revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Sebastião NASCIMENTO

a primavera incessante

 

entre o longo inverno do descontentamento censurado e reprimido e o glorioso verão da liberdade vivida com dignidade, jamais deixa de florescer a luta por sempre mais democracia

 

Movam-se na direção que forem as análises sobre as inúmeras variáveis e perspectivas que seguirão sendo invocadas para a avaliar e apresentar; a história a ser contada sobre as revoluções árabes do início do século XXI não pode ser outra senão mais uma das abrangentes histórias de reafirmação da autodeterminação como referencial convergente para os pontos de virada histórica no mundo moderno, em que as tribulações e os desafios na luta por mais legitimidade, participação e garantias democráticas em um país inspiram outras mobilizações e demandas similares em países que sofrem o mesmo descompasso entre as expectativas populares e a estrutura política e jurídica de representação e controle institucional. E da mesma forma que em outros episódios históricos de adensamento de mudanças na configuração e na morfologia das sociedades em busca de formas viáveis e sustentáveis de autogoverno – que, na falta de outras metáforas, tendem a ser chamadas de “primaveras populares”, como inicialmente em 1848 na Europa e, nos 150 anos seguintes, em sucessivas ondas de revoltas e revoluções populares em todos os continentes –, a mobilização revolucionária tende a denunciar e a reverter uma distância insustentável existente entre as formas institucionais assumidas pelos sistemas político e jurídico e as expectativas dos cidadãos mobilizados em torno de pedidos por demandas de transformação das instituições e dos mecanismos de preservação de sua legitimação.


Do Marrocos ao Irã, do Gabão a Myanmar, de Cuba à China, governos autoritários, corruptos ou ilegítimos desdobram-se em fúteis exercícios de antecipação para conter ou limitar a tempo o efeito catalisador que as conquistas democráticas no Oriente Médio podem ter, ao mesmo tempo em que reivindicações democráticas ganham uma dimensão inteiramente nova de eficácia e universalidade, e em que toda uma década de luta contra o terrorismo, conduzida com base em plataformas xenofóbicas e políticas reacionárias, não pôde anular, mas conseguiu manter fora dos radares dos grandes veículos de comunicação. O espectro de países nos quais a mobilização popular procura, a partir desta longa primavera de 2011, denunciar a ilegitimidade dos arranjos institucionais de governo é tão amplo e diverso quanto são variadas as configurações sociais, políticas e estruturais que os caracterizam.


Os modelos de mobilização dos revolucionários tunisianos e egípcios já haviam sido bem-sucedidos na mobilização no Líbano a partir de fevereiro de 2005 e, incensada como Revolução de Cedro por americanos e europeus e celebrada como Levante Independentista pelos próprios libaneses, culminou na retirada total das tropas sírias do território libanês. Não são poucos os analistas que apontam essa mobilização como o marco inicial das mobilizações antiditatoriais que sucessivamente alcançariam grande visibilidade no Irã em 2008, na Tunísia em 2010 e no Egito em 2011. Porém, somente uma ênfase injustificada no elemento culturalista homogeneizante que se esconde por trás de expressões correntes como o mundo árabe ou os países árabes, reminiscentes de generalizações orientalistas que ofuscam a diversidade demográfica da região, opta pelo recorte étnico que descola as revoltas democráticas mais recentes na Tunísia e no Egito não somente de episódios anteriores de mobilização popular nestes próprios países, como também de um contínuo de levantes populares contra regimes ditatoriais, políticas espoliatórias ou manipulações eleitorais que vêm ocorrendo incessantemente pelo menos desde o fim da Guerra Fria.


