não pode ser determinado por sua vida.”[xxix] Essa universalidade, como se viu, não surge na própria experiência concreta e vital, particularizada como é. Mas deve estar presente na expressão bem sucedida, isto é, válida-para-todos.


Ora, se é assim, percebe-se por que não há exatamente “tensão” entre a expressão encontrar na experiência “um texto original” e ser “realização de uma verdade”. O que não há no texto original é exatamente essa visada universalizante, essa chave que tornaria, sem maiores dramas, a expressão algo de válido-para-todos. Mas, igualmente, percebe-se o risco com que a expressão é intrinsecamente ameaçada e do qual a dúvida de Cézanne é metáfora. A universalidade não é garantida de antemão por uma experiência por princípio comum a todos, pública desde o início. Se a experiência de que se parte é particular – essa particularização agravada da inerência vital em Merleau-Ponty –, então a atividade que a leva a público não encontra uma garantia prévia de sucesso, e não há, ademais, qualquer índice disponível previamente admitido para se avaliar se o exprimido é algo de válido-para-todos ou não.[xxx] A saída só poderá ser uma espécie de “prova pelos efeitos”: se o exprimido deixou de ser um mero “grito”, é porque disse algo de válido para todos, porque produziu seu público ideal que por ele se sentiu “concernido”. Que se sublinhe o pretérito perfeito: não há como saber do sucesso de uma expressão senão post festum. Um sucesso de fato resolve uma questão de direito.


Vai por aí, aliás, a resposta que Bimbenet dá ao problema de se saber como um universal pode erguer-se por sobre o mundo-da-vida o mais particularizado possível. Apenas um “golpe de força da crença”, um “ato violento” faria esse fato valer como um direito: “esse golpe de força, que toma para si como um direito aquilo que é apenas um fato, que se dá o infinito quando só se dá o finito, deixa-se conceber até no empreendimento da comunicação racional”.[xxxi] Tal antinomia do viver e da razão, do particular e do universal, não se resolve por qualquer mediação na Fenomenologia da percepção, e o particular só alcança o universal por um ato de força. Uma “decisão”, talvez? “Só uma crença ou uma fé pode reconciliar aquilo que nenhum saber poderia reconciliar, isto é, o dado e o visado, o particular e o universal, a inerência vital da percepção e sua intenção racional. Crer no mundo é crer, por impossível, que este mundo aqui, o meu, em sua incompreensível particularidade, é ao mesmo tempo o mundo que partilho com todo outro vivente. Nada, nenhuma visão dada nem um saber possível poderia certificá-lo”.[xxxii] Desde então a expressão só pode mesmo ser uma “teleologia pura”, “uma fé ou uma crença sem garantia no ser”[xxxiii], sem qualquer critério previamente disponível de verificação. Cézanne só pode mesmo estar condenado à dúvida. Enquanto fenômeno de expressão, assim também a filosofia de Merleau-Ponty. Prenúncio distante dos pós-modernismos vindouros? De toda forma, avaliando-se bem a questão, não se saberia ao certo se tal “golpe de força” é uma resposta ao problema da expressão, ou se seria o problema ele mesmo, afirmado alegremente como solução. Crença por crença, façamos nossas apostas... Parecemos ficar sem critérios para avaliar o sucesso de uma expressão, incapazes de dizer, antes do fato, se uma expressão é “expressão de algo” ou “um grito”, se tem alguma validade ou se permanece um ruído informulado. O remédio, é certo, seria “voltar à experiência da percepção” para encontrar o núcleo vivo daquelas palavras, e ali confirmar o valor da expressão. Mas como essa experiência é algo de privado, nunca se encontrará ali as marcas do “válido-para-todos”, mas apenas um certo “sentimento de plenitude”. Après coup, pode-se saber se “algo foi dito”, como escreverá Merleau-Ponty. Mas até lá, o artista e o filósofo agem às cegas, seu télos expressivo não tem apoio no mundo.


III


Será essa a última palavra do filósofo sobre o assunto? Costuma-se dizer que a partir da Prosa do mundo, munido do conceito de instituição e da estrutura diacrítica da linguagem que toma de Saussure, Merleau-Ponty dissolveria a questão. Compreendendo a obra de expressão como um acontecimento instituinte, simplesmente se estabeleceria que, doravante, o particular fabrica o universal, a universalidade da expressão começaria desde a nossa experiência perceptiva, e por isso certos acontecimentos instituintes seriam capazes de produzir algo de válido-para-todos. Focando as análises no sujeito falante como momento sincrônico e totalizante de uma estrutura linguística, estava dado o passo necessário para se compreender como o particular se liga intrinsecamente ao universal. O ato de fala, por privado que seja, já coloca o sujeito num universo partilhado da linguagem, desde sempre público. Isso remove a ideia de que, pelo menos no “silêncio da consciência”, haveria uma experiência absolutamente privada da doação. “O que chamo de cogito tácito é impossível. Para ter a ideia de ‘pensar’ (...), para fazer a redução, para voltar à imanência e à consciência de... é preciso ter as palavras.”[xxxiv] Eis desfeita na base a oposição do particular ao universal compreendida como aquela entre experiência silenciosa da consciência e expressão. Ainda que apenas a título de apontamentos muito gerais, vale a pena comentar rapidamente a solução que o último Merleau-Ponty dará àquela “tensão” entre experiência e expressão, até para se observar o tamanho rearranjo dos dados do problema que sua ontologia acarreta.


