revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Raquel de Almeida PRADO

o heroísmo ambíguo de zhang yimou[i]

 

Para se ter uma idéia da importância do filme de Zhang Yimou, Herói (2002), dentro da história do cinema chinês, basta constatar a atenção inédita que lhe foi concedida no campo acadêmico de estudos que lhe corresponde, desde o seu lançamento até hoje, vários anos  depois, e apesar das novas modas lançadas pelos festivais internacionais terem privilegiado a estética mais neorealista da chamada “geração urbana” do cinema produzido na China continental. De fato, em março deste ano, a Routledge lançou uma antologia de ensaios dedicados ao filme de Zhang, organizada por Gary D. Rawnsley e MingYeh T. Rawnsley, Global Chinese Cinema – The culture and Politics of  Hero (2010). Tratase, segundo Chris Berry – um dos mais destacados estudiosos da área –, da primeira antologia dedicada a um único filme de língua chinesa, fato que ele atribui à condição de “divisor de águas” do filme, nas mais diferentes e freqüentemente contraditórias, formas.[ii] O livro aborda temas políticos, culturais, de gênero e de recepção – tanto da recepção nacional quanto internacional, matéria particularmente rica, em função da circulação intensa de comentários, críticas e paródias do filme na internet.


Tentaremos aqui nos distanciar das especificidades técnicas, para abordar o filme de um ponto de vista comparativo, dentro da história do cinema, privilegiando, mais do que o aspecto “divisor de águas”, a sua inserção na linhagem inaugurada por Eisenstein – que recupera, para a sétima arte, a tradição dramatúrgica ocidental –, e  redimensionada pelo olhar oriental do cineasta japonês Akira Kurosawa.


Tratase, de fato, de um filme excepcional em vários sentidos. Concebido, deliberadamente, no intuito de conter a expansão dos filmes hollywoodianos na China continental, determinado a garantir um absoluto sucesso comercial no mercado nacional, nem por isso renuncia ao prestígio da grande arte cinematográfica, que chama a atenção pela força de longas seqüências de cortar o fôlego do espectador. Sucesso de público sem precedente, o filme foi recebido pela crítica de maneira controversa, suscitando indignação por motivos tanto políticos quanto estéticos: sofreu todas as críticas de praxe contra o cinemaespetáculo, sobretudo por sua ambiguidade ideológica permitir diferentes leituras e despertar as piores suspeitas.[iii] A complexidade narrativa, as surpreendentes reviravoltas e a irredutível ambivalência do desenlace não são, contudo, seriamente comparáveis à estratégia primária da estética fascista.


Isto posto, não se pode negar que a representação, tal como a vemos no filme, do rei de Qin – personagem histórico cuja reputação sanguinária atravessou mais de vinte séculos – de maneira tão bem intencionada, pareça uma flagrante justificativa do estado totalitário. Mas antes de tomar posição no debate inflamado que opõe os fãs aos detratores de Herói, gostaríamos de tentar, aqui, avaliar o alcance de sua ambivalência – esta qualidade que o converteu em matéria de polêmica quase inesgotável.


1) A estrutura narrativa


O filme começa com a chegada de Sem Nome ao palácio, recebido com toda a pompa devida ao vencedor dos assassinos que ameaçavam a vida do rei. Este lhe concede sua recompensa em ouro e a grande honra de se aproximar e conversar com ele, pois deseja saber como Sem Nome foi capaz de tal façanha. Ajoelhado a boa distância do rei, tendo disposto diante de si os seus troféus – as espadas de Céu, Neve e Espada Quebrada, ele narra sua aventura.


Três versões de uma mesma história vão então se suceder: a cada vez, uma correção é feita, que  rearranja os fatos e vai desvendando por etapas, as reais intenções dos personagens. Sem Nome começa explicando que ele foi capaz de vencer os três guerreiros enfrentandoos um de cada vez: primeiro, Céu, depois os amantes Espada Quebrada e Neve que, atormentados pelo ciúme, não estavam mais à altura de suas reputações.


