revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Ana Cristina JOAQUIM

A POESIA DE JATTIN & LA IMAGINACIÓN: LA LOCA DE LA CASA
(nota de apresentação)

 

 


A loucura, objeto dos meus estudos, era até
agora uma ilha perdida no oceano da razão;
começo a suspeitar que é um continente. 

O Alienista, Machado de Assis

Poesia e loucura, singularidade e comunidade, linguagem e vida: esses pares “conceituais” me parecem extremamente relevantes para se pensar a poesia de Raúl Gómez Jattin, poeta colombiano nascido em 1945, que viveu em Cereté, Bogotá, e Cartagena, onde morreu atropelado no ano de 1997. Entre hospitais psiquiátricos e uma adesão das ruas como morada, Jattin vive de modo desregrado e faz uso frequente de drogas: sua vivência me parece indissociável de um estilo poético insubmisso que o coloca ao lado de uma tradição poética que supõe poesia e vida como coincidentes – e vejam bem, não se trata da vida precedendo e justificando a obra, mas ao contrário: é a vida que encontra justificativa nos peculiares modos de concepção criativa. Conforme diria Roberto Piva: Só acredito em poeta experimental que tem vida experimental.
E não é a loucura, nos diferentes matizes em que se manifesta, uma experimentação – nem sempre voluntária, é verdade – cujo eixo se estabelece como uma afirmação ilimitada da singularidade? O singularíssimo comportamental (contra as regulações sócio-comunitárias) em paralelo ao singularíssimo uso da linguagem (contra as normas que viabilizam a comunicação no sentido utilitário); linhas de força que guiaram um sem número de artistas, seja pela baliza contingencial, como foi o caso de Van Gogh, Artaud, Ângelo de Lima, João César Monteiro, Maura Lopes Cançado, Stela do Patrocínio, Bispo do Rosário; seja ainda pelo elogio voluntário e consciente de uma postura que escapa aos condicionamentos pautados pelas padronizações das ordens diversas, conforme a reflexão de Shelling: (…) the utter lack of madness leads to another extreme, to imbecility (idiocy), which is an absolute lack of all madness (…). There is one kind of person that governs madness and precisely in this overwhelming shows the highest force of the intellect; conforme o entusiasmo de Almada Negreiros: Não tenhas mêdo de estares a ver a tua cabeça a ir directamente para a loucura, não tenhas mêdo! Deixa-a ir até a loucura! Ajuda-a a ir até a loucura. Vae tu também pessoalmente, co’a tua cabeça até a loucura!; conforme declaração de Herberto Helder: (…) nós, os loucos, nos alimentamos de apenas intransigência, emoções truculentas, cândida violência de ideias, e vivemos da luminosidade da própria cabeça.
A loucura, portanto, como manifestação de uma possível autonomia, em extensão aos desregramentos de concepção imaginativa: El psiquiatra está solo/ La sutil materia de sueños recuerdos y deseos/ es en el una escueta relación de datos/ ¿La imaginación? – la loca de la casa – / ¿De qué vive?/ Los sabemos sus locos, conforme palavras do próprio poeta, que diz ainda, com extrema lucidez: Y yo tan lúcido que hasta loco fui.
Agradeço ao amigo Jerónimo Pizarro por ter primeiramente me apresentado os versos preciosos de Gómez Jattin, e manifesto o desejo de que os poemas aqui traduzidos pelo empenho apaixonado de Marcelo Zoppi, em seleção entusiástica de Marcela Vieira, tenham o mesmo impacto sobre o público brasileiro que tiveram sobre mim, na ocasião de um primeiro contato. Que este seja, aliás, apenas o ponta pé inicial de um projeto editorial mais amplo. Trata-se de uma poética que resulta em inquietação e ampliação dos modos de percepção para além dos condicionamentos demarcados por ordenamentos morais e racionais/utilitários, pois a poesia alcança, com Jattin, sua potencia máxima: o direito de tudo dizer, o direito de fazer todas a perguntas, o direito de suspeitar da moral e das demais políticas de convivência socialmente reguladas: nada aqui é pressuposto.


Maio de 2017

 

 

    
    

 









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