Na Fenomenologia da percepção, era uma tendência a se fazer do mundo vivido a experiência na qual as abstrações das ciências e as significações encontrariam seu núcleo de preenchimento intuitivo que revelava, de modo mais ou menos sub-reptício, a compreensão ainda positiva dessa camada originária de doação do fenômeno por parte de Merleau-Ponty. Com efeito, não se formulava ali qualquer suspeita acerca do caráter diacrítico seja da linguagem, seja dos próprios fenômenos percebidos (que será sua tese a partir dos anos 50). Donde aquela compreensão da vida silenciosa da consciência como a região em que se encontraria o “núcleo intuitivo” e pré-liguístico das significações. Como diz a Fenomenologia da percepção, “o próprio sentido de coisa se constrói sob nossos olhos, um sentido que nenhuma análise verbal pode esgotar que se confunde com a exibição da coisa em sua evidência”.[xxxv] No Visível, ao contrário, não se reportará o sentido original das palavras aos gestos emocionais em que primeiro ele primeiro teria surgido, porquanto não haverá mais essa camada primitiva da experiência muda na qual a linguagem se fundaria. Isso porque a linguagem, obedecendo àquela estrutura diacrítica de Saussure, não conhece qualquer relação direta entre significante e significado, e o sentido não remete a qualquer entidade extralinguística. O sentido será constituído na diferença entre signos opositivos, portanto, no interior da linguagem e da expressão. Aquela experiência muda, na qual a coisa seria dada numa adequação intuitiva sem resto, anterior a qualquer “interpretação” cultural e à linguagem, é agora entendida como a quintessência mitológica das filosofias da consciência. “As palavras não reenviam a significações positivas e finalmente ao fluxo das Erlebnisse como Selbstgegeben. Mitologia de uma consciência de si à qual reenviaria a palavra ‘consciência’. Não há senão diferenças de significações.”[xxxvi] Evidentemente, há aqui dois alvos sendo criticados: Husserl, é claro, mas também o próprio Merleau-Ponty da Fenomenologia da percepção, numa referência direta ao “silêncio da consciência” do seu prefácio. Em comum, a “mitologia” de uma experiência muda e imediata, um contato mudo de si consigo no qual as significações se ancorariam. Essa experiência muda é, no texto merleau-pontiano, o fluxo dos vividos como dados em pessoa, isto é, justamente o campo imanente da evidência desvelado pela redução husserliana. Agora, opõe-se a isso as “diferenças” a armar a estrutura da linguagem: sem correspondência direta entre signo e sentido, não se encontrará no mundo nada capaz de preenchê-los positivamente. A linguagem não indica nenhum sentido linguisticamente neutro, a expressão não torna visível algo que já podíamos ver sem ela. Ela o produz à medida que o torna visível.


Nem por isso é verdade, dirá Merleau-Ponty, que repentinamente tudo tenha se tornado linguagem: haverá ainda “alguma” experiência não-linguageira, mas ela não trará qualquer significação positiva nem nos instalará novamente no “fluxo absoluto das Erlebnisse”. Esse lógos silencioso do mundo percebido, dirá Merleau-Ponty, não é a região das evidências. Muito pelo contrário, ele exige a expressão para ser experimentado, e experimentado como excesso perpétuo a toda expressão. É preciso citar uma nota de trabalho do Visível: “o mundo perceptivo ‘amorfo’ de que eu falava a propósito da pintura – perpétuo recurso para refazer a pintura –, que não contém nenhum modo de expressão e que, entretanto, chama a todos e os exige, e ressuscita com cada pintor um novo esforço de expressão – esse mundo perceptivo é no fundo o Ser, no sentido de Heidegger, que é mais que toda pintura, que toda fala, que toda ‘atitude’, e que, apreendido pela filosofia em sua universalidade, aparece como contendo tudo aquilo que um dia será dito, e nos deixando entretanto a tarefa de criá-lo (Proust): é o lógos endiathetos [silencioso] que chama o lógos prophórikos [proferido]”.[xxxvii] Como lógos silencioso, o mundo percebido contém tudo aquilo que um dia será dito, e desse modo antecipa toda expressão. Contudo, essa garantia não o faz prescindir da expressão criadora, pois, mesmo antecipando tudo, ele exige o trabalho da expressão para se manifestar e ser, pois, experimentado: “o Ser é aquilo que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”.[xxxviii] Por um lado, não há experiência que já não seja mediada pela expressão. Mas, por outro, se é verdade que existe um lógos silencioso do próprio mundo percebido, esse silêncio apenas aponta para aquilo que, em cada expressão, permanece como fundo não atualmente tematizado por ela, como aquilo que a excede e se retrai a cada criação que o faz ver. Assim, esse silêncio aquém da linguagem aponta, agora, muito menos para a consciência muda como núcleo primitivo de sentido do que para um Ser e um lógos – que não é o do homem, garantirá Merleau-Ponty, mesmo se fazendo através dele – que se manifesta e se oculta a cada ato de expressão, excedendo-o permanentemente.[xxxix]


