revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Lucas TORIGOE

Joaquim: em busca de um novo Tiradentes

 

 


A primeira coisa que deve chamar a atenção do espectador quanto ao filme de Marcelo Gomes é a simplicidade do título: Joaquim. Não Joaquim José da Silva Xavier, ou Tiradentes: apenas Joaquim. Talvez um nome como Tiradentes, o mártir da Independência (Geraldo Vietri, 1976), ou Liberdade, liberdade (Vinícius Coimbra, 2016) tivesse ajudado na bilheteria, mas é por uma escolha consciente do diretor de Cinema, aspirinas e urubus que assim essa figura nos é apresentada.
Joaquim é uma obra crítica que revisa o legado historiográfico e cinematográfico do herói Tiradentes, buscando não só a desconstrução do mito mas, também, nos legar uma outra leitura possível sobre esse personagem. Quando digo possível, digo também necessária, uma vez que os filmes “históricos” só podem versar sobre o presente, conversando com o seu contexto de produção. Isso aocntece pois a representação do passado é sempre manufatura do presente fílmico, tornando ingênuas as pretensões de “fidelidade” e “realismo” de algumas empreitadas que vemos pela indústria.

     

  1. Uma estética da pobreza: novos corpos na tela

Mesmo ele tendo sido assassinado e decapitado pelas forças de governo da época, o Estado brasileiro o moldou Tiradentes como símbolo da busca por liberdade e independência. Tiradentes – ou Joaquim – é feriado nacional, e sua própria coroação diz muito sobre o Brasil, seja pela constante aproximação de sua figura ao imaginário cristão, ou por simbolizar uma preferência oficial/estatal pela Inconfidência Mineira – em detrimento da Conjuração Baiana. Embora não tão cultuado atualmente, a persistência da sua imagem idealizada pode ser atestada pelos comentários que circulam na internet acerca do filme,1 mostrando o tamanho do mito que Marcelo Gomes buscou derrubar.
Afinal, essa é a História, com H maiúsculo. É a forma com a qual se tratou a memória desse personagem e como habitualmente ele ressoa em nosso cotidiano. Porém, em Joaquim, o que predomina é o ambiente do “homem comum”, da sociabilidade do cotidiano, do chão, do suor e da terra impregnada nas roupas. É uma narrativa sobre como um homem “simples” e relativamente “encaixado” veio a cometer o ato de subversão máxima: o crime de lesa-majestade. É uma possível explicação sobre a passagem da história para a História.