O rei manifesta seu ceticismo, e sugere que a narrativa de Sem Nome está subestimando alguém: ele mesmo, que, conhecendo o nobre caráter de seus adversários, sabe que não se deixariam levar por sentimentos vis. O rei propõe, então, outra versão da história, segundo a qual Céu teria se sacrificado para que Sem Nome pudesse receber, como recompensa, o direito de aproximarse dele, o que teria convencido os outros a se deixarem vencer, por sua vez, garantindo assim a proximidade necessária ao assassinato.


Sem Nome reconhece a perspicácia do rei, que adivinhou o complô, mas diz que esta nova versão da história também subestima alguém: Espada Quebrada. Assim, num terceiro flashback, ele nos conta a terceira versão da história, que mostra como ele desenvolveu a habilidade de dar um golpe capaz de penetrar o adversário sem ferilo mortalmente, permitindo que o complô se realizasse e não houvesse vítimas fatais. No entanto, houve de fato um desentendimento entre os dois amantes, já que Neve faz questão de matar o tirano, enquanto Espada Quebrada acaba desistindo desse intuito. Um quarto flashback é então encaixado no terceiro, mostrando o ataque dos dois amantes ao palácio real, três anos antes, quando Espada Quebrada teria poupado o rei, por compreender que só ele seria capaz de trazer a paz ao reino. Neste momento exato da narrativa de Sem Nome, o rei se comove ao ponto de verter uma lágrima e exclama: “Quem diria que o único homem capaz de me compreender seria o perigoso assassino Espada Quebrada!”


Vários comentadores viram, neste recurso a diferentes versões de uma mesma situação, uma estrutura semelhante à de Rashomon (1950) de Akira Kurosawa, em que uma história de estupro e assassinato é contada de maneira diferente, sucessivamente, pelo bandido, pela mulher estuprada, por seu marido assassinado (incorporado por um médium), e, finalmente, por um lenhador, testemunha ocular do crime. Do ponto de vista da história do cinema, assim como da recepção, o exemplo de Rashomon é interessante na medida em que é um filme que inaugura uma nova era do cinema japonês, ganhando vários prêmios internacionais e alcançando, pela primeira vez, o grande público ocidental. Sabemos que o cinema chinês não precisou esperar por Herói para frequentar o circuito dos festivais, já conquistados desde os anos 80 pela mesma geração de Zhang Yimou, cujos primeiros filmes despertaram, na época, apenas admiração – por suas qualidades plásticas e uma posição política menos ambígua (o que lhe valeu as represálias habituais: proibição de mostrar seus filmes na China e até de filmálos). Mesmo assim, podemos dizer que Herói, sucedendo a Rashomon meio século mais tarde, também inaugura uma nova era da história do cinema oriental, na medida em que se lança como sucesso de bilheteria, capaz de competir com um blockbuster como o Titanic (1998) de James Cameron. Enfim, se o primeiro é uma obraprima do cinema moderno – em que as qualidades artísticas predominam sobre o aspecto comercial, o segundo é um representante de marca do cinema pósmoderno, em que a distinção entre a grande arte e o entertainment já não é tão rigorosa.


De maneira geral, não se pode negar a influência de Kurosawa sobre Zhang, tanto pelo cuidado estético com as imagens de batalha, quanto pelo empenho comum em elevar um gênero popular como as histórias de ronin ou de wu xia (as versões japonesa e chinesa do cavaleiro errante) à dignidade da tragédia. Pois, assim como Kurosawa fez “seu” Shakespeare em Ran, Zhang fez o seu em A Cidade Proibida – embora, neste último, a  tendência ao kitsch, já perceptível em Herói, chegue a ameaçar seriamente a grandeza trágica da fábula. Mesmo assim, de um modo ou de outro, os dois cineastas são capazes de assimilar, em seu cinema impregnado de cultura oriental, a tradição dramatúrgica ocidental que remonta ao teatro elisabetano (seguindo os passos de Eisenstein), ou, até mesmo, à tragédia grega – com Neve figurando como uma Antígona chinesa.


Voltando à questão precisa da estrutura narrativa de Rashomon, todas estas considerações, por aproximarem a obra do cineasta japonês da de Zhang, estimulamnos a insistir um pouco mais nesta comparação, embora seja justamente a diferença entre as duas narrativas, de um filme para o outro, que deve revelarse significativa, e não o simples procedimento das versões contraditórias, consagrado por Kurosawa, porém bastante desgastado hoje em dia.