Foram inúmeros os levantes populares que marcaram esse caminho que conduziu da própria reunificação do Iêmen em 1990 até a ocupação da Porta do Sol madrilenha em 2011, alguns mais outros menos bem-sucedidos: ferrenhas mobilizações nacionalistas nas ex-repúblicas iugoslavas e na dissolução da República Sérvia, o fim do apartheid na África do Sul e a independência da Namíbia, os levantes pós-eleitorais nas ex-repúblicas soviéticas (Ucrânia, Quirguistão, Uzbequistão) e nas independências unilaterais da Ossétia do Sul e da Abecásia, o fim da hegemonia do Kuomintang em Taiwan, os confrontos que instituíram o bipartidarismo na Tailândia, o fim da monarquia nepalesa, a independência timorense, a dissolução do Sudão e da Somália, são todos eventos e processos que não podem ser explicados sem o concurso de uma ampla e sólida mobilização popular que obrigou as forças políticas estabelecidas a abrir mão de suas posições institucionais, alterando muitas vezes não somente equilíbrios de poder internos, mas arranjos inteiros e alianças regionais e internacionais. Outras mobilizações em torno de demandas igualmente legítimas não chegaram a produzir resultados tão claros ou duradouros: os levantes suprimidos no interior da China (por autonomia nacional e garantias fundamentais de proteção de minorias, como no Tibete, Xinjiang e Mongólia Interior), demandas de autogoverno suprimidas violentamente em Tamil Eelam, na Tchetchênia, no Saara Ocidental, em Darfur, em Ogaden, em Gaza, no Baluquistão, na Caxemira, no Curdistão e em inúmeros outros casos no Norte da África, no Oriente Médio ou em regiões adjacentes.


Para muitos dos governos que se viram confrontados por essas reivindicações de autonomia, a supressão foi enormemente facilitada pela caracterização das forças populares de resistência e oposição como grupos terroristas ou irredentistas a serviço de potências estrangeiras. E tampouco foram escassas as tentativas de caracterizar dessa mesma forma a mobilização antiditatorial em todos os países que atualmente abrigam levantes democráticos. A partir da visibilidade e da mobilização de apoio internacional obtidas pelos movimentos revolucionários do Líbano, do Irã, da Tunísia e do Egito, o recurso à ameaça terrorista como pretexto para a supressão da oposição democrática poderá continuar a ser articulada para propaganda interna, mas dificilmente voltará a ser absorvida com a mesma leniência pela opinião pública internacional ou a ser utilizada como excludente de culpabilidade na perpetração de crimes de guerra e contra a humanidade.


O efeito viral do apelo que as conquistas de libaneses, tunisianos e egípcios, além da tenacidade da oposição iraniana,  provocam no mundo devem-se sobretudo ao sentido aberto das mudanças de longo prazo que se desenham, desnudando a inevitabilidade de encontrar um arranjo democrático secular para gerir a pluralidade de sociedades que se tornaram complexas demais para serem governadas com mão de ferro ou a partir do púlpito da religião. Um tal apelo prenuncia cenários do que os movimentos democráticos de outros países tentarão viabilizar a partir das conquistas já obtidas no maior dos países de maioria árabe. Efeitos igualmente irreversíveis podem ser prenunciados onde quer que plataformas similares de demanda de garantias constitucionais e regulação de processos eleitorais implementadas por um governo legítimo procurem apoiar seus esforços de democratização em amplas alianças que intentem abarcar e absorver num processo político infinitamente mais poroso todos aqueles grupos convencionalmente alijados pelos regimes ditatoriais. Assim como ocorreu na Tunísia e no Egito, o apelo (senão o sucesso) desses chamados será irresistível.


De todos os países com populações árabes predominantes, somente o Qatar não registrou protestos expressivos dirigidos contra o governo, mas seu governo já anunciou reformas constitucionais e está firmemente engajado na mobilização de esforços diplomáticos para promover uma ampla reforma da Liga Árabe, além do reconhecimento dos novos governos da Tunísia, do Egito e da Líbia. Para além dos casos em que os manifestantes tiveram grande parte de suas demandas atendidas, como na Tunísia e no Egito, ou em que segue havendo confrontos brutais com as forças de segurança, como no Bahrein, na Líbia, no Iêmen e na Síria, conflagrações abertas e amplas mobilizações ocorreram também no Sudão, Omã, Kuwait, Arábia Saudita, Jordânia, Palestina, Líbano, Iraque, Marrocos, Emirados Árabes e Djibuti. Mas o efeito desse apelo para muito além da região, abarcando movimentos populares no Paquistão e no Afeganistão, na Etiópia, em Uganda, nos Camarões, na Costa do Marfim, na Suazilândia, em Moçambique, na Geórgia, na Armênia, no Azerbaidjão, além da inspiração instilada em amplos movimentos suprapartidários na Espanha, na Itália, na Grécia e na Bélgica e do temor instilado nos governos ditatoriais da Rússia e da China e manifestado na histeria repressiva destes governos contra qualquer indício de mobilização democrática ou de tentativa de contornar mecanismos de censura.


