revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Ruy FAUSTO

claude lefort

 

(1924-2010)

 

Faleceu, em outubro de 2010, o filósofo político Claude Lefort. Jornais e revistas francesas e estrangeiras publicaram certo número de textos por ocasião da sua morte, mas o conjunto é, sem dúvida, insuficiente, se pensarmos no que Lefort representa para o pensamento contemporâneo, e para o pensamento socialista, em particular. Aluno de MerleauPonty, e jovem militante trotskista no apósguerra, Lefort – ele se chamava, até o início dos anos 40, Claude Cohen, Cohen era o sobrenome da sua mãe – logo contesta as teses trotskistas sobre a natureza da URSS, e a estratégia trotskista para a França (governo PCPSCGT – Confederação Geral dos Trabalhadores, prócomunista). Para a questão da natureza da URSS, foi decisivo o encontro com Cornelius Castoriadis (19221997), economista e filósofo, que militara no trotskismo grego, e que chega à França no final de dezembro de 1945. Operase aí uma mutação essencial do pensamento socialista do século. Valendose sem dúvida do que já haviam escrito alguns outros, principalmente Boris Souvarine (Stalin, 1935), e o croata Ante Ciliga (Dez anos no país da grande mentira, 1938), além de Hannah Arendt, Castoriadis e Lefort procedem a uma crítica da heterodoxia ortodoxa de Trotski que via na Rússia stalinista um “governo operário deformado” e que tinha como programa, no plano internacional, a “defesa da URSS”, regime “degenerado”, mas socialista. A essa conceituação “barroca”, e, sem dúvida, teoricamente frágil, Castoriadis e Lefort opõem a idéia de que se tem lá ou um capitalismo de novo tipo (integralmente burocrático) ou um novo regime de exploração e opressão, o qual deve ser tão combatido quanto o capitalismo ocidental. A idéia central – que parece se dever mais a Castoriadis do que a Lefort, mas Lefort a incorpora e, com Castoriadis, a desenvolve – é a de que o decisivo não é saber de quem é a “propriedade” dos meios de produção (se do Estado, ou de capitalistas privados), mas sim quem os controla efetivamente (quem tem a posse deles, se se quiser). Ou, preferindo, se a propriedade é do Estado, o determinante é saber quem controla o Estado. Chegase assim à idéia de uma posse que não é mais privada, mas que também não é coletiva, em sentido universal: os meios de produção na URSS estariam nas mãos de uma nova classe ou camada, a burocracia, e portanto seriam objeto de uma posse privadacoletiva (coletiva, em sentido nãouniversal). Essa tese leva longe, porque, mesmo se, na sua primeira formulação, é construída a partir dos quadros teóricos do marxismo, ela conduz, num segundo momento, a uma crítica de Marx – àquela crítica a que procederam, efetivamente, Lefort e Castoriadis, poucos anos mais tarde.


Em 1949, após a ruptura com o trotskismo, os dois amigos organizaram um grupo e fundaram uma revista de mesmo nome, “Socialismo ou Barbárie”, cuja publicação se estendeu até Junho de 1965 (o grupo sobreviveu até a primavera de 1966). Mas Lefort se retirou de um e de outra, em setembro de 1958, por divergências relativas ao projeto político do grupo, e à concepção do que deve ser uma organização socialista. Nesse momento, ele que, junto com Castoriadis, já se distanciara do marxismo, abandona também o projeto revolucionário – mas não toda perspectiva de esquerda, à qual é fiel até o final da sua vida. Porém, a partir daí, seu grande tema é a democracia, e a influência de Tocqueville passa a ser decisiva. O fim do império comunista, que vem confortar as suas teses, e as de Socialismo ou Barbárie, como já o haviam feito, antes, a revolução húngaras e as revoltas tcheca e polonesa, é ocasião para novas reflexões e escritos.


Até aqui, falei principalmente do Lefort político ou teórico da política socialista. Insisti nesse aspecto, porque, de uma forma ou de outra, ele, em geral, fica mais ou menos em segundo plano, o que é decepcionante. Se a obra teórica de Claude Lefort não se restringe a isso, não seria excessivo dizer que ela está marcada, até o final, pelo projeto de uma política lúcida para a esquerda.


Em 1971, Lefort publica, Elementos de uma crítica da Burocracia; em 1978, As Formas da História, ensaios de antropologia política; seguese A Invenção Democrática, os limites da dominação totalitária (1981), Ensaios sobre a política, séculos XIX e XX (1986), e Escrever, à prova (à l'épreuve) da política (1992). Ele contribuiu, ainda, para um livro coletivo sobre 68, em parceria com Castoriadis e Edgar Morin, escreveu um volume de textos consagrados a MerleauPonty, e um pequeno e precioso livro sobre o Arquipélago do Goulag de Soljenitsine. Seu grande livro históricoteórico, O Trabalho da Obra, Maquiavel, que provém da tese que defendeu com Raymond Aron, é de 1972. Em 1999, voltou ao tema do totalitarismo, com A Complicação, de novo (retour sur) sobre o comunismo. O Tempo Presente, escritos (19452005), editado em 2007, reúne seus artigos até então não publicados em livro. A maioria das suas obras estão traduzidas para o português.


Enquanto Castoriadis continuava professando o projeto de “autonomia”, o nome que ele vai dar à sua idéia de um socialismo semianárquico (mas com dinheiro e circulação simples), Lefort, muito menos crítico das democracias modernas do que Castoriadis, passa a ser, cada vez mais, o teórico da democracia, regime que ele define como sendo aquele em que o poder designaria um “lugar vazio”, não “incorporado” por nenhum de seus ocupantes. O tema da “revolução democrática” não pode eludir, entretanto, a questão do capitalismo, e até o final da vida, principalmente, depois do início da crise, Lefort volta, frequentemente, “à difícil exploração das relações entre democracia e economia de mercado” (Le Temps Prés., p. 730) – na realidade, entre democracia e capitalismo –, sem, entretanto, lhe dar maior desenvolvimento. Com Lefort, morre um dos grandes do século. Quem quiser pensar o destino do marxismo, a natureza dos regimes burocráticototalitários, e o problema da democracia, deve necessariamente estudar a sua obra. Corpus original, constituído principalmente por textos relativamente curtos, o que o desvalorizava junto ao establishment, francês pelo menos, com a agravante de que tratava, em geral, de temas que a Universidade desconhece. Felizmente, entretanto, por caminhos difíceis, a obra foi, pouco a pouco, penetrando, na Europa e na America, e a tendência é, hoje, reconhecer, no seu autor, um dos maiores pensadores políticos do século.































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