Sabemos que o roteiro de Kurosawa é a fusão de dois contos independentes de Ryunosuke Akutagawa (18921927), Yabu no Naka (No bosque) e Rashomon. É o primeiro que fornece o argumento do filme, com a exceção da quarta narrativa (da testemunha), acrescentada por Kurosawa. O segundo fornece o título – o nome do portão de Kyoto onde, no filme, um monge e o lenhador se refugiam da chuva, e contam para um terceiro personagem as diferentes versões do estupro e do assassinato, fazendo assim a narrativa dentro da narrativa.


O que muda na adaptação cinematográfica, além da fusão das duas histórias, é uma resolução moral que não existe na obra de Akutagawa: primeiro, a introdução de uma testemunha que restabelece até certo ponto a fiabilidade da narrativa: é o lenhador que assume, no final, ter presenciado o crime. Não se pronunciara anteriormente, diz ele, por temer complicações; na verdade, queria omitir o fato de que roubara a adaga do samurai morto. Sua versão, portanto, ainda não é suficiente para restabelecer o otimismo moral, totalmente ausente nos dois contos de Akutagawa. De fato, em Yabu no Naka, as diferentes versões se anulam umas às outras, sem que nenhuma prevaleça; em Rashomon, vemos um ladrão roubar uma ladra de cadáveres, tomando para si a mesma justificativa da mulher: se ela rouba para não morrer de fome, ele também. Mas no filme, condensando a trama da primeira história na paisagem desoladora da segunda, Kurosawa ainda acrescenta uma peripécia (a descoberta de um bebê abandonado) que permite o reconhecimento do caráter altruísta do lenhador, levando o monge a declarar, no desenlace, que este restabelecia sua fé na humanidade.


Constatamos pois, no filme japonês, a intenção por parte do diretor de restabelecer alguma fiabilidade narrativa, através do relato final da testemunha, inexistente na obra literária, assim como uma intenção moralizadora, através da mudança completa do sentido do desfecho. De que maneira essa análise poderia nos servir para compreendermos a estrutura narrativa de Herói? No filme chinês, o efeito Rashomon não se resolve através da introdução de um narrador mais confiável (como a testemunha de Kurosawa), mas há, em contrapartida, uma correção sucessiva da relato, que faz com que cada versão da história se aproxime cada vez mais da realidade. A primeira subestima a capacidade de julgamento do rei, a segunda, a de Espada Quebrada. Será que a terceira é satisfatória? Parte da crítica e do público poderia dizer que subestima a deles, já que o argumento que justifica a guerra em nome da paz se contradiz na própria narrativa de Sem Nome e em seu diálogo com o rei. É nesse sentido que se orienta boa parte das paródias do filme na Internet, como no exemplo citado por Sabrina Qiong Yy, no qual podemos ver um George Bush comovido, exclamando: “Quem diria que o único homem capaz de me entender seria o cineasta chinês Zhang Yimou!”[iv]


Este, por sua vez, poderia dizer que esta terceira versão, segundo a qual o rei de Qin deveria ser poupado por ser o único capaz de estabelecer a paz entre os reinos, subestima sua própria capacidade de julgamento (do diretor) – o que fica provado pelo desfecho em que as mortes quase simultâneas de Sem Nome, Neve e Espada Quebrada não vêm sancionar o ideal de sacrifício individual em nome do bem coletivo, mas, pelo contrário, colocálo em questão.


2) O precedente histórico


Podemos ver no livro de Régis Bergeron, Le Cinéma Chinois,[v] como este se engajou, desde a formação da República Popular, na luta contra a dominação do mercado pelo cinema americano e como, a partir do Tratado de Amizade, ratificado por Stalin e Mao Tsetung, a presença do cinema soviético se intensifica: festivais de filmes russos são realizados, técnicos e cineastas chineses vão fazer estágios na União Soviética, câmeras e diretores russos vêm filmar na China.