Tudo isso indica precisamente que pouco haverá de inusitado na mobilização antiditatorial dos últimos meses, nem seu surgimento, nem seu alcance, nem seu sucesso ou fracasso. Existem suficientes exemplos de conflagrações recentes bastante similares, tanto nos próprios países onde vêm ocorrendo, quanto em outros que eventualmente subjugaram o autoritarismo ou foram por ele suprimidas. Diante dos eventos recentes no Irã, nas repúblicas e monarquias de maioria árabe, nas repúblicas do Cáucaso ou na Costa do Marfim, em Uganda e na Suazilândia, somente se sustenta uma sensação afetada de surpresa se esta for construída a partir de uma inversão completamente ilegítima, que naturalizasse a soberania nacional incontrastada dos regimes vigentes e condenasse toda ação infra- ou paraestatal internacionalmente relevante apenas como desvio da norma, como excrescência ou ilegalidade. Ou então por meio da postulação de um vínculo privilegiado entre a demanda por democracia e uma afiliação territorial ou cultural específica: como se, numa inversão legitimadora da autoimagem das sociedades ocidentais modernas, as vítimas da tirania fora da Europa ou da América a merecessem, desejassem ou de outra forma de governo não fossem capazes.


Sob esses termos, nada mais natural que denunciar e combater como terroristas ou criminosos todos os grupos que contestem ou desafiem a legitimidade dos regimes que controlem o território em que se situem. Por essa lógica – curiosa e casuisticamente revisitada pelas delegações alemã, indiana e brasileira no pronunciamento de sua abstenção na votação que aprovou a resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que instituiu o mandato internacional para o emprego de todos os meios necessário para a proteção de civis na Líbia – a ideia de soberania popular, que funda o pensamento democrático moderno e o arcabouço institucional das organizações internacionais do século XX, é abandonada em favor de uma noção estadocentrista de soberania nacional e de zonas de influência, que justifica o emprego de medidas coercitivas mesmo contra a própria população, sob o manto de uma não intervenção seletiva, que abriria espaço pra que as potências regionais interviessem em seus respectivos continentes, mas que afastaria qualquer jurisdição transcontinental ou supraestatal na proteção de civis ameaçados pelo próprio governo ou com sua anuência.


Se quiserem sustentar pretensões de relevância política regional e internacional em meio a um processo radical e acelerado de constitucionalização e consolidação de princípios democráticos e a uma clara mudança dos discursos de fundamentação da atuação das organizações internacionais, tanto americanos como europeus, turcos e iranianos, assim como chineses, russos, indianos e brasileiros ainda têm muito a discutir e analisar para absorver as decisivas transformações que já ocorreram e que ainda se anunciam, e para ajustar seus discursos e posturas de modo correspondente. Outros países, menos inerciais, parecem já haver compreendido o que está em curso e têm assumido um papel de destaque na condução das ações internacionais em favor das revoluções em curso, sobretudo os países nórdicos, o Qatar, Portugal e Austrália. A insistência numa abordagem estratégica ou puramente comercial isolará antes as grandes potências que os governos emergentes dos processos revolucionários.


Uma das novidades genuínas, porém, naquilo que vem ocorrendo em praticamente todos os focos revolucionários na região, é que, de modo radicalmente diferente de outros períodos de agitação popular por reformas institucionais e mudanças de regime, muito antes que as potências internacionais e os abrangentes alinhamentos ideológicos pudessem compor ou favorecer – para o consumo das massas desinformadas mundo afora – uma interpretação dos eventos e das forças por trás deles como um retrato modelar de um conflito dual entre, de um lado, os aliados do mundo livre e, do outro, as forças da sujeição política ou da nacionalização e centralização na gestão dos recursos econômicos, antes que o roteiro fosse montado com mocinhos enfrentando vilões, milícias cívicas eliminando a ameaça de broncos e brutos insurgentes, as próprias ferramentas de mobilização permitiram aos manifestantes assumir o controle integral da articulação e da direta e imediata difusão a todos aqueles minimamente interessados de sua própria versão dos eventos e de sua própria caracterização de si mesmos, oferecendo uma forma mais aguda de objetividade e imediação para um público exausto com as construções teleguiadas de amigos e inimigos distantes e que já não se satisfaria com a retórica do risco ou com a reticência do quietismo.


