revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Jorge Mattar Villela

Eleições como forma de governo

 

 


Eu queria começar com essa pergunta: para que servem as eleições? É uma pergunta feita em 1978 numa coletânea chamada Elections pas comme des autres. A diferença da minha pergunta para essa é que, ao contrário dos organizadores, eu não estou preocupado com situações em que já se sabe de antemão quem as vai vencer, a despeito do processo, em países autoritários ou em regimes totalitários. Meu problema se dirige, ao contrário, à constatação de que as eleições – e eu falo desde a posição de quem faz pesquisa de campo e etnografa eleições como antropólogo que sou –, ao menos no Brasil, mas certamente não apenas, que a prática de submeter uma população à escolha dos seus representantes tem muito menos a ver com a representação do que com uma maneira de fazer a política eleitoral penetrar em profundidade e em extensão nas vidas cotidianas das pessoas, organizando suas economias domésticas e até as formas e as funções das famílias.
Como venho insistindo há muitos anos, política, no Brasil, faz família. Quer dizer, família não é apenas um dado (biológico, natural) que, em virtude de suas solidariedades fundamentais, para usar a expressão de Moacir Palmeira, influencia a política, uma construção (cultural, social um artifício). Gostaria, ainda, de tentar apontar como é que esse esquema efetua a ligação da economia doméstica de milhões de brasileiros e brasileiras com as movimentações financeiras situadas muito longe do alcance deste interveniente.
Hoje, é claro, com todo o amargor possível, a resposta automática à minha pergunta inicial é: as eleições não servem para nada. Decerto, para nada do que o ideal das democracias modernas as fizeram propor a ser: escolher candidaturas que representem os interesses das pessoas que as escolheram. Interessante, no entanto, notar é que essas mesmas críticas já se puseram no momento mesmo de implementação dos sistemas representativos. Para isolar apenas três críticas contemporâneas a alguns momentos de implementação elaboradas por três personagens ainda célebres e relevantes para o cenário contemporâneo: a crítica de Rousseau, segundo a qual o voto implica necessariamente a abdicação da soberania; a de Étienne La Boétie, para quem os eleitos tornam-se imediatamente tiranos; e de Jean-Jacques Rousseau, que defende a ideia de que as eleições tornam-se o único momento em que o sujeito moderno exerce a sua soberania e que esse momento é precisamente a hora em que ele vai abdicar dela; que se ajusta à de Benjamin Constant: o voto é o ato da abdicação da soberania dos sujeitos e da sua vontade. Enfim, o século XVIII tardio testemunhou como uma aberração lógica um oximoro, a ideia de uma democracia representativa, assim como testemunhamos como uma aberração lógica do que vemos agora, quando abrimos os olhos e olhamos ao redor.
Porque, quando a palavra “democracia” é mencionada, os seus ideias, formados, em espessura, pelas ideias muito antigas de eleutheria (liberdade); isegoria (igualdade de quem fala); e isonomia (igual distribuição dos estatutos diante da lei); mas também com as mais modernas de uma teoria jurídico-política do poder centrada na vontade e na sua representação num aparelho governamental, associada a uma certa teoria do sujeito, da razão e da moral que lhe é contemporânea. Uma imageria, cujo a eficácia decerto impacta o que há de mais concreto, que contrasta com a impossibilidade da sua realização, e isso desde sempre e em qualquer lugar. Assim, a democracia representativa sofreu esse processo de telescopagem (se me é permitido o roubo dessa ideia) que contraiu, desde a sua invenção, proposta, falência, crítica e reforma, em simultâneo.
Resta, portanto, insistir na pergunta (um segundo pequeno roubo), tornando-a simultaneamente histórica e contemporânea: por que insistimos, ainda, nesse formato e por que o defendemos tão arduamente? Se as eleições, contatou-se logo, não serviam para o que elas se propunham, para que servem as eleições?
Por que, ainda, as eleições, mesmo quando se lutou, há dez anos, por uma democracia direta nas ruas da Madrid, para que se fueran todos, na Argentina, quando vemos o exercício do poder na própria desqualificação dos representantes eleitos, quando vemos revelada, ao vivo, a face ignara dos que o exercem, como aconteceu no 17 de abril?
Para o caso do Brasil do Segundo Reinado, um historiador notou que as eleições definitivamente não serviam para escolher os candidatos. Elas serviam para conferir estatutos, fazer circular alianças, efetuar o esquema geral dos quadros hierárquicos. Em uma palavra, e essa é a tese central do seu livro, as eleições eram uma drama, no sentido turneriano, da sociedade brasileira. Como se fossem uma contração sua e um lugar de especial transparência e visibilidade de seu funcionamento.
Mas o livro contém uma tese lateral, clara, embora enunciada sem densidade ou sem síntese. As eleições, no Brasil, eram uma forma de governar e administrar a população. Os votantes ia de sapato, diz um contemporâneo. Um votante podia ser isento de certas punições como a cadeia por embriaguez, ou ser liberado do recrutamento militar obrigatório. Assim, o título de eleitor tornou-se o documento mais importante de um cidadão brasileiro, ao menos até recentemente, até os anos 2000.
Ao se apresentar diante de uma autoridade para requerer ou solicitar algum serviço, podia acontecer de o solicitante levar consigo não apenas o seu, mas também os documentos eleitorais de toda a sua família. Conversamente, era importante durante toda a Primeira República o ato de “fazer eleitores”, de incorporar, tanto quanto possível, a totalidade da população, de inseri-las, de incluí-las nos processos eleitorais. Ser eleitor, fazer eleitor, eis aí duas das grandes tarefas de governo que se deu o Estado Brasileiro durante quase toda a sua extensão republicana; durante a sua longuíssima história eleitoral (as primeiras eleições no Brasil precederam em várias décadas as primeiras eleições americanas, vale lembrar). A terceira era a de promover eleições, e de fazê-las se proliferar. No ano de 1907, por exemplo, Pernambuco viveu 12 delas (e “viver” é bem a palavra apropriada). Pois saturar de política eleitoral e partidária a vida cotidiana era um dos meios mais radicais de organizar o mundo das pessoas em torno do que é central para a vida dos políticos: as próximas eleições.
Assim, organizaram-se as economias domésticas das pessoas fazendo com que elas aguardassem o próximo pleito e as despesas – eu diria dissipações – que a que ele se obriga. Mas, mais do que organizar as vidas das famílias esporadicamente, esse esquema de governo é capaz de fazê-lo de modo contínuo. E não apenas por meio da atribuição de empregos; algumas modificações da constituição de 1988 tornaram isso possível. O SUS é uma delas. Uma assistência médica que se quer uniforme, mas que funciona discricionariamente é um modo de tornar permanente a continuidade.
Foi a grande tarefa da administração da população brasileira ao longo das décadas amarrar todos os serviços, a vida, a morte, a felicidade e o amargor, a saúde e a doença, os nascimentos e os seus registros, a administração pública, enfim, e a privada também, ao voto. O voto e as eleições funcionam mais como forma de governo do que como modo de escolha dos governantes.

 

    
    

 









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ilustração: Rafael MORALEZ