A oposição de que se partiu, entre “experiência muda” e “expressão de seu sentido”, sofre com isso uma torção inesperada. Não se trata nem de opor o domínio de uma experiência originária à expressão como interposição signitiva à presença, nem o particular vivido ao universal visado pela expressão. Por um lado, dir-se-ia que a expressão é agora, como antecipavam certos textos que na Fenomenologia da percepção permaneciam sem justificativa, “realização” de uma verdade e do sentido. Mas essa “realização” é, na mesma medida, “contato com o Ser”. Sem uma experiência dada previamente que se trataria de levar à expressão, a expressão cria o sentido daquilo que vai dizer; mas como aquele fundo silencioso do Ser é o que “contém tudo aquilo que será dito”, excedendo-o sempre, ele aparecerá como já antecipando todo o sentido que será, contudo, criado apenas na expressão. Mais ou menos como ocorre num ato de fala que, ao dizer algo, revela que aquele algo já era antecipado pela língua, restando entretanto a necessidade de alguém o dizer. Avaliando essa última doutrina de Merleau-Ponty, Taminiaux acerta inteiramente: “o mundo do silêncio é o mundo perceptivo, o Lebenswelt, que chama uma expressão que em um sentido ele já continha, mas que não é, por isso, menos criação. A expressão, portanto, produz o sentido, cria o sentido e desvela um já-aí do sentido. Ela se precede, por assim dizer, a si mesma, de tal sorte que não há motivo para colocar de um lado o domínio do originário, que seria a experiência silenciosa, e, do outro, a expressão mesma como camada segunda. (...) A experiência do Ser não está, portanto, aquém da expressão, é a favor desta que ela se produz. Desde então, a experiência está tanto do lado da expressão quanto do lado da percepção. E igualmente, a expressão está tanto do lado da percepção quanto da fala”.[xl] Sem haver exterioridade entre experiência e expressão, a experiência só se constitui no jogo do exprimir, ainda que para excedê-lo sempre.


Como avaliar, finalmente, a oposição do particular e do universal? Com essa nova concepção de uma reversibilidade entre experiência e expressão, teremos agora critérios para avaliar o sucesso de uma obra? Por um lado, é evidente que a dúvida de Cézanne não se coloca mais, já que a sua “vida informulada” será agora habitada, desde seu íntimo perceptivo, por um lógos que o artista partilha com os demais membros do mundo sensível. Que se consulte O olho e o espírito a respeito. Por outro lado, o intuicionismo segundo o qual a percepção me apresentaria as coisas em carne e osso parece fazer água. Doravante, não haverá doação que não seja acompanhada de uma ausência constitutiva, toda experiência direta já sendo mediada pela atividade da expressão, que deforma apresentando (ou apresenta deformando, como se queira, e desde que não se tome tal “deformação” como facultativa à fenomenização). “A menor percepção já estiliza”, como se lê na Prosa do mundo. Ou, na ontologia do Visível, todo Ser aparece graças a uma expressão criadora, mas sempre para excedê-la, apresentando-se e ocultando-se repetidamente a cada vez. Há uma distância constitutiva entre ser e fenômeno, entendida como perpétuo recolhimento do ser em relação à sua presença.