Para cada uma das iniciativas atávicas de analistas e pânditas afeitos a retratos convencionais pintados a largas pinceladas no sentido de reavivar generalizações orientalistas sobre as inclinações de certos povos ao despotismo, sobre os riscos de que instituições democráticas não seriam utilizadas adequadamente e os candidatos errados acabariam sendo eleitos e sobre os riscos terríveis de que as mudanças pudessem acabar por fazer que o rumo das coisas de fato mudassem, havia uma série de blogueiros, tuiteiros, cinegrafistas amadores e cidadãos jornalistas para oferecer não somente uma outra versão para os eventos, mas diversas versões, cada uma delas infinitamente mais bem documentada, coerente e articulada que os borrões em preto e branco dos opinadores profissionais.


Nesse cenário, as escusas da pacificação regional e da estabilização interna de aliados estratégicos para justificar a neutralização de forças hostis através do patrocínio do despotismo travestido de moderação já não teriam condições de se sustentar. É a partir daí que todos aqueles massacres que eram cometidos longe das praças públicas sob o manto da inacessibilidade, da indiferença ou da conivência da opinião pública mundial passaram a ocorrer a céu aberto, ao longo de linhas de força que avançavam de modo irresistível na direção dos centros de poder político e simbólico e com intensidade, meticulosidade e crueza que surpreenderam somente aqueles que insistiam em acreditar que a retórica da moderação e da estabilidade produzia aquilo que preconizava, como se pela primeira vez a repressão ditatorial assumisse tons de brutalidade insana.


Qualquer acompanhamento minimamente interessado da história recente dos movimentos oposicionistas nos países árabes, no entanto, daria conta de décadas ininterruptas de corrupção entranhada na estrutura administrativa, manipulações de processos e resultados eleitorais, brutalidade policial e casuísmo judicial, perseguição étnica e religiosa, supressão do pluralismo das expressões linguísticas e culturais, tortura desenfreada, desaparecimentos sistemáticos, massacres periódicos, além da sustentação de ameaças artificiais à segurança nacional e regional convenientes para a manutenção de aparatos militares taticamente inertes, mas intensivos na absorção de capitais e mão-de-obra. Nada de novo na escala e intensidade da repressão, a novidade era que, desta vez, tanto intimidação como cooptação pareciam não mais funcionar e os manifestantes em lugar de rarear, multiplicavam-se com cada marcha para enterrar os mortos dos confrontos anteriores.


Nos embates ainda por travar, o tempo joga ao lado dos manifestantes, na medida em que, a cada novo chamado às ruas, a despeito dos enormes sacrifícios enfrentados pelos manifestantes, dezenas de milhares de pessoas enfrentam todos os riscos da repressão para sustentar as demandas por mudança. Em lugar do desgaste, mais solidariedade dentro e fora do país; em lugar do silenciamento, mais visibilidade para a brutalidade e a corrupção de um regime em colapso; em lugar da fadiga, um ímpeto que se renova a cada conquista de uma plataforma democrática que já começa a se espraiar por toda a região, produzindo concessões inimagináveis da parte de outros regimes ditatoriais, na tentativa de se antecipar ou esvaziar de propósito mobilizações e plataformas que já tomaram corpo em todos os países da região, e em muitos outros para além deles.


Não somente Iêmen, Síria, Líbia e Bahrein terão seu futuro político definido em torno dessas novas plataformas, mas também a Jordânia, a Argélia, o Sudão, a Costa do Marfim, o Marrocos, a Mauritânia, a Palestina, o Irã e até mesmo os emirados e reinos da Península Arábica: demandas pela constitucionalização e secularização do sistema político e jurídico, pelo reconhecimento de liberdades civis, pela equiparação de direitos, pelo fim de legislações discriminatórias e por limitações legais ao poder executivo, monárquico ou clerical começam a ganhar força ao ecoar as demandas e conquistas da Tunísia e do Egito e, com os olhos de todo o mundo voltados ao nascimento de novas repúblicas democráticas na região, não serão mais tão facilmente silenciadas. E tanto mais exigentes serão as demandas por mudança de regime político quanto mais resistentes forem as autoridades efetivas na implementação de parâmetros constitucionais claramente definidos para a sucessão política ou para a limitação e o controle legal do poder dinástico nas monarquias e a abolição total da transferência de poder sem legitimação eleitoral nas repúblicas.