Na mesma época em que estes intercâmbios se multiplicam, impregnando o imaginário de toda uma geração de futuros cineastas chineses que, nascidos com a Revolução, vão crescer sob a influência dos filmes importados da União Soviética, na própria URSS o clima não é mais propício, há muito tempo, às grandes aventuras de vanguarda que marcaram o primeiro período, revolucionário, do cinema russo. Desde o início dos anos 30 um novo paradigma se impunha, condenando as experiências formais dos pioneiros Eisenstein, Vertov, Kulechov, e privilegiando um cinema tão correto do ponto de vista político quanto rentável do ponto de vista comercial.


O que nos interessa aqui, nesta nova orientação, imposta pelo Comitê Central à produção cinematográfica, é a maneira pela qual os fundamentos do realismo socialista são instituídos no mesmo movimento do culto da personalidade. Nos filmes dos anos 20, o heroísmo revolucionário era representado coletivamente: até mesmo Lênin, quando aparece em Outubro de Eisenstein, não desempenha o papel principal, reservado às massas que deliberam e conduzem a ação. Mas em 1928, Outubro já está nadando à contra corrente da orientação oficial. De fato, essa última consagra o filme dos irmãos Vassiliev, Chapaev (1934) no qual a individualização do herói permite a identificação do espectador e favorece a adesão sentimental. Chapaev, então, representa um grande passo em direção à conquista do grande público e se torna modelo a ser seguido: como numa espécie, muito particular, de romance de formação,[vi] tratase de mostrar o progresso do herói na aquisição da consciência de classe, sempre sob a tutela de um sábio membro do Partido. Sublinhamos de passagem a exigência de clareza na representação: o realismo socialista exclui a ironia e a ambiguidade.


Por outro lado, ao longo dos anos 30, o internacionalismo bolchevique é progressivamente minimizado em favor de um discurso nacionalista que, ao mesmo tempo em que apóia o esforço militar diante das ameaças do imperialismo japonês e germânico, também serve para reforçar, internamente, o poder cada vez maior do “Pai dos Povos”. É assim que os assuntos históricos são propostos aos diretores já totalmente subordinados à autoridade central do Partido. Eisenstein, que em 1937, depois da censura de O Prado de Beijin, viuse forçado a fazer sua autocrítica, encontra uma oportunidade de se reabilitar na realização de Alexandre Nevski – filme cujo destino será marcado pelas reviravoltas das relações germânicosoviéticas.[vii] A apologia ao príncipe guerreiro do século XIII que lutou contra os cavaleiros teutônicos deve inspirar o patriotismo e o culto do grande líder. É todo um processo de revisionismo da história russa que está em curso.


Poderíamos talvez dizer que a cena da sagração, no início de Ivan o Terrível, o último filme de Eisenstein, é o coroamento simbólico desta apropriação do passado tzarista pelo serviço de propaganda de Stalin. Assim, o personagem histórico, cuja reputação de tirano implacável e mentalmente perturbado estava bem estabelecida, devia ser justificada e glorificada por suas realizações militares – a conquista dos territórios que fazem da Rússia um vasto império multiétnico –, e políticas – a submissão da nobreza hereditária que lhe garante o poder absoluto. Eisenstein não se iludia, é claro, sobre o papel que lhe impunham, mas via nisso, nesta encomenda oficial, a oportunidade de fazer um verdadeiro cinema de autor, depois de uma série de tentativas frustradas. Impregnado de Pushkin e de Boris Godunov, pretendia fazer passar, através do personagem de Ivan, uma reflexão dilacerada sobre o poder autocrático, esmagado pelo sentimento de solidão entre os homens e o horror de suas próprias ações.[viii


Esta dimensão trágica eleva o personagem e contraria a orientação apologética oficial. Tanto é que, embora o primeiro filme (do que deveria ser uma trilogia) tenha sido muito bem recebido, ganhando até o prêmio Stalin, o segundo não foi liberado pela censura e só foi visto muito tempo depois da morte do artista e do chefe supremo.


