revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Leonid DOBÝTCHIN

o marinheiro[i]

 

tradução: Moissei MOUNTIAN
Revisão estilística: Aurora Fornoni BERNARDINI
Conto do livro Encontros com Liz e outras histórias (Kalinka, 2009)
Coleção “Contos russos modernos (1900-1930)”

 

Liochka pulou da cama. A mãe estava de plantão.


Inclinada, como sobre um poço, uma meialua esbranquiçada era quase imperceptível. Uma bétula, de galhos escassos e escuros, não se mexia. Pingos reluziam na grama. Bicando aqui a ali, galinhas vagavam pelo quintal com seus pintinhos.


Com a barriga balançando, Trifónikha descia a escada metida num penhoar preto com rosas azuis. Ela estava com uma chave na mão e uma bolsa com um tigre bordado pendurada no braço.


– Fu! – Trifónikha olhou de lado. – Está feito um porquinho! – e, cheia de si, saiu atrás de pãezinhos doces.


– Eu já me lavei – gritou Liochka atrás dela.


Um aguadeiro bigodudo, dando uma mordida numa libra de pão branco, trovejava com as rodas. A poeira levantava preguiçosamente e assentava outra vez.


– Titio – pediu Liochka docemente –, me leve para dar um passeio. O aguadeiro deixouo sentar em cima do barril.


Invejaramno – as mulheres que carregavam potes de barro com manteiga derretida amarrados em cangas; uma condutora, de óculos, que levava uma vaca e ameaçavaa com uma corda; e quatro gatunos que, sentados ao pé de um morro, repartiam um saco de roupa de baixo.


– Roubaram um sótão – o aguadeiro apontou e colocou Liochka no chão.


O sol levantou e ardia quente. O pão branco da casa de chá de Siliébina se iluminou. Um garoto do cinematógrafo colava cartazes. Estava impresso: “Entrada gratuita”, mas Liochka não sabia ler.


Num jardinzinho de cerca marrom, um marinheiro, sentado num banco debaixo de uma cerejeira, deleitavase sob o sol e dedilhava uma balalaica:


– Transvaal, Transvaal...[ii]


No jardim estava agradável. A cerca, que tinha esquentado, agora estava morna e irradiava calor por trás dos ombros. Um cheiro de trevo pairava no ar.


Um marinheiro...


A mãe já tinha voltado e penteava os cabelos diante de uma lasca de espelho.


Tomaram água fervente com açúcar e pão. Resfolegaram. A mãe não o deixou ir ao rio e, puxando a cortininha, deitouse para dormir.


De repente, uma música começou a trovejar. Todos se precipitaram.


Pontas de estandartes brilhavam. Tambores matraqueavam. Pioneiros[iii] de gravata marchavam rumo à floresta. Uma carroça de kvás[iv] troava atrás.


Atrás deles! E os garotos, e os cachorros, balançando os braços, dando pulinhos, batendo os pés no chão:


– À floresta!


Girando uma bucha de banho, o marinheiro caminhava pelos jardins. O colarinho azul agitavase, e as duas fitinhas estreitas esvoaçavam na nuca.


Um marinheiro! A música diminuía, ficando cada vez mais distante, e a poeira assentava. O coração de Liochka batia acelerado. Ele corria na direção do rio – atrás do marinheiro.


Um marinheiro! Vinham correndo de todos os lados. Os que nadavam saíram da água. Os que descansavam na areia levantaram num pulo.


Um marinheiro!


Marrom, como um pote de barro, ele mergulhou, veio à tona e começou a nadar. No braço havia uma âncora azul, os músculos inflavam – como o pão branco trançado da prateleira de Siliébina.


– Quem o trouxe fui eu – gabouse Liochka.


Fazia calor. O ar fluía sobre o rio. Peixes marulhavam. Barquinhos passavam, e mulheres com lenços coloridos inclinavamse sobre a borda para colocar os dedos na água.


Banhistas lutavam, davam cambalhotas, andavam de pontacabeça.


O sol se moveu. Foi de trás para a frente – era a hora do almoço.


A mãe estava esperando. A batata estava cozida; o pão e o frasco de manteiga, em cima da mesa.