A configuração dessas plataformas de demandas indicam, porém, não somente o que se abre para o desenvolvimento institucional futuro de países libertados de regimes ditatoriais, mas revelam também algo sobre as transformações sociais e demográficas que já ocorreram e que oferecem a base de sustentação para os movimentos reivindicatórios: a politização e a visibilidade das demandas de equiparação econômica e social das mulheres, a mobilização da massa jovem educada (mas desempregada) através de canais abrangentes de comunicação que contornam a censura e se apoiam nos altos níveis de alfabetização e no domínio de outras línguas, a demanda pelo fim dos regimes discriminatórios de base étnica, sectária, linguística ou estatutária (como no caso dos refugiados de segunda ou terceira geração, das revogações punitivas de cidadania ou dos extensos períodos probatórios para a cidadania plenas nos emirados e reinos da Península Arábica), demandas por investigações imparciais e pelo reconhecimento de demandas históricas de grupos minoritários alijados dos serviços mais básicos e marginalizados pela institucionalidade estatal.


Se algo aproxima as revoluções de 2011 ao Irã, a semelhança deve ser buscada em 2008 e não em 1979. Somente a ignorância histórica, a obsessão expiatória ou a cegueira seletiva é que fazem com que se busque na Revolução Islâmica um modelo para interpretar os eventos revolucionários nos países árabes, quando há pelo menos uma dezena de outros casos recentes de levantes populares que resultaram na consolidação de regimes democráticos em todos os continentes, na África do Sul, na Índia, nas Filipinas, em Portugal, na República Tcheca, na Polônia, entre tantos outros países onde a democracia pode bem estar longe de haver cumprido todo o seu potencial de transformação social e desenvolvimento econômico – existe, afinal, alguma instância final e plena da democracia? –, mas revezam na administração governos que sustentam alianças estratégicas inestimáveis para os outros governos democráticos, oferecem garantias fundamentais à configuração plural de suas sociedades e mostram-se sempre permeáveis às demandas e reivindicações de seus cidadãos.


O exílio, a renúncia ou a deposição dos ditadores, apesar de representar, ali onde já aconteceu, a vitória simbólica mais retumbante dos revolucionários até o momento e, onde ainda não aconteceu, o amálgama mais coesivo com que podem contar, não constitui mais do que uma das demandas dos manifestantes, a mais importante, sem dúvida, e a condição fundamental para que qualquer negociação crível possa ser travada em torno da reforma constitucional e da convocação de eleições livres e justas. Mas enquanto os regimes de exceção apoiados em estados permanentes de emergência ou em decretos presidenciais arbitrários, qualquer conquista obtida contra a ditadura será apenas uma circunstância passageira e insustentavelmente precária, como têm demonstrado as prisões arbitrárias de manifestantes no Egito e na Tunísia pós-revolucionários, onde a ditadura foi derrubada, mas nada ainda foi erguido em seu lugar. Enquanto a reforma constitucional não ocorrer e um governo legítimo não for democraticamente eleito, a grande conquista revolucionária continuará tendo meramente o caráter de um sacrifício de vidas civis em protestos não violentos para apressar e facilitar a realização de mais um golpe militar (e, possivelmente, não o último).


A despeito de toda a insistência de jornalistas e comentadores sobre a falta de clareza das demandas, algo que revela mais a ansiedade e o desconforto dos observadores do que qualquer fator que reflita desorganização ou dispersão na base dos protestos, as demandas dos movimentos democráticos tanto no Irã e no Líbano, como na Tunísia, como no Egito, como na Líbia e no Iêmen, são bastante claras – e tornam-se cada vez mais claras e articuladas também no Bahrein, na Síria e na Palestina –, e continuam estipulando as condições mínimas para que um processo sustentável de negociação e reforma institucional tenha início e possa ser conduzido sem receios de uma ulterior campanha de perseguição e intimidação por parte das forças de segurança dos respectivos estados, na tentativa de sustentar privilégios ilegais ou promover indevidamente elites política que porventura favoreçam.


