Salvo engano, o termo “ensaio” nunca foi mencionado por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub ao explanarem seu trabalho cinematográfico. No entanto, alguns de seus documentários se organizam como evidente “argumentação audiovisual” (ARAÚJO, 2013, p. 114). Neles, parte-se de materiais de cariz já argumentativo ou se exorta a eclosão de seus potenciais para tanto. Não obstante o privilégio do documental no modo huillet-straubiano de ensaísmo, todo o conjunto de filmes do casal desempenha a disposição de textos prévios em espaços-tempos específicos por meio de corpos condutores, mesmo as ficções. Estes “encontros”,1 jamais precipitados — Huillet-Straub sustentam intervalos de suspensão semântica para meditar acerca da eloquência geral —, revelam o testemunho da história nas paisagens vasculhadas pela câmera e pelo gravador, tomam obras artísticas, reputadas herméticas ou abstratas, enquanto criptogramas da sociedade, examinam a opressão do povo sob a “forma de braços desnudos, de nucas oferecidas, de vozes entoadas ao cansaço, de rostos esvaziados à força da narração” (BIETTE, 1982, p. 6). Assim, assente no grau zero do olhar e da escuta, princípio que exige repetição contumaz e afinação da sensibilidade, o cinema huillet-straubiano consiste num sismógrafo de pontos de vista alheios, ou melhor, não apenas de pontos de vista pertencentes a outros, mas, sobretudo, da alienação de tais pontos de vista. E, se há uma prevalência total da alteridade, inversamente, os documentários de verve ensaística, apesar de não fugirem à regra, definem o projeto estético-político exclusivo de Huillet-Straub. Tomemos um deles como estudo.
Em 1972, os cineastas realizaram Introdução a “Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema” de Arnold Schoenberg, sob encomenda de uma rede pública de radiodifusão e televisão da Alemanha Ocidental, chamada Südwestfunk. Sua estreia ocorreu no 19º Festival Internacional de Curtas de Oberhausen e as primeiras transmissões, em março de 1975, durante um programa noturno cujo tema era música de vanguarda. Como explícito no título, engendra-se um preâmbulo a uma obra “de outro modo irrepresentável”, tal a asserção straubiana no segundo plano do filme. Ora, o que isto quer dizer?
Com o riscar de um fósforo, apoiado na mureta do Gianicolo, Straub acende uma cigarrilha e anuncia ao espectador a dimensão do controle exercido por Schoenberg sobre suas composições. Nas partituras das óperas, por exemplo, acham-se indicações detalhadas de coreografia ou mise-en-scène. Não obstante, no caso da Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema, apenas três substantivos genéricos são listados: “Perigo ameaçador, Medo, Catástrofe”. Diante de inusual vagueza, Huillet-Straub buscam precisar as únicas condições possíveis de interpretação do Opus 34 schoenberguiano. Entretanto, o que parece cumprir as intenções de seu autor tão logo deflagra um complexo sócio-histórico, no qual se tensionam os vínculos entre subjetividade e objetividade inerentes à integralidade do processo artístico. Passando a voz off, Straub reitera o móbil da peça, informa seu período de concepção (15 de outubro de 1929 a 14 de fevereiro de 1930) e acrescenta um resumo biográfico de Schoenberg: o local e o ano de nascimento (Viena, 1874); as residências alternadas entre Viena e Berlim; o exílio, em Los Angeles, a partir de 1934; o dia da morte (13 de julho de 1951). Na banda visual, surgem dois retratos fotográficos do rosto do compositor: o primeiro, frontal, tirado por Man Ray, em 1926; o segundo, de perfil, talvez o derradeiro. Segue-se, ainda, um autorretrato em pintura, de 1911, que lhe caracteriza de costas numa rua, distinto sobremaneira dos precedentes. Nele, a câmera opera uma panorâmica vertical em direção ao chão, enfocando o corpo sem a cabeça e os ombros. Este movimento despersonalizante, portanto, demonstra não se tratar do depoimento acerca da vida particular do artista, mas, sim, da amplitude do contexto que a implica.