Comeram a valer. A mãe elogiava a manteiga. Limparam os pratos. Foram para o patamar da entrada.


No quintal, as vizinhas estavam sentadas sobre cobertores estendidos. Embalavam as crianças pequenas cantarolando baixinho e fuçavam a cabeça uma da outra com facas de cozinha.


– Nós também vamos nos ajeitar – a mãe se animou e foi correndo buscar um cobertor.


Estavam deitados. Liochka colocou a cabeça nos joelhos dela, e ela mexeu em seus cabelos desgrenhados. Nuvenzinhas de blusa de marinheiro passeavam pelo céu – parecendo pão branco e montes de roupa de baixo.


Ele queria dormir e ao mesmo tempo não queria...


– Minha nossa! – a mãe deu um pulo. – Se é para nadarmos, então nademos logo: ou vamos nos atrasar para o cinema gratuito.


Entrada gratuita!


Levantaramse num salto e começaram a correr de um lado para outro; prenderam os cabelos com lenços e atravessaram o portão velozmente. Apostaram corrida para ver quem ia chegar primeiro; riram e, então, aquietaramse; começaram a cantar, compenetrados:


                As roupas do pobre homem engancharam nas raízes,
                os galhos trançaramse nos seus cabelos.


Arrancaram capim alto e rijo para colocar sob os pés ao sair da água. Um sumo branco e amargo escorreu e endureceu nos dedos.


Nadavam batendo os pés e agachavamse soltando ganidos. O sol se pôs. Pernilongos começaram a picar. Rãs começaram a coaxar. O céu empalideceu. A grama esfriou. A poeira nos sulcos da estrada estava morna e aquecia os pés. A rua fervilhava. Todos correram à sessão gratuita.


O aguadeiro caminhava olhando de cima, como se estivesse sobre um barril, e torcia o bigode.


Balançando a mão, como se segurasse uma corda, a velha condutora apuravase; e os quatro gatunos que tinham roubado o sótão corriam alegremente.


Iniciouse uma gritaria. Fizeram fila em frente aos sorveteiros. Cascas de semente de girassol farfalhavam. No jardim, lampiões ardiam, uma música tocava, a fonte jorrava. A mãe se perdeu. Não era permitida a entrada de crianças pequenas no cinematógrafo. Liochka começou a chorar.


Escurecia. Abafada pelo orvalho, a música quase não repercutia. Siliébina estava sentada no patamar da entrada de sua casa – quieta e pensativa, já não agitava a toalha com seu jeito ameaçador nem berrava.


No jardinzinho, no escuro, o marinheiro dedilhava a balalaica suavemente:


– Transvaal, transvaal...


Como Liochka, ele também não foi ao cinema gratuito – que bom...


Cheia de suspiros, Trifónikha passeava pelo quintal mastigando e admirando uma estrelinha. Tirou um piróg[v] da bolsa de tigre e ofereceu a Liochka.


Sentado num degrau, ele começou a comer enchendo a boca com as duas mãos. O piróg era doce, mas suas mãos estavam salgadas de lama e amargas do capim que arrancara quando fora com a mãe para a beira do rio.





ilustração: Fernando VILELA




Referência bibliográfica:



•  Bakhtin, V. S.; Belúsov A. F.; Slavínskaia, A. K. (editores). Dobýtchin: Pólnoe sobránie sotchiniénii i pissem (Dobýtchin: coleção completa da obra e correspondências). São Petersburgo: AOZT “Jurnal ‘Zvezdá’”, 1999, 19 (aqui citado como Bakhtin 1999).































fevereiro #

2

ilustração: Rafael MORALEZ



[i]Em Encontros com Liz (1927), o conto foi publicado como “Liochka”. Em O Retrato (1931) e Material, compilação não publicada, levou o titulo de “O marinheiro”.

[ii]Início de uma canção popular dedicada à Segunda Guerra dos Bôeres (18991902) (Bakhtin 1999).

[iii]Organização ligada ao Partido Comunista e formada apenas por crianças. Uma das várias organizações de vanguarda da época.

[iv]Bebida típica russa, obtida da infusão de levedura e pão de centeio torrado.

[v]Torta típica russa, normalmente recheada de carne ou peixe.