Isso leva Merleau-Ponty a transitar inevitavelmente da fenomenologia à ontologia indireta de seus últimos escritos. E essa ontologia só pode mesmo ser indireta, porque visa manifestar, através da linguagem, aquilo que excede a doação e a nomeação. Assim, o comentário daquela experiência que antecipa a expressão e que, no entanto, ao mesmo tempo carece dela para constituir-se, só poderá ser um comentário negativo. Observe-se que essa ontologia indireta é o que faz com que a filosofia não se asile para sempre na imanência da linguagem, reconhecendo a existência de algo para além da expressão, ainda que careça dela para se visibilizar. Com isso, não se está condenado a fazer da totalidade do mundo um mero caso da nossa linguagem.[xli] Pode-se admitir que há mundo para além do dizível pela linguagem, ainda que, ao mesmo tempo, esse mundo só possa se manifestar pela linguagem e dentro das condições estruturais de expressão por ela estipuladas a cada momento “histórico”. É certo que, para isso, foi necessário admitir a validade de um Ser que se furta e se apresenta através dos entes, excedendo desse modo a fenomenização. Resta ainda, é claro, avaliar o óbvio preço metafísico da admissão dessa tese. Mas isso fica para uma outra ocasião.































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[i] Descombes, V. “An essay on philosophical observation”, in Montefiori, A. (org.) Philosophy in France today, Cambridge U.P., 1983, p. 79.

[ii]Merleau-Ponty, Causeries, Paris, Éd. du Seuil, 2002, p. 37.

[iii]Cf. Taminiaux, J. Le regard et l´excédent, Martinus Nijhoff, La Haye, 1977.

[iv]Merleau-Ponty, in : Husserl. Cahiers de Royaumont, Paris, Éd. Minuit, p. 157 ; cit. Taminiaux, op. cit. p. 91.

[v]Husserl, E. Méditations cartésiennes, PUF, Paris, 1994, pp. 83-4.

[vi]Idem, ibidem.

[vii]Idem, ibidem.

[viii]Husserl, Ideias para uma fenomenologia pura..., I, Ideias e Letras, 2006, §24.

[ix]Husserl, Méditations..., op. cit., p. 84.

[x]Cf. Benoist, J. “‘O mundo para todos: universalidade e Lebenswelt no último Husserl”, in: revista Discurso 29, São Paulo, Discurso, 1998.; De Moura, C. A. R. “A invenção da crise”, in Racionalidade e crise, São Paulo, Discurso / UFPR, 2001.

[xi]Derrida, J. La voix et le phénoméne, Paris, PUF, 1967, p.77.

[xii]Taminiaux, J., op. cit., p. 97. Sigo aqui essa interpretação conhecida apenas para ressaltar, à contraluz, as dificuldades que surgirão para Merleau-Ponty.

[xiii]Husserl, Méditations cartésiennes, §5.

[xiv]Merleau-Ponty, La phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, 1945, p. X ; Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 12 (trad.).

[xv]Idem, ibidem.

[xvi]Idem, ibidem.

[xvii]Idem, p. 69.

[xviii]Taminiaux, op. cit., p. 98.

[xix]Merleau-Ponty, Phénoménologie…, p. 77.

[xx]Idem, p. xviii e p. 419.

[xxi]Taminiaux, op. cit., p. 103.

[xxii]Merleau-Ponty, Phénoménologie…, p. 19 (trad.).

[xxiii]Idem, p. xiii.

[xxiv]Idem, p. 19 (trad.).

[xxv]Idem, ibidem.

[xxvi]Idem, p. 77.

[xxvii]Idem, p. 429 (trad.).

[xxviii]Bimbenet, "Une nouvelle idée de la raison : Merleau-Ponty et le problème de l’universel", in Cariou, M. (org). Merleau-Ponty aux frontières de l´invisible, Milano, Mimesis, 2003, p. 57.

[xxix]Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, in O olho e o espírito, São Paulo, Cosac & Naify, 2004, p. 125, grifo meu.

[xxx]Observe-se que as aborrecidas pendengas acerca da “fala falante” em Merleau-Ponty – saber se há algum critério claro para se avaliar se uma obra é “repetição, fala falada” ou “criação, fala falante” – tornam-se repentinamente dignas de interesse filosófico.

[xxxi]Bimbenet, op. cit., pp. 61-3.

[xxxii]Idem, p. 62.

[xxxiii]Idem, p. 63.

[xxxiv]Merleau-Ponty, Le visible et l´invisible, Paris, Gallimard, 2004, p. 223.

[xxxv]Merleau-Ponty, Phénoménologie…, p. 433 (trad.)

[xxxvi]Merleau-Ponty, Le visible…, p. 223.

[xxxvii]Idem, ibidem. Incisos meus.

[xxxviii]Idem, ibidem.

[xxxix]“É preciso descrever (...) o lógos também como se realizando no homem, mas de modo algum como sua propriedade” (Merleau-Ponty, Le visible..., p. 322).

[xl]Taminiaux, op. cit., p. 107.

[xli]Cf. De Moura, C. A. “Linguagem e experiência em Merleau-Ponty”, in Racionalidade e crise, pp. 296-7.