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Uma região rústica do sertão mineiro, regrada pela estrutura colonial em que vemos poucos senhores, um poeta de ideias tortas, parte da burocracia portuguesa, alguns escravos e índios, e a maioria de homens mestiços – ou de “livres-pobres”, como os classificou Maria Sylvia de Carvalho Franco. É nessa última faixa que se encontra Joaquim: entre o sonho demente de enriquecer – vivendo a boa vida em Lisboa – e a realidade de mal se diferenciar dos escravos e dos indígenas da região. Joaquim aparece de cabelos curtos para prevenir dos piolhos, dentes careados e roupas esgarçadas. A vida é dura nessa “classe média” na qual se encontra, onde a meritocracia é a última coisa que Joaquim pode esperar. Este parece ser o deslocamento central colocado pelo diretor aqui: Tiradentes não era um herói, mas um homem de seu tempo – e também do nosso, como veremos. Inflamado por promessas e desejos de riqueza e poder, aos poucos este homem vai se desiludindo, e este é o movimento narrativo que perpassa o filme e a psicologia do personagem.
Joaquim (Julio Machado) é um homem sedento por ouro, riqueza que usaria para libertar seu amor, Preta (Isabel Zuaá), escrava de um dos administradores da vila onde o Alferes se estacionou. Para cumprir essa tarefa, aguenta de tudo: a humilhação por ser continuamente preterido por portugueses ao cargo de tenente; a submissão sexual de Preta ao Administrador da vila; e, por último, sua situação de semipauperismo. Mas ele não é apenas um ser passivo, mente e trai quando preciso, e sua raiva perante a situação só cresce durante a narrativa.
O livre entendimento da figura de Tiradentes se contrasta com a cenografia extensivamente detalhista, com ênfase nos modos de vida rudimentar da população livre e pobre da região. O naturalismo do filme, então, trabalha para a pretensa reconstrução histórica do cotidiano das Minas Gerais: é, como foi dito, estratégia de construção de uma nova imagem de Tiradentes, essa que deve ser verossímil e factível para o espectador, uma estética da pobreza da região e da época. Não à toa se vê o nome de Laura de Mello e Souza, uma das maiores historiadoras sobre o período, assinando a ficha técnica como consultora.
Assim como Joaquim, Zuaá recebeu – merecidamente – uma maior profundidade psicológica. Sua representação de mulher, negra e escrava foge do senso comum, e se ela serve os homens, é abusada ou se mostra nua, não é gratuitamente. Todas estas ações trabalham para construir uma personagem ativa, complexa e com uma missão a cumprir: se libertar, o que ela de fato consegue, “virando o jogo” em relação aos brancos. Se por um lado o corpo de Joaquim é “dessacralizado”, o roteiro trabalha para representar o corpo negro e escravizado de Zuaá de outra forma, dignificando a personagem e dotando-a de protagonismo.
Dessa forma, e não parece exagero dizer, a perspectiva que o diretor busca imprimir em sua obra ressoa as hoje inúmeras iniciativas de relativizar os olhares voltados para o passado, encabeçadas pelos movimentos negros, pelos movimentos feministas e, por que não, pela moderna historiografia – bem como suas crias contemporâneas e virtuais, como um Museu da Pessoa e a ação do coletivo SP Invisível. Joaquim, portanto, é um filme atento às problemáticas do presente, como a visão de que a História é feita, ao fim e ao cabo, por pessoas “comuns”.
É quase inevitável a comparação com a representação dos escravos e dos homens livres pobres em Os inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade (1972). Nesta obra, a classe escrava aparece de maneira quase fantasmagórica na mise-en-scène, que foca a verborragia dos personagens principais, os poetas da Inconfidência. Como um corpo sem alma – principalmente nas cenas que se dão na casa de Cláudio Manoel da Costa (Fernando Torres) –, a escrava aparece e desaparece frente à câmera como um utensílio de seu dono.
Tendo este filme como contraponto, é notável, ainda, a escolha de Marcelo Gomes de colocar como protagonistas Joaquim e Zuaá. Pois não só o seu corpo importa como elemento significativo para a trama, mas o sentido que Joaquim dá a sua luta e aos seus comuns no quilombo. Quando ele mostra sua admiração pela luta quilombola, em detrimento da estratégia do Poeta, o filme nos dá uma dica quanto à sua posição frente ao seu contexto de produção.