Apesar da distância de vários séculos entre os reinos do Primeiro Imperador da China e do Primeiro Tzar de Todas as Rússias, como se fizeram chamar, os dois tinham muito em comum: a determinação em unificar um imenso território, a força para centralizar o poder político e militar, a lendária crueldade, a loucura precipitada pelo consumo de mercúrio, o assassinato dos parentes mais próximos. Assim como Ivan, que depois de sua morte, não tendo conseguido instaurar uma longa dinastia, teve seu papel na história fixada pelos cronistas da igreja ortodoxa, a imagem do Imperador Qin foi registrada pelos historiadores confucianos –, ou seja, em ambos os casos, por aqueles mesmos que eles haviam perseguido implacavelmente. É também por volta da mesma época – o início dos anos quarenta do século XX – que suas histórias serão reescritas. No caso de Ivan IV, como vimos, sob a pressão direta de Stalin. No caso de Qin, sua reabilitação pelos historiadores ligados ao Guomindang serve para combater o confucionismo: louvam os méritos do Primeiro Imperador ao mesmo tempo em que o comparam a Chian Kaishek.


A vitória do exército vermelho não interrompeu este movimento revisionista, é verdade. Mas não se vê, nem mesmo sob Mao Tsetung, um esforço comparável ao de Stalin, para associarse a um personagem histórico em quem se reconhece algum mérito na administração centralizada do império, mas que, mesmo assim, ainda é visto como inimigo de classe.


Nos anos 90, dois filmes são realizados na China continental tendo como personagem central o Primeiro Imperador: A Sombra do Imperador (1996), de Zhou Xiaowen, e O Imperador e o Assassino (1999) de Chen Kaige. Os dois encenam uma tentativa de assassinato da qual o tirano teria sido vítima. No primeiro, o tema principal é o controle cultural e ideológico do estado totalitário. No segundo, é a repressão militar e o massacre dos filhos de Zhao que marcam o momento alto da narrativa: dez anos após Tiannamen, são ainda lembranças demasiadamente dolorosas que são evocadas. São  filmes, portanto, que estão bem longe de fazer a apologia do totalitarismo e, mesmo assim, embora tenham tido algum problema eventual (o primeiro foi recolhido por uns tempos, depois recolocado em circulação), tratase de grandes produções de alto custo – irrealizáveis sem o consentimento oficial.


Se Zhang Yimou escolhe, pouco tempo depois de seus colegas e contemporâneos da academia de Pequim, fazer um terceiro filme sobre o mesmo personagem histórico, é bem provável que sejam inquietações comuns que os movem, até por se tratar, justamente, desta geração de cineastas da qual se dizia que, nascida com a Revolução, havia crescido sob a influência do cinema soviético – e, por outro lado, conhecido de perto todos os dramas da Revolução Cultural e outros períodos críticos da República Popular.


Entre os milhares de comentários, críticas e análises que trataram de Herói, notamos frequentemente uma tendência a procurar, em fatos contemporâneos bem imediatos, a inspiração ou as referências que explicariam a ambiguidade do filme. Além de acusarem Zhang de tentar pegar carona no sucesso recente do filme de Ang Lee (O Tigre e o Dragão, de 2000), chegaram a associar a muito indigesta justificativa política do autoritarismo, em Herói, aos acontecimentos do 11 de setembro de 2001. O próprio Zhang, que – seja dito de passagem – sempre assumiu que seu objetivo principal era o de vender seu filme, não o nega, às vésperas de lançar seu filme nos Estados Unidos.


Mas um filme como este leva algum tempo para amadurecer, e sabemos, também, que ele constitui, de certa maneira, uma trilogia com seus antecessores A Sombra do Imperador e o Imperador e o Assassino. Poderíamos talvez pesquisar, entre os eventos políticos bem anteriores ao episódio, por sinal imprevisível, do 11/9, um conflito suficientemente significativo para motivar três distintos diretores chineses a representálo, um após o outro, cada um com sua versão histórica de um mesmo sinistro personagem. Ora, é justamente durante os anos 90 que explodem, no leste europeu, os conflitos étnicos e separatistas que sucederam ao desmoronamento do Império Soviético. Compreenderíamos muito bem que uma personalidade forjada na história revolucionária de seu país – mais no que ela tem de trágico do que heróico – como Zhang Yimou, tenha ficado sensibilizado com o destino que a liberação do jugo soviético reservava às populações dos Bálcãs: o que, eventualmente, poderia explicar que a submissão à razão de estado seja encarada como alternativa às guerras fratricidas.