Huillet-Straub, então, prosseguem com a dissociação paulatina do âmbito individual da criação. Na sede da emissora em Baden-Baden, com papéis na mesa, Günther Straschek cita trechos selecionados das cartas de Schoenberg em rejeição ao convite de Kandinsky para que integrasse a escola Bauhaus, em Weimar. A cada edição nos originais equivale a interposição de um punhado variável de fotogramas negros no que constituiria um plano sequência fixo, não fossem tais faux-raccords. E a mudança de uma mensagem a outra é também indicada por uma cartela que contém suas respectivas datas e onde foram redigidas (Mödling, 20 IV 1923; Mödling, 4 V 1923). Contudo, às vezes, estas interrupções têm suas conotações adensadas. Ao se queixar do partidarismo de Kandinsky quanto a políticas de exclusão que, por volta de um decênio, levariam ao holocausto, Schoenberg protesta: “como ele consegue se abster de combater uma visão de mundo cujo propósito é a escuridão da noite de São Bartolomeu, na qual o pequeno cartaz onde está escrito que eu sou uma exceção não poderá ser lido!”. Apesar de não haver corte no texto, o complemento final — “não poderá ser lido!” — é proferido em off, junto a uma tela preta. Aqui, no exato instante designado para a entrada da música, a interdição da imagem se torna metáfora para o extermínio dos judeus, naquela altura, iminente.
Importante sublinhar que a própria justificativa da recusa schoenberguiana se pauta em estratégias de dissolução pessoal. Com o intuito de denunciar a falácia da propensão seletiva ao antissemitismo de seu amigo, o compositor pede para que permaneça incluso no anonimato do grupo alvo de ódio: “…que não sou alemão, nem europeu, de fato, talvez não seja sequer um ser humano (pelo menos, os europeus preferem o pior de sua raça para mim), mas sou judeu. E estou contente que seja assim! Hoje, não quero mais ser uma exceção; não tenho objeção a ser misturado aos demais.” Logo, quando Straub afirma ser “de outro modo irrepresentável” o Opus 34 de Schoenberg, quer dizer que o método dos cineastas consiste na atualização do teor de verdade jacente na matriz empregada. Com frequência, Huillet-Straub escolhem trabalhar com obras que destoam do repertório de seus autores de renome, seja porque inacabadas, consideradas menores ou, ao contrário, devido a seu status de clássico da cultura ocidental. Fazem-no de maneira a apreender a história a elas imanente, a qual, no entanto, apresenta-se em diversos níveis de reificação, ora patentes, ora intrincados. Para tanto, os filmes huillet-straubianos impelem seus materiais a corolários irrevogáveis, isto é, até se depararem com a peculiaridade de seus limites. Pois, sendo “algo histórico por si mesmo” (ADORNO, 2003, p. 27), o teor de verdade expõe o aspecto transitório de todo e qualquer objeto, devolvendo-lhe o atributo da transmutação.