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Se o ponto forte de Joaquim é “reatualizar” a figura de Tiradentes segundo uma lógica progressista atual, atenta aos problemas de gênero, raça e ao protagonismo dos heróis do cotidiano, também temos como pano de fundo uma estrutura social que é montada pelo diretor para dar vida e coesão à trama. Podemos enxergar basicamente uma oposição triádica entre portugueses, “mestiços” e escravos, constituídos por africanos e indígenas. De forma mais complexa, temos no meio destes “mestiços” os intelectuais, como o Poeta e seus inconfidentes, e os “comuns”, representados por Joaquim e Ramalho, por exemplo. É impossível olhar para essa hierarquia social e não traçar paralelos com os dias atuais. Arrisquemos então enxergar em Joaquim uma metaforização da situação política atual, a fim de angariar algumas pistas sobre a força desta obra. Não se trata de ver uma correlação direta entre o filme e o seu contexto, mas perceber como a estrutura social pode aparecer na narrativa e nos elementos fílmicos.
Em conversa com Joaquim, o Poeta refere-se aos portugueses como os causadores da discórdia entre os “brasileiros”, pois espalham a falácia de que no Brasil só há “corruptos, vagabundos e bandidos”. Seriam os portugueses as classes dominantes atuais? Ou melhor, seriam os portugueses a encarnação de uma ideologia que demoniza de berço a sociedade brasileira, enquanto glorifica a ordem dos países nórdicos e/ou de raízes protestantes?
Outra nebulosidade paira no ar, agora pela caracterização do Poeta e sua turma. Intencionalmente trabalhados de forma superficial pela trama para que lhes recaísse a pecha de elitistas e demagogos, teriam eles identificação com alguma classe ou veio ideológico atual? Talvez a esquerda oficialesca, que quer tomar o poder (e tomou) para apenas repetir os gestos dos opressores iniciais, as classes dominantes?
É curioso colocar na análise o fato de que Joaquim foi produzido pouco antes do processo que culminou no impeachment de Dilma Rousseff. Neste imbróglio, a classe média foi mobilizada maciçamente em torno desta causa, como se sabe, por meio da grande mídia e por organizações como a FIESP. O saldo hoje está claro, de modo que não podemos dizer que o intelectual encarnado no Poeta simbolizaria a esquerda apenas, como faz a crítica política evidente em Os inconfidentes quanto à estratégia pecebista dos anos 60. A situação atual nos permite enxergar que a direita também usa de argumentos de autoridade, baseados em seus próprios intelectuais e ideólogos, seja qual for a qualidade de suas obras.
Por outro lado, parece-nos claramente que Joaquim representa uma espécie de “classe média” do período, figurada pelos conflitos internos e externos de seu personagem, inteligíveis graças à sua complexa psique. Prosseguindo com o raciocínio, Joaquim lembra a classe média atual, espremida entre a sempre possível pobreza/falta de direitos e as promessas de riqueza e consumo, alimentadas pela crença no reconhecimento do trabalho duro realizado pelo indivíduo.
Enfim, os escravos e os indígenas figuram como as classes mais pobres e desvalidas do nosso país. E aqui, mais uma vez, o retrato é borrado. Fica claro a simpatia da narrativa pela ação direta, pela “verdadeira revolta” dos quilombolas. Isso pois, no polo negativo do campo que quer mudanças, temos o Poeta e seus amigos aristocratas, que ludibriam a classe média (tradicional ou ascendente) com suas falsas palavras de liberdade e igualdade. Se o artigo tivesse mais fôlego, certamente faria aqui uma comparação entre Os inconfidentesJoaquim também nessa questão. Limitamo-nos a dizer que, se a economia fílmica de Os inconfidentes coloca Tiradentes (José Wilker) no campo positivo do filme ao lado dos escravos2 Joaquim também o faz. Porém, mesmo que Joaquim aprove sua razão de ser, acaba reconhecendo o quilombo como uma luta externa a ele e seu campo de ação, o que complexifica o retrato das relações de classe. Cabe a um debate de maior fôlego discutir a força e a conveniência de tal representação.
A grandeza de Joaquim reside também em seu fechamento, onde o filme nos sugere a resposta à pergunta inicial: “Por que só eu fui decapitado?”. Ora, pois você é a parte dispensável do plano: confiou numa classe que, por fim, te chamou a um banquete no qual você mesmo seria servido. Se a estetização do filme é meticulosa, a metaforização que poderia fazer a ponte lógica entre passado e futuro é intencionalmente borrada, possibilitando-nos apenas enxergar os contornos e o funcionamento geral dos processos, sugerindo-nos, instigando-nos. De maneira por vezes excessivamente didática, mas também rica, muitas representações foram feitas e, a partir disso, perguntas deixadas em aberto, colocando-nos o provocante sentimento de que essa história toda é, de alguma forma, familiar.

 

 

    
    

 









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1 Dou como exemplo um dos inúmeros comentários que poderia expor aqui, retirado da crítica de Bruno Carmelo ao filme (www.adorocinema.com/filmes/filme-246133/criticas-adorocinema/, acesso em 04/08/2017): “Pessoal, acabei de ter a maior decepção e o desprazer em assistir o filme Joaquim. Como brasileiro e principalmente como mineiro, fiquei extremamente frustrado com a imagem que foi passada no filme sobre o Alferes Tiradentes. Eu, assim como todas as outras pessoas que estavam na sala de cinema, ficamos boquiabertos com tamanha falta de sensibilidade e respeito para com a figura de Tiradentes. A imagem que o filme deixa é de um homem louco, completamente transtornado, visivelmente usado pelos senhores da época como instrumento de revolução. Gostaria que o sr. Marcelo Gomes – Diretor do filme, viesse a Minas Gerais estudar a história riquíssima de Tiradentes e da Inconfidência Mineira, pois me parece que ele lá de Pernambuco, lamentavelmente não conhece os fundamentos reais para escrever a respeito. O que vi foi uma AFRONTA a imagem de uma pessoa tão importante na história do país. Não recomendo o filme e sugiro ao sr. Marcelo Gomes que ao menos se retrate com o país e no mínimo com os mineiros frente ao descalabro que ele produziu e colocou nas salas de cinema por todo o país, decepcionante! Não precisamos de passar para o mundo através do cinema uma imagem completamente equivocada dos nossos poucos heróis. Com todos os tristes acontecimentos na política do Brasil, perde-se uma excelente oportunidade de retratar coisas positivas e pessoas que foram extremamente honestas e que lutaram verdadeiramente por um país mais justo”.

 

2 Em estratégia considerada “obreirista”, segundo a interpretação de Gilda de Mello e Souza acerca do filme.