O exemplo de Eisenstein que, apesar do controle estrito da produção cinematográfica exercido pelas autoridades soviéticas, soube projetar, na personalidade dilacerada de seu Ivan o Terrível, a angústia pessoal do artista lutando com sua consciência, autoriza o engajamento, meio século mais tarde, de três diretores chineses, no projeto de levar à tela seu próprio modelo histórico da autocracia. Ao mesmo tempo, a recuperação deste personagem pelo cinema chinês contemporâneo coroa, de uma certa maneira, o longo processo de construção de um repertório nacional, levado desde o início dos anos 80, por esta geração de cineastas cuja adolescência foi marcada pelas incansáveis exibições de Lênin em Outubro e Lênin em 1918.


Vimos como, na União Soviética, enquanto o cinema revolucionário de vanguarda procurava colocar em cena um herói coletivo, representando as massas – em oposição ao individualismo da epopéia burguesa –, a diretiva do realismosocialista logo impôs uma estética mais acessível ao gosto popular. Que se tratasse então de um grande líder, como Alexandre Nevsky ou Lênin, ou mesmo de um humilde trabalhador, formado pelos eventos políticos, o herói é sempre um exemplo de transparência e de saudável disposição em lutar por seus ideais. Na China, no momento em que foi exercido o mais implacável controle ideológico, sob a Revolução Cultural, a palavra de ordem era: “De todos os personagens, fazer sobressair os personagens positivos; dos personagens positivos, fazer sobressair os heróis positivos; dos heróis positivos, fazer sobressair o herói principal.”[ix] O herói principal deve sobressair aos outros, evitando assim a ambiguidade ideológica que impede a adesão irrefletida. Assim o cinema de propaganda do realismosocialista não era favorável nem à representação oscilante de um Ivan hamletiano nem à multiplicação de heróis contraditórios como no filme de Zhang Yimou.


Além disso, o herói tradicional das histórias de wu xia também não é representado segundo os códigos do gênero: como lembra Jenny Lau[x] pela ética xia, não é a paz, mas a justiça o mais alto valor, e a reviravolta efetuada por Espada Quebrada – que renuncia à ação pela arte da caligrafia – é uma subversão que o público aficionado não pode ver com muito bons olhos.


Contra as acusações que lhe lançaram, Zhang Yimou não parou de repetir que seu filme não é um filme político mas um filme comercial. Compreendese que não seja exatamente um filme político, no sentido da velha propaganda stalinista, que faria do rei Qin o verdadeiro herói do filme. Mas percebese também, na projeção alegórica, através do cruzamento entre os dois gigantes Titanic de James Cameron e Herói de Zhang Yimou, que a indústria cinematográfica nos dá o testemunho do naufrágio anunciado de um império e da recuperação de outro: o dragão adormecido que desperta, investindose aqui da tradição inventada do ‘heroísmo pacifista’...


Vale lembrar que desde seu primeiro filme como diretor, O Sorgo Vermelho (1988), passando por Lanternas Vermelhas (1991), ambos premiadíssimos, Zhang Yimou tem sido questionado quanto à sua propensão a “inventar tradições”, ou mesmo à uma suposta tendência ao “autoorientalismo”. Frequentemente, tratase de críticas que refletem mais o prestígio de certos modismos acadêmicos do que uma percepção clara da individualidade artística do cineasta. Mas enquanto o simbolismo erótico dos filmes anteriores só parece inquietar a crítica feminista, em Herói, o conceito de “tradição inventada” vem carregado de um peso político bem mais considerável, na medida em que centra o foco na fundação ideológica de um império que promete, desde já, expansão ilimitada. Afinal, tian xia, as palavras traçadas por Espada Quebrada para convencer Sem Nome a poupar o rei, traduzido em inglês por our land , significa, mais literalmente, tudo sob o céu.