Com a exceção do Irã teocrático, que demandará uma reforma institucional mais ampla, e do Bahrein monárquico, cuja oposição não se voltou ainda contra a coroa, em todos os casos, o afastamento do chefe de estado se coloca como condição primordial e incontornável para que qualquer tipo de negociação pudesse ser conduzida sobre a implementação de todas as outras demandas, que exigem não mais do que a suspensão do estado de emergência, a dissolução dos parlamentos e gabinetes eleitos ou apontados de forma fraudulenta e um processo eleitoral legítimo a ser convocado por um governo provisório de unidade nacional, capaz de afastar os bloqueios políticos ao julgamento dos responsáveis pela corrupção e pela brutalidade dos regimes ditatoriais.


Esse foi o denominador comum que se revelou capaz, tanto na Tunísia e no Egito como nos outros casos, não só de mobilizar politicamente grupos sociais alijados historicamente dos sistemas políticos nacionais, mas de consolidar uma ampla aliança entre as forças políticas emergentes em torno de toda a plataforma de demandas que se viabiliza com a renúncia ou a deposição do ditador, e não se esgotando em sua remoção. Essa radicalização da plataforma democrática não somente se anuncia, mas já se configurava na própria organização dos protestos, na mobilização da resistência aos ataques do aparelho repressivo do governo e na configuração dos conselhos populares de autodefesa e de discussão sobre as reivindicações e as ações a serem tomadas.


Diante dessa reivindicação agregadora, não foram apenas jovens que responderam ao chamado de mobilização: mulheres e homens das mais diversas idades, estudantes e desempregados, donas de casa, trabalhadores e aposentados, cristãos, muçulmanos e ateus, agricultores, operários e prestadores de serviços, socialistas e liberais, líderes religiosos e sindicais, advogados e juízes, artistas, intelectuais e jornalistas, ativistas de todas as causas e até mesmo amplos setores das forças de segurança se juntaram às manifestações, que acabaram se espalhando por todas as regiões dos países afetados, levando milhares de pessoas às ruas das capitais e mesmo das cidades de menor porte.


O apelo inicial dos protestos encontrou eco numa base tão ampla quanto plural, que aumentou enormemente em número, mas cuja diversidade já estava configurada desde o início. A inércia dos sistemas políticos ditatoriais os torna incapazes de dar voz ou vazão à diversidade e complexidade crescentes das sociedades da região. E, aferrando-se aos mecanismos inerciais de supressão da diversidade, em lugar de sua canalização, foram tomados de surpresa e assalto quando as figuras mais dinâmicas dessas complexas sociedades resolveram assumir as rédeas do processo político.


A mesma aliança ampla que, unindo jovens ativistas, desempregados e aposentados, classes médias urbanas, associações de trabalhadores rurais e a oposição sindical das grandes cidades, permitiu aos manifestantes criar os focos dispersos de mobilização que confundiram as forças de segurança tunisianas e egípcias e permitiram a realização dos primeiros grandes protestos que produziram a galvanização inicial das forças de oposição, a sustentação dessa mesma aliança – com múltiplas lideranças, plural, diversa, descentralizada – foi o que garantiu condições para que as mobilizações de dezenas de milhares de manifestantes inicialmente circunscritos às grandes cidades se espraiasse por praticamente todas as regiões dos respectivos países.


Mesmo diante das reações violentas dos regimes desafiados pela população, grupos das mais diversas orientações políticas e religiosas, classes sociais e categorias profissionais cerraram fileiras e fincaram pé nos territórios liberados em Túnis, no Cairo, Suez e Alexandria, em Bengahzi e Misurata, em Sanaa, em Daraa e Homs, onde absorveram o impacto fatal de diversas táticas infames de repressão que os regimes ditatoriais de Ben Ali e Mubarak, de Gaddafi, Saleh e Asad insistem em mobilizar, mesmo diante do opróbrio interno e internacional que anula qualquer resquício de apoio ou legitimidade que ainda pudessem pretender angariar em meio a seus antigos aliados estratégicos.