Em Introdução, constata-se a insuficiência do raciocínio schoenberguiano a partir da justaposição de um excerto da conferência de Bertolt Brecht no 1º Congresso dos Escritores pela Liberdade da Cultura, ocorrido em Paris, entre 21 e 25 de junho de 1935. Sentada num sofá de bambu com sua gata Misti no colo, Huillet prepara o espectador para a ingerência do novo elemento com uma conjunção adversativa: “Mas — Brecht pergunta — como alguém poderá falar agora a verdade sobre o fascismo, ao qual se opõe, se não falar nada sobre o capitalismo que o traz à tona? Qual seria, então, o resultado prático de tal verdade?”. Ou seja, o filme alvitra que, apesar do diagnóstico certeiro de Schoenberg a respeito da terrível progressão dos eventos na Alemanha, culminando com a ascensão nazista ao poder, sua convicção de que arte e política deveriam se manter separadas ou, ainda, seu conformismo manifesto em declarações como “não sou nenhum pacifista; ser contra a guerra é tão sem sentido quanto ser contra a morte”, são ineficazes para vencer o fatalismo e gerar transformações efetivas. Todavia, esta argumentação tramada pela montagem não relega a postura schoenberguiana, apenas atesta que a abrangência de uma obra excede a compreensão de seu autor acerca do que nela se desfecha. Dado aferido, concretamente, porque a duração do Opus 34 ultrapassaa comunicação do conteúdo das cartas de seu compositor. Ao perscrutar a conjuntura da gênese musical, cifrada na legenda “Perigo ameaçador, Medo, Catástrofe”, Huillet-Straub, num só golpe, validam os preceitos de Schoenberg, para quem “a única maneira de se conectar com o passado e a tradição” é “tratar […] da essência das coisas, ao invés de se contentar em desenvolver a técnica (de execução) de um material preexistente” (SCHOENBERG apud WOODS, 2012, p. 159), e assinalam suas contradições, alçando o embate modernista entre autonomia e engajamento. Introdução não cessa de proclamar: na expectativa de que a obra artística se reconheça autônoma, debruçando-se, com minúcia, sobre sua própria estruturação, mais se descobre a natureza sócio-histórica de seus materiais.
O filme avança com a reprodução do fragmento do discurso brechtiano por Peter Nestler, num plano similar ao de Straschek. O começo deste segmento, porém, mostra o engenheiro de gravação manejando a mesa. Daí, a câmera opera uma panorâmica para a direita, em direção a Nestler, atrás do vidro do estúdio. Há, por fim, um reenquadramento aproximativo. Tal prelúdio, mais do que ressaltar um ponto de virada lógico, vem “(re)marcar no aparelho uma enunciação (o efeito e a legitimidade de sua ‘tomada de palavra’), que o aparelho despossui a priori” (DANEY, 2007, p. 101). Em canal estatal, Brecht ataca a barbárie intrínseca ao sistema capitalista, da qual a mídia é também fundamento com sua narrativa oficial aniquilante. O cerne da discussão consiste no grau de visibilidade da violência perpetrada pela concentração privada dos meios de produção: “Alguns países ainda são capazes de manter suas relações de propriedade por meios menos abertamente violentos. Neles, a democracia ainda presta serviços para os quais outros países devem recorrer à violência.” Assim, ao pressupor a função da indústria audiovisual neste embuste, Huillet-Straub performam o gesto autorreflexivo do filme, isto é, tomam-no como construto cuja presença resiste no limiar entre a erosão da ordem estabelecida e o horizonte de emancipação. O primeiro plano de Introdução, em que jorra um filete de água da fonte del Mascherone, ao som direto da via Giulia, em Roma, configura uma alegoria pétrea de tal força subterrânea apta a minar uma instituição embrutecedora. Ademais, este plano, com notáveis alterações, encerra o longa-metragem Lições de História (1972), adaptação huillet-straubiana de Os Negócios do Senhor Júlio César (1937-39), romance incompleto de Brecht, no qual se desmitifica a efígie do imperador em analogia com a desedificação da autoridade de Adolf Hitler.