Estaria, então, o diretor Zhang Yimou, no mesmo ímpeto em que se lança à conquista do mercado internacional de filmes, entoando os louvores do autoritarismo, da centralização do poder e do projeto imperialista do “capitalismo de estado”? Desempenhando o mesmo papel que Gao Jianli, o músico sequestrado pelo imperador, no filme já citado de Zhou Xiaowen, para criar o Hino do Império, capaz de submeter os homens melhor do que a espada? A interpretação se sustenta tão perfeitamente que convence, em escala chinesa, boa parte da crítica. Mas a sofisticação da narrativa e a riqueza do diálogo com a tradição cinematográfica, nos autorizam a privilegiar uma outra interpretação, em que o cruzamento das citações atravessa a tela como as flechas dos guerreiros, refletindo num jogo virtuoso a constituição de um sentido sempre provisório, sempre em transformação, sempre aberto ao diálogo com outros personagens de outros filmes. Assim, o mesmo Gao Jianli, a sombra cega do Imperador de Zhou Xiaowen, parece materializarse de um filme para o outro, surgindo logo no primeiro duelo, entre Sem Nome e Céu, sustentando a belíssima cena coreografada na melodia do guqin, executada pelo mestre Xu Kuanghua.[xi] Assim também, o mestre de caligrafia, em outra cena espetacular, não abandona seu posto e contém, com sua autoridade espiritual, a debandada de seus discípulos, ante o ataque desproporcional do exército do rei. Resistência passiva, lembrança dos jovens heróis de Tiannamen, mas também exercício dialógico: uma reprodução exata de um quadro de Ran, quando o rei, encurralado e alvejado pelas mil flechas do exército de seu filho, percebe finalmente a dimensão do seu infortúnio e perde a razão.


Assim como Kurosawa, e antes dele Eisenstein, Zhang leva a cabo sua reflexão sobre as desmedidas do poder, sem fazer concessões maniqueístas, e alimentando, não obstante, a discussão política muito além do público restrito das cinematecas e festivais de cinema. Enquanto “divisor de águas”, o seu maior mérito talvez tenha sido esse, o de levar milhares e milhares de chineses, ao redor do mundo, anônimos ou conhecidos, a se expressar, na internet ou fora dela, a discutir, entre si ou com nãochineses, e a tomar partido, seja contra ou a favor.































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ilustração: Rafael MORALEZ



[i]Esse texto foi originalmente apresentado no colóquio interdisciplinar, “L’Ambigüité et ses contraíres” organizado pela Universidade de Szcezcin (Polônia) em Pobierowo, 16 e 17 de outubro de 2010.

[ii]Cf BERRY, Chris, Foreword, in Gary D. RAWNSLEY et MingYeh T. RAWNSLEY (org.), Global Chinese Cinema – The Culture and Politics of Hero, Routledge, 2010 (Kindle Edition).

[iii]Cf. por exemplo, Evans CHAN,  “Zhang Yimou’s Hero — The Temptations of Fascism.” in Film International n°. 8 (Mars 2004), ou a crítica de J. HOBERMAN, “Man with No Name tells a Story of heroics, color coordination”, dans Village Voice (17/08/2004).

[iv]Citado por Sabrina QIONG YU, “Camp pleasure in an era of Chinese blockbusters: internet reception of Hero in Mainland China”, in Gary D. RAWNSLEY e MingYeh T. RAWNSLEY, op.cit.

[v]Régis BERGERON, Le Cinéma Chinois, Paris, L’Harmattan, 1984.

[vi]Sobre realismo socialista e >Bildungsroman, cf. CLARK, Katherine, The Soviet Novel: History as Ritual, Chicago, 1981.

[vii]Grande sucesso quando lançado, o filme é tirado de circulação por ocasião do Pacto MolotovRibbentrop, e novamente liberado após a ruptura do mesmo.

[viii]Sobre os problemas de consciência de Eisenstein em relação ao seu<Ivan<, ver Leonid KOSLOV, “The artist and the shadow of Ivan”, in Richard TAYLOR et Derek SPRING(org.) Stalinism and Soviet Cinema, Routledge, 1993.

[ix]Yao Weniuan (1969) citado por BERGERON, R. op. cit., vol. 2. p. 282.

[x] Jenny KWOK WAH LAU, “Hero: China’s response to Hollywood globalization” in Jump Cut: Review of Contemporary Media, N°49, 2007.

[xi]Cf. Katy Gow, Heroic music: from Hunan to Hollywood and back, in RAWNSLEY, G, and RAWNSLEY, MingYeh, op.cit.