A crueldade, a imprevisibilidade e a excentricidade não são a matéria de que são feitos os tiranos. É sobretudo nosso mapa político que, diante de um renovado impulso por reajuste, revela haver estado algo descentrado por um longo tempo. Não é plausível e nem recomendável esperar que uma reação ponderada acabe por emergir de um sistema político estabelecido sobre o fundamento da condução caprichosa de um só líder, partido ou grupo, condução orientada no mais das vezes pela manipulação violenta de divisões internas nas sociedades sob seu controle. Mas não há qualquer irracionalidade no poder incontrastado: poder exercido politicamente de modo dispendioso, caprichoso e insanamente destrutivo ainda assim é poder. Se recorrermos a uma medida exterior de racionalidade para julgar ditadores que se aferram ao poder pela simples razão de o deter, sem qualquer outro objetivo que utilizar o poder político para se manter no poder, estaremos na verdade utilizando uma metáfora psicológica para substituir a divisão claramente estabelecida em termos políticos e jurídicos entre governo democrático e não democrático.


Contrariamente a uma percepção amplamente sustentada e lamentada em tons diversos praticamente por toda a parte, aquilo que é específico aos ditadores que, desafiados, optam pelo massacre de seus próprios concidadãos, não é a crueldade, a excentricidade, a vulgaridade ou a brutalidade, mas a longevidade no poder, como prova incontrastável de que o recurso anterior ao mesmo tipo de reação insana na verdade funcionou o bastante para sustentar seus respectivos regimes. Mesmo os episódios de estridência delirante de um ditador famigerado como Muammar Gaddafi não deve ser tratada como apenas a mais recente gafe na longa carreira de uma figura inepta e insana, mas faz parte integral de um leque de esforços comuns de sustentação ao largo de compromissos institucionais compartilhados por outros regimes antidemocráticos em momentos de crise e contestação. O mesmo poderia ser dito do aparente desapego e contrariedade de um Bashar al Asad, da temperamental teimosia de um Ali Abdullah Saleh, da empáfia miliciana de um Hosni Mubarak ou da bufoneria canhestra de um Mahmmood Ahmedinejad. Diante do confronto com a resistência popular ou com a explicitação de profundas divisões internas, os regimes autoritários tendem a recorrer à encenação farsesca da centralidade do poder em torno da personalidade cultuada de um líder incontrastado ao ponto de se permitir os caprichos da inépcia e da crueldade, para além de outras táticas e ferramentas repressivas similares.


Não é a primeira e nem será a última vez que cidadãos destemidos confrontam mercenários e avançam contra artilharia pesada e bombardeios aéreos. Tais recursos foram amplamente utilizados historicamente por governos belicosos contra suas próprias populações, em esforços para a obtenção ou manutenção de uma ordem política ou jurídica contestada através da supressão de dissidentes que se convencionou chamar de estabilização ou pacificação, seja sob o manto de guerras travadas contra o terrorismo, contra o comércio de determinadas mercadorias, substâncias ou pessoas, contra a secessão ou rebelião. Sem qualquer pretensão exaustiva, basta mencionar algumas das instâncias em que isso ocorreu durante o tempo em que o mais longevo dos atuais ditadores, Muammar Gaddafi, deteve o poder na Líbia: Iêmen do Norte, e posteriormente no Iêmen reunificado, no Paquistão, no Afeganistão, na Colômbia, no Iraque, na Jordânia, no Sri Lanka, na Geórgia, na Armênia, no Azerbaidjão, na Iugoslávia, e posteriormente na Sérvia, na Federação Russa, no Cambodja, no Nepal, nas Filipinas, em Uganda, no Sudão, no Congo, no Vietnã, na Coreia do Norte, na Tunísia, no Líbano, no Marrocos, na Argélia, na África do Sul, em Moçambique, em Angola, nas Maldivas, na Indonésia, no Níger, no Chade, na Etiópia, na Somália e na Nigéria.


O recurso ao bombardeio esporádico ou sistemático de populações civis no próprio território indica, nos casos em que ocorreu historicamente, antes um indício de debilidade do regime que de exercício de um poder incontrastado. Sua ocorrência renitente nesta segunda fase dos movimentos democráticos no Oriente Médio e na África do Norte, marcada pela crueza dos enfrentamentos armados e dos massacres de civis na Líbia, na Síria, no Iêmen e no Bahrein, deve ser interpretadas antes como indicação da situação desesperada em que se encontram as estruturas de repressão profundamente debilitadas pela deserção e por divisões internas, sobretudo se considerarmos que as forças armadas mobilizadas pelos regimes contestados nesses países são compostas em sua maioria por forças especiais alheias à hierarquia militar convencional dos exércitos nacionais, por elementos mercenários ou por tropas estrangeiras mais ou menos disfarçadas.