A presença cônscia de Introdução se corrobora pela utilização da cor. Todos os planos de inserção de materiais referentes a Schoenberg e a cena da leitura de suas correspondências, bem como a do texto de Brecht, são filmados em preto e branco — convenção cinematográfica que delineia distâncias de episódios pretéritos. Já, quando Huillet-Straub se pronunciam ao espectador e, ao final, creditam a equipe, em letras azuis sob fundo negro, rapidamente convertidas em letras brancas sob fundo vermelho, opta-se pela película colorida, por causa do efeito de atualidade. O mesmo acontece no plano reciclado da fonte e na colagem de documentos que sucede a seção brechtiana. Ao som do Opus 34, anexam-se, intercaladas com telas pretas, de forma a preservar heterogeneidades: uma fotografia dos communards mortos pelo governo francês, no ano de 1871, enfileirados em caixões sem lacres, que se situa no Musée Carnavalet, em Paris; quinze planos do registro de um carregamento de aviões B-52's e da perspectiva aérea de explosões de napalm, durante a Guerra do Vietnã; uma manchete do jornal l’Unità sobre a absolvição de Walter Dejaco e Fritz Ertl, arquitetos dos crematórios e das câmaras de gás de Auschwitz; uma notícia do Die Presse, vienense, a respeito do exato assunto, contemporânea à fatura do filme. A foto, em tons de cinza, é circunscrita por bordas de um azul escuro, também verificáveis, num ínterim, na porção esquerda do quadro em que aparece a manchete. Não obstante sua isenção no plano seguinte, a câmera opera uma panorâmica para a direita, na extensão da chamada, retorna à coluna da esquerda e desce a página, conduzindo a atenção do espectador à decodificação da notícia. Quanto aos arquivos militares, a primazia do ato fílmico se expressa nos tênues flagrantes de sincronia com a trilha sonora dissonante: “o piscar das luzes de controle, na cabine de piloto do bombardeiro B-52, é escoltado pelo ritmo da música; a descarga e a descida estranhamente lenta das bombas coincidem com o pairar dos sons de um cluster” (BÖSER, 2004, p. 100). Por fim, as nuvens de fumaça se expandem em uníssono com um crescendo. Portanto, é Introdução que se coordena, notoriamente, como acompanhamento para a Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema.
Essa exteriorização dos procedimentos dos cineastas faz de Introdução uma argumentação audiovisual que escava uma filosofia da história sem conceitos, a partir do manuseio de objetos da cultura que guardam ou mesmo dissimulam vestígios de barbárie. Para que se extraia tal teor de verdade com rigor, Huillet-Straub suscitam a mútua determinação de seus materiais, de modo que cada um ressignifique os demais sem hierarquia. E, se, assim, depreende-se um desacordo com noções de progresso, infere-se, também, a negação do predomínio de um único momento sobre o restante do pensamento em que consiste o filme. Logo, apesar da impressão superficial de refutação do raciocínio schoenberguiano no decurso de Introdução, percebem-se, em retrospecto mnemônico, antecipações dos futuros desdobramentos. Schoenberg atinara, perfeitamente, com a nulificação das emoções perante assassinatos em massa: “Você não sabe que em tempos de paz todos ficaram horrorizados com um acidente numa ferrovia no qual quatro pessoas foram mortas, e que durante a Guerra se podia ouvir falar de 100.000 mortos sem nem tentar imaginar a tristeza, a dor, o medo e as consequências?”. Tal comentário já pressupõe o tópico da cegueira provocada pela racionalização da violência a ser ilustrado, mais tarde, na colagem de documentos que abarca um século de evolução tecnológica para o cometimento de crimes de estado. Não obstante, na encenação da resposta do compositor a Kandinsky, discernem-se traços de problemas suplementares igualmente agudos. Duas vezes mais, isto é, além daquela em que irrompe o Opus 34, o recurso a telas pretas não concerne a supressões de frases nos originais. Quando Straschek profere, em off, “é tão difícil imaginar isso?”, no tocante às agressões que a paixão antissemita acarretaria, e “…até que a hora da salvação venha!”, indício da renitência do povo hebreu desde eras antigas, duas questões emergem: a proibição das imagens própria ao judaísmo e a necessidade de narrar a Shoah. Em Moisés e Arão (1975), versão huillet-straubiana da ópera homônima de Schoenberg, articulam-se, justamente, o paradoxo de um Deus irrepresentável que intervém na realidade e os impasses da representação cinematográfica dessa experiência de irrepresentabilidade. Em Introdução, portanto, não somente se exibe o projeto estético-político de Huillet-Straub, como também transparecem algumas chaves de entendimento a respeito de bolsões argumentativos em outros de seus filmes não ensaísticos.
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