Tanto mais encenam a impiedade e a brutalidade os tiranos combalidos, acuados e isolados. Por mais que um ditador tão sanguinário como Gaddafi procure renovar suas ameaças de dizimar os opositores, não devemos perder de vista o fato de que, mesmo utilizando sua força aérea para bombardear posições ocupadas por manifestantes e a infraestrutura do Leste da Líbia, em menos de uma semana de protestos no país, o recuo de seu poder efetivo fez com que passasse de rei dos reis africanos a prefeito de Trípoli – circulando de bunker em bunker e incapaz de controlar mais do que uma parte dos distritos da cidade –, de comandante da Legião Africana a tesoureiro de um exército mercenário pago para proteger sua família e massacrar seu povo. Suas forças mercenárias chegaram a circular com certa desenvoltura pela estrada de Ajdabiya, mas depois de semanas de sitiamento e bombardeio das cidades controladas pelos oposicionistas, foram incapazes de retomar ou assegurar o controle de uma delas sequer, mesmo antes da implementação da zona de exclusão aérea. Em menos de dez dias de protestos na Líbia, seu recurso às armas mercenárias, a despeito de seu colapso político, conseguiu produzir algo que 42 anos de governo ditatorial na Líbia e 62 de esforços diplomáticos no quadro das Nações Unidas não haviam conseguido: a unidade de todas as forças políticas do país por trás de um governo de unidade nacional, mobilizado em torno da busca de reconhecimento internacional e da elaboração de uma constituição inédita para o país, e simultaneamente a unanimidade das potências mundiais e das organizações internacionais em apoio ao princípio de jurisdição universal para a investigação e a punição de crimes contra a humanidade.


Pouco mais de seis meses antes do início dos protestos na Tunísia, o mundo todo celebra com admiração a resistência e as enormes conquistas dos povos da região, prenunciando os desafios que as populações oprimidas pelos outros regimes ditatoriais da região enfrentarão em suas lutas por mais liberdade e dignidade. Os efeitos de cada conquista revolucionária e democrática sobre os países vizinhos serão tão diversos quanto são diversas as forças que a vêm motivando ali onde tem ocorrido, na medida em que as condições locais de organização dos aparatos repressivos, além de inúmeros outros fatores, como a composição etária, urbanização, alfabetização, ou até mesmo o nível de distribuição de banda larga de internet, podem modificar as condições específicas de repetir o exemplo de reformas avançadas pelos levantes populares da Tunísia, do Egito e da Líbia. Mas, certamente, a consolidação de uma aliança de países republicanos e democráticos na região, com parlamentos funcionais e governantes selecionados em escrutínios livres e justos, legitimados pela implementação de garantias fundamentais, pelo fim de leis emergenciais de segurança nacional e pela consolidação de instituições representativas plurais e dinâmicas, com todas as oscilações na composição de maiorias parlamentares que isso pressupõe, criará pressões irresistíveis sobre os sistemas políticos repressivos de seu entorno.


Longe de qualquer caracterização de ingenuidade política ou manipulação externa, as pessoas que se dispõem aos enormes sacrifícios de se lançar à luta por mais e maiores garantias democráticas contra sistemas opressivos são, em geral, suficientemente cientes das dificuldades inerentes a processos democráticos de discussão, negociação e formação de maiorias em meio a comunidades plurais. Na Tunísia, no Egito e na Líbia, elas já demonstraram ser plenamente conscientes do caráter cumulativo das conquistas democráticas, no sentido de suprimir bloqueios à participação de um número cada vez mais amplo de cidadãos e de assegurar expedientes de proteção e promoção da igualdade civil, assim como a disciplina e as decisões já tomadas no seio dos grupos revolucionários no Irã, na Síria, no Bahrein, e no Iêmen, no sentido de fazer avançar projetos de reforma institucional e legislativa, anunciam as mesmas predisposições. Nada mais e nada menos. Esse é o apelo da ideia de impor, com toda a força irresistível da legitimidade popular, constituições democráticas a governos nacionais depurados do ranço ditatorial. Esta é uma revolução democrática e transnacional e, apesar de já haver provocado mudanças históricas muito além dos limites regionais, mal começou.




ilustração: Zé VICENTE































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